Monólogo Interior

MI0002861493Na próxima quarta-feira, 18 de março, iremos ler o Monólogo de Molly Bloom, longo trecho extraído de Ulisses, obra de James Joyce, cuja relevância literária permitiu-lhe assumir identidade própria, sendo inclusive publicado, em separado, por algumas editoras.

O Monólogo de Molly Bloom ficou famoso porque tentou reproduzir os mecanismos do pensamento de forma literária. Tudo ocorre na mente  do personagem, como se o “eu” falasse a si próprio. Há certa dificuldade de algumas pessoas aceitarem que esse tipo de monólogo é um diálogo. Se é mono, dizem, subentende-se que é único, uno, e não duo, dois. Todavia, esse uno, esse um dirige-se a um outro, subentende a presença de um ouvinte, de um “tu” com quem ele ou ela fala. Há um duplo, aí, com certeza, a quem o “eu” se dirige,  troca ideias, conversa, briga, agride, xinga. . No monólogo interior são expressos os recônditos da alma do personagem, os seus desejos mais reprimidos surgem de forma escancarada, assim como as suas fantasias mais lúbricas.

Há duas formas de escreve-los. De forma indireta, quando a presença de um narrador é evidente, um narrador onisciente que relata todos os fluxos de pensamento dos seus personagens, não lhe escapando o menor e mais íntimo pensamento, muito comuns em Virgínia Wolf, em William Faulkner; e o monólogo interior direto que ficou celebrizado pelo Monólogo de Molly Bloom em Ulisses, escrito por James Joyce, em que  o narrador é o próprio personagem que se revela em sua fala, num tempo presente dominante, mesmo quando se refere ao passado, num fluxo de consciência que jorra sem parar. Toda pontuação é desconsiderada, abrindo espaço para o caos gramatical, numa tentativa de escamotear por completo a presença de um terceiro..

É preciso ter fôlego para esse tipo de leitura, é preciso se despojar de todo um arsenal de conhecimento gramatical e de recursos estilísticos para apreciar com prazer essa leitura. Com certeza os navegantes dos mares das palavras estão preparados para essa grande viagem. Usaremos as traduções de Houaiss e de Caetano Galindo.1022784-250x250ulisses_james_joyce

Segue um trecho do monólogo que iremos ler.

 

 

Os Mortos, James Joyce

42691740NOTAS SOBRE A NOVELA OS MORTOS DE JAMES JOYCE

*Cacilda Portela

A Oficina de Literatura Clarice Lispector está lendo e analisando a novela Os Mortos, de James Joyce. Na impossibilidade de acompanhar até o fim os trabalhos, terminei a leitura sozinha, e aventurei fazer algumas anotações sobre a novela, observando alguns princípios gerais da análise literária. Desde já me coloco à disposição dos leitores para sanar alguma interpretação duvidosa ou precária.

Tema – o assunto, argumento ou proposição central da narrativa é a Morte. A ideia predominante da novela que se concretiza na ação. A ideia global que sustenta o planejamento e a ação. Diferencia-se do motivo pelo grau de abstração.

Motivo ou enredo – relativo ao movimento, se refere à ação ou enredo, e tem o poder de encaminhar a ação porque aciona sua dinâmica. A ceia de Natal, o discurso de Gabriel, o vinho e a dança, as brincadeiras quando os convidados se despedem no hall, a caminhada ao longo do rio sob a neve, a canção que Gretta escuta transtornada no final da festa são fragmentações do todo narrativo, que emergem do desenvolvimento da narrativa para os episódios finais: a revelação de Gretta e as consequências para Gabriel.

Forças-motrizes – constituem a permanência de certos padrões de comportamento diante da realidade, certos valores, certas soluções para os problemas humanos, certas ideias fixas, certos moldes mentais. Gabriel vai elaborando essas forças que implicam em sua visão do mundo.

O medo de falhar é um padrão do comportamento de Gabriel Comroy, e indica necessidade de fuga da situação. Teme falhar com os convidados se o seu discurso, logo mais, na ceia de Natal, não for bem entendido. Pensa: todo o discurso era um erro, do princípio ao fim. Falhara com Lily quando lhe ofereceu uma moeda porque ela guardara sua capa de chuva. Falhara também com a Srta. Ivors. Acusado por ela de escrever resenhas para o jornal Daily Express e de ser um bretão ocidental, fica estarrecido e reticente, só conseguindo responder que não via nada de política em escrever resenhas, enquanto queria dizer que a literatura está acima da política. Quando indagado pela esposa sobre a conversa com a Srta. Ivors, Gabriel responde que ela apenas queria que ele fosse viajar nas férias para o oeste da Irlanda. Pouco ouvia o que a esposa falava. Os dedos trêmulos batiam no vídeo da janela. Pensa como deve ser muito agradável caminhar sozinho ao longo do rio. Muito mais agradável do que estar ali na mesa do jantar!

Um Gabriel inseguro e deslocado com relação à sociedade, às pessoas e a si próprio, olhando a neve pela janela, voltou a pensar no seu discurso e na citação que faria dirigida para a Srta. Ivors:

Senhoras e senhores, a geração que agora está em declínio entre nós teve suas falhas, mas, de minha parte, creio que ela teve certas qualidades de hospitalidade, de humor, de humanidade, de que a nova e muito séria geração educada, que cresce entre nós, me parece carecer.

É a resposta de Gabriel que ele gostaria de ter dado para a Srta. Yvors, que deixa a festa sorrindo e não parecia estar chateada. Gabriel olhou para o nada escada abaixo.

Pensou nos tópicos do seu discurso e repetia para si mesmo a frase que escrevera em sua resenha: É como se estivéssemos ouvindo uma música atormentada por pensamentos. Aqui, o autor da novela traz para o leitor a ideia de que a frase é dirigida para Gabriel, e que significa algo que está sendo preparado ou montado para o tema da novela, e que, revelado, significa a tomada de conhecimento da razão de ser da vida de Gabriel. Será por acaso que, logo em seguida, tia Jane, ao piano, executa a canção Vestida para o Matrimônio?

Quando começa o discurso, Gabriel lembra que a Srta. Yvors havia ido embora. Cheio de confiança em si mesmo começa dizendo:

… vivemos em uma era cética e atormentada pelo pensamento de jovens que poderão desprezar valores de humanidade, de hospitalidade, de humor de um gracioso estado de espírito que pertenciam a dias passados. (…) e se nós nos remoermos demais nessas memórias jamais encontraremos forças para seguir bravamente com nosso trabalho entre os vivos. Nós temos, todos nós, deveres vivos e afetos vivos com esses valores”. (54)

Os convidados estavam saindo. Gabriel vê sua esposa escutando uma canção, e sente-se atraído por ela. Observava a esposa que não se envolveu na conversa. Ela parecia tão frágil que ele teve vontade de defendê-la de algo e, então, ficar a sós com ela. Sentia-se orgulhoso, alegre, carinhoso, valoroso. Ela perguntou pelo nome da canção que estava tocando. A Garota de Aughrin foi a resposta. Neste ponto, a ação se encaminha para algo novo, fundamental, para o desfecho da novela.

Gretta revela para Gabriel a paixão de adolescência pelo garoto Michel Furey. Ele morreu aos dezessete anos porque, mesmo muito doente, fora despedir-se dela que voltava de férias para a casa dos pais. Ele costumava cantar a música A Garota de Aughrin. Eu consigo vê-lo claramente, ela diz para Gabriel. Não é terrível, morrer tão jovem assim? Gabriel sente-se humilhado pela evocação daquela figura do mundo dos mortos. Uma consciência vergonhosa de si mesmo o avassalou. Gretta diz acreditar que Michel morreu por causa dela. Quase não lhe doía mais pensar no pobre papel que ele, seu marido, havia tido na vida dela.

Epifania – Seção da obra literária que apresenta, simbolicamente, um momento de revelação. O texto costuma ser denso e profundo. Um terror vago se apoderou de Gabriel como se um ser intangível e vingativo estivesse vindo contra ele em seu mundo vago. Era chegada a hora de iniciar sua viagem para o oeste da Irlanda. Pensou ver a silhueta de Michel Furey apoiada em uma árvore na neve. O mundo real, em que os mortos tinham vivido, desagregava-se. A neve cobria todo o universo como se fosse uma manifestação divina. Como se lhes descesse para a hora final, sob todos os vivos e os mortos. Surge então uma súbita sensação de entendimento ou de compreensão da essência das coisas. Um pensamento único e inspirador. Passado e futuro não importam mais. Gabriel Conroy toma consciência da finitude humana.

Cosmovisão – Visão filosófica singular de ver o mundo. Crenças sobre a forma como as coisas são e deveriam ser. Gabriel apresenta na ceia de Natal, e de forma mais incisiva, suas ideias sobre o valor e o destino da pessoa humana. Os episódios remetem para o conhecimento de toda a obra, e se encaminham para uma visão do mundo. Um Gabriel moralista, temeroso, desencantado, que sucumbe pela revelação da esposa. Há de chorar para sempre porque nada mais tem razão de ser. Essa crença, de base filosófica, explica sua amargura, que procura na morte apagar uma existência linear e sem grande sentido. Tem na morte um sono sem sonhos.

Conteúdo da Obra- Novela de ideias, pela retratação filosófica e atemporal. Vale salientar que a novela Os Mortos não está estreitamente relacionada ao ambiente histórico. E que nenhuma obra se desliga totalmente do seu ambiente externo.

* Cacilda Portela é advogada, pesquisadora social, ensaísta.

 

O Vermelho e o Negro, de Stendhal

vermelho e o negro, o_mJulien Sorel: Sua Consciência Moral

*Cacilda Portela

 

Escrevo sobre Julien Sorel para entender porque muitas de suas ações, principalmente as referentes ao crime e à punição, são realizadas por dever. O dever entendido como razão, afetividade, sociedade e intercâmbio cultural. Entender também seu desejo de fazer uma grande fortuna e ser um homem brilhante. Dever e ambição permeiam toda sua vida e o levou a traçar um plano de ação só interrompido depois do crime e autopunição.
O texto não tem a intenção da verdade, do novo, do não dito; mas de ressaltar o caráter de acontecimento e suspender a soberania do significante. (M. Foucault)

Julien aceita a sua punição como um dever moral. Julga e age segundo princípio interior ideal de respeito à dignidade humana. Tem a liberdade de fazer valer a sua vontade e fixar os seus próprios objetivos ou fins. No mundo do dever ser ou dos fins valem os julgamentos morais. Sua ação é julgada segundo os critérios do bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto.

Sua consciência moral foi sendo construída e reconstruída na infância em sua interação com o grupo. Existiu entre Julien, o cirurgião-mor e o abade Chélan uma relação de afeto e de cooperação, na qual se tinha presente o livre intercâmbio de pontos de vista; havia uma relação de igualdade de poder de ação onde prosperou o respeito mútuo e o amor. O respeito às regras ou o modo como a consciência se obriga a respeitá-las. O pai avarento e os irmãos o desprezavam porque ele tinha um porte fraco para o trabalho na marcenaria, e porque preferia as histórias sobre Napoleão contadas pelo cirurgião-mor, como também a Bíblia, cujo conhecimento lhe permitiria entrada para o seminário.

Na casa do Senhor de Rênal e depois no seminário, Julien via hipocrisia e desprezo. O lucro, o luxo, as condecorações, o orgulho e as carreiras de barão, marquês e duque, ou de cura, monsenhor e bispo. Julien desejava construir uma grande fortuna e ser uma pessoa brilhante, mas não a qualquer preço.

Sua paixão eram os livros. Até ser preceptor dos filhos do Senhor de Rênal, Julien só tinha três livros: A Bíblia, em latim, que sabia de cor e podia recitar de trás para frente (era importante para a sua ascensão social), o Memorial de Santa Helena e As Confissões de Rousseau, e precisava escondê-los de todos com quem convivia. Como preceptor, utilizava como artifício para compra de livros que interessavam a ele, a necessidade de aprimorar a educação das crianças que os pais percebiam apresentando grandes progressos depois de sua chegada. No seminário, recebe do bispo de Besançon (que tinha setenta e cinco anos e preocupava-se muito pouco com o que aconteceria em dez anos…) seis volumes de Tácito e as palavras elogiosas: não esperava encontrar um doutor em um aluno do meu seminário. Embora o presente não seja muito canônico, quero dar-lhe um Tácito. No palacete do marquês de La Mole fica deslumbrado com a biblioteca e pôde se imaginar lendo todos os livros.

Em Paris, e como secretário do marquês, ia vencendo etapas para a construção de uma grande fortuna e tornar-se uma pessoa brilhante. No primeiro jantar com a família do marquês e convidados, Julien se saiu muito bem. Submetido a uma espécie de exame, não se deixou intimidar e respondeu apresentando ideias e um latim perfeito. Desde o seminário ele fazia pouco caso dos homens e dificilmente se deixava intimidar por eles. Assim que percebeu que Julien tinha ideias e um caráter firme, o marquês o encarregava de novos negócios e foi possível empreender novas especulações. O trabalho de Julien era realizado com o ardor de uma grande ambição. O marquês se afeiçoa ao seu secretário.

Julien se acostumara aos salões de Paris e outros da Europa. Suas ideias e sentimentos expressavam uma conduta e princípios morais que não exprimiam meramente a intuição moral de uma cultura ou época específica.

Na prisão, declara ao juiz: mereço a morte e a espero. Não via nada mais claro do que o seu caso: eu quis matar, devo ser morto. Considerava todas as coisas sobre um novo prisma. Não tinha mais a ambição de uma fortuna colossal. Quando interrogado pelo seu confessor para aceitar o indulto, Julien se revolta e exclama fui ambiciosoagi segundo as conveniências do meu tempo. Não pensava em seus êxitos em Paris. E não triunfar era sua única vergonha.

Julien é punido pela transgressão da lei ou direito positivo. Por não integrar-se no contexto societário, subordinando-se ao interesse geral. Não há margem para a liberdade do sujeito, não há conflitos morais, não há princípios que orientam a ação individual. Para a sociedade a objetividade do social (das leis) prevalece sobre a subjetividade do indivíduo. A lei que se impõe com autoridade implacável ao indivíduo, que sofre punições, não para repor o dano causado pela transgressão da norma, mas para reafirmar diante da sociedade a validade da norma que foi transgredida. Julien não considera essa lei uma justiça superior.

Pode ser importante mencionar a existência de um descompasso entre as estruturas autoritárias repressivas da sociedade e as estruturas de consciência moral atingidas.
Quando soube pelo carcereiro que a Senhora de Rênal não morreu, cessou o estado de irritação física e de desatino desde que saíra de Paris para Verrières onde cometeu o crime. E foi possível pensar:

Como seria feliz em dizer-lhe todo o horror que sinto do meu crime! Apenas estas palavras: considero-me justamente condenado; e que bastariam apenas duas ou três mil libras de renda para viver feliz em Vergy com ela…

Julie é condenado à morte por burgueses provincianos indignados que, aspirando às benesses da realeza burguesa, visavam desencorajar os jovens nascidos de uma classe inferior e oprimidos pela pobreza que tiveram, como ele, a felicidade de dispor de uma boa educação e a audácia de introduzir-se na sociedade dos ricos e poderosos.Comprou o revolver, pediu que a arma fosse carregada e deflagrou dois tiros contra a Senhora de Rênal que o perdoou pelo atentado. Revê a Senhora de Rênal antes de sua morte e por um bom tempo choraram juntos. Ela esclarece o motivo da carta que fez Julien cometer o crime.

Seu confessor comparece à prisão e pede que Julien solicite o indulto. A resposta é que nada mais lhe restará caso se despreze a si mesmo. Fui ambicioso e não quero absolutamente censurar-me por isso; agi, então, segundo as conveniências do tempo. Agora vivo só do dia de hoje.

Na prisão, ele filosofa: não existe absolutamente direito natural; esse termo não passa de uma tolice obsoleta… Julien não nega o direito natural. Acredita no direito natural como a lei que elabora a moral através da razão. Refere-se ao Código de Napoleão que inverte as relações tradicionais entre direito natural e a lei (direito positivo), não negando o primeiro, mas desvalorizando sua importância e significado prático. É a concepção rigidamente estatal do direito, que tem na lei a única e verdadeira.

Estou isolado aqui nesta prisão; mas não vivi isolado na terra; tinha a poderosa ideia do dever. O dever que me impus com ou sem razão… foi como o tronco de uma árvore sólida, na qual eu me apoiava durante a tempestade; eu vacilava, era agitado, mas não era levado…

Nem sempre agiu por dever porque nem sempre agiu com a razão, mas também por interesse, inclinação ou paixão. Julien tem uma máxima:   quis matar, devo morrer, e age de acordo com a lei da sua consciência. Julien tinha ainda muito a percorrer e saberia encontrar o caminho.

Era muito jovem quando foi decapitado. A idade lhe daria o exato valor da riqueza, porque ele tinha um caráter firme e um coração bom.

Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim. Kant (primeiro filósofo a desenvolver uma teoria sobre moral).

* Cacilda Portela é advogada, pesquisadora social, ensaísta.