LANÇAMENTO ESCRITURAS VI – TODO ABISMO É NAVEGÁVEL

Osvaldo Sarmento

Hoje, dia 02 de junho de 2021 foi a vez de Osvaldo Sarmento participar do Lançamento do Escrituras VI – Todo Abismo é Navegável. Sarmento, também conhecido como Saramago, é escritor, compositor e gramático. É a ele que consultamos sobre as nossas dúvidas da língua mãe. Se tudo isso não bastasse, ainda enche as nossas tardes com as suas tiradas de muito humor. Caminhar com ele pelas letras é garantia de alegria, da palavra certa, do olhar amigo. Salve, Sarmento/Saramago. Salve.

Aqui estão o texto completo que ele apresentou uma trecho no Instagram.

Amigos de infância


Osvaldo Sarmento


Ademir, Belisário e Cesar são amigos de infância que, desde cedo, mostraram-se vocacionados para a música. Durante anos, moraram na mesma rua, em Maceió, frequentaram a mesma escola e tiveram juntos aulas de violão. Ainda adolescentes, foram morar em diferentes cidades. Mais de uma década depois, o destino, teimoso como ele só, tratou de reuni-los num congresso de música na cidade do Recife. Assim que souberam da boa-nova, não perderam tempo. Combinaram encontrar-se em festejado bar da Rua da Moeda, no Recife Antigo, considerado por muitos o mais boêmio e poético bairro da cidade.

O encontro, regado à cerveja geladíssima, ótimos tira-gostos e refinada música, foi emocionante, com demorados abraços, lágrimas mal disfarçadas e notícias sobre os familiares. Tocante, sem dúvida! Pareciam lutadores sobreviventes de uma guerra devastadora. Relembraram bastante as muitas estripulias de meninos e um pouco menos sobre suas vidas profissionais. Com o teor etílico no sangue já um pouco elevado, chegou a vez de falarem das coisas do coração.

O primeiro foi Ademir. Com voz embargada, se disse arrasado.

– Descobri que Maria Rita me traia com Isaias, lembram-se dele? Aquele comerciante de secos e molhados lá da rua, uns dez anos mais velho que nós. Feio que só briga de foice. Falei com ela, pedi explicações. “Demi, meu amor, sei que você não vai acreditar, mas juro que é verdade. Só Deus sabe o que foi o aperto lá em casa, até fome passamos. E depois que papai conseguiu um emprego, não arranjei jeito de largá-lo. Sei que fiz coisa muito errada, não mereço perdão, mas juro pela mãe de Jesus, que hoje mesmo dou-lhe as contas.” Perdoei-a… mas de nada adiantou. Fugiu, com quem não sei. Deixou-me um bilhete dizendo-se precisada de um homem que a mantivesse em rédeas curtas, não de um corno. Choro todo dia, não aguento tanta solidão.

– Como assim, irmão? Falas em solidão tendo em volta amigos e familiares?

– Não sei te explicar César, só sei que ódio, desprezo ou indiferença não são solução para amor não correspondido. Perdoaria a ingrata, só para tê-la de volta.

Belisário, por sua vez, também se disse arrasado. Seu namorado Pietro ganhou uma bolsa de estudo, por um ano, de uma Fundação patrocinada pelo maior estilista Italiano da atualidade.

– Mesmo com o coração partido, fui seu maior incentivador. Teimou que só iria para a Itália se fosse comigo, o que era impraticável. Ponderei bastante para convencê-lo. “Talento enorme como o seu não basta para impulsionar uma carreira se não se tem um empurrãozinho do destino… Se fosse eu, agarraria com unhas e dentes essa oportunidade única… Se pusermos fé no amor que temos um pelo outro, um ano de separação a gente aguenta, com sofrimento é verdade,… Muito pior era trinta anos atrás quando não havia a facilidade da comunicação de hoje…” – “Não sei Beli, estou apavorado, sinto-me frágil, demasiadamente carente… Promete que não vai me esquecer, que todo santo dia me telefonará? Promete que não vai me trair?” – “Claro, garoto.” E assim, ainda bastante amedrontado, se foi. No mesmo dia me telefonou. Foram dois meses de idílio, por telefone e longas mensagens. Apesar da saudade, sentia-me confortado, feliz. Depois, bem, depois a coisa foi se complicando. Alegava ter esquecido o celular quando saíra de casa. Em lugar das juras de amor, frases reticentes. No terceiro mês, disse-me, com ares festivos, que lhe fora oferecido um emprego, para assim que terminasse o curso. Isso pelo próprio presidente da Fundação! No mês seguinte, falou que havia conhecido um belo ragazzo, Alessandro, filho de um importante empresário italiano. Por último, pediu um tempo e, daí por diante, só recebi mensagens de “o número desse telefone não existe”. A partir de então, aquele vazio, aquela falta. Solidão é o que eu sinto, apesar de rodeado de gente por tudo o que é lado.

– E por que isso, meu rapaz?

– Não sei, Cesar, só sei que é assim, como diria Chicó1.

– Homem de Deus, não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe, como diz o velho e sábio ditado português. Quer saber de uma coisa? Nunca chorei por um amor perdido e desconfio que sei a razão. Garanto que, sem muito esforço, achará outro que lhe dê mais alegria.

Ao começar a falar sobre seus sentimentos, César se disse surpreso com o sofrimento dos amigos.

– E olhem que, em coisas do coração, não sou nenhum iniciante. Os dedos das mãos são poucos para contar os namoros, às vezes dois ao mesmo tempo. Tive até uma amigação passageira, e pulei de alegria quando se desfez. De algumas pessoas, gostei muito. Amor entre enamorados é muito bom enquanto dura, mas não precisa ser traumático quando acaba. É diferente do amor pela mãe da gente, único, insubstituível. Acho que sofreria de solidão se minha mãe tivesse me abandonado. Ausência física? Não. Pelo que ouvi falar, conta menos do que se imagina. A ausência da pessoa amada, em si, não causa solidão. O contrário também não garante cura para ela. Tenho um exemplo na família. Apesar de viver grudada no marido, uma das minhas tias queixa-se da maldita. Quando mãe partiu, que Deus a tenha, fez muita falta; deixou-me saudade, mas não solidão.

– Deus me livre, acho que se Maria Rita morresse eu partiria também: de solidão e desesperança. Juro, por tudo que é mais sagrado, que ainda acredito na reconciliação. Um dia, ela voltará arrependida para termos uma linda história de amor!

– Continuando, dou certeza que meu sentimento de solidão por abandono de mamãe não seria o mesmo de vocês. A propósito, acho nosso idioma paupérrimo nesse quesito de paixão, amor, solidão e quejandos. A paixão por futebol, por exemplo, nada tem a ver com a paixão por uma pessoa. Eu não tenho sexo com o futebol. Então o que sinto por ele é tudo menos paixão. Sentimentos diferentes deveriam ter nomes distintos, concordam?

– Sim e não! Talvez fosse bom cada palavra ter um só significado, mas o que importa mesmo é que entendam o verdadeiro significado do que estou a dizer. Amo Pietro e faço amor com ele! Amo meu pai, simplesmente! Entendeu o sentimento de amor nos dois casos?

– Pois bem, os poucos momentos em que me vi como amante largado foram aqueles em que mais arduamente me entreguei ao trabalho. Minhas melhores criações musicais nasceram ali. Eles foram, igualmente, ocasiões propícias de olhar mais pro céu e brincar de contar estrelas; de prestar mais atenção no gorjeio dos passarinhos no meu quintal; de revisitar os álbuns de minhas viagens para rememorar aquele lago plácido de tal lugar, cânions, cachoeiras e outras tantas coisas exuberantes feitas pelo capricho da natureza; de dedicar mais tempo ao meu cachorro e ao meu bichano, para recompensá-los pela alegria que me proporcionavam. Às vezes penso que o que fiz e farei nessas fases da vida, seja o antídoto ideal para prevenir essa doença. E vocês, o que dizem disso?

– Eu fico em dúvida quanto a teu antídoto. Lembro-me de estar em viagem de turismo, quando minha tia me telefonou para dizer que, enquanto eu me deleitava com as cataratas do Iguaçu, o “profeta” Isaias se fartava nas curvas exuberantes de minha Maria Rita. Desde então, a simples lembrança de qualquer cachoeira, mixuruca que seja, me põe a chorar.

– Belíssimos tolos, estamos bebendo na calçada deste bar e, neste momento, sem ser notada, paira sobre nós a lua, cheia, bela e poética. Garanto que esqueceram a estrela d’alva que, daqui a poucas horas, fulgurante como sempre, fará sua aparição. Ponham-se no lugar delas, vejam-se num palco dando o máximo de si e nenhum aplauso vindo da plateia. Como reagiriam, seus insensíveis? Elas, como nós, também se sentem desprezadas, solitárias. Vocês choramingam à toa! Agora que terminei meu sermão, vou me ausentar, se me permitem. Não previ que nosso encontro fosse tão prazeroso e se prolongasse tanto. Conheci, ontem, uma pessoa interessante e prometi aparecer numa balada perto daqui, onde ela disse que ia com alguns amigos. Espero não demorar muito, a não ser… Bem, voltarei.

A farra continuou animada, mesmo com a ausência temporária de Cesar. A cerveja descia com facilidade, os tira-gostos divinos, assunto não faltava, mas aqui e ali, voltavam ao ponto doloroso de seus amores desfeitos. Em um desses momentos, Ademir, em consonância com o conselho do companheiro ausente, propôs que tentassem compor algo que retratasse o sentimento da solidão de que padeciam e que, de alguma forma, também remetesse à conversa deles três. Em meio a generosos goles, foram construindo simultaneamente versos e melodia.

Quando Cesar reapareceu, pediram que desse uma olhada nos rabiscos da composição.

– Não concordo com a essência do que está dito, mas a fizeram de maneira simples e interessante. Mudaria umas poucas palavras, isso por questão de sonoridade, por exemplo, trocaria dito por refrão. Quanto à melodia, acho que posso melhorar a introdução. As mudanças sugeridas foram aceitas pelos dois amigos, e a letra restou desse jeito.

Castigo do Amor

Sei que o amor existe
Solidão também
E que em dias tristes
Há de haver alguém
Com uma palavra amiga,
Um refrão que diga
Que se um dia é triste
Outro alegre logo vem
Na senzala do amor
Um castigo é a solidão.
Não me dê como certeza
E me conte a razão,
Sei que a sobra é de tristeza
Mas me falta explicação.
Por um bem que vai embora,
Há alguém que ama e chora.
Não é verdade que se um vai,
Outro chega ao coração.
Quase sempre é que se um vai,
Outro sofre em solidão.

Mais alegres do que cansados, pagaram a conta com generosa gorjeta e saíram em busca da aurora que não tardava. Amparavam-se um no outro para, com passos trôpegos, empreenderem a curta, mas a essa altura difícil jornada até o Marco Zero. Não se cansavam de solfejar a canção, apesar da língua engrolada. Quando a erravam, gritavam “puta que pariu”, “caralho”…. Os impropérios, favorecidos pelas condições da madrugada, ecoavam pelas ruas vazias, e chegavam a bater inutilmente na porta da Igreja da Madre de Deus, onde os santos, piedosos por definição, faziam ouvidos de mercador para as blasfêmias dos arruaceiros.

Enfim chegaram. Quem por ali passasse àquela hora demoraria a acreditar no que via: a praça deserta do Marco Zero, suavemente varrida pela brisa vinda do oceano a sua frente, era palco de brincadeira de três marmanjos embriagados, em algazarra de muitos decibéis. Mal se sustentando em pé, jogavam Amarelinha, sem obediência às regras e cada qual querendo passar a perna nos demais. Recriavam momentos marcantes, onde juntos, felizes, brincavam, em noites de lua cheia, na mal iluminada Zacarias de Azevedo, rua de areia fofa, em Maceió.

Quando o sol se dispôs a abandonar seu esconderijo noturno e a apressada estrela d’alva preparava-se para sair de cena, interromperam o folguedo e se postaram de frente para o mar, fitando o horizonte em respeitoso silêncio. Lágrimas lhes escorriam pelas bochechas. Depois, em soluços, Ademir e Belisário imploravam ao pedacinho já visível do sol que trouxesse de volta Maria Rita e Pietro, “para não morrerem de solidão”, diziam repetidas vezes.

Um pouco atrás, Cesar balbuciava nunca ter visto um nascer de sol tão belo. “Só pode ser porque o estou vendo desta praça, deste lugar mágico, relicário de tanta história.” Mas notando o miserável estado dos dois companheiros, desmanchou-se em lágrimas também. E não chorava por ter sido abandonado por marias ritas ou pietros ou por quem quer que fosse. Eu choro é de dó deles, porra! Nem amigos, parentes, lua, sol, estrela d’alva, madrugada radiante são capazes de mandar para as cucuias essa tal de solidão da vida deles!

“Mas, afinal, o que é solidão? É mandinga, é coisa do diabo?” Virou-se para uma gaivota madrugadora que havia pousado perto do grupo com ares de curiosidade, e fez-lhe as mesmas indagações. A ave deu mostras de que também não sabia e, amedrontada, voou em direção ao oceano, talvez em busca do abrigo das asas de sua cara-metade. Por fim, desesperado, mas provido com a sinceridade dos bêbados e cheio de intimidades para com o astro-rei, voltou-se para ele e implorou.

– Por favor, meu rei, despache-me uma dose caprichada de solidão. Não me mande uma qualquer. Quero aquela que se abate sobre os amantes abandonados, para que eu a sinta, compreenda-a e ajude-os a recobrar a alegria de viver… ou então… deixe-me morrer do mesmo mal, encangado a esses dois filhos da mãe abestalhados.


1 Personagem de “O Auto da Compadecida”, obra imortal de Ariano Suassuna.

A VISTA ENCANTADA

A arte construída de palavras

Lourdes Rodrigues

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia

Cadáver adiado que procria? 

Quando eu li A Vista Encantada, senti uma emoção muito forte. Obra escrita por dois escritores iniciantes no fazer literário, que contrariava completamente o adjetivo atribuído aos seus autores. Ao entrarem na Oficina, há cerca de dois anos, eles haviam confessado jamais terem escrito um conto. Elizabeth havia organizado, sob a forma de livro, alguns textos em memória do seu pai. E Fernando, escrito poemas no ardor da paixão por sua mulher, Adriana. Afora isso, apenas escritos esparsos.  Assim, tudo era novo e o desafio grande, diziam. E ali estava uma novela que me encantava a ponto de parar seguidas vezes a sua leitura para dizer: gente, que criatividade! Mais pareciam dois escritores experientes brincando com as palavras.

O que aconteceu? Escrever ficção é uma tarefa difícil. Não estou querendo dizer que o escritor é um ser ungido pelos deuses para exercer tal missão. Ou detentor de capacidade cognitiva superior ao normal. Longe de mim querer deificar aquele que escreve. Até porque o escritor está mais próximo do operário e do artesão na labuta incessante, no eterno recomeço, assim como Sísifo, do que de um ser iluminado pelos céus ou cérebro privilegiado. Fazer ficção é difícil porque é um trabalho insano, esse de escrever e reescrever, indefinidamente, em busca de um ideal inalcançável, de um Ideal do Eu para sempre perseguido e jamais atingido. E ainda ter que enfrentar a expectativa angustiante da reação dos ávidos leitores-juízes-críticos literários após a publicação, para enfim fechar o ciclo da sua peregrinação.  Sim, porque o ato criador, em si, é incompleto e abstrato, como bem o diz Sartre. Para se materializar ele precisa do receptor, do leitor. Só existe arte por e para outrem. Virgínia Woolf é ainda mais contundente quanto a esse momento ao dizer, em seu diário, que o pior da escrita é ficarmos tão dependentes de louvores. Na verdade, por trás dos supostos louvores está a consolidação da obra. Para aliviar a sua própria angústia diante da espera e ao mesmo tempo dar a verdadeira dimensão da Literatura para aquele que escreve, ela diz: …o fato essencial permanece inalterável, que é o fato do meu próprio prazer na arte. O prazer na arte construída pelas palavras é o que torna alguém efetivamente escritor, o que o faz suportar o sofrimento e o esforço permanente que ela exigirá para sempre dele.

A Vista Encantada está sendo entregue ao leitor, agora, cumprindo a última etapa de uma trajetória que efetivamente começou quando o amor pela escrita fez Elizabeth Freire e Fernando Gusmão participarem de uma oficina de criação literária e extraírem dela motivação suficiente para começarem a escrever ficção. A oficina não os ensinou a escrever. Costumo repetir uma frase de Roland Barthes: só se escreve, porque se lê. Entretanto, não é qualquer leitura que leva alguém a ser escritor.Tantos leem, tão poucos escrevem. Mas, uma leitura particular, que aprisiona o leitor e torna-o desejoso de também ele escrever. Ávidos leitores, Elizabeth e Fernando desenvolveram um vir a ser escritor que pavimentou a estrada deles até a Oficina de Criação Literária Clarice Lispector. A partir de uma intimidade maior com o conjunto de conhecimentos básicos da teoria literária, das ferramentas e técnicas oferecidas, das leituras instigantes de autores consagrados e dos próprios viageiros e viageiras que ali também navegavam, esses autores percorreram seus caminhos, destravaram possibilidades, criatividade, refinaram estilos, potencializaram talentos, identificaram suas vozes narrativas muito particulares.

O grupo que constitui a Oficina é bem mais do que uma soma de pessoas. Cada participante traz sua grupalidade anterior, suas tradições e seus costumes, as funções e posições particulares, as paixões, sua visão de mundo inclusive, suas contradições, e uma vez integrante do grupo, a partir da sua interação com ele, gera uma nova totalidade. A magia da fabulação, da fantasia, da Literatura, enfim, é o traço que une a todos. Quanto mais forte é esse laço, mais o grupo se consolida, inclusive nas suas diferenças. É desse encontro amoroso com a Literatura, desse intenso exercício de sensibilidade, que as armadilhas contidas nas palavras levam seus participantes a fazerem a travessia da leitura para a escrita, como um deságue natural.  E o êxito alcançado na construção de uma escrita é vivenciado por todos como se de cada um deles o fosse.

Elizabeth e Fernando fizeram uma criação conjunta e paralela que iniciou com uma brincadeira e acabou em coisa séria: uma novela. O tema trazido por eles, a loucura, veio de uma forma leve, agradável sem perder, em absoluto, a seriedade e profundidade que merece. Os personagens protagonistas são muito ricos. Como todo louco, eles detêm em seu interior a própria verdade.  Não têm dúvida de quem são. E assim são reconhecidos. Dionísio Mariano da Conceição acredita ter descendência estrangeira, ser parente distante de um imperador chinês. Diz-se proprietário de uma moto que usa o vento como combustível e de um cavalo que se alimenta de sonhos. É um homem feliz, que toca vários instrumentos musicais e canta, faz shows que os muitos amigos aplaudem calorosamente. A cidade o acolhe nas suas diferenças.  Usa sempre o mesmo paletó que não lava desde que a mãe morreu, guardando amorosamente nele suas lembranças.  Guarda-Roupa, tropeiro, comerciante, após uma refeição pantagruélica teve uma congestão que lhe abriu as portas para um universo de fantasias, fantasmas e espectrais. Guarda-roupa não tem dúvidas quando vê Dionísio montado em seu fogoso alazão de pelagem vermelha acastanhada. Dionísio não duvida, também, quando recebe das mãos de Guarda-Roupa uma carta escrita numa língua chinesa, supostamente o Mandarim, que ele domina, entre tantas outras. Além deles, outro personagem muito forte é o Amarelinho, que acompanha Guarda-Roupa e revela parentesco com Dionísio. Os três Mosqueteiros partem em busca da lâmpada de Aladim, para viverem uma aventura incrível cheia de episódios pitorescos, hilários.

Essa saída do mundo real para a fantasia, se é que se pode dizer que Dionísio e Guarda-Roupa já não haviam atravessado há muito tempo essa fronteira, por mais fantástica que seja, em que a realidade é transfigurada, dando-lhe um novo formato, o de uma realidade imaginária ficcional, tornou esses magos inventores em escritores. A atração que o tema exerce levou Foucault a afirmar que a loucura é um saber. Eu diria que, para os escritores em particular, a loucura, enquanto abismo da alma, é um vasto e profundo campo de criação poética e ficcional. Parabenizo Elizabeth Freire e Fernando Gusmão pela maestria com que eles trataram um tema tão profundo de forma tão literária. 

Quando eu li A Vista Encantada, senti uma emoção muito forte. Obra escrita por dois escritores iniciantes no fazer literário, que contrariava completamente o adjetivo atribuído aos seus autores. Ao entrarem na Oficina, há cerca de dois anos, eles haviam confessado jamais terem escrito um conto. Elizabeth havia organizado sob a forma de livro alguns textos em memória do seu pai. E Fernando escrito poemas no ardor da paixão por sua mulher, Adriana. Afora isso, apenas escritos esparsos.  Assim, tudo era novo e o desafio grande, diziam. E ali estava uma novela que me encantava a ponto de parar seguidas vezes a sua leitura para dizer: gente, que criatividade! Mais pareciam dois escritores experientes brincando com as palavras.

O que aconteceu? Escrever ficção é uma tarefa difícil. Não estou querendo dizer que o escritor é um ser ungido pelos deuses para exercer tal missão. Ou detentor de capacidade cognitiva superior ao normal. Longe de mim querer deificar aquele que escreve. Até porque o escritor está mais próximo do operário e do artesão na labuta incessante, no eterno recomeço, assim como Sísifo, do que de um ser iluminado pelos céus ou cérebro privilegiado. Fazer ficção é difícil porque é um trabalho insano, esse de escrever e reescrever, indefinidamente, em busca de um ideal inalcançável, de um Ideal do Eu para sempre perseguido e jamais atingido. E ainda ter que enfrentar a expectativa angustiante da reação dos ávidos leitores-juízes-críticos literários após a publicação, para enfim fechar o ciclo da sua peregrinação.  Sim, porque o ato criador, em si, é incompleto e abstrato, como bem o diz Sartre. Para se materializar ele precisa do receptor, do leitor. Só existe arte por e para outrem. Virgínia Woolf é ainda mais contundente quanto a esse momento ao dizer, em seu diário, que o pior da escrita é ficarmos tão dependentes de louvores. Na verdade, por trás dos supostos louvores está a consolidação da obra. Para aliviar a sua própria angústia diante da espera e ao mesmo tempo dar a verdadeira dimensão da Literatura para aquele que escreve, ela diz: …o fato essencial permanece inalterável, que é o fato do meu próprio prazer na arte. O prazer na arte construída pelas palavras é o que torna alguém efetivamente escritor, o que o faz suportar o sofrimento e o esforço permanente que ela exigirá para sempre dele.

A Vista Encantada está sendo entregue ao leitor, agora, cumprindo a última etapa de uma trajetória que efetivamente começou quando o amor pela escrita fez Elizabeth Freire e Fernando Gusmão participarem de uma oficina de criação literária e extraírem dela motivação suficiente para começarem a escrever ficção. A oficina não os ensinou a escrever. Costumo repetir uma frase de Roland Barthes: só se escreve, porque se lê. Entretanto, não é qualquer leitura que leva alguém a ser escritor.Tantos leem, tão poucos escrevem. Mas, uma leitura particular, que aprisiona o leitor e torna-o desejoso de também ele escrever. Ávidos leitores, Elizabeth e Fernando desenvolveram um vir a ser escritor que pavimentou a estrada deles até a Oficina de Criação Literária Clarice Lispector. A partir de uma intimidade maior com o conjunto de conhecimentos básicos da teoria literária, das ferramentas e técnicas oferecidas, das leituras instigantes de autores consagrados e dos próprios viageiros e viageiras que ali também navegavam, esses autores percorreram seus caminhos, destravaram possibilidades, criatividade, refinaram estilos, potencializaram talentos, identificaram suas vozes narrativas muito particulares.

O grupo que constitui a Oficina é bem mais do que uma soma de pessoas. Cada participante traz sua grupalidade anterior, suas tradições e seus costumes, as funções e posições particulares, as paixões, sua visão de mundo inclusive, suas contradições, e uma vez integrante do grupo, a partir da sua interação com ele, gera uma nova totalidade. A magia da fabulação, da fantasia, da Literatura, enfim, é o traço que une a todos. Quanto mais forte é esse laço, mais o grupo se consolida, inclusive nas suas diferenças. É desse encontro amoroso com a Literatura, desse intenso exercício de sensibilidade, que as armadilhas contidas nas palavras levam seus participantes a fazerem a travessia da leitura para a escrita, como um deságue natural.  E o êxito alcançado na construção de uma escrita é vivenciado por todos como se de cada um deles o fosse.

Elizabeth e Fernando fizeram uma criação conjunta e paralela que iniciou com uma brincadeira e acabou em coisa séria: uma novela. O tema trazido por eles, a loucura, veio de uma forma leve, agradável sem perder, em absoluto, a seriedade e profundidade que merece. Os personagens protagonistas são muito ricos. Como todo louco, eles detêm em seu interior a própria verdade.  Não têm dúvida de quem são. E assim são reconhecidos. Dionísio Mariano da Conceição acredita ter descendência estrangeira, ser parente distante de um imperador chinês. Diz-se proprietário de uma moto que usa o vento como combustível e de um cavalo que se alimenta de sonhos. É um homem feliz, que toca vários instrumentos musicais e canta, faz shows que os muitos amigos aplaudem calorosamente. A cidade o acolhe nas suas diferenças.  Usa sempre o mesmo paletó que não lava desde que a mãe morreu, guardando amorosamente nele suas lembranças.  Guarda-Roupa, tropeiro, comerciante, após uma refeição pantagruélica teve uma congestão que lhe abriu as portas para um universo de fantasias, fantasmas e espectrais. Guarda-roupa não tem dúvidas quando vê Dionísio montado em seu fogoso alazão de pelagem vermelha acastanhada. Dionísio não duvida, também, quando recebe das mãos de Guarda-Roupa uma carta escrita numa língua chinesa, supostamente o Mandarim, que ele domina, entre tantas outras. Além deles, outro personagem muito forte é o Amarelinho que acompanha Guarda-Roupa e revela parentesco com Dionísio. Os três Mosqueteiros partem em busca da lâmpada de Aladim, para viverem uma aventura incrível cheia de episódios pitorescos, hilários.

Essa saída do mundo real para a fantasia, se é que se pode dizer que Dionísio e Guarda-Roupa já não haviam atravessado há muito tempo essa fronteira, por mais fantástica que seja, em que a realidade é transfigurada, dando-lhe um novo formato, o de uma realidade imaginária ficcional tornou esses magos inventores em escritores. A atração que o tema exerce levou Foucault a afirmar que a loucura é um saber. Eu diria que, para os escritores em particular, a loucura, enquanto abismo da alma, é um vasto e profundo campo de criação poética e ficcional. Parabenizo Elizabeth Freire e Fernando Gusmão pela maestria com que eles trataram um tema tão profundo de forma tão literária. 

Aos leitores dessa novela, desejo a vista encantada de Dionísio e Guarda-Roupa para que possam acompanhar com prazer a aventura desses heróis.

                      A Vista Encantada sob as minhas vistas
                                      O atributo alt desta imagem está vazio. O nome do arquivo é IMG-20181211-WA0044-CADERNO-2.jpg                                         
                                             Osvaldo Sarmento 
  
 Nunca tomei coragem para fazer alguma apreciação formal sobre qualquer obra literária. Na verdade, sinto que me faltam credenciais para escrever  resenhas, simples que sejam. Mas, dessa vez, sinto-me encurralado por uma determinação. Digo determinação porque   pedido de Lizá ou Fernando, para mim é uma ordem. Avaliem os dois juntos!
 Para piorar  o embaraço, encontro-me, coincidentemente, num período de rebeldia, de insatisfação com meus escritos pretensiosamente literários. Noto-os parecidíssimos, no jeitão de arrumar as palavras, com  meus antigos ofícios ao magnífico reitor. Tento desesperadamente mudar de padrão e quando, exausto, me debruço sobre o resultado desse esforço, deparo-me, não com um texto coerente, mas com um monte de palavras brigando entre si. Daí, volto ao estilo a que fui acostumado.
 Feita a confissão, passo sem mais delonga ao cumprimento da ordem de comentar A Vista Encantada. Da maneira que posso. Minha única certeza é a de que dessa pretensa mata literária não sairá coelho algum. Tampouco resenha, pela razão que já expus. Ainda não sei o que dizer, mas vou dizendo.
 I
 Imagino-me, neste momento, um caso singular de alteridade (será esse o nome mesmo?) com muitos alter egos. Assumirei agora a condição de um leitor, digamos, genérico,  provavelmente longe do ‘ leitor ideal’ dos autores de A Vista Encantada.
 A obra, de conformidade com o que consta na segunda capa, é uma fantasia, uma viagem que conta os acontecidos em périplo imaginoso para um destino incerto e não sabido. Essa chamada, não sei exatamente o porquê, levou-me a uma questão que sempre me incomoda e para qual não tenho obtido resposta: a linha divisória entre o que se convencionou denominar fantasia e realidade.
 Começo por afirmar, com convicção, que já voei: ou fazendo asas de meus braços,ou em cima de um tapete. Antes que me joguem pedra, devo dizer que essa graça alcancei enquanto dormia. Não há dúvida que foi uma  sensação maravilhosa.
 Consegui, também, escapar de areias movediças, frequentemente acordando, desesperado, quando já estava com a areia pelo pescoço. E não só isso. Abri, com uma simples palavra de ordem, portas de pedra de cavernas exuberantes, perigosas. Sobrevoei parte da África vendo elefantes, girafas, leões, hienas,  a conviverem pacificamente. E da mesma forma como tenho saudade de lugares que conheci em viagem de turismo, sinto falta desses meus devaneios, com a ajuda do qual degustei situações esplêndidas.
 E o que dizer dos tempos de menino e adolescência, quando, igualmente,  experienciei inúmeras “realidades”, em minhas ocasiões de solitude ou abandono? Não posso chamar isso tudo de fantasia. São coisas imateriais, é verdade, mas nem por isso deixei de sentir as mesmas emoções. É por essa razão que não aceito excluí-las do universo das realidades e fico feliz quando sou remetido a situações que me façam recordar esses momentos marcantes de minha vida. 
 Umas poucas vezes, duvidei de minha sanidade mental, mas finalmente me convenci de que que estou entre o imenso grupo de pessoas consideradas normais, as quais, como eu, têm sonhos similares e infância parecida nesse aspecto. E, em assim sendo, desconfio que, igualmente a mim, achem prazerosa a leitura de uma bem contada história de Trancoso.
 Se o propósito de Lizá e Fernando foi encantar leitores, com seu A Vista Encantada, no que me toca, foram bem sucedidos,. Embarquei fácil nas peripécias de Dido, Guarda Roupa, Amarelinho, Catota e, mais adiante, nas do gênio da lâmpada, narradas pelos dois primeiros personagens.  Comparo a leitura da obra a um deslizar de cisne em lago sereno. Nada de tropeços, solavancos, enfado; nada da necessidade de voltar lá atrás para colher um detalhe, um nome de pessoa, ou o que quer seja para que continuemos a compreender o enredo. Tampouco necessidade de reler longos parágrafos, necessidade essa por conta talvez da construção de extensas sentenças, prenhes de hipérbatos que rivalizem com nosso hino nacional, e escassez de pontuação, como nos escritos de Saramago. Em suma, para o leitor do meu tipo, A Vista Encantada é desses livros de se ler numa única sentada, levando em conta que a tarefa é um pouco facilitada por termos diante de nós apenas 147 páginas.
 II
 Agora, vou na gaveta da escrivaninha e pego, da coleção de crachás de identificação, o último que usei como servidor do Ministério Público Federal, no cargo de pericial em Economia. Minha função era dar pareceres em processos judiciais que envolviam assuntos de caráter econômico. Contudo, como a quantidade de trabalho em minha área era escassa, passava horas e horas lendo livros de Direito e processos que me pareciam interessantes. Ou então, tirando dúvidas com os colegas, quase todos com formação em Direito.  Minha intenção, segundo brincadeira dos companheiros de trabalho, era tornar-me o melhor rábula do Recife.
 Desempoeirei o crachá, pendurei-o, com certo orgulho, no peito e decidi reler A Vista Encantada. Não tão encantada assim, penso eu! Confesso que fiquei pasmado com a desfaçatez do que lá está. A obra descreve a ação de uma organização criminosa (ORCRIM), contada por dois meliantes do grupo – Dido e Guarda Roupa – com vistas a cometer ilícitos financeiros. No caso, um delito fazendário, sob encomenda de um tal de seu Ribeiro, o Brahma-Quente. A recompensa da quadrilha era ver realizado, por um gênio inescrupuloso, um número fixo de desejos de seus integrantes. E aí, numa primeira e incompleta análise, constatei que um diligente promotor de justiça vislumbrará vários outros ilícitos capitulados em lei como, por exemplo, formação de quadrilha, apologia ao crime, obstrução de justiça e por aí vai.
 As penas certamente serão diferenciadas de acordo com o papel da cada membro da quadrilha. Dido e Guarda-Roupa estarão sujeitos a castigo maior do que Amarelinho e Catota. Os dois primeiros, além de executantes do crime, são responsáveis pela contação de uma pérfida história, de maneira tal, que leva o inocente e desavisado leitor a torcer pelo sucesso da quadrilha. Dido é o mais perigoso dos dois contadores: uma carinha angelical, faz-se de doidinho inofensivo para gerar simpatia e comiseração. E não só isso: mostra-se astuciosamente um desinteressado em riqueza pessoal. Deixa a entender que abrirá mão do prêmio por sua participação na pilhagem do erário público em prol do povo de sua terra natal, Riacho Fundo, castigada pela seca. Que pedirá ao gênio pra fazer chover em sua região, para sempre e na hora necessária. Pura enganação do fingido! Primeiro, porque ele sabe que a chuva adicional que cairá em seu torrão, faltará, na mesma proporção, em outra localidade igualmente castigada. Ele, como Lavoisier, sabe que, na natureza, nada se cria e nada se perde. Segundo, o avanço das investigações provará que Dido, através de seu laranja a ser ainda identificado, é o verdadeiro proprietário de um alentado latifúndio daquela região e se locupletará com a regularidade das chuvas.  
 Catota, o cachorro falante, terá necessariamente uma punição acentuadamente menor, por conta de sua bem inferior expectativa de vida. Deverá cumprir pena em canil público apropriado. Seu Ribeiro pegará a maior das penas convencionais por ter sido o mandante do crime.
 Há o caso especial do Gênio da Lâmpada. Parece que não há provisão legal, no momento, para sancionar sua conduta reprovável. Isso  poderá ser resolvido através de projeto de lei para mudança do Código Penal. Uma proposta razoável de penalidade pelo mau uso de poderes mágicos poderá ser seu “reenlampadamento” por pelo menos dois milênios, sem direito, nesse período, a qualquer esfregão de lâmpada capaz de libertá-lo. 
 A culpabilidade dos autores da obra também não apresenta maiores dificuldades em configurá-la. Utilizaram a fabulosa criatividade que Deus lhes deu, com desvio de finalidade. Tiveram a astúcia de apresentar o dolo de forma edulcorada, como uma coisa inofensiva, e seus executores como figuras ingênuas, sonhadoras, incapazes de praticar qualquer maldade. Trata-se de um caso típico de bem pensada apologia ao crime: no caso, o de continuada sonegação fiscal. A penalidade para esse ilícito é de oito anos em regime fechado. Porém, dada a idade dos futuros apenados e o fato de serem réus primários, poderão cumprir a sentença em regime domiciliar, com as medidas cautelares de uso de tornozeleira eletrônica e apreensão do passaporte. Independentemente desse benefício, poderão encurtar a pena se usarem o inegável talento para escreverem uma nova fantasia mostrando, implícita e convincentemente,  a importância dos impostos para o bem-estar da sociedade. Nesse caso, poderão descontar dois  dias do castigo para cada página da futura obra, formatada no modelo A5, tamanho 148X210 (14,8x21,0), fonte Times New Roman, tamanho 12.
 Brincadeiras à parte, quero dizer que o livro A Vista Encantada me presenteou com bons momentos.Parabenizo os colegas por esse feito e fico no aguardo para escrever sobre a próxima publicação de vocês. Quando? Espero que em breve. Por favor, lembrem-se de que já passei dos oitenta.

VENDO VISAGENS

Everaldo Soares Júnior

Elizabeth e Fernando, li A Vista Encantada. Fiz uma viagem acompanhado de Dido e Guarda-Roupa e, também, do Amarelinho. Foi uma grande travessia, as novelas me deixaram deslumbrado, difícil foi sair dessa situação. Fiquei atravessado de muitas histórias incríveis. Gostaria de contar a vocês o que se passou comigo, mas isso não é tão fácil assim. Os amigos de vocês se encontram, ou já se conhecem, as afinidades logo e sem perder tempo os enlaçam. As propostas das aventuras são colocadas de imediato em andanças que precisamos de apressar o passo, senão ficamos para trás. Do Riacho fundo até os recantos mais encantadores da serra da Borborema são percorridos por palavras de vocês e pelos pés dos amigos andarilhos. Os novos cruzados tropicais esbanjam disposições românticas pelos lugares e muito respeito pelas pessoas, ricas ou pobres, são pregadores de uma nova vida, do cariri ao sertão. Convido aos leitores, novos ou experientes para caminhar com as letras de Fernando e Elizabeth. Próximo ano, quando for para Campina Grande trabalhar, darei uma esticada até Riacho Fundo, de tapete voador, vendo as belezas das visagens. Loucura coisa nenhuma! Passeio do bom mesmo.  Quem pode, pode! Abraços.

Ana Líbia Lyra

O livro prende a atenção por ser criativo e, também, engraçado. Caso não soubesse que eram 02 autores, não perceberia, pois há uma concatenação entre eles que se harmoniza.  A maneira como é contextualizada a história tem um “sabor de infância” para mim. Quando eu viajava com meus pais para o sertão, deparava-me com situações semelhantes, próprias dos personagens vivido nessa história, quer seja por sua sabedoria inata ou pela transparência das intenções. Embora os personagens se desloquem no contexto da história, o imaginário e a realidade se confundem. O que me parece engraçado, de fato deve ser complicado. A introdução e participação do Amarelinho na história, de pronto me deixou atenta para alguma ” aprontação”.

CARNAVAL

Restos de Carnaval

Clarice Lispector

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha ao encontro da minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola. Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem.

Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto, essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

Escala 01 – Passeio pela prosa curta com os russos

A brincadeira

Um claro dia de inverno… o frio é forte e seco de estalar, e Nádenka, que eu levo pelo braço, fica com os cachos das fontes e o buço no lábio superior orvalhados de prata cintilante. Estamos no cume de um morro alto. Diante dos nossos pés, até a planície, lá embaixo, estende-se um declive escorregadio e brilhante no qual o sol se mira como um espelho. Ao nosso lado está um trenó pequenino, forrado de pano vermelho-vivo.

— Deslizemos até lá em baixo, Nadêjda Petrovna! – imploro eu. — Só uma vez! Garanto-lhe, ficaremos sãos e salvos!

Mas Nádenka tem medo. Toda essa extensão, desde as suas pequeninas galochas até o fim da montanha de gelo, se afigura a ela como um terrível abismo de profundidade imensurável. Ela fica tonta e perde o fôlego, só de olhar lá para baixo, quando eu apenas lhe proponho sentar-se no trenó – que terá então se ela arriscar despenhar-se no precipício? Ela morrerá, enlouquecerá!

— Eu lhe suplico! – digo eu. — Não tenha medo! Compreenda, isso é fraqueza, é covardia!

Nádenka cede, finalmente, e eu vejo pelo seu rosto que ela cede com receio pela própria vida. Acomodo-a, pálida e trêmula, no trenó, sento-me, enlaço-a com o braço e junto com ela precipito-me no abismo.

O trenó voa como uma bala. O ar cortado chicoteia o rosto, silva nos ouvidos, bate, belisca raivoso até doer, quer arrancar a cabeça dos ombros. A pressão do vento tolhe a respiração. É como se o próprio diabo nos tivesse agarrado com as suas patas, e, urrando, nos arrastasse para o inferno. Os objetos que nos cercam fundem-se num só longo risco, que corre vertiginoso. Parece, um instante mais, e estaremos perdidos!

— Eu te amo, Nádia! – digo eu a meia voz.

O trenó começa a deslizar mais devagar, mais devagar, os uivos do vento e os zumbidos das lâminas do trenó já não são tão terríveis, a respiração já não é tão ofegante, e, finalmente, chegamos ao fim. Nádenka está mais morta do que viva. Está pálida, mal consegue respirar. Eu a ajudo a se levantar.

— Nunca mais farei isto – diz ela, encarando-me com os olhos dilatados, cheios de terror. – Por coisa alguma do mundo! Por pouco não morri!

Logo depois, ela volta a si e já me fita com um olhar interrogador: terei sido eu quem disse aquelas quatro palavras, ou foi apenas uma alucinação dentro do zunido da ventania? Mas eu estou calado diante dela, fumando e examinando com atenção a minha luva.

Ela toma o meu braço e passeamos longos minutos diante do morro. O problema, visivelmente, não a deixa em paz. Foram pronunciadas aquelas palavras, ou não? Sim ou não? Sim ou não? É uma questão de amor-próprio, de honra, de vida, de felicidade, uma questão muito importante, a mais importante do mundo. Nádenka perscruta o meu rosto com olhares impacientes, tristes, penetrantes, responde atabalhoadamente, espera que eu fale. Oh, que jogo de emoções neste rosto encantador, que jogo! Vejo que ela luta consigo mesma, que precisa dizer alguma coisa, perguntar, mas não encontra palavras, está encabulada, amedrontada, embargada pela alegria…

— Sabe duma coisa? – diz ela, sem olhar para mim.

— O quê? – pergunto eu.

— Vamos mais uma vez… deslizar pelo morro.

Subimos para o cume, pela escada. De novo faço Nádenka, pálida e trêmula, sentar no trenó, de novo nos despencamos no precipício medonho, de novo uiva o vento e zunem as lâminas, e de novo, quando o voo do trenó está no auge do ímpeto, eu digo a meia voz:

— Eu te amo, Nádenka!

Quando o trenó se detém, Nádenka lança um olhar para o morro que acabamos de descer voando, depois perscruta longamente o meu rosto, escuta, atenta, a minha voz indiferente e calma, e toda ela, toda, até mesmo o regalo de peles e o capuz, toda a sua figurinha, exprime extrema perplexidade. E no seu rosto está escrito: “Mas o que é que está acontecendo? Quem pronunciou aquelas palavras? Foi ele, ou foi engano dos meus ouvidos?”.

Esta incerteza a perturba, a impacienta. A pobre menina não responde às minhas perguntas, franze a testa, está prestes a romper em choro.

— Não preferes ir para casa? – pergunto eu.

— Mas eu… eu gosto destas… descidas – diz ela, enrubescendo. Não quer deslizar mais uma vez?

Ela “gosta” destas descidas, e, no entanto, sentando-se no trenó ela, como das outras vezes, fica pálida, ofegante de medo, trêmula.

Descemos pela terceira vez, e eu vejo como ela fita o meu rosto, como observa os meus lábios. Mas eu aperto o lenço contra a boca, tusso, e quando chegamos ao meio do declive, deixo escapar:

— Eu te amo, Nádia!

E a charada continua charada! Nádenka se cala, está pensando… Acompanho-a para casa, ela procura andar mais devagar, atrasa o passo, espera sempre que eu lhe diga aquelas palavras. E eu vejo como sofre sua alma, como ela tem que se esforçar para não dizer: “Não pode ser que tenha sido o vento! E eu não quero que tenha sido o vento quem falou aquilo!”.

No dia seguinte de manhã, recebo um bilhetinho: “Se o senhor vai ao morro hoje, venha me buscar. N.”. E desde essa manhã, comecei a ir com Nádenka ao morro, todos os dias e, voando encosta abaixo, no trenó, eu pronuncio, cada vez, a meia voz, as mesmas palavras:

— Eu te amo, Nádia!

Logo Nádenka acostuma-se a esta frase, como ao vinho e à morfina. Não pode viver sem ela. É verdade – voar montanha abaixo lhe dá medo, como antes, mas já agora o medo e o perigo adicionam um encanto especial às palavras sobre o amor, as palavras que, como dantes, constituem uma charada e oprimem a alma. São sempre os mesmos dois suspeitos: eu e o vento… Qual dos dois lhe declara o seu amor, ela não sabe, mas, ao que parece, isto já não lhe importa mais; não importa o vaso em que se bebe, importa ficar embriagada!

Um dia, fui até o morro sozinho; misturei-me à multidão e vi como Nádenka chegou até o sopé, como me procurou com os olhos… E depois, timidamente, ela sobe os degraus… Ela tem medo de ir sozinha, oh, quanto medo! Está pálida como a neve, treme e vai, como se fosse para o cadafalso, mas vai, vai sem olhar para trás, com decisão. Pelo visto, ela resolveu, finalmente, tirar a prova: será que se farão ouvir aquelas palavras estranhas, quando eu não estiver junto? E vejo como ela, lívida, com a boca entreaberta de horror, toma assento no trenó, fecha os olhos, e, despedindo-se para sempre do mundo, o põe em movimento… “zzzzzz…” zunem as lâminas. Ouvira Nádenka aquelas palavras? Não sei… Vejo apenas como ela se levanta do trenó, exausta, fraca. E vê-se pelo seu rosto que nem ela mesma sabe se ouviu alguma coisa ou não. O pavor, enquanto ela voava morro abaixo, roubou-lhe a capacidade de ouvir, de distinguir os sons, de entender…

Mas eis que chega o mês de Março, primaveril… O sol torna-se mais carinhoso. O nosso morro de gelo escurece, perde o seu brilho e se derrete, afinal. Acabaram os passeios de trenó. A pobre Nádenka já não tem mais onde ouvir aquelas palavras, e nem há quem as pronuncie, pois o vento não se ouve mais, e eu me preparo para voltar a Petersburgo – por muito tempo, quiçá para sempre.

Uma vez, pouco antes de partir, uns dois dias, estava eu sentado, ao crepúsculo, no jardinzinho, separado do pátio onde mora Nádenka por uma cerca alta de madeira. Ainda faz bastante frio, debaixo do lixo ainda há neve, as árvores ainda estão mortas, mas já cheira à primavera, e, preparando-se para a noitada, as gralhas fazem grande algazarra. Aproximo-me da cerca e espio pela fresta. E vejo como Nádenka sai para os degraus e fixa o olhar tristonho e saudoso no firmamento. O vento da tarde sopra-lhe no rosto pálido e desanimado… Ele lembra-lhe aquele outro vento, que uivava lá no morro, quando ela ouvia aquelas quatro palavras, e seu rosto fica triste, triste, e pela face desliza uma lágrima. E a pobre menina estende os braços, como se implorando ao vento que lhe traga aquelas palavras mais uma vez. E eu, esperando o vento favorável, sopro a meia voz:

— Eu te amo, Nádia!

Deus meu, o que se passa com Nádenka! Ela solta um grito, sorri com o rosto inteiro e estende os braços ao encontro do vento, risonha, feliz, tão bonita.

E eu vou arrumar as malas…

Isto foi há muito tempo. Agora, Nádenka já é casada; casaram-na, ou foi ela mesma que quis – isto não importa – com um secretário da Curadoria, e hoje ela já tem três filhos. Mas os nossos passeios no morro e a voz do vento trazendo-lhe as palavras “eu te amo, Nádenka”, não foram esquecidos. Para ela, isto é hoje a mais feliz, a mais comovedora e a mais bela recordação de sua vida…

Mas eu, hoje, que estou mais velho, já não compreendo mais por que dizia aquelas palavras.

Não compreendo mais por que brincava…

Tradução: Fabio Baptista.


*Fala-se Russo

Vlademir Nabokov

A tabacaria de Martin Martinich fica localizada num prédio de esquina. Não é de admirar que tabacarias tenham uma predileção por esquinas, porque o negócio de Martin está indo muito bem. A vitrine é de tamanho modesto, mas bem arrumada. Espelhinhos dão vida ao mostruário. Embaixo, em meio aos vales dos montes de veludo azul, aninha-se uma variedade de caixas de cigarros com nomes expressos no brilhoso dialeto internacional que serve também para nome de hotel; mais acima, fileiras de charutos riem em suas caixas delicadas.

Em sua época, Martin foi um proprietário de terras abastado. Em minhas lembranças infantis ele se destaca por um trator incrível, enquanto seu filho Petya e eu sucumbimos simultaneamente a Meyn Ried e à escarlatina, de forma que agora, depois de quinze anos chocantes de todo tipo de coisas, eu gostava de comprar na tabacaria daquela esquina viva onde Martin vendia seus produtos.

Desde o ano anterior, além disso, temos mais que reminiscências em comum. Martin tem um segredo e me fez fiador desse segredo. “Então, tudo normal?”, pergunto num sussurro, e ele, olhando por cima do ombro, replica também baixinho: “É, graças a Deus, tudo tranquilo.” O segredo é bastante excepcional. Lembro que estava de partida para Paris e fiquei com Martin até a noite da véspera. A alma de um homem pode ser comparada a uma loja de departamentos e seus olhos, a vitrines gêmeas. A julgar pelos olhos de Martin, estavam na moda cores cálidas, castanhas. A julgar por aqueles olhos, a mercadoria dentro de sua alma era de soberba qualidade. E que barba luxuriante,bem brilhosa com robusto grisalho russo. E seus ombros, a estatura, a atitude… Houve tempo em que se dizia que ele era capaz de cortar um lenço com uma espada: uma das proezas de Ricardo Coração de Leão. Agora, um colega emigrado diria com inveja: “Esse homem não se entregou!”

Sua esposa era uma velhota balofa, delicada, com uma verruga na narina esquerda. Desde o tempo das agruras revolucionárias, o rosto dela adquirira um tique patético: ela revirava os olhos depressa para o lado e para cima. Pety a tinha o mesmo físico imponente do pai. Eu gostava de suas boas maneiras carrancudas e de seu humor inesperado. Tinha uma cara larga, flácida (da qual o pai costumava dizer: “Que carantonha: nem em três dias dá para circum-navegar aquilo”) e cabelo castanho-avermelhado, permanentemente despenteado. Pety a era dono de um cineminha numa parte pouco populosa da cidade, que lhe valia modestos rendimentos. E aí temos toda a família.

Eu passei aquele dia anterior à minha partida sentado junto ao balcão, observando Martin receber os clientes: primeiro ele se inclinava ligeiramente, com dois dedos apoiados no balcão, depois ia às prateleiras, apresentava uma caixa com um floreio e perguntava, abrindo-a com a unha do polegar: “Einen Rauchen?” Me lembro desse dia por uma razão especial: Pety a entrou de repente da rua, descabelado e lívido de raiva. A sobrinha de Martin decidira voltar para sua mãe em Moscou, e Pety a tinha sido enviado a encontrar osrepresentantes diplomáticos. Enquanto um dos representantes estava lhe dando alguma informação, um outro, obviamente envolvido com a diretiva política do governo, sussurrou de modo apenas audível: “Essa ralé da Guarda Branca ainda continua na ativa.”

“Eu queria fazer picadinho dele”, disse Pety a esmurrando a palma da mão, “mas infelizmente não podia deixar de pensar em minha tia em Moscou”.

“Você já tem dois ou três pecadilhos na consciência”, Martin murmurou, bem-humorado. Estava se referindo a um incidente muito divertido. Não muito tempo antes, no dia de seu onomástico, Pety a visitara a livraria soviética, cuja presença mancha uma das ruas mais encantadoras de Berlim. Lá vendem não apenas livros, mas também bugigangas variadas, feitas à mão. Pety a escolheu um martelo enfeitado com papoulas e gravado com uma inscrição típica de um martelo bolchevique. O vendedor perguntou se ele queria mais alguma coisa. Pety a disse: “Quero, sim”, apontando um pequeno busto de gesso do Senhor Uly anov.1 Pagou quinze marcos pelo busto e pelo martelo, e então, sem dizer uma palavra, bem ali no balcão, atacou aquele busto com aquele martelo, e com tamanha força que o Senhor Uly anov se desintegrou.

Eu gostava dessa história, assim como gostava, por exemplo, das frases tolas e queridas da infância inesquecível, que aquecem o coração da gente. As palavras de Martin me fizeram olhar para Pety a com uma risada. Mas Pety a sacudiu os ombros, mal-humorado, e fechou a carranca. Martin remexeu na gaveta e estendeu para ele o cigarro mais caro da loja. Mas nem isso dispersou a melancolia de Petya.

Voltei a Berlim um ano e meio depois. Num domingo de manhã, senti uma urgência de encontrar com Martin. Nos dias de semana, podia-se entrar pela loja, uma vez que seu apartamento (três quartos e cozinha) ficava nos fundos. Mas é claro que num domingo de manhã a loja estava fechada e a vitrine, coberta com sua grade. Através dela olhei rapidamente as caixas vermelhas e douradas, os charutos escuros, a modesta plaquinha num canto:“Fala-se russo”, notei que a placa havia de alguma forma ficado mais cinzenta, e dei a volta pelo pátio até a casa de Martin. Coisa estranha: o próprio Martin me pareceu ainda mais alegre, animado, mais radiante que anteriormente. E Petya estava absolutamente irreconhecível: o cabelo oleoso, embaraçado, estava penteado para trás, um amplo sorriso vagamente tímido não deixava seus lábios, ele mantinha uma espécie de silêncio satisfeito e uma curiosa, jovial preocupação, como se carregasse uma carga preciosa dentro dele que abrandava todos os seus movimentos. Apenas sua mãe estava mais pálida que nunca e o mesmo tique cruzava seu rosto como um ligeiro relâmpago de verão. Sentamos na saleta bem-arrumada e eu sabia que os outros dois quartos (o de Petya e o dos pais) eram igualmente arrumados e limpos, e me foi agradável pensar nisso. Tomei chá com limão, ouvi a fala melíflua de Martin e não consegui evitar a impressão de que alguma coisa nova tinha aparecido em seu apartamento, algum tipo de alegre, misteriosa palpitação, como acontece, por exemplo, numa casa em que há uma jovem grávida. Uma ou duas vezes, Martin olhou preocupado para o filho, e diante disso o outro prontamente se levantou e deixou a sala e, ao voltar, acenou discretamente com a cabeça para o pai, como se quisesse dizer que alguma coisa estava indo muito bem.

Havia também algo novo e para mim enigmático na conversa do velho. Estávamos falando de Paris e dos franceses, e, de repente, ele perguntou: “Diga, meu amigo, qual é a maior prisão de Paris?” Respondi que não sabia e comecei a contar sobre uma revista musical francesa em que havia mulheres pintadas de azul.

“Você acha isso grande coisa!”, Martin interrompeu. “Dizem, por exemplo, que as mulheres raspam o reboco das paredes da prisão e usam para empoar o rosto, o pescoço, sei lá.” Para confirmar suas palavras, trouxe do quarto um grosso volume de um criminologista alemão e encontrou o capítulo sobre a rotina da vida na prisão. Tentei mudar de assunto, mas por mais que eu mudasse de assunto, Martin o revirava com artísticas circunvoluções de forma  que, de repente, nos víamos discutindo quanto a prisão perpétua era mais humana que a execução, ou os métodos engenhosos inventados por criminosos para escapar para a liberdade.

Fiquei intrigado. Pety a, que adorava tudo o que era mecânico, estava cutucando com um canivete as molas de seu relógio e rindo consigo mesmo. A mãe, trabalhando em seu bordado, de vez em quando empurrava em minha direção a torrada ou a geleia. Martin, agarrado à barba revolta com os cinco dedos, me deu uma rápida olhada de lado com seus olhos fulvos e, de repente, alguma coisa cedeu dentro dele. Bateu a palma na mão na mesa e se virou para o filho. “Eu não aguento mais, Pety a: vou contar tudo para ele senão estouro.”Pety a assentiu silenciosamente. A esposa de Martin estava se levantando para ir à cozinha. “Que tagarela você é”, disse ela, sacudindo a cabeça indulgentemente. Martin pôs a mão em meu ombro e me deu tamanho safanão que se eu fosse uma macieira no pomar as maçãs teriam literalmente se desprendido de mim, e me olhou no rosto. “Estou avisando”, disse ele. “Vou contar um segredo, mas um segredo que… nem sei. Veja bem: lábios selados! Entendeu?”

 E inclinando-se para perto de mim, banhando-me com seu odor de tabaco e com seu próprio cheiro penetrante de velho, Martin me contou uma história realmente incrível.2

“Aconteceu logo depois que você foi embora”, Martin começou. “Um cliente entrou. Evidentemente, não tinha notado a placa na vitrine, porque se dirigiu a mim em alemão. Deixe eu frisar bem isto: se tivesse notado a placa, não teria entrado numa modesta loja de emigrados. Reconheci imediatamente que ele era russo por sua pronúncia. Tinha cara de russo também. Eu, é claro, parti para falar russo, perguntei qual faixa de preço, qual tipo de produto. Ele me olhou com desagradável surpresa: ‘O que faz o senhor pensar que eu sou russo?’ Dei uma resposta absolutamente gentil, pelo que me lembro, e comecei a contar os cigarros. Nesse momento, Petya entrou. Quando viu meu cliente, disse com absoluta tranquilidade: ‘Ora, que encontro agradável.’ Então, o meu Pety a vai até o homem e bate em seu rosto com o punho. O outro gelou. Como Petya me explicou depois, o que aconteceu não foi apenas um nocaute com a vítima caindo no chão, mas um tipo especial de nocaute: acontece que Pety a deu um soco de ação retardada e o homem continuou de pé. Parecia que estava dormindo em pé. Então começou lentamente a cair para trás como uma torre. Petya deu a volta e pegou o homem pelas axilas. Era tudo muito inesperado. Pety a disse: ‘Me ajude aqui, pai.’ Eu perguntei o que ele pensava que estava fazendo. Pety a repetiu apenas: ‘Me ajude aqui.’ Conheço bem o meu Pety a (não adianta dar essa risadinha, Pety a), e sei que tem os pés no chão, pondera os seus atos e não põe ninguém fora de combate a troco de nada. Arrastamos o desmaiado da loja para o corredor e depois para o quarto de Pety a. Bem nesse momento escutei a campainha: alguém tinha entrado na loja. Muito bom, claro, que não tivesse acontecido antes. Lá fui eu de volta para a loja, fiz minha venda, então, por sorte, minha mulher chegou à loja e imediatamente pedi que ficasse no balcão enquanto eu, sem dizer uma palavra, ia ventando para o quarto de Petya. O homem estava deitado de olhos fechados no chão, Pety a sentado à sua mesa, examinando com ar pensativo certos objetos como uma grande charuteira de couro, meia dúzia de cartões-postais obscenos, uma carteira, um passaporte, um revólver antigo mas aparentemente eficiente. Ele me explicou imediatamente: tenho certeza de que você já entendeu que essas coisas tinham saído dos bolso do homem e ele próprio não era outro senão aquele representante, você se lembra da história de Pety a, que tinha feito aquela observação sobre a ralé Branca, isso, isso, exatamente o mesmo! E a julgar por certos documentos, era um membro da GPU3 sem dúvida nenhuma. ‘Muito bem’, eu disse a Petya, ‘então você deu um soco na cara de um sujeito. Se ele mereceu ou não é outra história, mas por favor me explique, o que você pretende fazer agora? Evidentemente, você esqueceu completamente de sua tia em Moscou.’ ‘É, esqueci’, Pety a disse. ‘Temos de pensar em alguma coisa.’

“E pensamos. Primeiro, arrumamos uma corda forte e tapamos a boca dele com uma toalha. Enquanto a gente fazia isso, ele voltou a si e abriu um olho. Olhando mais de perto, vou lhe dizer, a cara dele não era só repulsiva, mas burra também: algum tipo de sarna na testa, bigode, nariz grosso. Deixamos o homem deitado no chão, Petya e eu nos acomodamos bem perto e começamos uma judiciosa investigação. Debatemos um bom tempo. Estávamos preocupados não tanto com a afronta em si, isso era uma bobagem, claro, mas sim com a profissão dele, por assim dizer, e com as coisas que ele tinha cometido na Rússia. O acusado teve permissão para dar a última palavra. Quando tiramos a toalha da boca dele, soltou uma espécie de gemido, engasgou, mas não disse nada além de ‘Esperem só, esperem para ver…’ Amarramos a toalha de novo e retomamos a sessão. Os votos ficaram divididos no começo. Petya queria pena de morte. Eu achava que ele merecia morrer, mas propus trocar a execução por prisão

perpétua. Pety a pensou um pouco e concordou. Acrescentei que, embora ele certamente tivesse cometido crimes, nós não tínhamos como ter certeza disso; que o simples emprego dele constituía um crime em si; que nosso dever se limitava a tornar o homem inofensivo, mais nada. Agora escute o resto.

“Temos um banheiro no fim do corredor. Um quartinho escuro, muito escuro, com uma banheira de ferro esmaltado. A água muitas vezes entra em greve. Há uma ou outra barata. O quartinho é tão escuro porque a janela é extremamente estreita e situada bem debaixo do teto e, além disso, bem na frente da janela, a menos de um metro, existe uma boa e sólida parede de tijolos. E foi aí, nesse esconderijo, que resolvemos manter o prisioneiro. Foi ideia de Petya, foi, sim, Pety a, a César o que é de César. Em primeiro lugar, claro, a cela tinha de ser preparada. Fomos arrastando o prisioneiro pelo corredor para ele estar perto enquanto a gente trabalhava. E foi aí que minha mulher, que tinha acabado de trancar a loja para a noite e estava a caminho da cozinha, nos viu. Ficou perplexa, indignada até, mas entendeu o nosso raciocínio. Dócil, a menina. Pety a começou por desmontar uma mesa sólida que tínhamos na cozinha: arrancou as pernas e usou a prancha que sobrou para lacrar a janela do banheiro. Depois tirou as torneiras, removeu o cilindro do aquecedor de água e pôs um colchão no chão do banheiro. Claro que no dia seguinte acrescentamos várias melhorias: mudamos a chave, instalamos uma tranca, reforçamos a prancha da janela com metal. Tudo isso, claro, sem fazer muito barulho. Como você sabe, não temos vizinhos, mas mesmo assim convinha agirmos com cautela. O resultado ficou uma verdadeira cela de prisão, e lá pusemos o sujeito da GPU. Desamarramos a corda, desamarramos a toalha, alertamos que se ele começasse a gritar ia ser imobilizado de novo, e por muito tempo; então, satisfeitos porque ele tinha entendido para quem era o colchão colocado na banheira, trancamos a porta e ficamos de guarda a noite toda, em turnos.

“Esse momento marcou o começo de uma nova vida para nós. Eu não era mais simplesmente Martin Martinich, mas Martin Martinich, o carcereiro chefe. De início, o prisioneiro ficou tão tonto com o que havia acontecido que seu comportamento foi discreto. Logo, porém, retomou seu estado normal e, quando levamos o jantar, partiu para um furacão de grosserias. Não posso repetir as obscenidades desse homem; me limito a dizer que ele colocou minha falecida mãe nas mais curiosas situações. Eu estava decidido a inculcar seriamente nele a natureza de sua posição legal. Expliquei que permaneceria preso até o fim de seus dias; que se eu morresse primeiro, ele seria transferido a Pety a, como um legado; que meu filho, por sua vez, transmitiria o seu cuidado a meu futuro neto e assim por diante, fazendo com que ele se transformasse numa espécie de tradição de família. Uma joia defamília. Mencionei, de passagem, que, na eventualidade improvável de mudarmos para outro apartamento em Berlim, ele seria amarrado, colocado num baú especial, o que tornaria muito fácil a mudança para nós. Prossegui e expliquei que só num único caso ele poderia obter anistia. Especificamente, que ele seria libertado no dia em que explodisse a bolha bolchevique. Por fim, prometi que seria bem alimentado, bem melhor do que eu fui quando, em minha época, fui preso pela Cheka,4 e que, como privilégio especial, ele receberia livros. E, de fato, até hoje não acredito que tenha reclamado da comida nem uma vez. Verdade, no começo, Pety a propôs que ele fosse alimentado com ruivo seco, mas por mais que a gente procurasse não se encontrou esse peixe soviético em Berlim. Fomos obrigados a servir comida burguesa para ele. Exatamente às oito horas, toda manhã, Pety a e eu entramos e colocamos ao lado da banheira uma tigela de sopa quente e um pedaço de pão preto. Ao mesmo tempo, retiramos o urinol, um utensílio engenhoso que compramos só para ele. Às três, ele recebe um copo de chá, às sete mais um pouco de sopa. O sistema nutricional segue o modelo em uso nas melhores prisões europeias.

“Os livros foram mais problemáticos. Fizemos um conselho familiar para saber com quais começar e nos detivemos em três títulos: Príncipe Serebryanïy, as Fábulas de Kry lov e A volta ao mundo em oitenta dias. Ele anunciou que não ia ler aqueles ‘panfletos da Guarda Branca’, mas deixamos os livros e temos toda razão para acreditar que ele leu com prazer.

“O estado de espírito dele era variável. Ele se tornou calado. Evidentemente estava aprontando alguma coisa. Talvez esperasse que a polícia fosse começar a procurar por ele. Nós conferimos os jornais, mas não havia nem uma palavra sobre um agente da Cheka desaparecido. Muito provavelmente, os outros representantes deviam ter concluído que o homem simplesmente desertara e preferiram enterrar o assunto. A esse período pensativo pertence a sua tentativa de escapar, ou ao menos de se comunicar com o mundo exterior. Ele caminhava pela cela, provavelmente chegou até a janela, tentou soltar as pranchas, tentou esmurrar, mas fizemos uma ou outra ameaça e os socos pararam. E uma vez, quando Pety a entrou sozinho, o homem pulou em cima dele. Pety a o prendeu num abraço de urso cuidadoso e o pôs sentado na banheira. Depois desse acontecimento, ele passou por outra mudança, ficou muito bem-humorado, até fazia piadas de vez em quando, e finalmente tentou nos subornar. Ofereceu uma soma enorme, que propôs conseguir através de alguém. Quando isso também não adiantou, ele começou a chorar, depois voltou a xingar pior do que antes. No momento, ele está num estágio de tristonha submissão, o que, eu temo, não é bom sinal.

“Nós levamos o sujeito para uma caminhada no corredor todos os dias, e duas vezes por semana ele toma ar numa janela aberta; naturalmente tomamos todas as precauções necessárias para impedir que grite. Aos sábados, ele toma um banho. Nós temos de tomar banho na cozinha. Aos domingos, eu faço uma palestrazinha para ele e deixo que fume três cigarros. Na minha presença, claro. Sobre o que são essas palestras? Todo tipo de coisa. Sobre Puchkin, por exemplo, ou a Grécia Antiga. Só um assunto é omitido: política. Ele é totalmente privado de política. Simplesmente como se isso não existisse na face da terra. E sabe de uma coisa? Desde que mantenho um agente soviético prisioneiro, desde que me pus a servir a Pátria, eu simplesmente sou outro homem. Animado e feliz. E os negócios prosperaram, então também não é um grande problema sustentar o sujeito. Ele me custa vinte e poucos marcos por mês, contando a eletricidade: lá dentro é completamente escuro, então das oito da manhã às oito da noite deixamos uma lâmpada fraca acesa.

“Você me pergunta sobre a origem dele? Bom, como posso dizer… Ele tem vinte e quatro anos, é camponês, é pouco provável que tenha terminado até mesmo a escola da aldeia, é o que se chama de ‘um comunista honesto’, estudou apenas literatura política, o que pelo nosso livro significa fazer um desmiolado virar um cabeça-dura, só sei isso. Ah, se quiser, mostro o prisioneiro a você, mas, lembre-se, nem uma palavra!”

Martin foi para o corredor. Pety a e eu seguimos atrás. O velho com seu confortável paletó de ficar em casa realmente parecia um diretor de prisão. Enquanto caminhava, tirou do bolso a chave e havia algo profissional no modo como a inseriu na fechadura. A fechadura girou duas vezes e Martin abriu a porta. Longe de ser um buraco mal iluminado, era um banheiro esplêndido, espaçoso, do tipo que se encontra em residências alemãs confortáveis. Luz elétrica forte, mas agradável aos olhos, acesa atrás de um quebra-luz alegre, decorado. Um espelho cintilante na parede da esquerda. Na mesinha de cabeceira ao lado da banheira havia livros, uma laranja descascada num prato lustroso e uma garrafa de cerveja intocada. Na banheira branca, sobre um colchão coberto com lençol limpo, com um travesseiro grande debaixo da cabeça, havia um sujeito bem alimentado, de olhos brilhantes, com uma barba por fazer há muito, roupão de banho (descartado por seu senhor) e chinelos macios e quentes.

“Bom, o que me diz?”, Martin me perguntou.

Eu achei a cena cômica e não sabia o que responder. “Era ali que ficava a janela”, Martin apontou com o dedo. Sem dúvida nenhuma, a janela tinha sido vedada com perfeição.

O prisioneiro bocejou e virou para a parede. Saímos. Martin alisou a tranca com um sorriso. “Nenhuma chance de ele escapar”, disse e acrescentou, pensativo: “Mas eu tenho curiosidade de saber quantos anos vai passar aqui…”

*Contos Reunidos – Vladimir Nabokov. Editora Alfaguara. Tradução José Rubens Siqueira. Le Livros.site

Notas

1 Nome verdadeiro de Lenin. (D.N.)

2 Nesta narrativa, todos os traços e sinais característicos que possam apontar a real identidade de Martin foram, é claro, deliberadamente distorcidos. Menciono isso para que os curiosos não procurem em vão pela “tabacaria da esquina.”

(V.N.)

3 Gossudarstwenoje Polititscheskoje Upravlenije, em russo: Administração Política Nacional, o serviço secreto soviético até 1937. (N.T.)

4 A polícia política soviética que antecedeu a GPU. (N.T

ESCALA 01

ALGUMAS VEREDAS DA POESIA

Lourdes Rodrigues

Primeiro, antes de entrarmos pelas suas veredas, seria importante definir o que é Poesia; se poema e poesia são a mesma coisa; que tipos de poesia existem. São essas perguntas que sempre vêm à cabeça quando falamos sobre o assunto. 

  1. POESIA VERSUS POEMA

Poesia é tudo que expressa sentimento, que comove, que encanta, que contém beleza, assim, ela pode estar presente em todas as artes, seja literatura, música, pintura ou escultura. Assim, é uma manifestação artística que não se limita ao fazer literário, às palavras. Embora seja uma arte baseada na linguagem, ela ultrapassa esses limites; e seu significado é tão amplo que é difícil de definir, porque é menos determinado: a poesia expressa um certo estado da mente, diz Wladyslaw Tatarkiewez em seu trabalho acadêmico sobre O Conceito da Poesia.

Poema é a forma de expressão da poesia no universo literário, através de composições em versos, estrofes e, por vezes, rima. É a retratação pelo poeta do seu eu lírico em forma de palavras sonoras.

  • CLASSIFICAÇÃO DA POESIA

São três as modalidades de poesias: a poesia lírica; a poesia épica; e a poesia dramática.


Na poesia lírica a subjetividade impera, ali o poeta expressa o seu eu mais profundo, a sua visão de mundo, seus anseios, seus sentimentos. Primando pela estética refinada, a métrica, o verso e a rima os poetas dos textos líricos apresentam em linguagem elaborada e de forma estruturada seus poemas.

Na poesia épica há o predomínio da objetividade, dos fatos, das circunstâncias que o poeta deseja narrar. Normalmente são de grande extensão e linguagem apurada. Os temas são, em geral, as guerras, os atos heroicos, as grandes viagens com rigor formal e estético.

Na poesia dramática há uma combinação das duas primeiras, na medida em que a subjetividade e a objetividade convivem harmonicamente.  Apesar de ser uma narrativa épica, ao invés dos narradores nesse tipo de poesia estão presentes os personagens das ações, em sua essência e emoção, dando-lhe um aspecto lírico.

Exemplo:

Morte e vida Severina

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,

não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:

há muitos na freguesia,

por causa de um coronel

   que se chamou acarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria

3.0O FAZER POÉTICO

3.1 – O Lado de fora da Poesia

Do lado de fora da poesia está a sua aparência, o seu exterior, o seu aspecto formal, aquele que segue a Norma Culta. Com ele damos conta dos seguintes aspectos:  quantidade de estrofes, de versos, esquema das rimas de cada estrofe, métrica, a métrica predominante.

Os versos estão distribuídos por linhas, cada linha corresponde a um verso; um conjunto de versos separado de outro conjunto de versos por uma linha branca é chamado de estrofe.

A quantidade de versos é uma escolha do poeta. Assim como, a quantidade de estrofes. Alguns tipos de poemas apresentam uma estrutura fixa, tanto em termos de versos como de estrofe.

Há uma classificação do poema, inclusive, segundo a quantidade de versos por estrofe:

  • Estrofe com um verso: monóstico;
  • Estrofe com dois versos: dístico;
  • Estrofe com três versos: terceto;
  • Estrofe com quatro versos: quarteto ou quadra;
  • Estrofe com cinco versos: quintilha;
  • Estrofe com seis versos: sextilha;
  • Estrofe com sete versos: septilha;
  • Estrofe com oito versos: oitava;
  • Estrofe com nove versos: nona;
  • Estrofe com dez versos: décima;
  • Estrofe com mais de dez versos: estrofe irregular.
  • – Poemas com estrutura fixa
  • Soneto: Formado por duas quadras e dois tercetos. Ou seja, duas estrofes de quatro versos e duas de três versos. Ao todo são 14 versos. A sua criação é atribuída a Francesco Petrarca, embora haja registro de sua existência antes mesmo de Petrarca. William Shakespeare não usava esse formato para os seus poemas. Ele usava 3 quartetos e um dístico. Há ainda, o Soneto Monostrófico que tem apenas uma estrofe de 14 versos.
Soneto de fidelidade
Vinicius de Moraes

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

  • Balada: Formada por três oitavas (ou décimas) e uma quadra (ou quintilha), ou de uma quintilha (cinco versos) no lugar do quarteto, geralmente todos de versos octossílabos (oito sílabas poéticas). A última estrofe, a menor, é chamada de oferenda ou ofertório.
Baladas Românticas – Verde…
Olavo Bilac
Como era verde este caminho!
Que calmo o céu! que verde o mar!
E, entre festões, de ninho em ninho,
A Primavera a gorjear!…
Inda me exalta, como um vinho,
Esta fatal recordação!
Secou a flor, ficou o espinho…
Como me pesa a solidão!

Órfão de amor e de carinho,
Órfão da luz do teu olhar,
– Verde também, verde-marinho,
Que eu nunca mais hei de olvidar!
Sob a camisa, alva de linho,
Te palpitava o coração…
Ai! coração! peno e definho,
Longe de ti, na solidão!

Oh! tu, mais branca do que o arminho,
Mais pálida do que o luar!
– Da sepultura me avizinho,
Sempre que volto a este lugar…
E digo a cada passarinho:
“Não cantes mais! que essa canção
Vem me lembrar que estou sozinho,
No exílio desta solidão!”

No teu jardim, que desalinho!
Que falta faz a tua mão!
Como inda é verde este caminho…
Mas como o afeia a solidão!
  • Sextina: Formada por seis sextilhas e um terceto. Ou seja, a sextina é formada por seis estrofes de seis versos cada um (sextilha) e uma estrofe de três versos (terceto).

A sextina de Luís Camões

Foge-me, pouco a pouco, a curta vida,
Se por acaso é verdade que inda vivo;
Vai-se-me o breve tempo de entre os olhos;
Choro pelo passado; e, enquanto falo,
Se me passam os dias passo a passo.
Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena.

  • Que maneira tão áspera de pena!
    Pois nunca uma hora viu tão longa vida
    Em que posso do mal mover-se um passo.
    Que mais me monta ser morto que vivo?
    Pera que choro, enfim? Pera que falo,
    Se lograr-me não pude de meus olhos?
  • Ó fermosos gentis e claros olhos,
    Cuja ausência me move a tanta pena
    Quanta se não compreende enquanto falo!
    Se, no fim de tão longa e curta vida,
    De vós me inda inflamasse o raio vivo,
    Por bem teria tudo quanto passo.
  • Mas bem sei que primeiro o extremo passo
    Me há-de vir a cerrar os tristes olhos,
    Que amor me mostre aqueles por que vivo.
    Testemunhas serão a tinta e pena
    Que escreverão de tão molesta vida
    O menos que passei, e o mais que falo.
  • Oh! que não sei que escrevo, nem que falo!
    Que se de um pensamento noutro passo,
    Vejo tão triste género de vida
    Que, se lhe não valerem tanto os olhos,
    Não posso imaginar qual seja a pena
    Que traslade esta pena com que vivo.
  • Na alma tenho contínuo um fogo vivo,
    Que, se não respirasse no que falo,
    Estaria já feita cinza a pena;
    Mas, sobre a maior dor que sofro e passo
    Me temperam as lágrimas dos olhos;
    Com que, fugindo, não se acaba a vida.
  • Morrendo estou na vida, e em morte vivo;
    Vejo sem olhos, e sem língua falo;
    E juntamente passo glória e pena.
  • Luís de Camões, Lírica Completa, edição de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1980.
  •  
  • Rondó: Existe o rondó francês e o português. O rondó francês é formado por uma quintilha, um terceto e outra quintilha. No rondó português o número de estrofes é variado, embora o usual sejam oito quadras ou quatro oitavas. Uma quadra é repetida ao fim de oitavas ou do duas quadras.
  • Rondó dos Cavalinhos
    Manuel Bandeira

    Os cavalinhos correndo, 
    E nós, cavalões, comendo…
    Tua beleza, Esmeralda, 
    Acabou me enlouquecendo.

    Os cavalinhos correndo, 
    E nós, cavalões, comendo…
    O sol tão claro lá fora
    E em minhalma — anoitecendo!


    Os cavalinhos correndo,
    E nós, cavalões, comendo…
    Alfonso Reys partindo,
    E tanta gente ficando…

    Os cavalinhos correndo, 
    E nós, cavalões, comendo…
    A Itália falando grosso,
    A Europa se avacalhando…

    Os cavalinhos correndo, 
    E nós, cavalões, comendo…
    O Brasil politicando,
    Nossa! A poesia morrendo…
    O sol tão claro lá fora,
    O sol tão claro, Esmeralda,
    E em minhalma — anoitecendo!
  • Rondel: Formado por duas quadras e uma quintilha, nesta ordem.  Os dois primeiros versos da primeira quadra serão os dois últimos versos do segundo quarteto. O último verso da quintilha, e do poema, será sempre o primeiro verso do primeiro quarteto.

Oh Céus !
(Ângela Bretas)

Oh céus! Onde estás? – Exclamo aos mares e ventos.
Sem resposta, sem volta, sem entender permaneço…
Esqueci de rasgar do calendário os momentos.
E indagando eu vago, eu rogo. Incerta, padeço.

Onde errei? Não encontro respostas, de ti não esqueço.
Como fui mergulhar nestes rasos tormentos?
Oh céus! Onde estás? – Exclamo aos mares e ventos.
Sem resposta, sem volta, sem entender permaneço…

Será que pequei, que magoei, que feri: Julgamentos?
Quem és tu que me assombra. Ao recordar-te emudeço…
O que faço, o que digo? – Não sei, me perdi em lamentos…
Não temas, não fujas, não negue! – Será que não te mereço?
Oh céus! Onde estás? – Exclamo aos mares e ventos.

  • Haicai: Formado por um terceto.

O tradicional haicai japonês tem uma forma fixa composta de três versos (terceto) formados por 17 sílabas poéticas, ou seja:

  • Primeiro verso: apresenta 5 sílabas poéticas (pentassílabo)
  • Segundo verso: apresenta 7 sílabas poéticas (heptassílabo)
  • Terceiro verso: apresenta 5 sílabas poéticas (pentassílabo)

O haicai tem se modificado, alguns escritores não seguem esse padrão de sílabas, adotando uma silabação livre, em geral usando dois versos mais curtos e um mais longo.

Do poeta japonês Matsuo Bashô (1644-1694):

O sol de inverno:
a cavalo congela
a minha sombra.

  • No primeiro verso, cinco sílabas poéticas: O/sol/de in/ver/no;
  • No segundo, sete sílabas poéticas: a/ ca/va/lo/ con/ge/la;
  • No terceiro, cinco sílabas: a/ mi/nha /som/bra.

Fora do padrão japonês. Ex.     Paulo Leminsky

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3.3 – EscansãoA divisão das sílabas na poesia

É chamada de escansão a divisão em sílabas métricas de um verso. Escandir um verso para encontrar a sua métrica constitui boa parte do fazer do poeta. A essa tarefa ele dedica grande parte do seu tempo.

A divisão em sílabas não é igual ao que se aprendeu na escola ao estudar gramática. Algumas regras são consideradas:

  • Classificação de versos quanto ao número de sílabas

Alguns exemplos:

3.4 – Rima e Esquema Rimáticos

            A rima é a repetição dos sons (fonemas) idênticos ou semelhantes, entre dois versos ou mais, e que confere musicalidade ao poema. Normalmente na sílaba final das palavras.

As rimas podem ser classificadas tanto quanto à fonética, como ao valor, à acentuação, e à posição no verso ou estrofe. O esquema rimático resulta da posição das rimas nos versos e nas estrofes.

Classificação de rimas:

a) – Segundo a fonética:

  • rima perfeita ou consoante;
  • rima imperfeita;
  • rima toante ou assonante;
  • e rima aliterante.

Rima perfeita ou consoante: Em que há correspondência total de sons, havendo repetição tanto dos sons vocálicos como dos sons consonantais.

                          falado/cantado;

presente/ausente;

  • particularidade/dificuldade.

Rima imperfeita: Em que apenas há correspondência parcial de sons. Pode ser toante ou aliterante.

Rima toante (ou assonante): Em que há apenas a repetição dos sons vocálicos.

  • boca/moça;
  • pálida/lágrima;
  • plátano/cálamo.
  •  

Rima aliterante: Em que há apenas a repetição dos sons consonantais.

  • fez/faz;
  • lata/luto;
  • medo/moda.
  •  

b) – Conforme o valor:

  • rima pobre;
  • rima rica;
  • e rima rara ou preciosa.

A rima rica é aquela em que o autor utiliza palavras de diferente categoria gramatical; a rima pobre, aquela em que são usadas palavras da mesma categoria.

  • Exemplo de rima pobre:
  • De repente do riso fez-se o pranto
    Silencioso e branco como a bruma
    E das bocas unidas fez-se a espuma
    E das mãos espalmadas fez-se o espanto
    […]

  • As palavras “pranto/espanto” e “bruma/espuma” pertencem à classe dos substantivos.

Exemplo de rima rica:

A escolha das palavras se dá de forma variada, usando vocábulos de classes gramaticais distintas, como numa das criações de Olavo Bilac, intitulada A um poeta:

A um poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica, mas sóbria, como um templo grego

Notamos que, bem ao estilo parnasiano, Bilac demonstra seu hábil manejo em combinar “rua/sua” = substantivo com verbo; “construa/nua” = verbo com adjetivo; “emprego/grego” = substantivo e adjetivo.

A rima é preciosa ou rara em tais circunstâncias:

 Quando as palavras que rimam possuem terminações incomuns, pouco utilizadas, como combinações entre verbos e pronomes. Exemplos: estrelas/vê-las; mandala/dá-la; parabéns/vinténs; profícuo/conspícuo.

Monólogo de uma sombra

(…)

Toma conta do corpo que apodrece…

E até os membros da família engulham,

Vendo as larvas malignas que se embrulham

No cadáver malsão, fazendo um s.

(…)

c)– De acordo com a acentuação:

  • rima aguda ou masculina;
  • rima grave ou feminina;
  • e rima esdrúxula.

Rima aguda ou masculina é aquela que ocorre entre palavras oxítonas tipo céu/chapéu; cantor/pintor; coração/animação.

Rima grave (ou feminina) é aquela que ocorre entre palavras paroxítonas tipo cedo/medo; agora/embora; metade/amizade.

Rima esdrúxula ocorre entre palavras proparoxítonas:

 célula/cédula; armário/salário; propósito/leucócito.

  • –  Quanto à posição no verso:

rima externa;

e rima interna ou coroada.

Rima externa: Que ocorre no fim do verso.

“E em louvor hei de espalhar meu canto
 E rir meu riso e derramar meu pranto
 (Vinícius de Moraes)

Rima interna ou coroada: Que ocorre no interior do verso.

“A bela bola do Raul
 Bola amarela” 
 (Cecília Meireles)

  • –  Quanto à posição na estrofe:
  • rimas alternadas ou cruzadas;
  • rimas emparelhadas ou paralelas;
  • rimas interpoladas ou intercaladas;
  • rimas encadeadas;
  • rimas mistas ou misturadas
  • e versos brancos ou soltos.

Rimas alternadas (ou cruzadas) quando se combinam de forma alternada, seguindo o esquema ABAB.

“O meu amor não tem
 importância nenhuma.
 Não tem o peso nem
 de uma rosa de espuma!”
 (Cecília Meireles)

Rimas emparelhadas (ou paralelas), combinação de duas em duas, seguindo o esquema AABB.

“Vagueio campos noturnos
 Muros soturnos
 Paredes de solidão
 Sufocam minha canção.
 (Ferreira Gullar)

Rimas interpoladas (ou intercaladas combinam-se numa ordem oposta, seguindo o esquema ABBA.

“De tudo, ao meu amor serei atento
 Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
 Que mesmo em face do maior encanto
 Dele se encante mais meu pensamento.”
 (Vinícius de Moraes)

Rimas encadeadas: Quando as palavras que rimam se situam no fim de um verso e no início ou meio do outro.

“Salve Bandeira do Brasil querida
 Toda tecida de esperança e luz
 Pálio sagrado sobre o qual palpita
 A alma bendita do país da Cruz”
 (Francisco de Aquino Correia)

Rimas mistas (ou misturadas): Quando apresentam outras combinações e posições na estrofe, sem esquemas fixos.

“Vou-me embora pra Pasárgada
 Vou-me embora pra Pasárgada
 Aqui eu não sou feliz
 Lá a existência é uma aventura
 De tal modo inconsequente
 Que Joana a Louca de Espanha
 Rainha e falsa demente
 Vem a ser contraparente 
 Da nora que nunca tive.
 (Manuel Bandeira)

Versos brancos (ou soltos) não rimam com nenhum outro verso.

“Uma palavra caída
 das montanhas dos instantes
 desmancha todos os mares
 e une as terras mais distantes…”
 (Cecília Meireles)

A inexistência da rima e muitas vezes da metro não significa, em absoluto, ausência de sonoridade; a sonoridade é um requisito essencial da poesia, o texto que não seja significativamente dotado de prazer sonoro se exclui ipso facto da poética.

O CORDEL – ONTEM E HOJE

Salomé Barros

 Histórico

Em sua origem mais remota, a literatura de cordel teve início no período medieval (século V a XV) com os chamados trovadores e menestréis. Cantavam acompanhados por instrumento musical, anunciando as notícias da época. Sendo analfabetos, tinham que decorar as informações, aliando a inteligência à capacidade artística inerente ao ser humano. Esta forma oral de declamação, constitui a raiz de nossos atuais cantadores de viola e repentistas.

Com o passar do tempo, os cantadores começaram a se alfabetizar. Em paralelo começaram a surgir pequenas tipografias permitindo a impressão rústica de folhas soltas que eram penduradas em barbantes (cordões) para serem vendidas.

Nossos atuais folhetos tem vinculação com essas folhas volantes ou soltas que começaram a surgir a partir do século XVII.

Países com Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, tinham também seus folhetos, característicos de cada região.

Em Portugal, no ano de 1789, D. João v promulga lei permitindo o comércio da chamada “Literatura de Cego”: folhas soltas, cuja venda era privilégio dos cegos.

No Brasil, a literatura de cordel chegou através dos colonizadores, também como “folhas soltas” ou mesmo manuscritos.

Foi no Nordeste que surgiu e se fixou como uma das peculiaridades da cultura regional. Aos poucos se espalhou por outras regiões tendo em vista as imigrações ocorridas na época.

Antigamente, com a inexistência de meios de comunicação, o cordel fazia o papel de transmitir notícias nas feiras do interior ou mesmo nos mercados das capitais.

Era utilizado também para alfabetização nas escolas. Um poeta paraibano, Antonio Américo de Medeiros, escreveu:

                             O cordel naquele tempo

                             Ensinava o povo a ler

 Uma revista,  um jornal                              Era difícil de ver                              O povo lendo cordéis                              Era o livro de aprender

]

O poeta e xiligravurista – José Francisco Borges, escreveu na contra-capa de seu livro para crianças – História de Jesus e o Menino do Galo: “Espero que todas as crianças que lerem esta história saibam que ela foi escrita e ilustrada por um poeta que não estudou além de dez meses e a pequena leitura que aprendeu foi completada lendo livrinhos de literatura de cordel”.

LITERATURA POPULAR E ERUDITA

Desde sua origem, o cordel tem resistido a altos e baixos.

Para alguns não se trata de literatura, porque consideram “arte menor”, vinda de camadas baixas da população iletrada. Era olhada como irmã pobre da literatura erudita.

Os dicionários traziam a definição de literatura de cordel de forma pejorativa, do tipo:

–  conjunto de folhetos de somenos valor literário

–  textos desprovidos de valor literário

–  baixa literatura

–  literatura de segunda classe, inferior, pouco elaborada, marginal

Em 1982 um grupo de poetas fizeram uma campanha contra determinado dicionário que classificava a literatura de cordel como “textos desprovidos de valor literário”. Ganharam a causa e conseguiram retirar toda a edição do mercado.

POESIA X CORDEL

Poesia em geral pode ser rimada ou não. A poesia de cordel possui métrica bem definida e obedece aos preceitos da rima.

Metrificação é a contagem das sílabas poéticas, que difere das sílabas gramaticais.

Verso é cada linha que forma a estrofe.

É mais comum que o verso tenha sete sílabas poéticas. Quando tem dez, chama-se decassílabo.

O número de versos de cada estrofe também varia:

–  QUADRA – quatro versos (pouco usada atualmente)

–  SEXTILHA – seis versos (forma mais usada)

–  SEPTÍLHA ou SETÍLHA – sete versos

– OITAVA – oito versos

– DÉCIMA – dez versos                                           

–  REDONDÍLHA – dez versos e dez sílabas

O cordel faz parte do grupo “poesia narrativa” que se propõe a contar histórias, romances, biografias, ideias, “causos”.

Escrever cordel exige sentimento e técnica. Segundo Braulio Tavares em seu livro: Contando Histórias em Verso – “Na poesia, como na música, a técnica existe para mostrar ao artista uma variedade maior de formas para que ele exprima seu sentimento”

A literatura de cordel é um gênero poético que possui regras próprias a serem seguidas. As principais são: métrica e rima.

Com essa estrutura pode-se escrever pequenos folhetos ou romances longos tendo como exemplo os escritores Ariano Suassuna, Wilson Freire e tantos outros.

A métrica corresponde a contagem de sílabas poéticas que é diferente das sílabas gramaticais. Fazendo paralelo com a música, a métrica é o ritmo ou a percussão. A rima é a sonoridade, aquilo que agrada aos ouvidos.

Várias músicas, principalmente nordestinas, seguem a métrica do cordel.

Exemplos: Último Pau de Arara de Luiz Gonzaga 

                                 A vida aqui só é ruim

                                 Quando não chove no chão

                                 Mas se chover dá de tudo

                                 Fartura tem de montão

                                 Tomara que chova logo

                                 Tomara meu Deus tomara

                                 Só deixo meu Cariri

                                 No último pau de arara

Observa-se que se trata de uma oitava com versos de 7 sílabas poéticas.

Outro exemplo é a famosa música de Geraldo Vandré: Disparada

                                   Prepare o seu coração

                                   Pras coisas que eu vou contar

                                   Eu venho lá do sertão

                                   E posso não lhe agradar

                                   Aprendi a dizer não

                                   Ver a morte sem chorar

                                   E a morte, o destino, tudo

                                   A morte o destino tudo

                                   Estava fora de lugar

                                   Eu vivo pra consertar

Trata-se de um decassílabo com versos de 7 sílabas poéticas.

No verso a última sílaba poética corresponde a sua última sílaba tônica.

Estrofe é o conjunto de versos. Na maioria dos cordéis as estrofes são formadas por 4 a 10 versos. O tipo mais comum é com seis versos que se chama sextilha. Em segundo lugar vem a septilha ou setilha com 7 versos.

Os versos de cada estrofe devem ter o mesmo número de sílabas. Assim se o primeiro verso tem 7 sílabas – que é o mais usado – todos os outros também devem ter esse número. Na sextilha a rima recai sobre o segundo, quarto e sexto verso.

Temos ainda outras modalidades de cordel como a cantoria, a peleja o galope a beira mar, os repentistas e tantos outros.

Em 2018 o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)  reconheceu o cordel como Patrimônio Cultural do Brasil.

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BALANÇO DE 2020 DOS VIAGEIROS E VIAGEIRAS

Retrospectiva 2020

Salete Oliveira

”tema para direcionamento de leituras e escritas será a condição humana: o vazio, a angústia, o ser ou não ser, o medo da morte, o desejo, o amor, a culpa, o ódio, a frustração, a paixão, a falta, a solidão, o sonho, a fantasia. Fontes primárias dos escritores que estão bem adiante das pessoas comuns no conhecimento da mente humana, segundo Freud. Elas permitem a tessitura de tramas que se tornam grandes obras literárias. Desvendar o homem através de seus sentimentos, diante de determinadas circunstâncias, é o peregrinar contínuo do escritor ficcional e o que o diferencia dos demais escritores.”

Lourdes Rodrigues, Proposta de Programação para 2020.

Dia 4 de fevereiro de 2020 chegou e-mail da Comandante,

com a programação e essa imagem que me meteu medo,

mete medo até agora, ainda mais.

Em suas palavras um tema dado, difícil

tema para leituras e escritas,

premonição das vivências pessoais logo mais,

dados jogados por quem?

Natureza ou deuses, a brincar com humanos?

Dia 5 estávamos no Traço, cheios de alegria e saudades,

Eu adoentada, sete meses sem os ver, ainda mais

saudosa e carente, perdera encontros e o lançamento

festivo carinhoso e exitoso como nunca visto

do Escrituras V recém chegado ao meu colo, logo mais

desafios, como entrar de cabeça e de corpo inteiro se jogar?

Precisava do aconchego, chegar, aterrissar,

acreditava que o tsunami passara, seria um ano de calmaria.

Pula para março… empaquei lá e agora,

novos desafios, estão no tema; mas não era para ler e escrever?

a condição humana: o vazio, a angústia, o ser ou não ser,

o medo da morte, o desejo, o amor, a culpa, o ódio,

a frustração, a paixão, a falta, a solidão, o sonho, a fantasia.

Era para viver, experenciar, vivenciar… ainda mais

alguém disse “cada um sempre escreve sobre si mesmo”,

Vamos fazer o grupo online? Vamos! Vivas à tecnologia!

Capengar, errar, acertar, empacar, ficar perplexo,

rir, chorar, ler muito muito muito… notícias, inverossímeis!

Que chegue logo a quarta-feira; um refúgio, a ficção;

o momento poético, um alento; um texto de um viageiro,

uma conquista, celebração, perseverar ainda mais;

o que lemos, quem lemos? Aprendemos a escrever,

reescrever, apreciar as entrelinhas, histórias paralelas,

nos enxerimos pelo discurso indireto livre, além do mais.

Navegar, navegamos, devagar pra canoa não virar,

dez meses de estudo e trabalho, produção…

vai dar livro, afinal um ano de boa safra,

poetas emergiram, da meada um fio não se perdeu, ainda mais

novelista apareceu, fazendo surpresa e mimo

de livro publicado; o Escrituras VI, aguarde, logo mais

sairá da gráfica, bonito e cheiroso, sobre os abismos

o barco paira e aportará, calmamente, em águas plácidas.

20/dezembro/2020

Dia 21 temos a Estrela de Belém, a anunciar o Natal, e o Ano Novo!!!

Vamos fazer uma carinha alegre de fé e esperança?

Quarta-feira (retrospectiva 2020)

                                     Elizabeth Freire
 
 
 
 Quarta-feira (retrospectiva 2020)
  
 Quarta-feira no Traço,
 planejamento do ano:
 dos mestres, o conto,
 de nós, a condição humana.
  
 Quarta-feira aflita,
 medo, incerteza, angústia.
 Fé, coragem para seguir.
 Para continuar, esperança.
  
 Quarta-feira animadora,
 Fé em Deus, fé no outro.
 Esperança nas palavras,
 coragem nas entrelinhas.
  
 Quarta-feira tecnológica.
 Sem encontro, sem abraços,
 Sem Eleta, sem Cacilda,
 Olhos na tela, online.
  
 Quarta-feira encantada,
 Ray Bradbury, Guimarães,
 Graciliano, Brodsky,
 Ferreira Gullart, tantos mais.
  
 Quarta-feira imaginária,
 favelados, seringueiros,
 ex- garimpeiros, menina má
 Severina, Amarelinho, Rosinha...
 Quarta-feira alvissareira,
 Escrituras VI no prelo.
 Renova-se a esperança:
 outras quartas virão.
  
 Quarta-feira venturosa,
 Antevéspera de Natal.
 Ao Deus Menino, a prece:
 saúde para todos nós.
   
  

Balanço do Ano de 2020

Fernando Gusmão

Neste ano que ora se finda navegamos em um mar perigoso, tempestuoso, que nos obrigou, entre outras atitudes, ao isolamento e ao distanciamento social, com todas suas dificuldades e desconfortos.

No entanto, vejo que, para mim, essa medida de defesa da nossa sobrevivência propiciou-me um tempo extra para novas leituras e, principalmente, para reler obras que eu dava como lidas, e que estavam servindo ultimamente somente para enfeitar minha estante ou para eventuais consultas, rápidas e diretas.

Ademais, reler diversos clássicos estando agora participando da nossa Oficina abriu-me outras perspectivas estéticas e fez-me ver detalhes que antes me tinham escapado. Falo, principalmente, daquelas leituras feitas na adolescência, com destaque para as histórias de Monteiro Lobato com seus inesquecíveis personagens.

Entre essas releituras, voltei aos livros de Jorge Amado, dentre os quais Velhos Marinheiros, em que o narrador, ao final indaga: qual a moral a extrair desta história por vezes salafrária e chula? … Onde está a verdade? Quem a conduz pelo mundo afora, iluminando o caminho do homem? O Meritíssimo Juiz ou o paupérrimo poeta? Chico Pacheco, com sua integridade, ou o Comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso? Essa indagação é feita pelo narrador-personagem com a finalidade de explicar a complexidade de uma sociedade burguesa, excludente e corrupta.  Ele conta que recorreu ao “golpe” da doença dos olhos para conseguir uma licença médica, pois “garantira-me um amigo que o golpe da doença dos olhos pega sempre:  os médicos, comovidos, assinam os papéis sem discussões nem exames.

Em Dona Flor e seus Dois Maridos, também de Amado, o personagem Vadinho é igual e sobejamente dado a “golpes” e “jogadas”. Mesma coisa com Quincas, de A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água.

Sabendo que o Amarelinho também é chegado a comportamentos assemelhados, dei uma pesquisada para ver se achava alguma base comum entre personalidades picarescas com tais perfis comportamentais.

Achei um artigo de Altamir Botoso, “Romance Picaresco e Malandro: a consagração do anti-herói ”, de 2017, onde o acadêmico discute o ressurgimento do “pícaro” na literatura brasileira, em vários romances do século XX, que consagram e garantem a sobrevivência do anti-herói na ficção e que teriam se originado no núcleo da chamada “picaresca clássica espanhola”.

Curioso é que daquela época três romances são considerados como fazendo parte do núcleo dessa picaresca:  “El Buscón”, de 1626, “Lazarillo de Tormes”, de 1554, e “Guzmán de Alfarache”, de Mateo Alemán, que nasceu em 1599.

Segundo o articulista, o personagem picaresco, ou o pícaro, apareceu na literatura espanhola em oposição aos heróis dos romances de cavalaria, publicados com destaque na Espanha durante o século   XVI, com seus paladinos, princesas e dragões,  

Segundo Altamir Botoso, essa categoria literária, na qual o pícaro é o protagonista, inaugura uma nova maneira de narrar e, além do mais, expõe uma visão fortemente crítica da realidade social da qual o anti-herói faz parte.

Por exemplo, apesar de aprender que o trabalho não é o caminho indicado para chegar à riqueza, Guzmán exerce o ofício de criado. Mas, ele foi e será sempre um pícaro, que pagará qualquer preço pela sua liberdade e o seu bem-estar. A única meta que importa a Guzmán é manter intacta a sua liberdade e salvar a própria pele.  O seu “arrependimento” equivale a um lance de picardia, que consolida e reafirma a sua posição dentro da obra, já que ele continuará sendo, sempre, um pícaro.

A MORTE E A VIDA

Luzia Ferrão

A morte e a vida nos ronda sempre como dois elos de uma mesma corrente. O menino Jesus vai nascer e morrer logo, logo, aos trinta e três anos. Assim foi 2020 choramos a morte (do meu irmão principalmente) e quase enlouqueço no primeiro caso da família (meu neto/filho). Gritei: não vou resistir, não vou resistir… resisti e foi só uma “gripezinha”. Essa frase deveria ser o grito dos nossos mortos. Infelizmente o demônio que à pronunciou não morreu é um demônio. Demônio não morre, aprendemos a nos livrar dele com o seu oposto que nos guarda.

 A Oficina Clarisse Lispector estou mais do que consciente que é a minha última tentativa de exorcizar meus demônios. Correu o tempo fiz de tudo que suas imaginações possam criar. Há 75 anos tento livrar-me deles. Consegui conviver numa boa com grande parte deles, alguns são tão resistentes, tão fdp que ainda riem da minha cara, mesmo eu sabendo que são demônios. É nesses instantes que minha raquítica lucidez me diz: Ligue não todo mundo tem os demônios que merece. Assim foi o ano de 2020, repleto de meninos Jesus, (na família tem um gordinho lindo com 8 meses), e com despedidas online.

Amiguinhos e coleguinhas vocês não podem imaginar os encantamentos e as raivas que vocês me propiciaram nos nossos encontros. Botando na balança foi 80 a 20% , por isso eu quero desejar de  coração ( só vale assim) que sonhemos juntos 2021 assemelhado ao paraíso na terra.

Coloco tudo na balança da vida

FELIZ 2021

22 de dezembro de 2020.

BALANÇANDO O BALANÇO

Salomé Barros

MOVIMENTO INTERMITENTE

É O QUE CHAMAM BALANÇO

UM VAI E VEM DESMEDIDO

COM RETROCESSO OU AVANÇO

SE O CLIMA NÃO AJUDAR

SÓ REBOLO E NÃO DANÇO

FORAM MUITAS TURBULÊNCIAS

NESSE ANO QUE TERMINA

UM VIRUS DESTRUIDOR

FEITO AVE DE RAPINA

ESTRAGOU ATÉ JUIZO

DE QUEM TOMOU CLOROQUINA

TUDO FOI TÃO DE REPENTE

CONFINAMENTO FORÇADO

ISSO TROUXE DE PRESENTE

UM TEMPO MAIS AMPLIADO

INJETOU INSPIRAÇÃO

DEIXOU CÉREBRO TURBINADO

COMO TUDO TEM DOIS LADOS

FICAMOS COM O POSITIIVO

NOSSA OFICINA AMPLIOU

O RESULTADO EFETIVO

A PRODUÇÃO FOI CRESCENDO

DANDO FORÇA AO COLETIVO

E CADA UM DE SEU JEITO

FOI SOMANDO SEU TALENTO

O VOLUME FOI TÃO GRANDE

QUE ESBORRAVA O PENSAMENTO

E O BARCO SEGUIU CERTEIRO

ENFRENTANDO ONDA E VENTO

A RECOMPENSA CHEGOU

NOSSO LIVRO ESTÁ BOMBANDO

TEMOS QUE COMEMORAR

COM O EGO ALIMENTANDO

A ENERGIA POSITIVA

PRA CONTINUAR CRIANDO

                                             

ORA (DIREIS) CONVERSAR COM ESTRELAS

Osvaldo Sarmento

Acho que não tem sido fácil pra ninguém estes tempos de pandemia, naturalmente que excluo desse ninguém uns poucos grupos como donos de funerária, por exemplo.    Surpreendentemente, para mim, embora difícil, esses tempos não têm sido o desastre super desastroso que pensei.

Li menos do que devia, mas li. Como um aluno responsável, li atentamente todo o material objeto dos encontros semanais da Oficina de Literatura Clarice Lispector, fossem eles teóricos ou não. Pus no mesmo pé de igualdade tanto os escritos clássicos de autores consagrados, sugeridos pela coordenação, como a produção literária do grupo

Fiz o que pude sob o signo dessa pandemia desgraçada. Debrucei-me, valentemente, sobre os ditos de Clarice em “A Hora da Estrela”, quebrando com isso, minha promessa de esquecê-la. Reli com prazer, Graciliano e José Lins do Rego. Sofri com a leitura de “Para sempre Alice” de Lisa Genova, porque cada página me remetia à trajetória de minha mãe adotiva padecente do mal de Alzheimer. Depois desse livro, o jeito foi passar um unguento na alma lendo sem compromisso dois policiais de Agatha Christie e passeando pelo “Cem Sonetos de Amor” de Pablo Neruda. Abandonei, por enquanto, a leitura de “O Vale do Issa” de Czeslaw Milosz (Prêmio Nobel de Literatura) e “O Castelo” de Kafka. Não fazem meu gênero! Mas vou conclui-la em breve, por uma questão de honra até, pois nunca deixei inacabada a leitura de qualquer romance.

Gastei – alguém dirá desperdiçou – muito tempo com leituras ligadas ao momento político do país, tentando desesperadamente manter a esperança de uma saída. Esse tipo de leitura tem sido um vício para mim. Preciso controlar-me, reconheço.

Em matéria de criação literária, também fiquei devendo. Escrevi somente dois contos, um antes do aparecimento da pandemia neste solo abençoado por Deus e em que se plantando tudo dá. Dentro da área do que foi um dia minha atividade profissional, mas que insisto em continuar escrevendo, mesmo que para o vento, também estou a dever. Fiz o roteiro de um artigo dito científico e só. Acho que vou escrevê-lo, o mais rápido possível. Tenho medo de que essa maldita pandemia interrompa meu sonho. Escapei da primeira, mas tenho sérias dúvidas se sobrevivo à segunda onda. E vou culpar o governo por tudo de ruim que porventura possa me acontecer. E se acontecer, procurarei a ajuda da força divina, para voltar de onde estiver, arrancá-lo do palácio e conduzi-lo até as portas do inferno.

Desculpem o delírio que me fez dizer tantas asneiras. Sei que nunca vou realizar meu sonho por completo. Meu sonho, como já disse Erundina, não cabe numa vida só. Por enquanto quero apenas completar uma etapa desse sonho, que é infinito e, só aos poucos se revela.

A pandemia suspendeu os encontros presenciais da Oficina, mas, felizmente, não interrompeu a viagem sem fim do grupo no mar das palavras. Sob a liderança da timoneira manteve-se os encontros, dessa feita, de maneira virtual graças, é bom enfatizar, ao enorme avanço da tecnologia no campo das comunicações. Muito melhor do que nada, evidentemente, embora esteja um pouco longe dos encontros presenciais.

Digo isso, não só pela falta do calor humano insubstituível de uma reunião presencial. Já vai fazer um ano, que parece um século, que não provo as inigualáveis iguarias trazidas por Adelaide. Modesta como sempre, transfere os elogios para sua auxiliar, Paula a ‘mãos de fada’.  Lembra-me Lourdes desviando suas merecidas glórias pra nós, simples e mortais viageiros. A propósito, sinto saudade também do desesperado som de sua sinetinha tentando a impossível tarefa de disciplinar a tagarelice vinda daquele lado da sala do Traço onde se sentam Eleta, Cacilda, Luzia, Junior e alguns outros sem fidelidade de assentos. Desculpem-me se comparo viageiros a simples crianças, mas não consigo evitar a lembrança de meus venturosos tempos de menino frequentando a escola. Confesso que sinto falta, igualmente, do zelo de Luciene para conosco.

Procurei um aspecto bom da pandemia, não sei se achei. Mas, vamos lá! A relativa prisão em que me vejo me fez frequentar muito o jardim de casa, a qualquer hora do dia ou, especialmente, no silêncio da noite. Fiquei surpreso com a visita de tantos pássaros e da vontade deles de me brindarem com seus maravilhosos recitais e da incrível velocidade de seus voos. De noite, voltei a conversar com as poucas estrelas visíveis no céu de uma cidade grande, como fazia no meu tempo de adolescente, na acanhada Maceió, de pouquíssima iluminação, influenciado pelo belo poema de Olavo Bilac, “Ora, direis ouvir Estrelas”. Ainda pretendo contar essa história, noutra oportunidade.

Não sei se por conta da Covid-19, voltei a sonhar, ou melhor dizendo, a lembrar-me de meus sonhos. Ontem tive dois sonhos, ou dependendo do ponto de vista de cada um, pesadelos. Sonhei que era uma tartaruga de couro, dessas que podem viver mais de trezentos anos e que singrava tudo que era oceano com uma volúpia nunca sentida. O outro foi que eu era um pássaro muito vistoso e viajante por excelência que conhecia a rota de todas as partes do mundo. Tanto fazia pousar pra descansar em árvores centenárias, como nos grandes monumentos das diversas civilizações. Acordei maravilhado e os interpretei como duas propostas do Divino para minha próxima encarnação e já decidi o que vou pedir ao nosso Criador. Adoro viver, mas vou preferir ser um pássaro. Encantarei os humanos com minha plumagem e gorjeio. Com o gozo de tudo conhecer, viajarei pelo mundo com a força de minhas asas, sem precisar de malas. Farei meu pouso onde bem entender. Devolverei, em forma de estrume, o que receberei da natureza como alimento, em qualquer lugar, sem ter que me esconder. Amarei ao ar livre, como sempre quis.

Nosso barco

Lília Gondim

O que podemos fazer, tio? Nada, além de viver.

O tio Vânia – Peça de Tchekhov

O ano começou feliz. Nosso barco corria leve e solto nas águas tranquilas, mar sob controle, ondas confiáveis, com muitas coisas a comemorar, apesar da difícil situação política do país. Minha sobrinha portuguesa, Juliana, e seu namorado Nuno, residentes na cidade do Porto, estavam desde janeiro em Olinda, em visita ao pai dela, meu irmão, provocando alegres encontros e passeios.

Logo na primeira dezena do mês, Paulinho fez aniversário, 70 anos, e organizamos, para surpresa dele, uma bela comemoração familiar animada pelos músicos Bozó e Beto do Bandolim.

Final de fevereiro, Momo nos reservou dias tranquilos e agradáveis na pousada onde costumamos, de uns cinco anos para cá, passar todos os carnavais: em Porto de Galinhas, frente para o mar, caminhadas, água salgada, comida boa, livros, rede e cervejinha gelada que ninguém é de ferro.

De saída pra Recife na Quarta-feira de Cinzas, deixamos uma reserva de dez dias, para o mês de maio, quando eu estaria de férias.

Março fez a nossa pequena embarcação balançar em águas revoltas. Tivemos a notícia triste das primeiras mortes provocadas pela pandemia de Covid-19, que transformaria o mundo nos meses seguintes num grande cemitério, com mais de 1 milhão e seiscentos mil mortos, sepultados sem direito a velório e com restrições à presença de familiares. Fato que, entre nós brasileiros, tornar-se-ia gravíssimo pela falta de uma política de saúde, que visasse o controle da doença e a preservação de vidas, além da presença predatória de um ignorante irresponsável no comando do país.

A partir daí nossas águas nunca mais foram tranquilas e transparentes e tivemos que tomar algumas precauções. Em primeiro lugar, fizemos descer do nosso barco a tripulação de apoio. Nossa secretária foi mandada para casa desde então, mantendo o salário até hoje. A faxineira foi dispensada e, por conseguinte, nós dois assumimos todas as tarefas da nossa embarcação: Faxina, cozinha, limpeza e arrumação diária, lavagem de roupa e louça etc.

Em seguida, foram cancelados todos os embarques de amigos e familiares, ficando nosso barquinho reduzido a conduzir apenas nós dois, dividindo o comando, os trabalhos e a vida, bem como os percalços da viagem, sem bússola, astrolábio ou carta de navegação.

Desembarques, só os extremamente necessários e em portos bem seguros, com atendimento individualizado e previamente agendado: dentista, consultório médico e, mais tarde, em setembro, alguns exames imprescindíveis com o mesmo cuidado.

Passamos a fazer todas as compras por entrega domiciliar e pagamento por transferência bancária ou cartão. Em nosso prédio foi proibida a subida de entregadores, a não ser o da água mineral. Passamos a descer de máscara e luvas para receber as compras e em seguida a lavar tudo. Nunca me imaginei antes dessa terrível crise sanitária lavando um pacote de Bombril ou um de batatas fritas! E o pior, literalmente, lavando dinheiro!

No começo do desastre, em março, achávamos que em julho tudo estaria terminado e a navegação voltaria ao normal. Que nada! Já em maio, as ondas cresceram lavando o convés do nosso barco e fiz o primeiro adiamento da reserva na pousada de Porto, para o mês de outubro, quando seria a minha vez de fazer 70 anos. Não deixaria de comemorar essa data. Amigas de Fortaleza e Porto Alegre já tinham se comprometido a estar presentes, com passagens já compradas.

Mas a tempestade foi grande. Fechou tudo: comércio, bares, restaurantes, praças, praias, hotéis, casas de festas; apenas supermercados, farmácias e padarias podiam funcionar, cumprindo certos protocolos; proibidas aglomerações; mandatos festivos de Santo Antônio, São João e São Pedro foram cassados; essas e outras medidas foram tomadas na tentativa de reduzir os danos causados pelo vírus. Recomendações oficiais de uso de máscara, higienização frequente das mãos com água e sabão ou álcool gel. E principalmente manter o distanciamento social. Muita gente não respeitou as regras e chegamos ao isolamento social obrigatório.

Em consequência das proibições e medidas restritivas, aqui no Estado foi atingido um certo controle; as mortes e os casos diminuíram bastante e chegamos a uma situação em que os governantes acharam que era seguro o retorno gradual das atividades econômicas, com redução semanal das restrições. Mas o povo entendeu tudo errado e se encontrou, se abraçou, se beijou, festejou, aglomerou, não usou máscara, lotou hotéis e praias, principalmente nos feriados que emendavam com os fins de semana.   Comentava-se nas redes sociais que “o povo em Recife não deixa de ir à praia nem com tubarão, que dirá com Covid, que não tem dente”. As pessoas acharam que, com a queda paulatina das restrições, a pandemia tinha acabado! Ou será que não estavam nem aí para a situação grave que se mantém até hoje?

No final de setembro fui obrigada a fazer o segundo adiamento, dessa vez para janeiro de 2021, da minha ida para Porto de Galinhas. As amigas cancelaram as passagens de avião. Não pude comemorar meu aniversário, o que não foi ruim de todo, por que no ano que vem, se eu estiver viva e o coronavírus morto, faço de novo setenta e economizo um ano.

Um trabalho importante que conseguimos realizar nesse período foi a reorganização da biblioteca do barco. Cadastramos e numeramos quase mil e quatrocentos volumes. Para doação ainda foram separados mais de cem livros. Ainda ficaram faltando cadastrar os componentes das categorias Arte, Técnicos e Romances Policiais.  O trabalho foi pesado, rendeu torcicolos e dores nas costas, mas valeu a pena.

A situação voltou a piorar em novembro. Aumentaram consideravelmente os números de casos e mortes. Hospitais e UTIs lotados e o povo na rua, sem máscara, disposto a enfrentar a Morte, enquanto eu, da solidão a dois do meu barquinho, torço por um novo fechamento da cidade e isolamento social obrigatório, mas, principalmente, torço pela chegada da vacina, única forma eficaz de proteção, rebaixada à cabo eleitoral pelo cidadão imbecilizado que dirige o país e seu Sinistro da Saúde.

Assustei-me um dia ao observar em outras embarcações, próximas à nossa, luzes piscando e enfeites natalinos. Puxa! Será verdade? Estamos em dezembro? Será possível um ano, que nunca foi, estar terminando?

No nosso barco de dois lugares, a navegação continua. Saudades dos filhos, netos, amigos, pesam no coração. Saudades de um barzinho e cerveja com os amigos. Saudades dos próprios amigos com os quais só nos comunicamos virtualmente. E saudades da tripulação de apoio para o bem do nosso descanso.

Em mim, particularmente, essa situação pesou e pesa. Gosto de pessoas, de gente, de beijar os filhos, chamegar com os netos. Às vezes fico meio depressiva. Choro à toa. Há meses não consigo bordar nem escrever. Interessante é que ideias não me faltam, mas não consigo concentração para sistematizá-las e transformá-las em histórias consumíveis. Me sinto numa espécie de “limbo literário”, tal e qual Garcia Márquez descreve em seu livro Viver para Contar. Não gosto muito de encontros pela tela do computador, apesar de achar válido para conseguirmos atravessar os abismos das separações necessárias. E assim, os viageiros do nosso grupo literário, nunca deixaram de reunir seu comboio marítimo todas as quartas-feiras, em um tranquilo e alegre porto virtual sob o Comando da Comodoro Lourdes Rodrigues, que da sua Nau Capitânia, garante o sucesso da aportagem das nossas pequenas embarcações. Importante manter a ideia contida no título do livro da Oficina Literária Clarice Lispector, o Escrituras VI, a ser lançado nos próximos dias, onde os viageiros entendemos perfeitamente que “todo abismo é navegável”, como bem ensina Guimarães Rosa. Apesar de não conseguir escrever, o isolamento social provocado pela pandemia me deu oportunidade de ler muito durante todo este ano. De janeiro até aqui li, entre leituras novas e releituras, 57 livros, o que dá em média mais de um livro por semana.

Paulinho e eu passaremos o Natal embarcados, como estamos há dez meses, olhando a noite do convés da nossa embarcação, acompanhados de um bom jantar e um vinho português e desejando que todos os amigos tenham um Natal o mais feliz possível e um Ano Novo com vacina anti-covid.

E já estou pensando em adiar pela terceira vez minha hospedagem na pousada, dessa vez para as próximas férias, em maio vindouro, porque, por enquanto, como um prevenido gajeiro, “não vejo terras de Espanha nem praias de Portugal*”.

Dez. 2020

*Do Romance da Nau Catarineta

Balanço Oficina 2020

Ana Amancio

 O que podemos dizer de 2020? Que foi um ano atípico? Que perdemos amigos e parentes? Que foi de muito sofrimento? E de muito isolamento?

Tudo isso e muito mais. Mas quem ama as palavras, tem salvação.

Na Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, todas as quartas-feiras. No inicio presencial no Traço, mas depois virtual e não fomos intimidados. Nossas tardes continuaram produtivas, criativas, enriquecedoras, de muito aprendizado e porque não dizer divertida.

Continuamos nossas leituras de autores diversos e de nossos escritos, a produção foi farta, até quem nunca fez poesia se arriscou!

Houve produção de uma novela de dois colegas.

Um livro de todo o Grupo em breve terá seu lançamento, on live, é claro.

Nossa comandante organizou, prefaciou, escreveu….  E uma equipe se empenhou nas incansáveis revisões.

E a capa, Ah! a capa, fico sem fôlego só em pesar, BELÍSSIMA, um artista plástico do grupo, nos honra novamente. Onde revela o ano difícil que tivemos e quantas turbulências atravessamos sem nunca recuar, para chegar ….

Ao Escrituras VI.

Balanço Oficina 2020

Everaldo Soares Júnior

Caros e Caras, atrasado, mas não fora de tempo, assim espero, o computador estava no conserto, mas vamos em frente.

As palavras que me vêm são de reconhecimento ao nosso trabalho na Oficina, durante esse ano. As leituras com os colegas, os debates sobre o que escrevemos, foram de grande importância para mim.

Nem esse ano atípico, de contato virtual, impediu que mantivéssemos um bom nível na produção de Escrituras VI, sob a competente coordenação de Lurdinha.

O balanço que faço, portanto, é bem favorável e incentivador para que continuemos esse trabalho prazeroso e profícuo em 2021.

Vamos, com o nosso entusiasmo, fazer o lançamento do nosso livro, contando com o empenho de cada um de nós para que ele, enfim, crie asas!

Feliz Natal e esperanças renovadas no Ano Novo.

Abraços,

AFINAL, FIZ UM BALANÇO?

                                                                                                        Graça Lins

Começo tomando emprestado um  verso de Bandeira.

“Quando eu tinha 6 anos de idade”…

Foi exatamente nessa idade que me inquietou a palavra “balanço”.

Meu pai era funcionário de uma loja de brinquedos. Daí, num mês de dezembro, ouvi dizer à minha mãe “vou ao balanço”. Com olhos interrogativos perguntei  “ e por que não me leva? É tão bom ir pra o balanço?”

Minha mãe sorriu e falou “ fazer balanço é fazer contas das coisas da loja”. Era ininteligível para mim…

Quando bem recentemente a nossa Nau foi estimulada a “fazer um balanço”, pensei em tantos momentos não vividos este ano mas que alimentaram os encontros virtuais.

Muitos grupos se desfizeram, muitos livros foram abandonados, muitos contatos desprezados, muitos zaps desativados, muitos projetos adiados.  Mas a nossa nau continuou a singrar os mares do sonho, da fantasia e da ficção.

Os viageiros… tão diferentes e tão iguais no amor à Literatura.

Manter um grupo tão diverso com um ideal comum a todos é uma Arte. A Comandante sabe disso.

Quando neste Natal recebi uma peça bordada por Luzia, um postal belíssimo de Salete, um LIVRO feito criativamente  por Fernando e Liza, e entregue com afeto, pensei e me certifiquei que a vida vale à pena em qualquer circunstância.

Assim, as nossas reuniões virtuais foram alimentadas pelos momentos vividos em nossos encontros e que guardamos em nossa memória como:

Os doces com sabor de infância que Adelaide nos presenteia,

As conversas ao pé do ouvido exigindo o sino da Comandante.

As deliciosas bolachas de Saramago.

O complicado tablet das irmãs Cacilda e Eleta, sempre atentas.

O cafezinho quente de Luciene no meio da tarde.

A cara marota de Formigão olhando as sobremesas de Ana.

As impecáveis saladas de Salete.

As considerações psicanalíticas de Junior

A leitura expressiva de Ricardo

As pertinentes intervenções de Luzia

A produção maravilhosa do casal  Lilia e Paulo.

A partilha amorosa dos textos de Fernando e Liza

O precioso cordel de Salomé.

A evolução na escrita de Mita.

Um carrossel de livros à espera de leitores.

E a fantástica programação de Leitura Literária conduzida por Lourdinha.

Em tempos da publicação de ORVIL (LIVRO ao contrário), sobre o qual ouvi assustadores comentários, continuaremos  a tomar a PALAVRA  e sua significância, criando personagens, cenários, conflitos, lendo e relendo, enfim, trazendo vida para nossas vidas.

Bom retorno para nosso grupo!

Bons textos em 2021!

 

Meu encontro com Clarice

A vida cheia de coincidências sempre me revelando segredos inestimáveis.

Nair Beder

Numa certa manhã do ano de 2019, num lugar inusitado (no caixa do Banco do Brasil) aconteceu uma conversa tão rica que mudaria para sempre minha vida.  Ali, pela amiga Ana Amâncio, eu soube da Oficina Clarice Lispector. O ano já estava terminando, ia ser lançado um livro e o convite já estava feito:  em 2020, já reservaria todas as quartas-feiras para entrar neste barco comandado por Lourdinha. No início fiquei reticente e me senti muito imprudente em aceitar tal convite. O medo me rondou muitas vezes por me lançar em tão desconhecidos mares quando mal conhecia as areias das praias. Mas fui assim mesmo: gosto de desafios.

No primeiro dia da Oficina, as apresentações, o coração apertado e batendo forte, ensaiei em casa as palavras com as quais ia dizer quem sou. Mas o encontro com velhos amigos, todos já antigos viageiros, me deixou quase em casa. Levei um caderno muito bem escolhido para a ocasião, mas qual não foi a minha surpresa quando a nossa Capitã, com seu jeito tão peculiar de observar as coisas falou: “aqui procuramos poupar as florestas e por isso damos preferência aos tablets ou ao kindle”. Guardei imediatamente o meu caderno e tratei de ressuscitar um velho tablet, há muito desativado.  Nos primeiros encontros me vali do amigo Sarmento que me disponibilizava a leitura em seu moderno equipamento. Procurava logo sentar-me junto dele. Mas isso durou pouco…  Após o carnaval, uma doença desconhecida e assustadora que logo tomou conta do mundo, nos impediu de continuar os nossos maravilhosos encontros presenciais. Mas isso não foi empecilho suficiente para fazer naufragar o nosso barco! Ao contrário: diante do inusitado momento, de todas as dores, sofrimentos, medos e toda sorte de imprevistos, continuamos firmes no nosso barco, que nos altos e baixos das ondas foi sempre muito bem guiado pela nossa Capitã que nos fez trabalhar como nunca, com uma tarefa em cima da outra, com leituras e mais leituras, numa sede quase insaciável de nos salvar a todos e conduzir nosso barco à calmaria de tempos passados. E ela venceu; e, também nós vencemos.

O nosso livro, fruto da dedicação de todos e da resiliência de nossa mestra, enfim vai chegar ao mundo.

 Para mim, uma iniciante no caminho das palavras, tentando a todo custo enfrentar o medo de uma folha em branco, esse momento não tem preço. E hoje, conversando com os meus botões, penso se teríamos feito o mesmo se não estivéssemos em circunstâncias tão adversas. Para mim, este momento, apesar de penoso e muito difícil, certamente nos marcará para sempre como um novo paradigma onde as pessoas poderão pautar suas vidas daqui por diante com mais afeto, cuidado e principalmente amor ao próximo, ao ter conseguido a certeza de que sozinhos não somos nada. Ou quem sabe isso apenas continuará a fazer parte da minha eterna utopia, agora renovada pela certeza de que a única coisa que nos salva é a nossa irmandade?

Serei eternamente grata a todos pelos momentos que passamos juntos nas nossas tardes, onde a fantasia e a vida real se confundiram a tal ponto, que muitas vezes flutuamos, mesmo durante os vendavais mais turbulentos, próprios de uma grande tempestade.

2020

Ricardo Braga

Literatura da boa, bom humor e interação nas quartas não são novidade na nossa Oficina. 2020 pegou a rampa dos anos anteriores e já ia deslanchando do jeito que a gente gosta. Eis que o vírus empatou a inércia dos bons ventos, nos atirando para fora da zona de conforto.

O jeito foi dispensar a vela e apelar para os remos. Vinte remadores no meio da tempestade. Foi preciso a timoneira tirar a bússola do bolso e orientar a navegação com comando firme. Slap, slap… síncronos, nas vozes e imagens pela internet, alguns ainda aprendendo a remar em condições adversas ao hábito.

Logo o barco apruma e segue o bom destino, agora com a boa literatura entremeando os dias, a ansiedade compensada pelo riso espontâneo no WhatsApp e a simpatia das quartas transformada em empatia, solidariedade e preocupação cotidiana com o outro.

Acredite, visto assim, ganhamos com a pandemia. Agora substituo, com ganhos, a palavra colega, de 2019, pela expressão meus amigos, de 2020.

A ESPERANÇA DE NOVOS TEMPOS

Eleta Ladosky

Certamente 2020 ficará na história da Humanidade como um ano doloroso! Mas a capacidade de resistência humana às adversidades ficou comprovada mais uma vez.

Em função dela, teremos em 2021 a esperança de retomada da nossa vida normal. A nossa Oficina de Criação Literária é mais um exemplo dessa resistência. Sob o comando da incansável e competente coordenadora Lourdinha demonstrou ser capaz, com reuniões virtuais, de uma produção literária maior que a dos anos anteriores e que barquinhos de papel carregados de palavras podem navegar no abismo. Muitos oficineiros, além de contistas e cronistas, tornaram -se também poetas.

O nosso livro, Escritura VI, organizado com zelo por Lourdinha, está chegando. E até uma novela sobre o tema universal da loucura, foi descrita surpreendentemente à quatro mãos por oficineiros, em capítulos alternados, de forma pitoresca e regionalista.

Que 2021 possa nos reunir de forma presencial.

Homenagem aos cem anos de Clarice Lispector

Clarice, a pobre /rica

Luzia Ferrão

Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. Assim falou Clarice e ficamos morrendo de inveja desta pobreza. Oh Clarice, esse anúncio nos enche de inveja (da boa, será?). Passados cem anos e esta pobreza, a cada leitura e releitura dos seus textos, enriquece nossa pobre e única alma.

Sou o que quero ser, porque possuo apenas uma vida e nela tenho a chance de fazer o que quero. Sabe Clarice, acho que entendi o que está escrito nesta frase. As pessoas mais felizes não tem as melhores coisas, elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seu caminho. Gostei, você mesmo respondeu e imaginei ela de fato aproveitou todas as oportunidades, caso contrário não teria deixado uma herança tão incomensurável. Coitado dos milionários que conhecemos, são tão pobres se comparados à nossa madrinha. Ela é tão rica que nos acompanha na riqueza e na pobreza, na beleza e na feiura, na tristeza e alegria.

Posso escrever, sonhar, fazer o que quiser, até escrever errado, mal escrito, como agora, porque ela outro dia me avisou: Sonhe com o que você quiser. Nunca sofra por não ser uma coisa ou por sê-la.

Infelizes e felizes seremos sempre. Buscaremos consolo e sua benção minha madrinha, sempre. Obrigada pela seu centenário.

Dezembro, segunda fase da pandemia. Ui.