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O FIM

Jorge Luís Borges

 
Recabarren, estirado, entreabriu os olhos e viu o oblíquo céu raso de junco. Da outra peça lhe chegava o rasgado de guitarra, uma espécie de paupérrimo labirinto que se enredava e desatava infinitamente… Recordou pouco a pouco a realidade, as coisas cotidianas que já não trocaria nunca por outras. Olhou sem piedade seu grande corpo inútil, o poncho de lã ordinária que lhe envolvia as pernas. Fora, para além dos barrotes da janela, dilatavam-se a planície e a tarde; tinha dormindo, mas permanecia ainda muita luz no céu. Com o braço esquerdo sondou, até dar com um cincerro de bronze que havia ao pé do catre. Agitou-o uma ou duas vezes; do outro lado da porta continuavam a chegar-lhe os modestos acordes. O executante era um negro que aparecera uma noite com pretensões de cantor e que desafiara outro forasteiro a um longo improviso de contraponto. Vencido, continuava a freqüentar a taberna, como à espera de alguém. Passava as horas com a guitarra, mas não tinha voltado a cantar; a derrota talvez o tivesse amargurado. As pessoas já se tinham acostumado a esse homem inofensivo. Recabarren, proprietário da taberna, não esqueceria esse contraponto; no dia seguinte, ao acomodar uns pacotes de mate, se lhe morrera bruscamente o lado direito e perdera a fala. À força de no apiedarmos da desdita dos heróis dos romances concluímos por nos apiedarmos com excesso das desditas próprias; não assim o sofrido Recabarren, que aceitou a paralisia como tinha aceitado antes o rigor e as solidões da América. Habituado a viver no presente, como os animais, agora olhava o céu e pensava que o aro vermelho da Lua era sinal de chuva.

Um menino de traços índios (filho seu, talvez) entreabriu a porta. Recabarren perguntou-lhe com os olhos se havia freguês. O menino, taciturno, lhe disse por sinais que não; o negro não contava. O homem prostrado ficou sozinho; sua mão esquerda mexeu alguns momentos o cincerro, como se exercesse um poder.

A planície, sob o último sol, era quase abstrata, como se vista num sonho. Um ponto agitou-se no horizonte e cresceu até ser um cavaleiro, que vinha, ou parecia vir, à casa. Recabarren viu o chambergo, o longo poncho escuro, o cavalo mouro, mas não a cara do homem, que, por fim, reduziu o galope e se veio aproximando em leve trote. A umas duzentas varas dobrou.

Recabarren não mais o viu, mas o ouvir dizer algo, apear-se, amarrar o cavalo à paliçada e entrar com passo firme na taberna.

Sem erguer os olhos do instrumento, onde parecia buscar alguma coisa, o negro disse com doçura:

– Eu já sabia, senhor, que podia contar consigo.

O outro, com voz áspera, retrucou:

– E eu convosco, moreno. Fiz-te esperar uma porção de dias, mas aqui vim.

Houve um silêncio. Por fim, o negro respondeu:

– Estou me acostumando a esperar. Esperei sete anos.

O outro explicou sem pressa:

– Mais de sete anos passei eu sem ver meus filhos. Encontrei-os esse dia e não quis mostrar-me como um homem que anda às punhaladas.

– Já me acostumei – disse o negro. – Espero que os deixou com saúde.

O forasteiro, que se tinha sentado no balcão, se riu de boa vontade. Pediu uma pinga e a degustou sem concluí-la.

– Dei-lhes bons conselhos – declarou – que nunca são de mais e não custam nada. Disse-lhes, entre outras coisas, que o homem nunca deve derramar o sangue do homem.

Um lento acorde precedeu a resposta do negro.

– Fez bem. Assim não se parecerão conosco.

– Pelo menos comigo – disse o forasteiro e acrescentou como se pensasse em voz alta: – Meu destino quis que eu matasse e, agora, outra vez, me põe a faca na mão.

Como se não o ouvisse, o negro observou:

– Com o outono os dias vão encurtando.

– Com a luz que fica me basta – replicou o outro, pondo-se de pé.

Enquadrou-se ante o negro e disse como que cansado:

– Deixa em paz a guitarra, que hoje te espera outra espécie de contraponto.

Os dois se encaminharam para a porta. O negro, ao sair, murmurou:

– Neste talvez me vá tão mal como no primeiro.

O outro respondeu com gravidade:

– O primeiro não te foi mal. O que aconteceu é que andavas desejoso de passar ao segundo.
Afastaram-se um trecho das casas, caminhando lado a lado. Um lugar da planície era igual a outro e a luz resplandecia. De pronto, encararam-se, pararam e o forasteiro retirou as esporas.

Já estavam com poncho no antebraço, quando o negro disse:

– Uma coisa quero pedir-lhe antes de pelejarmos. Que ponha neste encontro toda a sua coragem e toda a sua manha, como naquele outro de há sete anos, quando matou meu irmão.

Talvez pela primeira vez em seu diálogo, Martin Fierro ouviu o ódio. Sentiu seu sangue como um acicate. Entreveraram-se e o aço afiado riscou e marcou a cara do negro.

Há uma hora da tarde em que a planície está por dizer alguma coisa; jamais a diz ou talvez a diga infinitamente não a entendemos, ou a entendemos mas é intraduzível como uma música… De seu catre, Recabarren viu o fim. Uma investida e o negro recuou, perdeu pé, ameaçou um golpe na cara e se desdobrou numa profunda punhalada, que penetrou no ventre. Depois veio outra que o taberneiro não conseguiu presenciar e Fierro não se levantou. Imóvel, o negro parecia vigiar-lhe a agonia laboriosa. Limpou no pasto o facão ensangüentado e voltou para as casas, lentamente, sem olhar para trás. Cumprida sua tarefa de justiceiro, agora era ninguém. Melhor dizendo, era o outro: não tinha destino sobre a Terra e havia matado um homem.

(Nova Antologia Pessoal, tradução de Rolando Roque da Silva) 

 

OS SEXOS

                                                                                     Dorothy Parker

 

 O rapaz de gravata extravagante olhou nervosamente para a jovem vestida de babados, ao seu lado no sofá. Ela examinava o seu lencinho com tal interesse que era como se aquela fosse a primeira vez que via um e tivesse se encantado pela sua forma, material e possibilidades. O rapaz pigarreou, produzindo um ruído baixinho e sincopado sem necessidade e sem sucesso.
 – Quer um cigarro? – perguntou.
 – Não, obrigada – disse ela. – Imensamente obrigada, de qualquer maneira.
 – Perdão, só tenho desta marca – disse ele. – Você tem da marca que gosta?
 – Não sei, talvez tenha – disse ela. – Mas obrigada assim mesmo.
 – Porque, se não tiver, não me custaria mais que um minuto para ir à esquina e comprar um maço.
 – Oh, obrigada, mas eu não lhe daria esse trabalho por nada deste mundo. – disse ela. – É extremamente gentil da sua parte oferecer-se para isso, mas muito obrigada.
 – Droga, quer parar de ficar me agradecendo o tempo todo? – disse ele.
 – Realmente – disse ela –, não sabia  que estava dizendo nada inconveniente. Mil perdões se o magoei. Sei como a gente se sente quando é magoada. Nunca imaginei que fosse um insulto dizer “obrigada” a alguém. Não estou exatamente habituada a ouvir alguém gritar comigo quando digo “obrigada”.
 – Não gritei com você! – gritou ele.
 – Ah, não? – disse ela. – Sei.
 – Meu Deus – disse ele –, só lhe perguntei se podia ir lá fora comprar  cigarros para você. É motivo para você subir pelas paredes?
 – Quem está subindo pelas paredes? – disse ela. – Eu  apenas não sabia que era um crime dizer que jamais sonharia em lhe dar  esse trabalho. Talvez eu seja muito burra ou coisa assim.
 – Afinal, quer ou não quer que eu vá lá fora lhe comprar cigarros? – disse ele.
 – Pelo amor de Deus – disse ela –, se quer tanto ir, não se sinta na obrigação de ficar aqui. Não se sinta amarrado,
 – Ora não seja assim, tá bom? – disse ele.
 – Assim como? – disse ela. – Não  estou sendo assim nem assado.
 – O que há com você? – disse ele.
 – Ué, nada – disse ela. – Por quê?
 – Você está esquisita esta noite – disse ele. – Mal me dirigiu a  palavra desde que cheguei.
 – Peço-lhe mil perdões se não está se divertindo – disse ela. – Por favor, não se sinta obrigado a ficar se está se aborrecendo. Aposto que há milhões de outros lugares onde você se divertiria muito mais. Acontece que eu deveria ter pensado um pouco melhor antes. Quando você disse que viria aqui esta noite, desmarquei um monte de compromissos para ir ao teatro ou algo assim. Mas não faz a mínima diferença. Preferia até que você fosse se divertir em outro lugar. Não é muito agradável ficar sentada aqui, achando que vou matar alguém de tédio.
 – Não estou morrendo de tédio! – ele urrou. – E não quero ir a lugar nenhum! Por favor, querida, qual é o problema? Me conte.
 – Não tenho a menor idéia do que você está falando – ela disse. – Não há o menor problema. Não sei o que você quer dizer com isso.
 – Sabe, sim – disse ele. – Há algum problema. Foi alguma coisa que eu fiz?
 – Deus do céu – disse ela – não é absolutamente da minha conta qualquer coisa que você faça. Seja o que for, eu jamais teria o direito de criticá-lo.
 – Quer parar de falar desse jeito, por favor? – disse ele.
 – Falar de que jeito? – disse ela.
 – Você sabe muito bem – disse ele. – Do mesmo  jeito com que você falou comigo ao telefone hoje. Estava tão ranzinza quando liguei que tive até medo de falar.
 – Perdão – disse ela. – Como é que eu estava mesmo?
 – Está bem, desculpe – disse ele. – Retiro a expressão. É que, às vezes, você me enche o saco.
 – Lamento – ela disse –, mas não estou habituada a ouvir esse tipo de linguagem. Ninguém nunca falou assim comigo, em toda a minha vida.
 – Já lhe pedi desculpas, não pedi? – ele gemeu. – Juro querida. Não sei como pude dizer uma coisa dessas. Vai me perdoar, vai?
 – Oh, claro – disse ela. – Pelo amor de Deus, não fique se desculpando. Não faz a  menor diferença. Só achei engraçado ver alguém que sempre considerei uma pessoa educada entrar na minha casa e usar um palavreado como este. Mas não faz a mínima diferença.
 – Bem, acho que nada do que eu diga faz a menor diferença para você – ele disse. – Você parece magoada comigo.
 – Eu, magoada com você? – ela disse. – Não sei de onde você tirou essa idéia. Por que eu estaria magoada com você?
 – É o que eu gostaria de saber – ele disse. – Não vai me dizer o que houve? Fiz alguma coisa  para magoá-la, querida? Do jeito que você estava no telefone, fiquei preocupado o dia inteiro. Nem consegui trabalhar direito.
 – Eu certamente não gostaria de saber que estou interferindo no seu trabalho. – disse ela. – Sei que muitas garotas fazem esse tipo de coisa sem a menor cerimônia, mas eu acho terrível. Não é muito agradável ficar aqui ouvindo que estou interferindo no trabalho de alguém.
 – Eu não disse isso! – ele berrou.
 – Ah, não? – ela disse. – Bem, foi o que entendi. Deve ser a minha estupidez.
 – Acho que o melhor mesmo é ir embora – disse ele – Nada dá certo. Tudo que eu digo só serve para chateá-la cada vez mais. Quer que eu vá?
 – Por favor, faça exatamente o que estiver com vontade de fazer – ela disse. –  a última coisa que eu gostaria de fazer seria obrigá-lo a ficar quando você prefere ir a outro lugar. Por que não vai a algum lugar onde não se aborreça tanto? Por que não vai à casa de Florence Leaming, por  exemplo? Tenho certeza de que ela adoraria recebê-lo.
 – Não quero ir à casa de Florence Leaming! – ele zurrou. – Ela é um pé!
 – Ah, é? – disse ela. – Não era o que você parecia pensar na festa de Elsie, ontem à noite, como eu notei. Ou não teria conversado com ela a noite toda, sem tempo para mais ninguém.
 – Exatamente, e sabe por que eu estava conversando com ela? – disse ele.
 – Bem, suponho que você a ache bonita – disse ela. – Algumas pessoas acham. É perfeitamente natural. Há quem a ache bonita.
 – Não sei se ela é feia ou bonita – disse ele. – Se ela entrasse agora por esta porta, não sei se a reconheceria. Só fui conversar com ela porque você não me deu a mínima atenção ontem à noite. Eu me dirigia a você e você só sabia dizer,”Oh, como vai?” O tempo todo: “Oh, como vai?” E virava as costas imediatamente.
 – Eu não lhe dava a mínima? –  ela se espantou. – Oh, mas é tão engraçado! É engraçadíssimo! Não se importa que eu ria, não?
 – Pode rir até engasgar – ele disse. – Mas que é verdade é.
 – Bem, no instante em que você chegou, começou a fazer um fuzuê por causa de Florence Leaming, como se o resto do mundo não existisse. Vocês dois pareciam estar se divertindo tanto que eu jamais teria me intrometido.
 – Meu Deus – ele disse –, a tal moça Florence não-sei-das-quantas veio falar comigo antes que eu visse qualquer conhecido. O que você queria que eu fizesse? Que lhe desse um soco no nariz?
 – Bem, certamente, não o vi tentar – disse ela.
 – Mas me viu tentar falar com você, não viu? – disse ele. – E o que você fez? Ficou repetindo “Oh, como vai?” Aí a tal Florence apareceu de novo e me segurou. Florence Leaming! Acho ela horrível. Quer saber o que eu acho dela? Que é uma pateta.
 – Bem, disse ela – claro que essa sempre foi a impressão que tive de Florence, mas sabe-se lá? Há quem a ache linda.
 – Ora – disse ele –, como ela poderia ser linda estando na mesma sala com você?
 – Nunca vi um nariz tão feio – disse ela. – Tenho pena de   qualquer garota com um nariz como aquele.
 – Pois é, um nariz horroroso – disse ele. – Já o seu nariz é lindo.  Puxa, como o seu nariz é bonito!
 – Ora que nada – ela disse. – Você está louco.
 – Ah, é? – ele disse. – E os seus olhos? E o seu cabelo e as sua boca? E olhe que mãos  você tem! Venha cá, me empreste uma dessas mãozinhas. Ai, que mão! Quem tem as mãos mais gostosas do mundo?
 – Não sei – ela disse. – Quem?
 – Não sabe! – ele riu. – Claro que sabe.
 – Não – ela disse. – Quem? Florence Leaming?
 – Florence Leaming uma ova! – ele disse. – Está puta  comigo por causa de Florence Leaming! E eu sem dormir a noite toda e sem conseguir trabalhar o dia inteiro porque você não falava comigo! Uma garota como você se preocupando com um estupor como Florence Leaming!
 – Acho que você é completamente louco – disse ela. – Não estava preocupada. O que o fez pensar que eu estava? – você é louco – disse ela. Oh, minhas pérolas novas. Deixe-me tirá-las primeiro. Pronto.
                                                                

 

A UM AUSENTE

Carlos Drumond de Andrade

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

Poema dedicado a Pedro Nava.

 

Viagem a Petrópolis

                                                                                                                    Clarice Lispector.

 

Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação:
— Mocinha.
As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava:
— Nome, nome mesmo, é Margarida.
O corpo era pequeno, escuro, embora ela tivesse sido alta e clara. Tivera pai, mãe, marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase cobertos por um tênue veludo branco. Quando lhe davam alguma esmola davam-lhe pouca, pois ela era pequena e realmente não precisava comer muito. Quando lhe davam cama para dormir davam-na estreita e dura porque Margarida fora aos poucos perdendo volume. Ela também não agradecia muito: sorria e balançava a cabeça.
Dormia agora, não se sabia mais por que motivo, no quarto dos fundos de uma casa grande, numa rua larga cheia de árvores, em Botafogo. A família achava graça em Mocinha mas esquecia-se dela a maior parte do tempo. É que também se tratava de uma velha misteriosa. Levantava-se de madrugada, arrumava sua cama de anão e disparava lépida como se a casa estivesse pegando fogo. Ninguém sabia por onde andava. Um dia uma das moças da casa perguntou-lhe o que andava fazendo. Respondeu com um sorriso gentil:
— Passeando.
Acharam graça que uma velha, vivendo de caridade, andasse a passear. Mas era verdade. Mocinha nascera no Maranhão, onde sempre vivera. Viera para o Rio não há muito, com uma senhora muito boa que pretendia interná-la num asilo, mas depois não pudera ser: a senhora viajara para Minas e dera algum dinheiro para Mocinha se arrumar no Rio. E a velha passeava para ficar conhecendo a cidade. Bastava aliás uma pessoa sentar-se num banco de uma praça e já via o Rio de Janeiro.
Sua vida corria assim sem atropelos, quando a família da casa de Botafogo um dia surpreendeu-se de tê-la em casa há tanto tempo, e achou que assim também era demais. De algum modo tinham razão. Todos Iá eram muito ocupados, de vez em quando surgiam casamentos, festas, noivados, visitas. E quando passavam atarefados pela velha, ficavam surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com uma pancadinha no ombro: “olha!”. Sobretudo uma das moças da casa sentia um mal-estar irritado, a velha enervava-a sem motivo. Sobretudo o sorriso permanente, embora a moça compreendesse tratar-se de um ricto inofensivo. Talvez por falta de tempo, ninguém falou no assunto. Mas logo que alguém cogitou de mandá-la morar em Petrópolis, na casa da cunhada alemã, houve uma adesão mais animada do que uma velha poderia provocar.
Quando, pois, o filho da casa foi com a namorada e as duas irmãs passar um fim-de-semana em Petrópolis, levou a velha no carro.
Por que Mocinha não dormiu na noite anterior? À idéia de uma viagem, no corpo endurecido o coração se desenferrujava todo seco e descompassado, como se ela tivesse engolido uma pílula grande sem água. Em certos momentos nem podia respirar. Passou a noite falando, às vezes alto. A excitação do passeio prometido e a mudança de vida, de repente aclaravam-lhe algumas idéias. Lembrou-se de coisas que dias antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho atropelado, morto debaixo de um bonde no Maranhão — se ele tivesse vivido no tráfego do Rio de Janeiro, aí mesmo é que morria atropelado. Lembrou-se dos cabelos do filho, das roupas dele. Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e de como ela gritara com Maria Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria gritar. E lembrou-se do marido. Só relembrava o marido em mangas de camisa. Mas não era possível, estava certa de que ele ia à repartição com o uniforme de contínuo, ia a festas de paletó, sem falar que não poderia ter ido ao enterro do filho e da filha em mangas de camisa. A procura do paletó do marido ainda mais cansou a velha que se virava com leveza na cama. De repente descobriu que a cama era dura.
— Que cama dura, disse bem alto no meio da noite.
É que se sensibilizara toda. Partes do corpo de que não tinha consciência há longo tempo reclamavam agora a sua atenção. E de súbito — mas que fome furiosa! Alucinada, levantou-se, desamarrou a pequena trouxa, tirou um pedaço de pão com manteiga ressecada que guardava secretamente há dois dias. Comeu o pão como um rato, arranhando até o sangue os lugares da boca onde só havia gengiva. E com a comida, cada vez mais se reanimava. Conseguiu, embora fugazmente, ter a visão do marido se despedindo para ir ao trabalho. Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que esquecera de observar se ele estava ou não em mangas de camisa. Deitou-se de novo, coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de ver por um instante e depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu.
E pela primeira vez foi preciso acordá-la. Ainda no escuro, a moça veio chamá-la, de lenço amarrado na cabeça e já de maleta na mão. Inesperadamente Mocinha pediu uns instantes para pentear os cabelos. As mãos trêmulas seguravam o pente quebrado. Ela se penteava, ela se penteava. Nunca fora mulher de ir passear sem antes pentear bem os cabelos.
Quando enfim se aproximou do automóvel, o rapaz e as moças se surpreenderam com seu ar alegre e com os passos rápidos. “Tem mais saúde do que eu!”, brincou o rapaz. À moça da casa ocorreu: “E eu que até tinha pena dela”.
Mocinha sentou-se junto da janela do carro, um pouco apertada pelas duas irmãs acomodadas no mesmo banco. Nada dizia, sorria. Mas quando o automóvel deu a primeira arrancada, jogando-a para trás, sentiu dor no peito. Não era só por alegria, era um dilaceramento. O rapaz virou-se para trás:
— Não vá enjoar, vovó!
As moças riram, principalmente a que se sentara na frente, a que de vez em quando encostava a cabeça no ombro do rapaz. Por cortesia, a velha quis responder, mas não pôde. Quis sorrir, não conseguiu. Olhou para todos, com olhos lacrimejantes, o que os outros já sabiam que não significava chorar. Qualquer coisa em seu rosto amorteceu um pouco a alegria da moça da casa e deu-lhe um ar obstinado.
A viagem foi muito bonita.
As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. E, embora o coração batesse muito, tudo estava melhor. Passaram por um cemitério, passaram por um armazém, árvore, duas mulheres, um soldado, gato! letras — tudo engolido pela velocidade.
Quando Mocinha acordou não sabia mais aonde estava. A estrada já havia amanhecido totalmente: era estreita e perigosa. A boca da velha ardia, os pés e as mãos distanciavam-se gelados do resto do corpo. As moças falavam, a da frente apoiara a cabeça no ombro do rapaz. Os embrulhos despencavam a todo instante.
Então a cabeça de Mocinha começou a trabalhar. O marido apareceu-lhe de paletó — achei, achei! o paletó estava pendurado o tempo todo no cabide. Lembrou-se do nome da amiga de
Maria Rosa, daquela que morava defronte: Elvira, e a mãe de Elvira até era aleijada. As lembranças quase lhe arrancavam uma exclamação. Então ela movia os lábios devagar e dizia baixo algumas palavras.
As moças falavam:
— Ah, obrigada, um presente desses eu rejeito!
Foi quando Mocinha começou finalmente a não entender. Que fazia ela no carro? como conhecera seu marido e aonde? como é que a mãe de Maria Rosa e Rafael, a própria mãe deles, estava no automóvel com aquela gente? Logo depois acostumou-se de novo.
O rapaz disse para as irmãs:
— Acho melhor não pararmos defronte, para evitar histórias. Ela salta do carro, a gente ensina aonde é, ela vai sozinha e dá o recado de que é para ficar.
Uma das moças da casa perturbou-se: receava que o irmão, com uma incompreensão típica de homem, falasse demais diante da namorada. Eles não visitavam mais o irmão de Petrópolis, e muito menos a cunhada.
— É sim, interrompeu-o a tempo antes que ele falasse demais. Olha, Mocinha, você entra por aquele beco e não há como errar: na casa de tijolo vermelho, você pergunta por Arnaldo, meu irmão, ouviu? Arnaldo. Diz que lá em casa você não podia mais ficar, diz que na casa de Arnaldo tem lugar e que você até pode vigiar um pouco o garoto, viu…
Mocinha desceu do automóvel, e durante um tempo ainda ficou de pé mas pairando entontecida sobre rodas. O vento fresco soprava-lhe a saia comprida por entre as pernas.
Arnaldo não estava. Mocinha entrou na saleta onde a dona da casa, com um pano contra pó amarrado na cabeça, tomava café. Um menino louro — decerto aquele que Mocinha deveria vigiar— estava sentado diante de um prato de tomates e cebolas e comia sonolento, enquanto as pernas brancas e sardentas balançavam-se sob a mesa. A alemã encheu-lhe o prato de mingau de aveia, empurrou-lhe na mesa pão torrado com manteiga. As moscas zuniam. Mocinha estava fraca. Se bebesse um pouco de café quente talvez passasse o frio no corpo.
A mulher alemã examinava-a de vez em quando em silêncio: não acreditara na história da recomendação da cunhada, embora “de Iá” tudo fosse de se esperar. Mas talvez a velha tivesse ouvido de alguém o endereço, até num bonde, por acaso, isso às vezes acontecia, bastava abrir um jornal e ver que acontecia. É que aquela história não estava nada bem contada, e a velha tinha um ar sabido, nem sequer escondia o sorriso. O melhor seria não deixá-la sozinha na saleta, com o armário cheio de louça nova.
— Preciso antes tomar café, disse-lhe. Depois que meu marido chegar, veremos o que se pode fazer.
Mocinha não entendeu muito bem, pois ela falava como gringa. Mas entendeu que era para continuar sentada. O cheiro de café dava-lhe vontade, e uma vertigem que escurecia a sala toda. Os lábios ardiam secos e o coração batia todo independente. Café, café, olhava ela sorrindo e lacrimejando. A seus pés o cachorro mordia a própria pata, rosnando. A empregada, também meio gringa, alta, de pescoço muito fino e seios grandes, a empregada trouxe um prato de queijo branco e mole. Sem uma palavra, a mãe esmagou bastante queijo no pão torrado e empurrou-o para o lado do filho. O menino comeu tudo e, com a barriga grande, agarrou um palito e levantou-se:
Mãe, cem cruzeiros.
Não. Para quê?
Chocolate.
Não. Amanhã é que é domingo.
Uma pequena luz iluminou Mocinha: domingo? que fazia naquela casa em vésperas de domingo? Nunca saberia dizer. Mas bem que gostaria de tomar conta daquele menino. Sempre gostara de criança loura: todo menino louro se parecia com o Menino Jesus. O que fazia naquela casa? Mandavam-na à toa de um lado para outro, mas ela contaria tudo, iam ver. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria mesmo era café.
A dona da casa gritou para dentro, e a empregada indiferente trouxe um prato fundo, cheio de papa escura. Gringos comiam muito de manhã, isso Mocinha vira mesmo no Maranhão. A dona da casa, com seu ar sem brincadeiras porque gringo em Petrópolis era tão sério como no Maranhão, a dona da casa tirou uma colherada de queijo branco, triturou-o com o garfo e misturou-o à papa. Para dizer verdade, porcaria mesmo de gringo. Pôs-se então a comer, absorta, com o mesmo ar de fastio que os gringos do Maranhão têm. Mocinha olhava. O cachorro rosnava às pulgas.
Afinal Arnaldo apareceu em pleno sol, a cristaleira brilhando. Ele não era louro. Falou em voz baixa com a mulher, e depois de demorada confabulação, informou firme e curioso para Mocinha:
— Não pode ser não, aqui não tem lugar não.
E como a velha não protestasse e continuasse a sorrir, ele falou mais alto:
— Não tem lugar não, ouviu?
Mas Mocinha continuava sentada. Arnaldo ensaiou um gesto. Olhou para as duas mulheres na sala e vagamente sentiu o cômico do contraste. A esposa esticada e vermelha. E mais adiante a velha murcha e escura, com uma sucessão de peles secas penduradas nos ombros. Diante do sorriso malicioso da velha, ele se impacientou:
— E agora estou muito ocupado! Eu lhe dou dinheiro e você toma o trem para o Rio, ouviu? volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz: casa de Arnaldo não é asilo, viu? aqui não tem lugar. Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo não, viu!
Mocinha pegou no dinheiro e dirigiu-se à porta. Quando Arnaldo já ia se sentar para comer, Mocinha reapareceu:
— Obrigada, Deus lhe ajude.
Na rua, de novo pensou em Maria Rosa, Rafael, o marido. Não sentia a menor saudade. Mas lembrava-se. Dirigiu-se para a estrada, afastando-se cada vez mais da estação. Sorriu como se pregasse uma peça a alguém: em vez de voltar logo, ia antes passear um pouco. Um homem passou. Então uma coisa muito curiosa, e sem nenhum interesse, foi iluminada: quando ela era ainda uma mulher, os homens. Não conseguia ter uma imagem precisa das figuras dos homens, mas viu a si própria com blusas claras e cabelos compridos. A sede voltou-lhe, queimando a garganta. O sol ardia, faiscava em cada seixo branco. A estrada de Petrópolis é muito bonita.
No chafariz de pedra negra e molhada, em plena estrada, uma preta descalça enchia uma lata de água.
Mocinha ficou parada, espreitando. Viu depois a preta reunir as mãos em concha e beber.
Quando a estrada ficou de novo vazia, Mocinha adiantou-se como se saísse de um esconderijo e aproximou-se sorrateira do chafariz. Os fios de água escorreram geladíssimos por dentro das mangas até os cotovelos, pequenas gotas brilharam suspensas nos cabelos.
Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais abertos, em atenção às voltas violentas que a água pesada dava no estômago, acordando pequenos reflexos pelo resto do corpo como luzes.
A estrada subia muito. A estrada era mais bonita que o Rio de Janeiro, e subia muito. Mocinha sentou-se numa pedra que havia junto de uma árvore, para poder apreciar. O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu. 

 

 

BROOKSMITH

– Henry James

Estamos agora dispersos, os amigos do falecido Sr. Oliver Offord; mas tenho a impressão de que, a cada encontro casual, sentimos uns pelos outros uma espécie de respeito esotérico. Parece que admitimos, e num tom não muito rabugento: “Sim, você também viveu na Arcádia”. Ao passar pela casa da Rua Mansfield, lembro-me de que a Arcádia era ali. Não sei quem a possui agora, nem desejo sabê-lo; basta-me estar certo de que, se tocasse a campainha, não teria a sorte de ver Brooksmith abrir a porta.
O Sr. Offord, o mais agradável e mais atraente dos solteirões, era um diplomata aposentado que vivia de sua pensão algo acrescida de urna pequena renda; confinado, a maior parte do tempo, em virtude dos seus achaques, no canto da lareira, e satisfeito de lá estar todas as tardes do ano, a partir das cinco, para os visitantes que Brooksmith autorizava a subir. Brooksmith era o seu mordomo e o seu amigo mais íntimo, com quem todos nos mantínhamos, ou melhor, nos encontrávamos, nas mesmas relações que existem entre os súditos do soberano e o primeiro-ministro. Prestou o Sr. Offord, a meu ver, notáveis serviços ao seu país, por ter sido, durante anos, em países estrangeiros, o inglês mais encantador que já se conheceu. Mas provavelmente fora querido demais, querido até por gente que não queria isso, de forma que, como pessoas da sua espécie jamais ganham títulos ou dotações pelas coisas horríveis que não fizeram, sua recompensa principal consistia tão-só em nossas visitas.
Sim, íamos vê-lo com freqüência; e se ele não ficava esgotado com essa homenagem especial, seguramente não era por nossa culpa. Todo visitante que ia uma vez, ia outra; ir uma só vez era uma desconsideração que, estou certo, ninguém lhe infligia. Por isso, o seu círculo era essencialmente composto de habitués entre si, assim como dele, como deviam ser os de um salão feliz. Lembro-me bem de cada particularidade do lugar, até do aspecto intensamente londrino das casas cinzentas do lado oposto da rua, do espaço entre as cortinas brancas das janelas altas, e do lugar exato em que, uma determinada tarde, depus minha xícara de chá para que a levasse Brooksmith, o qual tardou um momento a apanhá-la, como quem colhe uma flor. A sala de visitas do Sr. Offord era, com efeito, o jardim de Brooksmith, seu canteiro humano, cuidado e podado; e se todos florescíamos e vingávamos em nossos lugares, a ele principalmente o devíamos.
Muitos ouviram falar bastante, embora poucos sem dúvida a tivessem visto, da famosa instituição do salão, e muitos nasceram para o desgosto de verificar que essa flor mais fina da vida mundana se recusa a desabrochar onde se fala a língua inglesa. A explicação que a isto se costuma dar é que as nossas mulheres não possuem a habilidade de cultivar essa arte de dirigir, através de uma paisagem sorridente, por entre praias sugestivas, um caudal sinuoso de palestra. Temo que a lembrança afetuosa e piedosa que guardo do Sr. Offord desminta essa afirmação, apenas para confirmá-la de maneira mais insidiosa. A sala de visitas desbotada e levemente amarelecida pela fumaça, em que ele passou tão grande parte dos últimos anos da vida, merecia decerto esse nome distinto; mas, por outro lado, não se podia dizer que ela devia o seu cunho a qualquer intervenção que pudesse pôr em relevo a circunstância de não haver uma Sra. Offord. O caro homem era, quando muito, capaz de aceitar um desses sacrifícios para os quais se considera terem as mulheres particular aptidão: reconhecera — em certa medida, é verdade, sob a influência de suas enfermidades físicas — que, se alguém quer ser encontrado em casa, deve conseguir não ir à rua. Aceitara, numa palavra, a verdade — que alguns novatos da vida social dificilmente aprendem — de que a gente, como se diz, tem de adotar uma linha de conduta, e que a única maneira até hoje descoberta de estar em casa é em casa ficar. Enfim, aquele canto de lareira resumia os seus hábitos. Por que motivo o abandonaria, se isso equivaleria a abandonar o que havia de reconhecidamente mais agradável em Londres, o grupo encantado e compacto (que aliás se diluía em pares ocasionais) em torno da fina lareira do século passado, a qual, salvo a notável coleção de miniaturas, era a melhor coisa encontrável na casa? Não era rico o Sr. Offord; tinha apenas a sua pensão e o uso, durante a vida, daquela casa como que aposentada.
Quando algum desconforto da hora presente me lembra, por contraste, a perfeição com que ali éramos tratados, pergunto a mim mesmo, mais uma vez, qual o segredo de tamanha perfeição. A gente aceitava-a como coisa natural naquele momento, porque tudo o que é supremamente bom produz mais aceitação do que surpresa. Eu sentia que éramos todos felizes, mas não examinava como era conseguida a nossa felicidade. Entretanto havia perguntas por formular, e que se me afiguram extremamente óbvias, agora que não há ninguém para lhes dar resposta. O Sr. Offord resolvera o insolúvel: criara um salão sem auxílio feminino, se não se levar em conta que algumas senhoras morriam por ser admitidas por ele, e que ele salvou a vida a várias. Mas eu devia ter adivinhado que existia um método na sua loucura, uma lei no seu bom êxito. Não era por simples acaso que ele atingira o alvo, havia uma arte em tudo aquilo. Mas como estava essa arte tão bem escondida? Afinal — já que a isto chegamos —, quem era o artista oculto?
Entregando-me alguns dias atrás a tal indagação, eu atinei com o fio da resposta. O que me auxiliou foi a minha estranheza ante certas condições que recordei, das que de ordinário pareciam tão naturais como um raio de sol num clima agradável. Como acontecia, por exemplo, que nunca houvesse ali uma multidão, nunca um número demasiado grande ou demasiado pequeno de convivas, mas sempre as pessoas que combinavam — provavelmente nunca houve lá nenhuma que não tivesse combinado —, as quais sempre iam e vinham, nunca passavam do tempo nem se tornavam incômodas, e no entanto nunca entravam nem saíam espetacularmente, com indiscreta familiaridade? Quem era aquele que nos colocava a todos onde queríamos, nos deslocava quando queríamos, nos punha em contato com quem procurávamos e nos salvava dos que desejávamos evitar, inserindo-nos, conforme a nossa inclinação, no círculo geral, ou acomodando-nos com um único interlocutor num sofá confortável? Por que eram os sofás tão confortáveis, os acasos tão felizes, os conversadores tão animados, tão atentos os ouvintes, os assuntos apresentados numa rotação tão bem preestabelecida como os pratos do jantar? Uma falta de assunto seria coisa tão inimaginável como um lapso no serviço. Estas reflexões não podiam deixar de me conduzir à verdade fundamental de que Brooksmith devia ter algo com a solução daquele mistério. Se não fora ele quem instalara o salão, era ele pelo menos quem o fazia funcionar. Numa palavra, Brooksmith era o artista!
Naquele tempo nós o sentíamos sem o formular, e tínhamos consciência, como agremiação organizada e próspera, de sua justiça imparcial, isenta de servilismo. Ele não tinha a menor parcela dessa vulgaridade. O seu convívio era de uma finura infinita. Sua delicadeza manifestou-se plenamente quando os meus olhos pousaram pela primeira vez, como tantas vezes haviam de pousar, no mordomo revelado, à luz confusa da rua, pela sua maneira de abrir o portão. Vi logo que, embora tivesse muita educação, carregava-a sem arrogância — ficara maleável e humano. L’École Anglaise — era o apelido que lhe dava, rindo, o Sr. Offord, quando, mais de uma vez, tempos depois, conversávamos a respeito dele. Lembra-me, porém, ter acusado o Sr. Offord de não lhe fazer plena justiça. No entanto, embora o meu velho amigo admitisse que o seu criado não era um dos gigantes da escola, compreendia-o perfeitamente e lhe era devotado, como hei de mostrá-lo; sem dúvida o pobre Brooksmith sentira a exatidão desse juízo quando o seu valor no mercado fora estabelecido pela primeira vez. Com efeito, a utilidade das pessoas da sua classe é calculada, em geral, por pés e polegadas, e o pobre Brooksmith tinha apenas uns cinco pés e três polegadas para exibir. Reconhecia a insuficiência desse cabedal, e estou certo de que devia sentir-se compenetrado da eterna justeza da relação entre serviço e estatura. Se ele fosse o Sr. Offord, decerto acharia Brooksmith deficiente, e a tolerância do seu amo a esse respeito era, sem dúvida, uma das muitas coisas que ele tinha de perdoar, e às quais acabou adaptando-se com indulgência.
Recordo-me de uma frase do ancião: “Oh! quanto aos meus criados, se eles conseguem ficar comigo quinze dias, conseguem ficar comigo para sempre. A primeira quinzena é que os põe à prova”. Foi, por exemplo, durante essa primeira quinzena que Brooksmith teve de saber que estava exposto a ser chamado “meu caro amigo” e “pobre criança”. Uma prova dessas deve ter-lhe sido estranha e profunda, e sem dúvida saíra dela fortalecido e purificado. Isto se lia, até certo ponto, em toda a sua aparência: naquela figura viva, magra e pequena, naquele branco rosto empedernido e nos seus cabelos extremamente alisados, que ressumavam responsabilidade e pareciam mantidos ao mesmo nível impecável da baixela, naqueles olhinhos claros e ansiosos, e até no tufo permitido, embora não muito encorajado, daquele queixa. “Ele deve julgar-me meio doido, mas eu o amansei, e agora gosta do lugar e da convivência” — disse o velho. Aceitei inteiramente essa opinião, depois de convencer-me de que a principal característica de Brooksmith era um refinamento profundo e arisco. Ainda assim, porém, fiquei um tanto embaraçado ao ouvir o Sr. Offord observar, em outra ocasião: “O que lhe agrada é a conversa, tomar parte na palestra”. Eu estava seguro de nunca ter visto Brooksmith permitir a si mesmo semelhante liberdade, mas logo adivinhei que a participação a que se referia o Sr. Offord era tão intensa que não havia palavras que pudessem exprimi-la; uma presença perpétua, sob uma centena de pretextos legítimos: pequenas tarefas, necessidades — e a respiração da própria atmosfera da crítica, da famosa crítica da vida. “É toda uma educação, não é verdade?” — disse-me ele, uma vez, ao pé da escadaria, quando me acompanhava à saída; e eu nunca me esqueci das palavras e do tom, primeiro sinal do acelerado drama da fatalidade do pobre Brooksmith. Era realmente uma educação; mas para que fim estava sendo educado aquele sensível rapaz de trinta e cinco anos, da classe dos criados?
Prática e inevitavelmente, por enquanto, para fazer companhia, para o serviço e o auxílio perpétuo e algo exagerado a uma pessoa tornada dependente pela idade e pelos achaques, e cada vez mais aplicada — aí estava o exagero — à arte de dar prazer aos outros exigindo-lhes serviços. O Sr. Offord era capaz de dizer que gostava que lhe fizessem certas coisas, ainda que não gostasse, mas desde que pensasse que os outros gostavam. Quando acontecia que os outros também não gostassem — o que era raro, mas não impossível —, havia, é evidente, disposições em contrário; mas Brooksmith estava ali para impedir que elas fossem muito longe. Era exatamente a sua maneira de agir como mediador; evitava os mal-entendidos ou os desfazia. Para tal fim, mostrara-se capaz, por mais estranho que pareça, de adquirir uma intuição do francês, língua constantemente usada em casa do Sr. Offord; não só por ser conhecida pela maioria dos forasteiros, e não eram poucos, que freqüentavam a casa ou lá chegavam com cartas — cartas que exigiam às vezes um pouco de consideração incômoda, e das quais Brooksmith sempre tinha conhecimento —, mas também por se haver tornado a língua natural do dono da casa. Não sei se todos os malentendus eram em francês, mas quase todas as explicações eram nessa língua, o que absolutamente não impedia Brooksmith de as acompanhar. Sei que o Sr. Offord costumava ler para ele trechos de Montaigne e de Saint-Simon, pois lia sempre quando sozinho, isto é, quando estavam a sós, e Brooksmith sempre se achava por perto. Talvez o leitor diga que não se admira de que o mordomo considerasse o Sr. Offord meio doido. Seja como for, se ignoro o que ele pensava de Montaigne, tenho certeza de que admirava Saint-Simon. Deve ter-lhe transmitido certo interesse pelas letras o simples manejo dos livros do amo, que ele continuamente carregava de um lado para outro, repondo-os depois em seus lugares.
Mais de uma vez observei que, quando se contava uma anedota, se citava um trecho ou, sobretudo, se travava uma viva discussão, ele, ocupando-se com o lume ou com as cortinas, com a lâmpada ou com o chá, sempre encontrava pretexto para permanecer na sala até o fim. Estando assim empenhado em pegá-la, teria sido indiscrição, desumanidade até, chamá-lo à parte; e jamais esquecerei um olhar, um olhar duro e frio — notei-o de passagem — que ele, um dia, quando havia muita gente no salão, fixou no lacaio que o ajudava no serviço, e em voz baixa lhe fizera alguma pergunta sem importância. Foi a única manifestação de aspereza que observei em Brooksmith, e não lhe compreendi logo o motivo. Verifiquei, porém, que o Sr. Offord estava contando naquele momento uma anedota muito curiosa, talvez nunca dantes divulgada, e que ele ouvira de uma testemunha ocular, a respeito da vida de Lord Byron na Itália. Nada me levaria a reproduzi-la aqui, porém Brooksmith esteve ameaçado de a perder. Se um dia me aventurasse a contá-la, sentiria quanto perderia em não ter a meu lado Brooksmith como ouvinte.
O primeiro dia em que a porta do Sr. Offord permaneceu fechada foi, como é de ver, uma data negra na história contemporânea. Chovia forte, e o meu guarda-chuva estava molhado. Brooksmith recebeu-o de minhas mãos exatamente como se aquilo fosse o preliminar de minha subida. Observei no entanto que, em vez de o guardar, o equilibrava gotejante sobre o tapete, e então notei que me fitava com um olhar profundo e grato e o seu ar de responsabilidade universal. Compreendi de pronto — entre nós quase não era necessário enunciar as perguntas e respostas. E, por haver compreendido que o nosso querido amigo desistira de receber, o que nunca fizera antes a não ser uma vez, exclamei angustiado:
— Como será diferente — e para tantos!
— Serei um deles! — disse Brooksmith.
E foi o começo do fim.
O Sr. Offord ainda desceu, mas estava quebrado o encanto, e o sinal mais certo disso era o fato de a conversação já não ser dirigida. Ia divagando, aos tropeços, um pouco assustada, como criança perdida que tivesse largado a mão da ama.
— O pior de tudo isso é que agora falaremos da minha saúde: c’est la fin de tout — disse o Sr. Offord ao reaparecer.
E eu mesmo reconhecia que grande modificação seria essa, pois nunca ele tolerara algo tão provinciano. Nós nos ocupávamos tão pouco uns com a saúde dos outros como com o tempo que fazia. Numa palavra, a palestra tornou-se nossa, não sua; e, como nossa, mesmo que ele participasse dela, só podia ser inferior. Sob tal forma, angustiava a Brooksmith, cuja atenção muitas vezes se desviava: ele tinha uma noção muito mais exata das condições íntimas do patrão do que a que refletia a nossa palestra superficial. Havia horas melhores, em que saía e entrava com maior freqüência; mas eu percebia que ele estava ciente do declínio, da quase ruína da nossa grande instituição. Parecia querer consultar-me a esse respeito, como quem se sente responsável pela continuação daquilo de uma ou de outra forma. Quando me comunicou pela segunda vez — da primeira o salão ficara fechado vários dias — que o patrão não recebia, quase eu esperava ouvi-lo dizer ao cabo de um minuto: “O senhor acha que devo continuar a receber em vez dele?” Como poderia ter-me perguntado, com a volta do outono, se não seria bom acender a lareira na sala de visitas.
Ele possuía uma resignada intuição filosófica do que seus hóspedes — nossos hóspedes, como acabei considerando-os em nossas palestras — esperavam. Por ele, absolutamente não aprovaria que lhe coubesse substituir o Sr. Offord; mas de tal maneira estava saturado da religião do hábito, que por nossos amigos faria o necessário sacrifício à divindade. Entretê-los-ia algum tempo mais, até que pudessem cuidar de si. Via-o encarar mentalmente a ocasião de, pela primeira vez na vida, seguir suas preferências mudas, suas limitações de simpatia, selecionar um pouco e voltar a uma tradição mais pura. Não ignorava eu que, a seu ver, pelo fim da carreira do nosso hospedeiro tinha havido certo relaxamento no critério de seleção.
Por fim, tornou-se mais comum encontrarmos a porta aberta do que fechada; porém, ainda quando estava fechada, Brooksmith me arranjava uma brecha para entrar, de sorte que na realidade lá não fui nenhuma vez sem fazer uma visita. A diferença principal consistia em que a minha visita se dirigia a Brooksmith. Realizava-se no hall, no canto familiar do pé da escada; e nós não nos sentávamos, ou, pelo menos, Brooksmith não se sentava; por outro lado, era de todo consagrada a um único assunto, e sempre parecia estar quase acabada, principiando, por assim dizer, no fim. Mas era sempre interessante e sempre matéria para reflexão. Verdade é que o assunto da minha meditação era invariavelmente o mesmo, invariavelmente este: “Tudo isso está certo, mas que será de Brooksmith?” E a minha própria resposta particular a essa pergunta não me deixava satisfeito. Sem dúvida, o Sr. Offord providenciaria a respeito dele. Mas providenciaria o quê? Eis a grande dificuldade. Não poderia providenciar convivência; ora, a convivência tornara-se uma necessidade da natureza de Brooksmith. Devo acrescentar que ele nunca mostrou um sintoma daquilo a que eu poderia chamar solicitude sórdida, ansiedade a seu próprio respeito. Era, antes, lívido e imensamente grave, como convinha a um homem a cujos olhos passava “a sombra do que outrora era grande”. Tinha a solenidade de uma pessoa que liquida, por circunstâncias deprimentes, um negócio antigo e de monta: era uma espécie de executor ou de liquidante mundano. Contudo, suas maneiras pareciam referir-se exclusivamente à incerteza do nosso futuro. Naqueles dias eu não podia permitir a mim mesmo… — vivia em duas salas da Rua Jermyn, e não tinha criado. Mas, ainda que as minhas rendas o permitissem, não me aventuraria a dizer a Brooksmith (tentando rivalizar com o Sr. Offord): “Meu caro amigo, vou empregá-lo”. De todo o tom de nossas relações se deduzia, por assim dizer, que era eu quem precisava de ajuda. Havia, com efeito, em toda a atitude de Brooksmith uma como segurança tácita de que ele cuidaria de mim.
Um dos membros mais assíduos do nosso círculo fora Lady Kenyon, e lembra-me que Brooksmith me contou que S. Exa. — apesar de suas próprias enfermidades, muito agravadas nos últimos tempos — viera em pessoa pedir notícias. Observei, em resposta, que ela havia de sentir a coisa mais do que outro qualquer. Brooksmith fez uma pausa antes de me dizer, em certo tom (não é possível reproduzir alguns dos tons que usava): “Irei vê-la”.
Fui vê-la eu mesmo, e soube que ele tinha ido visitá-la. Quando, porém, disse a Lady Kenyon, em tom de pilhéria, mas com um fundo de seriedade, que, quando tudo estivesse acabado, alguns de nós deveríamos fazer uma combinação, cotizar-nos e estabelecer Brooksmith por conta própria, ela me fez esta pergunta algo desconcertante: “Está pensando num bar?”. Encarei-a com um modo que o próprio Brooksmith, penso eu, teria aprovado, e repliquei: “Sim, O Brasão de Offord”.
O que eu quisera dizer era que, pelo amor da própria arte, devíamos evitar que uma capacidade tão peculiar e tamanha experiência fossem perdidas. Pensava realmente que, se mandássemos imprimir e distribuir alguns cartões tarjados com os dizeres “Brooksmith continuará recebendo no antigo local, das quatro às sete. O negócio continuará como de costume durante as transformações”, a maior parte de nós teria aderido.
Várias vezes Brooksmith, sempre por sua própria iniciativa, me levou para cima, e o nosso querido e velho amigo, acamado (num estranho roupão de brocado ornado de flores, que o tornava, sobretudo quando cobria a cabeça com um lenço que combinava bem, parecido, aos meus olhos, com Voltaire moribundo), fazia-me, durante dez minutos, uma sala tristemente encolhida. Eu tinha, de cada vez, a impressão de assistir ao último coucher de algum soberano social. Troçava, principesco, dos seus próprios sofrimentos, e não se preocupava de modo algum — como se a Constituição previsse o caso — com a pessoa de seu sucessor. Passava encantadoramente sobre os nossos sofrimentos, e nenhuma das suas brincadeiras — o que era uma abstenção galante, pois algumas delas seriam tão fáceis! — era feita à nossa custa. De vez em quando, confesso, vinha uma à custa de Brooksmith, mas tão pateticamente sociável, que o excelente rapaz olhava para mim com um jeito que parecia dizer: “Troque um olhar comigo, do contrário não poderei agüentar mais”. O que ele não agüentava não era o que o Sr. Offord dizia dele, mas o que ele não podia dizer-lhe em resposta. Para ele a conversação consistia em darmos a outrem oportunidade de nos dirigir a palavra; e, quando fora “visitar”, por exemplo, Lady Kenyon, era para levar-lhe o tributo do seu silêncio receptivo. Que seria da conversa dos seus superiores, se fazer bem o serviço importasse uma emissão de sons? Nesse caso a diferença fundamental deveria ter sido mostrada pelo silêncio deles; e muitos deles, coitados, eram bastante silenciosos, mesmo sem essa cláusula. Brooksmith tomou incansável interesse em preservar a diferença fundamental: era, para a sua consciência, a coisa mais importante.
Mas que fim levou essa diferença depois que o Sr. Offord se fora embora, compelido, como qualquer pessoa inferior, a um silêncio eterno como um mordomo postado no alto da escada? Pode-se imaginar o aspecto de Brooksmith nessa ocasião e durante os dias seguintes, como também a multiplicação, por observância fúnebre, das coisas que não disse. Quando tudo estava acabado — naquele mesmo dia, já tarde —, bati ao portão da casa enlutada, como tantas vezes fizera. Nunca mais poderia visitar o Sr. Offord, mas vinha, literalmente, visitar Brooksmith. Desejava perguntar-lhe, por mais vaga e incerta que fosse a minha pergunta, se podia fazer algo por ele. O meu sonho presunçoso de tomá-lo a meu serviço dissipara-se: o meu serviço não o merecia. Só podia oferecer-lhe procurar outro lugar para ele, e isto mesmo era uma espécie de indelicadeza, pois importava a suposição de que os seus pensamentos necessariamente se houvessem fixado logo em tal assunto. Esperava que ele tivesse a possibilidade de dar à sua vida uma forma diferente, conquanto não aquela que muitas vezes resulta de tais perdas, e que consistia no estabelecimento de uma pequena loja. Seria terrível; pois eu mesmo, que haveria de desejar favorecer qualquer empreendimento em que ele se metesse, como podia deliberar-me a ir pagar-lhe xelins e receber dele o troco por cima de um balcão? Minha visita, pois, tinha apenas o sentido de um cumprimento, e foi assim que ele a acolheu, com toda a gratidão e todo o tato possíveis. Sabia que eu na realidade não podia ajudá-lo, e que eu sabia que ele sabia que eu não podia. Nem por isso deixamos de examinar a situação — em termos elegantemente gerais — ao pé da escadaria, no hall já desmontado, onde tantas vezes examinara com ele outras situações. Já os executores haviam tomado posse, como se fez mais evidente quando ele me convidou a passar alguns minutos na sala de jantar, onde vários objetos estavam sendo embrulhados para serem removidos.
Tinha ele, no entanto, duas coisas positivas para comunicar: a primeira, que devia deixar a casa para sempre naquela mesma noite (parece que os criados, por alguma razão misteriosa, deixam a casa sempre de noite); e a outra — só a mencionou no fim, e com certa hesitação —, que seu patrão lhe deixara um legado de oitenta libras.
— Fico muito satisfeito com isso — disse-lhe eu.
Brooksmith compartia a minha satisfação:
— Era tão próprio dele pensar em mim!
Foi tudo quanto se disse entre nós sobre o assunto, e nada sei do que ele pensou acerca da lembrança que lhe deixara o Sr. Offord. Oitenta libras sempre são oitenta libras, e nunca ninguém me deixou importância igual; todavia, senti-me desnorteado. Não sei o que eu esperava, mas era para mim uma espécie de choque. Oitenta libras davam para instalar uma pequena loja — uma loja muito pequena; porém, repito-o, não podia suportar um pensamento desses. Perguntei ao meu amigo se conseguira fazer economias.
— Não, senhor — respondeu-me. — Tinha obrigações.
Não lhe perguntei que obrigações eram essas: isso era lá com ele, e eu escutei a frase tão aprobativamente como se ele tivesse de sustentar a grandeza duma casa antiga; tanto mais quanto havia nas suas maneiras algo que permitia entrever a possibilidade de novos sacrifícios.
— Terei de me mexer, senhor… terei de cuidar de mim — disse.
E acrescentou, indulgente e generoso:
— Se o senhor por acaso ouvir falar em alguma coisa que me sirva…
Não podia deixá-lo acabar a frase. Pelos modos, aquilo era, em essência, demasiado grande. Livrar-me-ia de preocupações a respeito dele, se pudesse pretender que podia encontrar um lugar conveniente, e ele me quis dar este auxílio, pois sem dúvida lhe era penoso ver-me em posição tão falsa. Desviei a conversa para lhe dizer, em poucas palavras, quanto estava certo de que ele, fosse aonde fosse, fizesse o que fizesse, sentiria fundo a falta do nosso velho amigo; ainda mais do que eu, que, entretanto, passara muito mais tempo com o Sr. Offord. A minha afirmação levou-o a pronunciar as palavras que me ficaram na memória como o próprio tema de todo o episódio:
— Sim, isto é bem triste para o senhor e para grande número de cavalheiros e damas, sem dúvida. Mas para mim, senhor, se assim posso falar, é ainda mais grave do que isso: é exatamente a perda de alguma coisa que era tudo para mim. Para mim — continuou, enquanto dos olhos lhe brotavam lágrimas — era exatamente tudo; não sei se entende o que eu quero dizer. O senhor tem outros, suponho… sem que com isso pretenda dizer que sejam equivalentes, de qualquer ponto de vista. Mas enfim o senhor tem os prazeres da sociedade; pelo menos o de conversar sobre ele, como suponho que faz, livremente — por mais penoso que isto seja à abençoada memória dele —, com senhores e senhoras que tiveram a mesma honra. Eu não posso fazer outro tanto, e tenho de guardar comigo as minhas reminiscências. O Sr. Offord era as minhas relações, e agora, como vê, não tenho mais relações algumas. O senhor volta à conversação, e eu volto para o meu lugar.
Brooksmith tartamudeava sem ironia exagerada ou amargura dramática, mas com uma franqueza chã e desestudada, uma das mãos na maçaneta da porta. Virou-a para me deixar sair, e disse:
— Vou apenas descer com o senhor, e depois fico por aí.
— Pobre criança! — exclamei, retomado pela emoção, precisamente como o Sr. Offord costumava falar. — Meu caro amigo, deixe isso por minha conta; nós nos ocuparemos disso, todos nós faremos alguma coisa por você.
— Ah, se os senhores me pudessem arranjar alguém como ele! Mas não há duas pessoas assim no mundo — disse-me Brooksmith quando nos separamos.
Deu-me o endereço, o lugar onde poderiam dar notícias a seu respeito. Durante muito tempo não tive oportunidade de fazer uso da informação. Minhas tentativas mostraram-me quanto era difícil o caso dele. Os que o conheciam e tinham conhecido o Sr. Offord não o queriam por empregado, e eu não me deliberava a tentar lançá-lo no meio de estranhos — estranhos em relação ao passado, se não ao presente — de Brooksmith. Dele falei a vários dos nossos velhos amigos; encontrei-os todos dominados pela singular mistura de sentimentos que eu verificava em mim próprio, e ao mesmo tempo dispostos a julgá-lo “inutilizado”, sentimento que eu a essa altura absolutamente não compartilhava. Em termos mais simples, via-se neles certo embaraço, um sensível mal-estar à idéia de empregá-lo e de utilizá-lo como um criado; tantas vezes o tinham encontrado na sociedade. Alguns iam pedir-lhe, ou pediam-lhe, ou antes, pediam-me que lhe pedisse que fosse vê-los; mas o que eu queria para ele não era uma simples relação de visitas. Era baixo demais para as pessoas muito exigentes; contudo, ao ouvir falar de um lugar na casa de um diplomata, deixei-me levar a escrever-lhe um cartão, embora procurasse para ele muito menos uma coisa grandiosa do que uma coisa humana. Cinco dias depois, tive notícias dele. A esposa do secretário, depois de fazê-lo esperar todo esse tempo, achou que não podia empregar um criado que saía duma casa onde não havia uma senhora. Havia na carta um pós-escrito: “Ainda bem, senhor, que não tenha havido uma senhora como certas”.
Uma semana após, veio visitar-me e disse-me que estava colocado, contratado por uma família extremamente respeitável, algo muito importante na City, e que morava do lado de Bayswater do Parque.
— Suponho que há de ser coisa muito modesta — admitia ele —, mas eu vi os fogos de artifício, não é verdade? Ora, não pode haver fogos de artifício todas as noites. Depois da Rua Mansfield, não há muito que escolher.
No entanto, alguma coisa deveria haver para escolha; pois no ano seguinte, ao visitar uma parenta da província, dama de certa idade que viera passar uma quinzena na capital em casa de uma família amiga que eu não conhecia, residente no Largo Chester, o portão me foi aberto, com grande e grata surpresa minha, por Brooksmith em pessoa. Ao sair, troquei com ele algumas palavras, donde concluí que achara a rica família da City muito difícil de suportar, e conjeturei, conquanto não me houvesse dito nada, que a achara também vulgar. Não sei como teria julgado os seus novos patrões, se minha parenta não fosse amiga deles; em consideração desse fato, porém, absteve-se de comentários.
Nem disso houve necessidade; pois, antes que a dama em apreço chegasse ao fim da sua permanência, eles me honraram com um convite para jantar, que aceitei. Foi uma reunião grandiosa, mas confesso que pensei mais em Brooksmith do que na sociedade ali reunida. Os membros desta não exigiam, aliás, atenção profunda — todos eles podiam ser reduzidos a protótipos usuais, inevitáveis e irremediáveis. Era um mundo de lugares-comuns alegres, de gentileza consciente, de próspera espessura, um mundo insular material, bem alimentado, um mundo de repulsiva baixela floreada, de maneiras pesadonas e de conversação rala. Não se pronunciou uma palavra sequer a respeito de Byron, nem ao menos de um bardo menor, então muito em voga. Nada me haveria levado a olhar para Brooksmith no decorrer da refeição, e tinha certeza de que nem mesmo se entornasse o meu copo de vinho ele procuraria o meu olhar. Havia entre nós uma simpatia intelectual; sentíamos um para com o outro certo grau de responsabilidade mundana. Numa palavra, tínhamos estado juntos na Arcádia, e ambos chegávamos àquilo! Não era de estranhar tivéssemos vergonha de nos olharmos. À saída, ele ajudou-me a vestir o sobretudo, e separamo-nos em silêncio pela primeira vez após os primeiros dias da Rua Mansfield. Deu-me a impressão de estar com a cara chupada e um ar estragado, e adivinhei que aquele emprego não era mais “humano” que o anterior. Havia bife e cerveja em abundância, mas faltava reciprocidade. Antes de aceitar a colocação, em vez de se informar sobre “quantos criados havia”, ele devia ter perguntado: “Quanta imaginação?”
De outra vez que fui àquela casa — o que não se deu muito pouco depois, devo confessá-lo —, já encontrei no lugar dele um sucessor, personagem que, pelo visto, gozava a sorte de nunca ter deixado seu nível habitual. “Pode haver nível mais alto?” — parecia interrogar por cima da cabeça de três criados e, até, de alguns convidados. Afigurou-se-me que Brooksmith estava morto, mas não tive coragem de interrogá-lo, pois não agüentaria o seu “não tenho a menor idéia, senhor”. Mandei um cartão ao endereço que o meu digno amigo me dera após a morte do Sr. Offord, mas não obtive resposta. Seis meses depois, porém, fui favorecido com a visita de uma mulher madura, lúgubre e suja, que se me apresentou como a tia de Brooksmith, e por quem soube que ele estava desempregado e doente, e a autorizara a procurar-me e dizer-me que, se eu pudesse consagrar meia hora a visitá-lo, isto lhe seria grande honra.
Visitei-o no dia seguinte — a mensageira dera-me um novo endereço —, e encontrei o meu amigo alojado numa sórdida ruela de Marylebone, um desses recantos de Londres que ostentam a última expressão de uma doentia miséria. O quarto que me indicaram ficava em cima de uma pequena tinturaria, de cuja porta pendiam inchadas luvas de pele de cabrito e xales desbotados. Havia uma porção de crianças imundas embaixo e em cima, e um cheiro de mofo quente, como que da fervura de roupas sujas.
Brooksmith estava sentado, com um cobertor nas pernas, a uma janelinha limpa, de onde, por trás de cortinas engomadas, de um branco azulado, podia olhar para uma quinquilharia, uma oficina de funileiro e um botequinzinho sebento. Achava-se em convalescença; assistiam-lhe a mãe e a tia. Gostei mais da parenta mais próxima, meiga e de extrema humildade; porém tive as minhas dúvidas sobre a mais remota, que talvez sem razão relacionei com o botequinzinho da frente — parecia, de certa maneira, suja do mesmo sebo —, e cujos olhos seguiam furtivamente cada movimento de minha mão, como para ver se ela não se aproximava do meu bolso. Ela não tomava essa direção; não podia, sem ser solicitado, pôr-me assim à vontade com Brooksmith. A porta do quarto abria-se várias vezes; velhas misteriosas vinham espreitar, e depois se esquivavam. Não sei quem eram; o pobre Brooksmith parecia cercado de vagas fêmeas, bebedoras de cerveja e cheias de curiosidade.
Ele próprio mostrava-se vago, de uma fraqueza evidente, e muito embaraçado; nenhuma alusão se fez, entre nós, à Rua Mansfield. Nem por isso deixava de pairar-me ante os olhos, como por contraste, a visão do salão de que ele fora ornamento. Brooksmith assegurou-me que estava melhor, e sua mãe observou que ele já estaria bem de todo se pudesse criar ânimo. A tia fez eco a essa opinião, e eu fiquei mais convencido de que, se se tratasse do seu próprio caso, ela saberia onde ir buscá-lo. Receio haver-me mostrado fraco para com o meu velho amigo, pois deixei passar essa oportunidade tão excepcionalmente boa de repreender a leviandade que o levara a resignar posições honrosas, ótimos empregos permanentes em Bayswater e Belgravia, um dos quais implicava, como eu bem sabia, orações pela manhã. Muito provavelmente suas razões eram profanas e sentimentais: ele não queria orações pela manhã, queria ser o caro amigo de alguém; mas não podia ser eu quem o repreendesse por isso. Ele fugia desses episódios; vi que não tinha vontade de os discutir. Observei também, com muita estranheza, que rever-me ainda uma vez seria, para ele, prazer duvidoso; agora ele duvidava até da minha capacidade de perdoar-lhe as aberrações. Não queria ter de explicar-se; e era provável que o seu procedimento futuro necessitasse explicações. Ao despedir-me dele, fitou-me por um instante com olhos que diziam tudo: “Como posso eu falar daqueles anos deliciosos neste lugar, perante esta gente, com as velhas enfiando a cabeça pela porta? O senhor foi muito gentil em visitar-me; a idéia não foi minha, ela é que o trouxe. Tudo entre nós já foi dito. Agora está acabado; o senhor perderia toda a paciência comigo, e prefiro que não veja o resto”. Mandei-lhe algum dinheiro, por carta, no dia seguinte, mas o resto pareceu-me apenas uma desoladora seqüência.
Um ano após a minha visita, jantando certa noite fora de casa, notei que um dos criados que pairavam atrás de nossas cadeiras era Brooksmith. Ele não me abrira o portão da casa, nem eu o tinha reconhecido no tropel de criados que nos recebera no hall. Dessa vez procurei encontrar-lhe o olhar, porém ele não me deu nenhuma oportunidade para isso; e quando me estendeu o prato, tudo que pude fazer foi agradecer-lhe de maneira audível. Servi-me de duas entrées — a respeito das quais tinha as minhas dúvidas, logo depois transformadas em certezas — a fim de não maltratá-lo. Parecia bem de saúde, mas deveras envelhecido, e ostentava em grau excepcionalmente forte a máscara vidrada e inexpressiva do criado inglês de raça. Verifiquei, compungido, que, se o não conhecesse, o teria tomado, pela expressão do rosto, por uma ilustração extravagante da irresponsável tristeza servil. Disse comigo mesmo que ele se tornara um reacionário, se bandeara para os filisteus, se atirara à religião de seu “lugar”, como uma dama estrangeira que principia a envelhecer. Adivinhei, além disso, que ele estava contratado apenas para aquela noite, que se tornara um simples garçom, juntando-se ao bando dos de colete branco que faziam “serviços extras”. Havia nesse fato algo patético; era uma vulgarização terrível de Brooksmith. Era a prosa mercenária do mordomismo, ele desistira de lutar pela poesia. Se fora a reciprocidade o que lhe faltara, onde estava agora a reciprocidade? Só no fundo das garrafas de vinho e nos cinco xelins — ou o que podiam ganhar — empurrados na mão deles pelo criado efetivo. Supunha, no entanto, que ele abraçara uma variante precária da sua profissão, porque assim, afinal de contas, descia menos escadas. Suas relações com a sociedade de Londres eram mais superficiais, mas, de qualquer maneira, mais variadas.
Ao sair, nessa ocasião, procurei-o avidamente entre os quatro ou cinco servidores cujas personalidades perpendiculares, listrando as paredes dos corredores de Londres, supostamente lubrificam o processo da partida; mas não estava de serviço. Perguntei a um dos outros se ele não estava em casa, e recebi esta resposta pronta: “Acaba de sair. O senhor deseja alguma coisa?” Tive ímpeto de lhe dizer: “Transmita-lhe minhas lembranças cordiais”. Mas abstive-me, não quis comprometê-lo. E nunca mais o encontrei.
Muitas vezes, jantando fora de casa, procurei-o, e cheguei a aceitar convites só para multiplicar as probabilidades de encontrá-lo. Mas sempre em vão. Como encontrei seguidamente vários outros membros da classe dos “extras”, terminei adotando a teoria de que ele procurava sempre conhecer de antemão a lista dos convidados, e fugia aos banquetes em que antevia a minha presença. Por fim perdi toda a esperança, até que, ao cabo de três anos, recebi segunda visita da tia, ainda mais lúgubre e suja, quase sórdida, e em grandes atribulações e necessidades. Sua irmã, a Sra. Brooksmith, morrera havia um ano, e três meses depois seu sobrinho desaparecera. Ele sempre cuidava dela um pouco, desde que principiaram seus infortúnios. Nunca soube que infortúnios eram esses. Agora não lhe restava nem uma saia para empenhar. Tinha também uma sobrinha, para quem fora tudo antes de seus infortúnios, mas esta procedera com ela de maneira vergonhosa. Eram pormenores. O grande fato romântico era a evasão final de Brooksmith ao seu destino. Saíra ele uma noite para um extra, como de costume, de colete branco, que ela com suas próprias mãos o ajudara a vestir. Devia ir a um grande sarau, lá para as bandas de Kensington. Porém nunca mais voltara, nem chegara jamais ao grande sarau, nem a sarau algum de que alguém pudesse dar notícia. Nenhum vestígio dele aparecera nunca, nenhuma cintilação de colete branco atravessou a obscuridade da sua sorte. Essa notícia era para mim um rude golpe, pois eu tinha as minhas idéias sobre o seu destino verdadeiro. Sua velha parenta não tardara, segundo me comunicou, a chegar às piores conclusões. Não se sabe como, não se sabe para onde — o certo é que ele se esquivara para sempre, e agora eu espero que, com deliberação característica, esteja mudando os pratos dos deuses imortais. Como ainda me relatou a minha visitante, nunca mais ele criara ânimo. Felizmente eu me achava em condições de mandá-la embora com o dela um pouco melhorado. Mas o vago espectro do pobre Brooksmith é um dos que me aparecem. Ele ficara realmente inutilizado.
(

Tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 6, p. 70)

 

História triste com um final alegre

Teresa Veiga

A rapariga percebeu que, se queria mesmo conquistar uma posição no mercado da venda ambulante de antiques, tinha de apostar na diversidade e originalidade e ir ao encontro dos gostos e aspirações do público
No segundo domingo de cada mês o jardim tornava-se uma espécie de casa de espectáculos onde se exibiam todas as pessoas que, mediante uma pequena espórtula, quisessem transaccionar ao ar livre qualquer objecto, por mais feio, imprestável e inverosímil que fosse. Se os vendedores eram poucos, os compradores eram menos ainda. Na prática acontecia passar bastante tempo antes que alguém se acercasse do tapete ou mesa desconjuntada que servia de expositor e parasse em atitude de estar a considerar uma compra e de entre esses só uma minoria passava à fase seguinte, que era mexer num objecto e virá-lo de todos os lados, até que o encantamento se quebrava e ele ou ela seguia viagem. É preciso dizer que isto se passa num bairro de velhos e numa época de crise e já agora num mês de inverno em que o ar cheira a esgoto e as árvores nuas têm uns buracos nos troncos, a abarrotar de uma matéria branca em forma de novelos de larvas que, privando-as da sua habitual beleza, lhes dão uma aparência tosca, imunda e até letal.
Num dos prédios que davam sobre o jardim morava uma jovem do mais pobre que há, mesmo na classe trabalhadora. Do seu ordenado numa fábrica de chocolates, depois de pagar a renda do quarto, os transportes e uma sessão de cinema aos sábados, só lhe sobrava para ir comendo uns bolos e pastéis, até porque o seu estômago delicado recusava quase toda a comida sólida. Quando soube daquela oportunidade também teve a tentação de arredondar os seus parcos rendimentos mas, por muito que olhasse à volta no seu cubículo, não descobriu nada com potencialidade para ser vendido, a não ser um pente de osso que, apesar de coisa lustrosa e apetecível, faria uma triste figura sozinho no meio de um tapete. Assim, como não podia tornar-se vendedora, fez-se compradora, ou antes, começou a fazer como os outros que iam passear à feira sem intenção de comprar nada.
A diferença em relação às outras pessoas é que, como era uma pessoa educada, não se atrevia a mexer em nada nem sequer a ficar muito tempo a olhar para um objecto. Mesmo assim, só de ouvir e observar aprendeu muita coisa, a ponto de pensar amargamente que qualquer dia sabia tanto de antiguidades e pseudo antiguidades como qualquer marchand d’art.
Assim, a feira, que devia ser um motivo de distracção, por um lado tornava-a mais exigente e evoluída, por outro mais revoltada e triste.
Seis ou sete meses depois deu-se um acontecimento que revolucionou a sua vida. Numa álea retirada do jardim, uma ruela secundária onde mal chegava o eco distante daquela babilónia de sons e cores (ou que assim parecia porque nos outros dias, expurgado de tudo, o jardim recaía numa paz de cemitério), portanto longe da concorrência, o que denotava um carácter muito orgulhoso e firme e talvez um protesto contra a sociedade mercantil e a lei da selva, um jovem vendedor expunha a sua mercadoria usando como expositor a própria mala de cartão onde a transportava. A rapariga parou e olhou com uma expressão concentrada, ao mesmo tempo que sentia a nuca latejar sob o efeito de uma terrível dor de cabeça. Depois baixou-se até sentir estalar as articulações dos joelhos e nessa posição incómoda e que a fazia sofrer ainda mais pelo seu lado inestético, saltando às vezes na lateral como um galináceo, passeou o olhar enevoado e vazio por um amontoado de bricabraque de pendor ora mais utilitário ora mais ornamental. Ao acaso fixou-se numa estampa, com a antiguidade certificada pelas manchas de humidade que lhe faziam um passe-partout amarelado, representando uma figura humana de longos cabelos e sorriso esfíngico (tratava-se de uma reprodução da Mona Lisa). Posso ver? Ele fez que sim, gravemente, com um simples aceno, e ela, mecanicamente, começou a examinar uma a uma todas as gravuras do lote, já a ensaiar, ainda sem ter consciência disso, os tiques de apreço e desdém que os verdadeiros experts elevam ao nível da grande arte e nela eram a prova de que a vontade faz milagres, quando posta ao serviço de superior desígnio. A seguir cravou um olhar persistente numas canetas velhas num frasco de rebuçados. Já lhe doíam os joelhos, levantou-se e, com modos desprendidos, indagou o preço das gravuras. A transacção fez-se e a rapariga pregou na parede do quarto o desenho da mulher desconhecida e a partir daí nunca mais se sentiu sozinha, como se ela, a mulher do retrato e o vendedor fossem intermutáveis e onde estivesse um estivesse o outro, vivendo assim uma relação a três como se fosse a dois, muito bem-sucedida.
Na feira seguinte, ou seja, um mês depois, a rapariga tinha economizado o suficiente para comprar outra gravura. O tempo que demorou a escolhê-la foi perdido para contemplar o seu amado mas sentia que ele a observava e assim aqueles minutos souberam-lhe intensamente e foi com plena consciência de obedecer a uma atracção mútua que esperou que ele envolvesse a gravura num pedaço de jornal, mostrando toda a falta de habituação das suas mãos nervosas e esguias, e depois lhe depositou uma moeda nas mãos, acompanhando o gesto de um delicado pedido de desculpas que não chegou a sair-lhe dos lábios.
A rapariga tinha em mente um projecto que dá bem a medida da sua pobreza e timidez: comprar todo o lote de gravuras e depois convidá-lo a vir apreciá-las já distribuídas pelas paredes do seu quarto, encaixilhadas nas molduras que fabricava nos seus tempos livres, com embalagens de cartão, pedaços de papel de alumínio e outros materiais reciclados que lhe davam nas lojas por ser uma pessoa a quem dava gosto dar com o seu ar modesto e humilde. Mais uns meses, pensava ela, e estariam talvez em condições de casar, à medida que o negócio dele se expandia e conquistava clientes fiéis como ela, de feira em feira.
Um domingo aconteceu uma coisa que ela nunca tinha imaginado nos seus projectos tão simples e cheios de viabilidade. Ele não apareceu e quando ao fim de muitas horas se atreveu a perguntar ao vendedor que tinha ocupado o seu lugar se sabia dele, ouviu como resposta que estava a morrer, se é que já não tinha morrido. Depois de muitas indagações e informações contraditórias, lá conseguiu achar quem lhe desse a morada da mãe, com quem vivia apesar de já ter 37 anos de idade. A casa fora pintada recentemente e tinha um ar muito limpo com as suas flores de plástico nas jarras e o chão de mosaico. A mãe chorava na sala de entrada acompanhada das suas amigas que lhe faziam companhia naquele transe e recordavam em voz alta todas as facetas nobres e generosas do moribundo. De vez em quando uma ia espreitar à porta do quarto, arrastando-se com precaução nas pontas das chinelas porque ninguém estava autorizado, nem mesmo a mãe, a perturbar os últimos instantes de vida que ele queria passar a ver na televisão uma das suas séries preferidas. Quando a rapariga entrou estava ele a rir muito baixinho. Viu-a e ficou ainda mais pálido, o que lhe deu alguma esperança, pois se mostrava alegria e amargura era porque ainda estava preso à vida. A rapariga já sabia qual era a doença que o estava a matar e a inutilidade de fazer perguntas descabidas. Aliás durante todos aqueles meses tivera a verdade à frente dos olhos e só a sua extrema impreparação juvenil e o grande amor que forjara nos seus sonhos de virgem a tinham tornado obtusa ante os sinais evidentes que a morte ia semeando no rosto dele.
O espectáculo daquele passamento humilde entristeceu-a tanto que primeiro só teve um pensamento: morrer também. Sentou-se à beira da cama dele e pediu-lhe licença para o envolver nos seus braços, partilhar do seu calor, da sua comida e bebida e dos seus beijos, e ele perante tanta boa vontade não se atreveu a dizer que não. Ela fazia um esforço enorme para não chorar ao acariciar o cabelo dele, ralo e esbranquiçado, e as orelhas ratadas por causa do eczema, enquanto pensava que era capaz de as pôr como novas, lembrando-se do seu frasquinho de óleo de amêndoas doces. De repente começou a impor-se à mãe e a dar-lhe ordens, com muito respeito mas também com firmeza, e a mãe, como que hipnotizada, parecia só esperar um sinal para obedecer. Trouxe-lhes uma sopa muito rica, cheia de vitaminas, que os dois comeram na cama, encostados às almofadas, e minutos depois ela mediu-lhe a pulsação e verificou que estava quase normal. Passou o resto da noite encostada a ele sem se importar com o seu cheiro um pouco azedo e no dia seguinte não disse nada mas começou simplesmente a cuidar dele 24 horas por dia com a paciência de alguém que se dedica a raspar com um pauzinho toda a superfície da crosta terrestre. A verdade é que não fazia isto por simples bondade e dedicação desinteressada. Tinha percebido que, se não o salvasse, morria também, e assim não chegaria nunca a casar e ela queria casar com ele e ajudá-lo, com o seu faro indiscutível de mulher de negócios, a singrar no comércio de antiques. Todo este plano foi amadurecido e reflectido durante os meses que passaram até ele voltar a ser um homem normal, frágil, mas com uma cara séria e agradável e relativamente bem constituído.
No Centro de Saúde nem queriam acreditar. Apalparam-no de todos os lados e depois o mandaram com uma carta para o hospital da zona, onde o seu caso devia ser estudado. A direcção do hospital produziu um relatório de 500 páginas e propôs-lhe ir aos Estados Unidos, à célebre clínica Mayo, para ser apresentado à comunidade médica internacional. O rapaz, a quem continuamos a chamar assim apesar da sua idade, porque a doença, nos seus bifurcados caminhos, tinha desacelerado o processo de envelhecimento mental e descobria-se agora que detendo o processo de envelhecimento mental era possível travar o do físico, deixou a decisão ao critério da namorada, abdicando de qualquer espécie de vontade como se se entregasse nas mãos de Deus.
Não podia ter feito melhor opção, pois ela continuava a ter o dom de acertar na atitude correcta desde que tomara o destino nas mãos e o ia forçando a golpes de vontade, impulsionada pela presença a seu lado do homem amado que resgatara do outro mundo.
Nos Estados Unidos, fizeram uma digressão triunfal que os levou dos Apalaches às praias da Califórnia, numa limusine precedida de uma guarda de honra de polícias em soberbas motas, que ostentavam nos capacetes as bandeiras dos dois países.
Como aproveitaram para casar em Las Vegas pode dizer-se que toda a viagem, excepto quando tinham de marcar presença em anfiteatros a abarrotar de gente, foi uma lua de mel inesquecível.
Não se pense no entanto que voltaram ricos. Como tudo aquilo de que necessitavam lhes vinha parar às mãos não chegaram a ver um dólar, mas tinham sensibilidade suficiente para se sentirem regiamente pagos.
Além disso, o contacto com o país da abundância e da livre iniciativa deixara-lhes marcas profundas ou, para não exagerarmos, uns arranhões que iam demorar muito tempo a desaparecer. A rapariga percebeu que, se queria mesmo conquistar uma posição no mercado da venda ambulante de antiques, tinha de apostar na diversidade e originalidade e ir ao encontro dos gostos e aspirações do público, procurando as pessoas onde elas se encontram, o que pressupunha uma estratégia de multiplicar os pontos de venda e assediá-las à porta das suas próprias casas. Contudo este plano só valia a pena porque tinha ao lado alguém de quem gostava tanto que, sendo iletrada, até parecia que conhecia Racine, quando, nas suas loucuras amorosas, lhe dizia: “Mata-me, para que eu te possa perdoar.”

 

 

 BARTLEBY, O ESCRITURÁRIO
Uma história de Wall Street
Herman Melville
(tradução: Cássia Zanon)

 
Já sou um homem de uma certa idade. A natureza da minha ocupação nos últimos trinta anos permitiu que eu tivesse um contato mais próximo com um grupo de homens que pode parecer interessante e de certa forma singular, e sobre quem, até onde é de meti conhecimento, nada jamais foi escrito: refiro-me aos escriturários ou copistas. Eu conheci muitos deles, em caráter profissional e privado, e, se assim desejasse, poderia relatar histórias diversas, que talvez provocassem sorrisos em cavalheiros de bem e fizessem chorar aqueles mais sentimentais. Mas troco as biografias de todos os outros escriturários por algumas passagens da vida de Bartleby, o escriturário mais estranho que jamais vi ou de que ouvi falar. De outros taquígrafos talvez eu consiga contar a vida toda, mas não se pode fazer nada parecido em relação a Bartleby. Não creio que haja material suficiente para uma biografia completa e satisfatória deste homem. Trata-se de uma perda irreparável para a literatura. Bartleby foi um daqueles seres sobre os quais nada é passível de confirmação, a não ser junto às fontes originais, e, no caso dele, essas são muito poucas. O que vi de Bartleby com meus próprios olhos estarrecidos é tudo o que sei dele, com exceção, na verdade, de um relato vago que é reproduzido ao final.
Antes de apresentar o escriturário, do modo como ele surgiu em minha vida, é interessante que eu fale de mim, de meus employés, meu negócio, meu escritório e o que me cerca. Isso porque tal descrição é indispensável para uma compreensão adequada do personagem principal que está prestes a ser conhecido. Antes de tudo, sou um homem que desde a juventude tem alimentado uma convicção profunda de que a vida mais fácil é também a melhor. Assim, embora a minha profissão seja notoriamente dinâmica e nervosa, por vezes até mesmo turbulenta, nada disso jamais chegou a prejudicar a minha paz. Sou um daqueles advogados de pouca ambição que nunca se dirige a um júri ou obtém qualquer tipo de reconhecimento público; mas que, na suave tranqüilidade de um retiro sossegado, realiza um trabalho sossegado com títulos, hipotecas e escrituras de homens ricos. Todos os que me conhecem consideram-me um homem eminentemente cuidadoso. O falecido John Jacob Astor, que não se destacava propriamente por seu entusiasmo poético, não hesitava em citar como minha principal característica a prudência; em seguida, a organização. Não falo isso com vaidade, mas registro o fato de que sempre estive empregado em minha profissão por conta do falecido John Jacob Astor; um nome que, tenho de admitir, adoro pronunciar, pois tem um som arredondado e orbicular que ressoa como um sino. Acrescento de bom grado que nunca fui insensível à boa opinião do falecido John Jacob Astor.
Algum tempo antes do período no qual teve início esta historieta, minhas atividades haviam aumentado imensamente. O bom e velho cargo de conselheiro do Tribunal de Chancelaria, hoje extinto no Estado de Nova York, tinha sido a mim conferido. Não era um cargo propriamente trabalhoso, mas a remuneração era bastante satisfatória. Eu raramente me descontrolo; mais raramente ainda deixo transparecer perigosas indignações com injustiças e arbitrariedades; mas creio que posso me dar o direito de ser impulsivo e declarar que considero a repentina e violenta extinção do referido cargo pela nova Constituição um ato… prematuro; visto que eu havia dado como certos os lucros do arrendamento vitalício, e que recebi os proventos apenas por poucos anos. Mas isso não tem qualquer importância.
Meu conjunto de salas era no segundo andar do n°… da Wall Street. De um lado, a vista era para as paredes brancas do interior de um grande poço de luz, que abarcava o prédio de alto a baixo.
Essa vista podia ser considerada mais insípida do que qualquer outra coisa e carente daquilo que os paisagistas chamam de “vida”. Mas, se isso era verdade, o que se via do outro lado do escritório consistia pelo menos num contraste. Nessa direção, as janelas abriam-se completamente para uma imensa parede de tijolos escurecida pelo tempo e pela permanente ausência de sol; não era necessária qualquer luneta para desvendar as belezas ocultas dela. Para sorte de todos os espectadores míopes, ela ficava a três metros de minhas vidraças. Devido à grande altura dos prédios ao redor e ao fato de que meu escritório ficava no segundo andar, o espaço entre essa parede e a minha assemelhava-se muito com uma imensa cisterna quadrada.
No período imediatamente anterior ao surgimento de Bartleby, eu tinha duas pessoas trabalhando comigo como copistas e um rapaz promissor como mensageiro. O primeiro chamava-se Turkey; o segundo, Nippers; e o terceiro, Ginger Nut* (*Gingeriwt significa, literalmente, noz de gengibre; turkey, peru, e nippers, alicate. N.do T.). Ainda que esses pudessem ser mesmo seus nomes, dos tipos não encontrados usualmente nos cartórios, eram somente apelidos trocados entre meus três funcionários e que supostamente tinham ligação com suas personalidades e características. Turkey era um inglês baixinho e gorducho mais ou menos da minha idade, ou seja, beirando os sessenta anos. Pela manhã, pode-se dizer, seu rosto tinha um alegre tom rosado. Entretanto, após o meio-dia – seu horário de almoço -‘ ele queimava como uma lareira repleta de brasas; e continuava ardendo do mesmo modo, mas arrefecendo-se pouco a pouco até aproximadamente as seis da tarde, a partir de quando eu não via mais seu rosto, que, atingindo o meridiano com o sol, parecia também anoitecer com ele, para, no dia seguinte, surgir, atingir seu ápice e pôr-se, com igual regularidade e glória indefectível. Durante o curso de minha vida, tomei conhecimento de inúmeras coincidências peculiares, e entre as não menos importantes, estava o fato de que, precisamente no momento crítico em que a fisionomia vermelha e radiante de Turkey exibia seus raios mais ardentes, começava o período do dia a partir do qual eu considerava suas capacidades profissionais seriamente prejudicadas pelo restante das vinte e quatro horas, Não que ele se entregasse à indolência ou tivesse aversão ao trabalho; longe disso. A dificuldade era que ele tinha a capacidade de ser, de um modo geral, energético demais. Havia em seu jeito uma imprudência estranha, inflamada, confusa e estabanada. Ele conseguia ser descuidado até mesmo ao molhar a pena no tinteiro. Todos os seus borrões sobre meus documentos eram espalhados depois do meio-dia. Na verdade, à tarde, ele não apenas era imprudente e tristemente afeito a deixar borrões, como em alguns dias ia mais além, tornava-se também bastante barulhento. Nessas vezes, seu rosto queimava ainda mais, como se carvão vegetal houvesse sido atirado ao fogo. Ele fazia um movimento desagradável com sua cadeira; derrubava a areia de seu cinzeiro; ao aparar as penas, impacientemente as deixava aos pedaços, atirando-as no chão num rompante; levantava-se e apoiava-se sobre a mesa, esmurrando seus papéis de modo destrambelhado, urna cena muito triste para um homem velho como ele. Entretanto, era uma pessoa de grande valor para mim em muitos aspectos e, durante todo o período anterior ao meio-dia, a mais rápida e firme das criaturas, realizando uma excelente quantidade de trabalho num estilo difícil de ser igualado. Por essas razões, eu estava disposto a fazer vistas grossas a suas excentricidades, embora, na verdade, ocasionalmente lhe chamasse a atenção. No entanto, tratava de fazê-lo de maneira bastante cuidadosa, porque, embora fosse um homem absolutamente civilizado e, além disso, afável e respeitoso pela manhã, durante a tarde ele tinha a tendência de, provocado, não ter papas na língua, tornando-se até mesmo insolente. Agora, como eu valorizava seus serviços matutinos e estava resolvido a não abrir mão deles – ainda que, ao mesmo tempo, sentisse-me desconfortável por suas maneiras inflamadas após o meio-dia – e sendo um homem de paz, negando-me a provocar respostas inadequadas da parte dele com meus avisos, resolvi, num sábado à tarde (ele era sempre pior aos sábados), dar-lhe a entender, muito gentilmente, que talvez agora que ele estava ficando mais velho fosse de bom alvitre abreviar seu trabalho; em suma, ele não precisava mais vir ao escritório depois do meio-dia, e, findo o almoço, seria melhor ir para casa descansar até a hora do chá. Mas, não; ele insistiu com sua dedicação vespertina. Seu semblante tornou-se intoleravelmente fervoroso, enquanto ele assegurava-me eloqüentemente – gesticulando com uma longa régua em punho do outro lado da sala – que, se seus serviços pela manhã eram úteis, quão indispensáveis seriam, então, à tarde?
– Com o devido respeito, senhor – disse Turkey nessa ocasião -, considero-me seu braço-direito. Pela manhã, tudo o que faço é organizar e desenvolver minhas colunas; mas, à tarde, tomo a dianteira e galantemente ataco o adversário, assim! – continuou, fazendo um violento gesto com a régua.
– Mas, e os borrões, Turkey? – intimei-o.
– É verdade… mas, com o devido respeito, senhor, atente para esses cabelos! Estou ficando velho. Certamente, senhor, um borrão ou outro numa tarde quente não podem ser imputados severamente contra cabelos grisalhos. A idade avançada, ainda que deixe borrões nas páginas, é honrosa. Com o devido respeito, senhor, ambos estamos ficando velhos.
Era difícil resistir a esse apelo à minha simpatia. De todo modo, percebi que ele não iria embora. Então, decidi-me por deixá-lo ficar, resolvendo, todavia, assegurar-me de que durante as tardes ele trabalhasse com documentos menos importantes.
Nippers, o segundo da minha lista, era um jovem de barba, pálido e com um ar de pirata, de aproximadamente vinte e cinco anos. Sempre o vi como vítima de dois poderes perversos: ambição e indigestão. A ambição revelava-se por uma certa impaciência com as funções de um simples copista, uma usurpação injustificada de assuntos estritamente profissionais, como a redação original de documentos legais. A indigestão parecia revelar-se num ocasional mau-humor nervoso e uma irritabilidade crônica, fazendo com que seus dentes rangessem de forma audível com erros cometidos durante o expediente; maledicências desnecessárias ditas entre os dentes no calor do trabalho; destacava-se, especialmente, um descontentamento crônico com a altura da mesa em que trabalhava. Apesar de toda sua engenhosidade mecânica, Nippers nunca conseguia fazer com que sua mesa ficasse de seu agrado. Ele usava lascas de madeira como apoio, assim como blocos de diferentes tipos e pedaços de papelão. Chegou ao ponto de tentar um delicado ajuste com restos de papel mata-borrão dobrados. Mas nenhuma invenção correspondia às suas expectativas. Se, para aliviar as costas, ele deixasse a tampa da mesa num ângulo reto em direção ao seu queixo e escrevesse ali como se utilizasse o telhado escarpado de uma casa holandesa como escrivaninha… dizia que aquilo lhe prejudicava a circulação nos braços. Se depois tivesse abaixado a mesa até a cintura e escrevesse inclinado, sentia uma forte dor nas costas. Em resumo, a verdade era que Nippers não sabia o que queria. Ou, se queria alguma coisa, era se livrar completamente da mesa de escriturário. Em meio às manifestações de sua ambição doentia estava o carinho com que recebia certos sujeitos de aparência ambígua em casacos puídos, a quem ele se referia como seus clientes. Realmente, eu estava consciente de que ele não apenas era, às vezes, um politiqueiro, como ocasionalmente fazia pequenos trabalhos nas cortes de Justiça, e não era um desconhecido nas escadarias das prisões municipais. Tenho boas razões para crer, contudo, que um indivíduo que o procurou em meu escritório, e que, com grandes ares, insistiu ser seu cliente, não era mais do que um credor, e o suposto título de propriedade, uma cobrança. Mas, com todas as suas falhas e os aborrecimentos que ele me causava, Nippers, como seu compatriota Turkey, era-me um homem muito útil; fazia um trabalho rápido e de qualidade; além disso, quando queria, sabia ser bastante cortês. Acrescente-se a isso o fato de que ele estava sempre vestido de maneira cavalheiresca. Assim, incidentalmente, emprestava credibilidade ao meu escritório. Já em relação a Turkey, não era nada fácil evitar que sua aparência me incomodasse. Suas roupas pareciam estar sempre ensebadas e cheirando a comida. No verão, ele usava calças bem largas e soltas no corpo. Seus casacos eram execráveis; o chapéu, impossível de ser tocado. Mas enquanto o chapéu me era algo indiferente, haja vista que, graças à civilidade e à deferência inerentes a sua educação britânica, ele o tirava no instante em que adentrava a sala, o casaco era um outro problema. Eu cheguei a conversar com ele a respeito dos casacos; o que não surtiu efeito. A verdade era, acredito, que um homem com uma renda tão pequena não tinha condições de exibir, simultaneamente, fisionomia e casacos de qualidade. Como bem observou Nippers numa ocasião, o dinheiro de Turkey ia-se principalmente em tinta vermelha. Num dia de inverno, presenteei Turkey com um de meus casacos de aparência altamente respeitável, cinza, forrado, absolutamente confortável, com botões desde a altura dos joelhos até o pescoço. Pensei que Turkey apreciaria o favor e ficaria mais calmo durante as tardes. Mas, não. Acredito que se agasalhar de cima a baixo com um casaco tão felpudo e acolchoado surtiu nele um efeito pernicioso; isso pelo mesmo princípio que faz com que aveia em excesso seja prejudicial aos cavalos. Na verdade, tão certo como uma alergia, assim como se diz que um cavalo inquieto sente sua aveia, Turkey sentia seu casaco. Deixou-lhe insolente. Era um homem a quem a prosperidade fazia mal.
Embora eu tivesse algumas suspeitas a respeito dos hábitos desleixados de Turkey, em relação a Nippers eu estava bem convencido de que, quaisquer que fossem seus defeitos em outros aspectos, ele ao menos era um jovem abstêmio. Mas, realmente, a natureza parecia ter sido sua própria fornecedora de vinhos e, quando ele nasceu, dotou-o de uma disposição tão ácida que tornou todas as doses subseqüentes desnecessárias. Quando paro para pensar em como, em meio ao silêncio de meu escritório, Nippers às vezes se levantava impacientemente de sua cadeira e, inclinando-se sobre a mesa, abria bem os braços, agarrava a escrivaninha e a sacudia no chão, num movimento raivoso e bruto, como se a mesa fosse um perverso agente voluntário que tentava contrariá-lo e afligi-lo, simplesmente percebo que a bebida era absolutamente desnecessária para ele.
Foi urna sorte para mim que, graças a sua causa peculiar – a indigestão – a irritabilidade e o conseqüente nervosismo de Nippers eram perceptíveis principalmente pela manhã, enquanto que à tarde ele era comparativamente tranqüilo. Assim, como os paroxismos de Turkey surgiam apenas por volta do meio-dia, eu nunca tive de lidar com as excentricidades dos dois simultaneamente. Seus ataques se revezavam, como guardas. Quando os de Nippers começavam, os de Turkey terminavam, e vice-versa. Era um bom acordo natural, haja vista as circunstâncias.
Ginger Nut, o terceiro em minha lista, era um rapazote de aproximadamente doze anos de idade. Seu pai era um carroceiro que, antes de morrer, sonhava em ver o filho como passageiro de uma carruagem, e não como seu guia. Então, mandou-o ao meu escritório como aprendiz de direito, mensageiro e faxineiro, em troca de um dólar por semana. O menino tinha uma pequena mesa que não usava muito. Quando inspecionada, a gaveta revelava montes de cascas de diferentes tipos de nozes. De fato, para esse jovem esperto, toda a nobre ciência das leis estava contida numa casca de noz. Entre as mais importantes funções de Ginger Nut, que ele realizava com total entusiasmo, estava a de fornecedor de bolinhos de gengibre e maçã para Turkey e Nippers. Como fazer cópias de documentos legais é um trabalho proverbialmente árido e seco, meus dois escriturários eram obrigados a freqüentemente umedecerem a boca com os Spitzenbergs vendidos nos inúmeros estabelecimentos próximos da Alfândega e dos Correios. Eles também freqüentemente mandavam Ginger Nut buscar aquele bolinho peculiar – pequeno, redondo, achatado e muito condimentado – que dera origem ao seu apelido. Numa manhã fria e de pouco trabalho, Turkey era capaz de devorar inúmeros desses bolinhos, como se fossem simples biscoitos – na verdade eles são vendidos em porções de seis ou oito por penny -, com o ranger de sua pena fundindo-se com o triturar das partículas crocantes em sua boca. Numa das tardes em que sua agitação atingiu um nível muito alto, Turkey usou um pedaço do bolo de gengibre que mastigava para selar uma hipoteca. Neste dia eu cheguei muito perto de demiti-lo, mas ele me desarmou ao fazer uma reverência oriental e dizer:
– Com todo respeito, senhor, foi generoso de minha parte abastecê-lo de material de papelaria de meu próprio bolso.
Porém, minhas atividades originais – de tabelião, cobrança de títulos e cópias de documentos de todos os tipos – haviam aumentado consideravelmente depois que assumi o cargo de escrivão-conselheiro jurídico. Havia então muito trabalho para escriturários. Eu não apenas era obrigado a exigir mais dos funcionários que já estavam comigo, como necessitava de ajuda adicional. Em resposta a um anúncio, um jovem que não se mexia surgiu, numa manhã, na entrada de meu escritório – como era verão, a porta encontrava-se aberta. Ainda hoje sou capaz de visualizá-lo – palidamente limpo, tristemente respeitável incuravelmente pobre! Era Bartleby.
Depois de algumas palavras a respeito de suas qualificações contratei-o, satisfeito por ter em minha equipe de copistas um homem de aspecto tão singularmente sossegado, que eu acreditei poder ser benéfico ao temperamento excêntrico de Turkey e ao gênio explosivo de Nippers.
Eu deveria ter informado antes que meu escritório tinha portas vaivém de vidro fosco separando a área do escritório ocupada por meus escriturários daquela ocupada por mim. Dependendo do meti humor, eu as deixava abertas ou fechadas. Optei por acomodar Bartleby num canto junto às portas mas do lado em que eu ficava, para ter por perto aquele homem tranqüilo no caso de haver algum pequeno serviço a fazer. Posicionei sua mesa perto de uma pequena janela lateral naquela parte do ambiente. Era uma janela que originalmente dava para uns quintais sujos e umas pilhas de tijolos, mas que, em razão das construções subseqüentes, não tinha mais qualquer tipo de vista, embora permitisse a entrada de um pouco de luz. A parede ficava a cerca de trinta centímetros das vidraças, e a luz originava-se bem do alto, por entre dois imponentes edifícios, como se viesse de uma abertura muito pequena numa abóbada. Para que o ambiente ficasse ainda mais satisfatório, adquiri um alto biombo verde que deixava Bartleby totalmente fora de meu campo de visão, mas não distante da minha voz. Assim, de algum modo, uniram-se privacidade e convívio.
Inicialmente, Bartleby realizava uma quantidade extraordinária de trabalho. Como se há tempos estivesse faminto por algo que copiar, ele parecia devorar meus documentos. E não havia pausa para a digestão. Ele trabalhava dia e noite, copiando à luz do sol e à luz de vela. Sua dedicação deveria deixar-me bastante satisfeito, uma vez que ele era assaz laborioso. Mas ele escrevia em silêncio, de maneira mecânica e apática.
Evidentemente, é parte indispensável do trabalho de um escriturário verificar a correção de sua cópia, palavra por palavra. Quando há dois ou mais escriturários num escritório, eles se ajudam nessa revisão: enquanto um lê a cópia em voz alta, o outro confere com o original. É uma tarefa muito chata, cansativa e demorada. Posso imaginar que, para pessoas de sangue quente esse trabalho beire o intolerável. Não consigo imaginar, por exemplo, que o fogoso poeta Byron teria se sentado de bom grado com Bartleby para conferir um documento legal de, digamos, quinhentas páginas escritas em letra miúda.
De vez em quando, na pressa do dia-a-dia, eu mesmo tinha o hábito de ajudar na comparação de documentos menores, chamando Turkey ou Nippers para fazê-lo comigo. Um de meus objetivos ao deixar Bartleby tão próximo de mim atrás do biombo era o de valer-me de seus serviços nessas ocasiões triviais. Foi, creio, no terceiro dia de trabalho dele comigo, e antes de surgir qualquer necessidade de que sua própria escrita fosse examinada, que, por estar muito apressado para finalizar um pequeno serviço sob minha responsabilidade chamei Bartleby repentinamente. Apressado e com a natural expectativa de ser atendido prontamente, sentei-me com a cabeça curvada sobre o original em minha mesa e estendi a mão direita para o lado, alcançando nervosamente a cópia, de maneira que Bartleby pudesse apanhá-la assim que emergisse de seu isolamento e começasse a trabalhar sem qualquer demora.
Era nessa exata posição que eu me encontrava quando chamei-o, dizendo rapidamente o que queria que ele fizesse – mais precisamente checar um pequeno documento comigo. Imagine minha surpresa, ou melhor, minha consternação, quando, sem se mover de sua privacidade, Bartleby respondeu num tom de voz singularmente suave e firme:
– Prefiro não fazer.
Sentei-me no mais absoluto silêncio durante alguns instantes, tentando recompor meu abalado raciocínio. De imediato, ocorreu-me que eu tinha sido enganado por meus ouvidos ou que Bartleby não tinha compreendido o que eu quisera dizer. Fiz novamente o pedido no tom mais claro que consegui. Mas a resposta anterior veio com a mesma clareza:
– Prefiro não fazer.
– Prefere não fazer? – repeti, levantando-me alterado e cruzando a sala a passos largos. – O que você quer dizer com isso? Você está maluco? Quero que você me ajude a comparar esta folha aqui, tome – empurrei o papel em sua direção.
– Prefiro não fazer – disse. Olhei para ele firmemente. Sua expressão era tranqüila; seus olhos cinzentos, calmos e opacos. Nem uma nesga de preocupação o afetava. Se houvesse o menor sinal de inquietação, raiva, impaciência ou impertinência em suas maneiras; em outras palavras, se houvesse qualquer coisa ordinariamente humana a respeito dele, não havia dúvidas de que eu deveria tê-lo expulsado do escritório violentamente. Mas, naquelas circunstâncias, eu pensaria antes em jogar porta afora o meu busto de Cícero em gesso branco. Fiquei olhando para Bartleby por uns instantes, enquanto ele continuava com sua própria cópia, e voltei a sentar-me em meu lugar. Isso é muito estranho, pensei. Qual seria a melhor coisa a se fazer? Mas eu estava atrasado com meu trabalho. Optei por esquecer a questão naquele instante, reservando-a para meu tempo livre. Então, chamei Nippers da outra sala, e o documento foi rapidamente checado.
Alguns dias depois disso, Bartleby concluiu quatro longos documentos, quadruplicatas de um testemunho de uma semana de duração tomado diante de mim no Supremo Tribunal. Era preciso conferi-los. Era um processo importante, e era imperativo que houvesse grande precisão no trabalho. Com tudo pronto, chamei Turkey, Nippers e Ginger Nut da sala ao lado pensando em distribuir as cópias entre os meus quatro funcionários e ler a partir do original. Conseqüentemente, Turkey, Nippers e Ginger Nut sentaram-se em fila, cada um com seu documento em punho, quando chamei Bartleby para se unir a esse interessante grupo.
– Bartleby! Depressa, estou esperando. Ouvi os pés de sua cadeira arrastando-se lentamente no chão sem tapete, e ele apareceu a seguir, ficando de pé à entrada de seu eremitério.
– O que deseja? – perguntou ele, calmamente.
– As cópias, as cópias – disse eu, apressado. – Vamos examiná-las. Aqui – e alcancei-lhe a quarta cópia.
– Prefiro não fazer – disse ele, desaparecendo tranqüilamente atrás do biombo.
Por alguns instantes, vi-me transformado numa estátua de sal, parado diante da fileira de funcionários sentados. Depois de me recuperar, avancei em direção ao biombo e exigi que ele me explicasse a razão para tal extraordinária conduta.
Por que você se recusa?
– Prefiro não fazer.
Com qualquer outro homem, eu teria ficado imediatamente irado, desdenhado tudo o que viesse a ser dito e enxotado-o de maneira desrespeitosa de perto de mim. Mas havia algo em relação a Bartleby que não apenas me desarmava estranhamente, como, de um modo maravilhoso, tocava-me e desconcertava-me. Comecei a argumentar com ele.
– São suas próprias cópias as que estamos prestes a examinar. Isso vai poupar trabalho a você, porque uma única checagem vai dar por finalizados seus quatro documentos. Sempre fazemos isso. É dever de cada escriturário ajudar a conferir sua própria cópia. Não é assim? Você não vai falar? Responda!
– Prefiro não responder – replicou ele num tom suave. Tive a impressão de que, enquanto eu estivera dirigindo-lhe a palavra, ele refletira cuidadosamente sobre cada uma de minha declarações, compreendera completamente seus significados e não pudera contrariar a conclusão irresistível, mas, ao mesmo tempo, alguma consideração superior prevalecera, e ele acabara respondendo daquela maneira.
– Você está decidido, então, a não cumprir com minha solicitação… uma solicitação usual e de bom senso?
Rapidamente ele deu a entender que, dessa vez, meu julgamento estava perfeito. Sim: sua decisão era irreversível.
Não são raros os casos em que um homem intimidado de uma maneira irracional e sem precedentes tenha suas crenças mais básicas abaladas. Ele começa, aparentemente, a supor de modo vago que, por mais maravilhosas que possam ser, toda a justiça e toda a razão estão do outro lado. Consequëntemente, se há quaisquer pessoas desinteressadas presentes, ele se vira para elas em busca de algum reforço para seu próprio pensamento hesitante.
– Turkey – disse eu -, o que você pensa disso? Não estou certo?
– Com todo o respeito, senhor – disse Turkey, com seu tom mais brando -, acredito que o senhor está com a razão.
– Nippers – disse eu -, o que você acha disso?
– Acho que eu deveria expulsá-lo do escritório.
(O leitor mais atento vai perceber que, por ser de manhã, a resposta de Turkey está formulada em termos educados e tranqüilos, enquanto que Nippers responde de modo mal- humorado. Ou, para utilizar uma expressão anterior, os ataques de mau gênio de Nippers tinham começado e os de Turkey tinham terminado.)
– Ginger Nut – disse eu, buscando obter o máximo de votos a meu favor-, o que você pensa disso?
– Eu acho, senhor, que ele é meio maluco – respondeu Ginger com um sorrisinho no canto da boca.
– Você ouviu o que eles disseram – disse eu, virando-me em direção ao biombo. – Venha até aqui e cumpra seu dever.
Mas ele não deu qualquer resposta. Refleti por um instante em profunda perplexidade. Mas uma vez mais os negócios me apressavam. Decidi novamente adiar a consideração deste dilema para meu tempo livre. Com algum trabalho, conseguimos examinar os documentos sem Bartleby, embora a cada uma ou duas páginas Turkey respeitosamente opinasse que esse tipo de procedimento era bastante fora do normal, enquanto Nippers, contorcendo-se em sua cadeira com um nervosismo dispéptico, remoía entre os dentes ceifados maledicências contra o idiota teimoso atrás do biombo. De sua parte, essa era a primeira e a última vez que ele (Nippers) faria o trabalho de outro homem sem receber por isso.
Enquanto isso, Bartleby permanecia sentado em seu canto, indiferente a tudo que não fosse seu próprio e peculiar trabalho ali.
Alguns dias se passaram com o escriturário dedicado a outra tarefa prolongada. Sua última conduta memorável fez com que eu observasse seus modos atentamente. Notei que ele nunca saía para almoçar; na verdade, ele nunca ia a lugar algum. Também não me lembro de tomar conhecimento de sua vida fora de meu escritório. Ele era uma sentinela perpétua naquele canto. Aproximadamente às onze horas da manhã, no entanto, percebi que Ginger Nut aproximava-se da abertura no biombo de Bartleby como se houvesse sido chamado até ali por um gesto que não podia ser visto por mim, de onde eu me encontrava. O menino então saía do escritório fazendo tilintar algumas moedas e reaparecia com um punhado de bolinhos de gengibre que entregava no eremitério. Em troca, recebia dois dos bolinhos pelo trabalho.
Então ele se alimenta de bolinhos de gengibre, pensei; nunca faz uma refeição de verdade, por assim dizer; ele deve ser vegetariano, então; mas, não; ele nunca come sequer vegetais, não come nada além de bolinhos de gengibre. Meu pensamento então se perdeu, imaginando os prováveis efeitos que se alimentar apenas de bolinhos de gengibre provocavam na constituição humana. Os bolinhos de gengibre têm esse nome porque contêm gengibre como um de seus principais ingredientes, o que lhes dá o sabor peculiar. Agora, o que era o gengibre? Uma coisa quente, picante. Bartleby era quente e picante? De maneira alguma. Então, o gengibre não tinha qualquer efeito em Bartleby. Ele provavelmente preferia que não tivesse.
Nada irrita tanto uma pessoa séria quanto uma resistência passiva. Se o indivíduo afrontado não for de um temperamento desumano, e o que resiste, perfeitamente inofensivo em sua passividade, então, nos melhores humores do primeiro, ele vai se esforçar caridosamente por interpretar com sua imaginação o que se mostra impossível de ser esclarecido por seu julgamento. Ainda assim, na maior parte do tempo eu observava Bartleby e seus modos. Pobre sujeito!, pensei eu, ele não tem a intenção de fazer mal algum; está claro que não pretende ser insolente; sua aparência evidencia suficientemente que suas excentricidades são involuntárias. Ele me é útil. Me dou bem com ele. Se eu demiti-lo, ele pode acabar com algum empregador menos generoso, sendo maltratado e, talvez, miseravelmente levado a passar fome. Sim. Aqui eu consigo obter uma deliciosa auto-aprovação sem muito custo. Poder auxiliar Bartleby, agradá-lo em sua estranha teimosia, vai me custar nada ou muito pouco, enquanto que eu reservo em minha alma o que futuramente pode vir a ser um doce consolo para minha consciência. Mas esse estado de espírito não estava invariavelmente comigo. A passividade de Bartleby às vezes me irritava. Eu me sentia estranhamente disposto a provocar uma nova oposição de sua parte para arrancar alguma fagulha de raiva dele a que eu pudesse responder da mesma forma. Mas era o mesmo que tentar fazer fogo esfregando os nós dos dedos numa barra de sabão Windsor. Urna tarde, porém, fui dominado por um impulso diabólico e sucedeu-se a seguinte cena:
– Bartleby – disse eu -, quando todos esses documentos estiverem copiados, vou checá-los com você.
– Prefiro não fazer.
– Como assim? Você certamente não pretende insistir nessa teimosia caprichosa.
Nenhuma resposta.
Abri as portas duplas perto de mim, virei-me para Turkey e Nippers e exclamei, nervoso:
– Bartleby diz, pela segunda vez, que não vai examinar seus papéis. O que você pensa disso, Turkey?
Era uma tarde, é importante lembrar. Turkey estava sentado, queimando como uma caldeira, a careca fumegando. as mãos vagueando entre seus papéis repletos de borrões.
– O que eu penso disso? – rugiu Turkey.
– Penso que vou simplesmente entrar atrás desse biombo e deixá-lo de olho roxo!
Dizendo isso, Turkey levantou-se e ergueu os braços como um pugilista. Fie estava a caminho de cumprir sua promessa quando o detive, assustado com o efeito de incitar inadvertidamente sua combatividade depois do almoço.
– Sente-se, Turkey – eu disse-, e ouça o que Nippers tem a dizer. O que você pensa disso, Nippers? Não seria plenamente justificável que eu dispensasse Bartleby imediatamente?
– Perdoe-me, mas isso é uma decisão que cabe apenas ao senhor. Considero sua conduta deveras incomum e realmente injusta em relação a Turkey e a mim. Mas também pode ser apenas unia excentricidade passageira.
– Ah exclamei -, então você mudou estranhamente de idéia… você agora fala nele de modo bastante gentil.
– Tudo cerveja – gritou Turkey. – A gentileza é efeito da cerveja. Nippers e eu almoçamos juntos hoje. O senhor pode ver como eu estou gentil, senhor. Posso ir deixá-lo de olho roxo?
– Refere-se a Bartleby, suponho. Não, hoje, não, Turkey – respondi. – Por favor, abaixe os punhos.
Fechei as portas e voltei a me aproximar de Bartleby. Senti mais incentivos incitando-me a seguir meu destino. Eu ardia por ser contrariado novamente. Lembrei-me de que Bartleby nunca saía do escritório.
– Bartleby – falei-, Ginger Nut não está aqui; preciso que você vá até os Correios, está bem? – (Era uma caminhada de menos de três minutos.) – Veja se chegou algo para mim.
– Prefiro não ir.
– Você não vai?
– Prefiro não.
Cambaleei até a minha mesa e sentei- me pensando seriamente. Minha cega determinação retornara. Haveria alguma outra coisa que pudesse provocar uma nova rejeição por parte desse infeliz e miserável indivíduo – meu funcionário? O que mais há, de perfeitamente razoável, que ele certamente se recusará a realizar?
– Bartleby!
Sem resposta.
– Bartleby! – chamei num tom mais alto.
Sem resposta.
– Bartleby! – urrei.
Como um fantasma, submetido às leis da invocação mágica, ao terceiro chamado ele apareceu à entrada de seu eremitério.
– Vá à sala ao lado e peça a Nippers para vir falar comigo.
– Prefiro não ir – disse de modo respeitoso e lento, desaparecendo calmamente.
– Muito bem, Bartleby – falei em voz baixa, num tom calmo e serenamente grave, declarando o propósito inalterável de alguma retribuição terrível muito perto de ocorrer. Naquele momento, eu, de certa maneira, pretendia algo do gênero. Mas, como se aproximava de meu horário de almoço, achei melhor vestir meu chapéu e voltar para casa, naquele dia, sofrendo de muita perplexidade e angústia.
Deveria eu admitir? A conclusão era que tudo aquilo havia em pouco tempo se tornado um fato cotidiano em meu escritório, que um jovem escriturário pálido, que atendia pelo nome de Bartleby, tinha uma mesa lá; que ele fazia cópias para mim pelo valor normal de quatro centavos por página (cem palavras); mas que ele estava permanentemente isento de conferir o trabalho feito por ele, sendo essa tarefa transferida para Turkey e Nippers, em consideração, sem dúvida, à agudeza superior dos dois; além disso, o dito Bartleby em hipótese alguma era enviado em qualquer tipo de serviço trivial fora do escritório; e que mesmo que lhe fosse solicitado fazer algo do gênero, normalmente ficava claro que ele preferia não fazer – em outras palavras, que ele simplesmente se recusava a fazer.
Conforme os dias se passavam, fui ficando consideravelmente mais tranqüilo em relação a Bartleby. Sua constância, seu comedimento, sua produtividade incessante (exceto quando ele optava por sonhar acordado atrás de seu biombo), seu absoluto silêncio e seu comportamento inalterável sob qualquer circunstância faziam dele uma aquisição valiosa, O mais importante de tudo era o seguinte: ele estava sempre lá. Era o primeiro a chegar pela manhã, permanecia durante o dia e, à noite, era o último a sair. Eu tinha uma confiança singular em sua honestidade. Acreditava que meus documentos mais preciosos estavam perfeitamente a salvo em suas mãos. Algumas vezes, no entanto, eu não podia evitar, nem mesmo pela salvação de minha alma, repentinas crises espasmódicas de raiva contra ele. Porque era extremamente difícil levar em consideração todo o tempo aquelas estranhas peculiaridades, os privilégios e as concessões sem precedentes que formavam as condições tácitas sob as quais Bartleby continuava em meu escritório. Vez ou outra, na ânsia de apressar o trabalho, eu inadvertidamente pedia a Bartleby, num tom breve e seco, que ele, digamos, colocasse o dedo no nó de um pedaço de fita vermelha com a qual eu estava amarrando alguns documentos. Evidentemente, detrás do biombo, era certo que se ouviria a resposta de sempre:
“Prefiro não fazer”. E então, como poderia uma criatura humana, com as fraquezas inerentes a nossa natureza, privar-se de exclamar amargamente diante de tamanha perversidade… tamanha irracionalidade? Entretanto, cada negativa desse tipo que eu recebia apenas tendia a diminuir a probabilidade de que eu repetisse a inadvertência.
Aqui é preciso dizer que, conforme o costume da maioria dos homens de leis que têm seus escritórios em edifícios densamente habitados, havia várias chaves para a minha porta. Uma ficava com uma mulher que vivia no sótão. Era ela quem fazia uma faxina semanal e diariamente varria e tirava o pó de minhas salas. Outra chave ficava com Turkey, por uma questão de conveniência. A terceira eu algumas vezes carregava em meu próprio bolso. A quarta eu não sabia quem possuía.
Então, numa manhã de domingo calhei de ir à igreja da Trindade para ouvir um célebre pregador. Como cheguei muito cedo ao local, pensei em ir até o meu escritório. Por sorte, tinha a chave comigo; mas, ao colocá-la na fechadura, notei que do outro lado algo impedia sua entrada. Bastante surpreso, chamei em voz alta; foi quando, para minha consternação, uma chave virou lá dentro; e, avançando seu rosto magro em minha direção e segurando a porta entreaberta, surgiu a imagem de Bartleby, em mangas de camisa e estranhamente desanimado, dizendo em voz baixa que sentia muito, mas que estava profundamente ocupado naquele momento e que preferia não permitir a minha entrada. Em mais uma ou duas palavras, ele ainda acrescentou que talvez fosse melhor que eu desse duas ou três voltas no quarteirão, depois do que ele provavelmente teria concluído o que estava fazendo.
Agora, a aparência totalmente inesperada de Bartleby, assombrando meu escritório numa manhã de domingo com seu cortês desleixo cadavérico, ainda que firme e calmo, teve um efeito tão estranho sobre mim, que eu imediatamente afastei-me de minha própria porta e fiz como ele desejava. Mas não sem uma forte revolta impotente contra a educada arrogância desse escriturário incompreensível. Na verdade, foi principalmente sua incrível delicadeza que não apenas me desarmou como, aparentemente, castrou-me. Porque eu considero castrado um homem que permite tranqüilamente que seu funcionário lhe dê ordens e diga-lhe para retirar-se de seu próprio imóvel. Além do mais, fui invadido por um enorme desconforto ao pensar no que Bartleby poderia estar fazendo em meu escritório em mangas de camisa e também em total desalinho numa manhã de domingo. Estaria acontecendo algo errado? Negativo, isso estava fora de questão. Não se podia pensar por um segundo sequer que Bartleby fosse uma pessoa imoral. Mas o que poderia ele estar fazendo ali? Copiando? Negativo novamente: quaisquer que pudessem ser suas excentricidades, Bartleby era eminentemente uma pessoa do maior decoro. Ele seria o último homem a sentar-se a sua mesa em qualquer estado minimamente próximo da nudez. Além disso, era domingo, e havia algo em Bartleby que impedia a suposição de que ele violaria as propriedades do dia com qualquer ocupação profana.
Entretanto, eu não tinha conseguido me tranqüilizar e, cheio de uma curiosidade incansável, ao menos retomei até a porta. Rapidamente, enfiei minha chave, abri a fechadura e entrei no escritório. Bartleby não estava à vista. Olhei ansiosamente ao redor, espiei atrás de seu biombo, mas era claro que ele não estava mais ali. Examinando o local mais cuidadosamente, supus que, por um período de tempo indefinido, Bartleby provavelmente comera, vestira-se e dormira em meu escritório, e tudo isso sem prato, espelho ou cama. O assento estofado de um velho sofá desconjuntado num canto dava a leve impressão de que um corpo magro havia se deitado ali. Enrolado embaixo de sua mesa, encontrei um cobertor; sobre a grelha da lareira vazia, uma lata de graxa e uma escova; numa cadeira, urna bacia, com sabão e uma toalha áspera; num jornal, migalhas de bolo de gengibre e um pedaço de queijo. Sim, pensei, é bastante evidente que Bartleby vinha fazendo dali o seu lar, seu quarto celibatário. Então, um pensamento tomou imediatamente o meu pensamento: que miseráveis falta de amigos e solidão se revelaram naquele instante! Sua pobreza é imensa; mas sua solidão, que terrível! Pense nisso. Num domingo, Wall Street é tão deserto como Petra* (*Petra: cidade da Antiguidade, entre o mar Vermelho e o mar Morto (atualmente na Jordânia), famosa por sua localização, em meio a falésias onde foram esculpidos numerosos túmulos e templos. N. do E.), e todas as noites de todos os dias são um imenso vazio. E até este prédio, que nos dias de semana reverbera vida e produtividade, à noite ecoa de tão absolutamente vazio e fica abandonado durante todo o dia de domingo. E é daqui que Bartleby faz seu lar; único espectador de uma solidão que ele já viu populosa
– uma espécie de Mário*  (*Mário: general e político romano (157 a.C. – 86 a.C.), que participou da terceira Guerra Púnica (149 a.C – 146 a.C), quando a cidade de Cartago, ao norte da África, foi totalmente arrasada pelos exércitos romanos. N. do E.) inocente e transformado, meditando sobre as ruínas de Cartago!
Pela primeira vez em minha vida, fui tomado por um sentimento de opressiva e doída melancolia. Antes, eu jamais havia sentido qualquer coisa além de uma tristeza meio desagradável, O laço comum da humanidade fez com que eu fosse atingido por um irresistível desalento. Uma melancolia fraternal! Pois tanto eu quanto Bartleby éramos filhos de Adão. Lembrei-me das sedas cintilantes e dos rostos luminosos que eu havia visto naquele dia, em roupas de gala, deslizando como cisnes pelo Mississippi da Broadway; comparei-os com o pálido escriturário e pensei comigo mesmo: ah, a felicidade corteja a luz, então acreditamos que o mundo é alegre; o sofrimento esconde-se a distância, então supomos que não haja sofrimento. Esses tristes pensamentos – quimeras, sem dúvida, de uma mente doente e tola – levaram a outras reflexões especiais, essas a respeito das excentricidades de Bartleby. Pairavam sobre mim pressentimentos de estranhas descobertas. A silhueta pálida do escriturário surgia estendida, entre estranhos que não se importavam com ele, envolvida em um sudário gelado. Repentinamente, senti-me atraído até a escrivaninha fechada de Bartleby, com a chave em evidência, à esquerda da fechadura.
Não era a minha intenção prejudicá-lo, nem buscar saciar uma curiosidade desalmada, pensei; além disso, a escrivaninha é minha, assim como o que ela contém. Logo, posso atrever-me a revistá-la. Tudo estava arrumado metodicamente, com os papéis guardados à mão. Os escaninhos eram fundos e, ao remover os arquivos de documentos, tateei em todos os compartimentos. Então senti algo ali e tirei-o para fora. Era um velho lenço colorido, pesado e amarrado em forma de trouxinha. Abri-o, e vi que eram suas economias.
Então relembrei todos os mistérios silenciosos que eu havia notado no homem. Recordei que ele apenas falava para dar respostas: que embora nos intervalos ele tivesse um bom tempo para si mesmo, eu nunca o vira lendo – não, nem sequer um jornal; que ele ficava longos períodos de pé, olhando para fora de sua pálida janela atrás do biombo, com vista para a parede de tijolos sem vida; eu tinha certeza de que ele jamais ia a qualquer refeitório ou restaurante, enquanto que seu rosto pálido indicava claramente que ele nunca bebia cerveja como Turkey, ou mesmo chá ou café, como outros homens; que ele nunca ia a qualquer lugar em especial que eu soubesse, jamais saía para uma caminhada, exceto, é verdade, no caso em questão; que declinara dizer quem era ou de onde vinha, ou mesmo se tinha algum parente no mundo; que apesar de ser tão magro e pálido, nunca reclamava de doença. E acima de tudo, lembrei-me de uma certa expressão inconsciente de – como definir? – combalida altivez, pode- se dizer, ou urna certa reserva austera de sua parte que me influenciara positivamente quanto a aceitar suas excentricidades, quando temi pedir-lhe para fazer a menor das tarefas para mim, ainda que por sua longa e contínua imobilidade atrás do biombo eu pudesse dizer que ele devia estar parado de pé numa daquelas suas sessões de contemplação da parede sem vida.
Ao relembrar todas essas coisas e compará-las com o fato recém-descoberto de que ele fizera de meu escritório sua residência fixa e lar, e sem esquecer de seus caprichos mórbidos; ao relembrar isso tudo, um sentimento de prudência começou a tomar conta de mim. Minhas primeiras reações haviam sido de pura melancolia e sincera piedade, mas na proporção em que a situação miserável de Bartleby crescia em minha imaginação, aquela mesma melancolia transformava-se em medo, e a piedade, em repulsa. É tão verdadeiro como terrível que, até certo ponto, a idéia ou a visão do sofrimento traz à tona nossos melhores sentimentos, mas, em alguns casos especiais, isso pára de ocorrer quando esse ponto é ultrapassado. Engana-se quem diz que isso se deve invariavelmente ao egoísmo inerente ao coração humano. Provém, antes, de uma certa desesperança de curar uma doença orgânica e grave. Para um ser sensível, a piedade não raramente se converte em dor. E quando se percebe finalmente que tal piedade não leva a um auxílio eficaz, o bom senso obriga a alma a livrar-se dela. O que eu vi naquela manhã convenceu- me de que o escriturário era vítima de uma doença mental inata e incurável. Eu poderia oferecer compaixão a seu corpo, mas não era seu corpo que lhe doía; era sua alma que sofria, e a sua alma eu não conseguia alcançar.
Não consegui cumprir meu objetivo de ir à igreja da Trindade naquela manhã. De algum modo, tudo o que eu havia visto me incapacitara momentaneamente de ir a uma igreja. Caminhei em direção à minha casa, pensando no que eu faria com Bartleby. Finalmente, decidi-me: faria calmamente algumas perguntas na manhã seguinte, a respeito de sua história etc., e se ele então se recusasse a respondê-las aberta e reservadamente (e eu supus que ele preferiria não respondê-las), eu lhe daria uma nota de vinte dólares além de qualquer quantia que pudesse dever a ele e diria que seus serviços não eram mais necessários; mas que se eu pudesse ajudá-lo de qualquer outra maneira, ficaria feliz em fazê-lo; especialmente se ele desejasse retornar para sua terra de origem, qualquer que fosse, eu ajudaria de bom grado com o pagamento das despesas. Além disso, se, depois de voltar para casa, ele algum dia precisasse de ajuda, uma carta de sua parte certamente receberia resposta.
Chegou a manhã seguinte.
– Bartleby – falei, chamando-o gentilmente por trás de seu biombo.
Sem resposta.
– Bartleby – falei de modo ainda mais gentil -, venha aqui. Não vou pedir-lhe que faça qualquer coisa que você prefira não fazer. Apenas desejo falar-lhe.
Com isso, ele surgiu silenciosamente diante de mim.
– Você pode dizer-me, Bartleby, onde nasceu’?
– Prefiro não dizer.
– Você me contaria alguma coisa sobre a sua vida?
– Prefiro não contar.
– Mas qual objeção razoável você pode ter quanto a falar comigo? Bartleby, eu me considero seu amigo.
Não olhou para mim enquanto eu falava, mas manteve o olhar fixo no busto de Cícero, que, do modo como me encontrava sentado, estava exatamente atrás de mim, cerca de quinze centímetros acima de minha cabeça.
– Qual é a sua resposta, Bartleby? – perguntei, depois de esperar um tempo considerável por uma manifestação de sua parte, durante o qual sua fisionomia manteve-se imóvel, a não ser por um levíssimo tremor de sua boca pálida.
– No momento, prefiro não responder – falou, retirando-se em seguida para seu canto.
Admito que foi uma fraqueza de minha parte, mas seu comportamento nessa ocasião irritou-me. Ele não apenas parecia esconder um certo desdém, como sua perversidade de- notou certa ingratidão de sua parte, considerando a complacência que ele vinha recebendo de mim.
Mais uma vez, sentei-me ruminando sobre o que eu deveria fazer. Mortificado que estava por seu comportamento e decidido que estivera a dispensá-lo quando entrei em meu escritório, eu, entretanto, sentia uma alteração supersticiosa nos batimentos do coração que me impedia de executar meu objetivo e fazia com que me sentisse cruel caso atrevesse-me a dizer uma única palavra dura contra o mais infeliz dos seres humanos. Por fim, puxei minha cadeira amigavelmente para trás de seu biombo, sentei-me e disse:
– Bartleby, não se preocupe, então, em contar-me sua história, mas deixe-me pedir- lhe, como um amigo, a seguir tanto quanto seja possível a rotina deste escritório. Diga que você ajudará a revisar documentos amanhã e depois; em resumo, diga que, dentro de um ou dois dias, você começará a ser um pouco razoável.., diga, Bartleby.
-Presentemente, prefiro não ser um pouco razoável – foi sua suave e cadavérica resposta.
Foi quando as portas vaivém se abriram, e Nippers aproximou-se. Parecia estar sofrendo por conta de uma noite mais maldormida do que o normal em razão de uma indigestão mais severa do que o normal. Ele entreouviu aquelas últimas palavras ditas por Bartleby.
– Prefere, é? – disse Nippers cerrando os dentes. – Eu sei o que preferiria para ele, se eu fosse o senhor – dirigiu-se a mim. – Eu sei o que eu prefiro para esta mula teimosa! O que é, senhor, diga-me, que ele prefere não fazer desta vez?
Bartleby não mexeu um músculo.
– Sr. Nippers – falei -, prefiro que o senhor se retire neste momento.
De algum modo, ultimamente eu tinha me deixado utilizar involuntariamente o verbo “preferir” em todos os tipos de ocasiões não exatamente adequadas. E tremi ao pensar que meu contato com o escriturário já havia afetado seriamente minhas faculdades mentais. E que outras e mais profundas aberrações a convivência ainda poderia produzir? Essa apreensão não deixou de ser eficaz na minha decisão por medidas sumárias.
Enquanto Nippers se afastava muito azedo e irritado, Turkey aproximava-se tranqüila e respeitosamente.
– Com o devido respeito, senhor – falou -, eu ontem estava pensando sobre Bartleby e acredito que se ele preferisse tomar uma boa cerveja todos os dias, ficaria em forma mais facilmente e ajudaria com a revisão dos documentos.
– Então você também pegou o verbo – falei, levemente empolgado.
– Com o devido respeito, que verbo, senhor? – perguntou Turkey, respeitosamente amontoando-se no exíguo espaço atrás do biombo e, ao fazê-lo, forçando-me a empurrar o escriturário. – Que verbo, senhor?
– Eu prefiro ficar sozinho aqui – disse Bartleby, como se estivesse ofendido por ter sua privacidade invadida.
– É este o verbo, Turkey – falei -, é este.
– Ah, preferir? Ah, sim… um verbo esquisito. Eu pessoalmente nunca o utilizo. Mas, senhor, como eu estava dizendo, se ele preferisse…
– Turkey – interrompi -, você pode se retirar, por gentileza?
– Ah, certamente, senhor, se o senhor assim preferir.
Quando ele empurrou a porta vaivém para sair, Nippers, da sua mesa, deu uma olhada em minha direção e perguntou-me se eu preferia que um certo documento fosse copiado em papel azul ou branco. Ele sequer acentuou ironicamente o preferia. Ficou claro que simplesmente havia escapado de sua boca. Pensei comigo mesmo que eu definitivamente precisava livrar-me de um homem demente que já havia em certo grau virado as línguas e quem sabe as cabeças de meus funcionários e até mesmo a minha. Mas considerei mais prudente não fazê-lo imediatamente.
No dia seguinte, percebi que Bartleby não fizera nada além de ficar parado de pé diante de sua janela contemplando sua parede sem vida. Questionado sobre por que não estava escrevendo, respondeu que decidira não mais escrever.
– Por quê? Mas o que é isso agora? O que vem a seguir?! – exclamei – Não vai mais escrever?
– Não mais.
– E qual é a razão?
– O senhor mesmo não vê a razão? – respondeu ele com indiferença.
Encarei-o fixamente e percebi que seus olhos pareciam sombrios e vidrados. Ocorreu-me imediatamente que sua aplicação sem precedentes de copiar ao lado de sua janela pouco iluminada nas suas primeiras semanas comigo poderia ter prejudicado sua visão temporariamente.
Isso me deixou comovido. Dei-lhe minhas condolências. Disse-lhe que evidentemente ele fizera bem de se abster de escrever durante um tempo e encorajei-o a aproveitar aquela oportunidade para exercitar-se saudavelmente ao ar livre. Isso, no entanto, ele não fez. Alguns dias após o ocorrido, na ausência de meus outros funcionários e estando muito apressado para despachar algumas cartas pelo correio, pensei que, por não ter nada mais a fazer, Bartleby certamente seria menos inflexível do que o normal e levaria aquelas cartas ao correio. Mas ele simplesmente negou- se a fazê-lo. Então, inconvenientemente, fui eu mesmo postá-las.
Passaram-se dias. Eu não era capaz de dizer se os olhos de Bartleby haviam melhorado ou não. Eu achava que sim, aparentemente. Mas quando lhe perguntei, ele não concedeu qualquer resposta. De qualquer modo, ele não fazia mais cópias. Finalmente, em resposta a meus pedidos, informou-me de que desistira permanentemente de fazer cópias.
– O quê’?! – exclamei. – Mesmo que seus olhos recuperem-se inteiramente, fiquem melhores do que nunca, você não vai mais fazer cópias?
– Desisti de fazer cópias – respondeu, retirando-se.
Ele permaneceu como sempre, feito um ornamento em meu escritório. Não, ele tornou-se ainda mais um ornamento do que antes – como se isso fosse possível. O que poderia ser feito? Ele não fazia nada no escritório: por que deveria permanecer lá? O fato é que ele havia, então, se tornado um peso morto para mim, não apenas tão inútil como um colar, mas também difícil de manter. Ainda assim, eu sentia por ele. Falo menos do que a verdade quando digo que seu modo de ser provocava-me desconforto. Se ele ao menos tivesse citado o nome de um amigo ou parente, eu lhes teria escrito e pedido que levassem o pobre rapaz para algum retiro conveniente. Mas ele parecia sozinho, absolutamente sozinho no universo. Um náufrago no meio do Atlântico. Por fim, necessidades ligadas ao meu negócio tiranizaram sobre quaisquer outras considerações. Do modo mais delicado que consegui, disse a Bartleby que num prazo de seis dias ele deveria deixar o escritório incondicionalmente. Avisei-lhe que deveria providenciar, nesse intervalo, uma nova morada. Ofereci-me para ajudar-lhe nessa empreitada, se ele desse o primeiro passo em direção à mudança.
– E quando você finalmente estiver fora daqui, Bartleby – acrescentei -, cuidarei para que você não fique totalmente desamparado. Lembre-se, seis dias a contar de hoje.
Ao final do prazo determinado, espiei atrás do biombo e, que surpresa!, Bartleby estava lá.
Abotoei o casaco e empertiguei-me; caminhei lentamente em sua direção, toquei-lhe no ombro e disse:
– Chegou a hora. Você precisa deixar este escritório. Sinto muito por você. Aqui está algum dinheiro, mas você deve ir embora.
– Prefiro não ir – respondeu, ainda virado de costas para mim.
– Você deve ir.
Ele permaneceu em silêncio.
Eu tinha, então, uma confiança ilimitada na simples honestidade deste homem. Ele freqüentemente devolvia-me centavos e xelins que eu costumava deixar cair no chão, uma vez que sou bastante descuidado ao abotoar minhas camisas. A medida que se seguiu não poderá, então, ser considerada como extraordinária.
– Bartleby – disse eu -, devo-lhe doze dólares por conta de seus serviços. Aqui estão trinta e dois; os vinte excedentes são seus. Você os aceitará? – estendi as notas em sua direção.
Mas ele não se mexeu.
– Vou deixá-los aqui, então – disse, colocando as notas debaixo de um peso de papel sobre a mesa. Apanhei o meu chapéu e a minha bengala e, caminhando para a porta, virei-me tranquilamente e acrescentei: – Depois de retirar as suas coisas do escritório, Bartleby, você evidentemente trancará a porta, já que todo mundo já foi para casa, com exceção de você. E, por favor, deixe a sua chave debaixo do capacho, para que eu possa pegá-la pela manhã. Provavelmente não o verei de novo, então, adeus. Se no futuro, em sua nova morada, eu puder lhe ser útil de alguma maneira, não deixe de me avisar por carta. Adeus, Bartleby, vá em paz.
Mas ele não disse uma palavra em resposta; como a última coluna de um templo em ruínas, ele permaneceu de pé, mudo e solitário, no meio da sala deserta.
Enquanto eu caminhava pensativo de volta para casa, minha vaidade sobrepujou minha piedade. Eu não podia deixar de me orgulhar do modo magistral como conseguira livrar-me de Bartleby. Digo magistral, e é assim que deve parecer-se para qualquer pensador imparcial. A beleza do meu procedimento parecia estar em sua perfeita tranqüilidade. Não houve ameaças vulgares, bravatas de qualquer espécie, intimidações coléricas, vaivéns pelas salas ou gritos e empurrões exigindo que Bartleby pegasse sua tralha e fosse embora. Nada do gênero. Sem levantar a voz ordenando que Bartleby partisse – como poderia fazer alguém menos talentoso -, concluí que ele deveria partir e, partindo desse princípio, elaborei tudo o que precisava ser dito. Quanto mais eu pensava no meu procedimento, mais ficava encantado com ele. Entretanto, na manhã seguinte, ao despertar, tinha minhas dúvidas. De algum modo, o sono havia dissipado a vaidade. Um dos momentos mais frescos e sábios na vida de um homem é logo depois que ele acorda pela manhã. Meu procedimento parecia-me mais perspicaz do que nunca – mas apenas na teoria. Como resultaria na prática… aí é que estava o problema. Era um pensamento verdadeiramente bonito, concluir pela partida de Bartleby; mas, afinal, aquela conclusão era apenas minha, e não de Bartleby. O ponto principal não era que eu tinha de concluir que ele devia deixar-me, mas se ele preferiria fazê-lo. Ele era mais um homem de preferências do que de conclusões.
Depois do desjejum, caminhei até o centro da cidade, pensando nos prós e contras. Ora eu pensava que teria sido um fracasso miserável, e que Bartleby estaria em meu escritório como sempre, ora parecia certo que eu veria sua cadeira vazia. Então segui andando de um lado para outro. Na esquina da Broadway com a Canal Street, vi um grupo bastante empolgado discutindo com entusiasmo.
Aposto que ele não vai – disse uma voz quando passei.
– Não vai? Apostado! – falei. – Mostre o seu dinheiro.
Eu estava colocando instintivamente a mão em meu bolso para mostrar a minha parte quando me lembrei que era dia de eleição. A conversa que eu entreouvira não tinha nada a ver com Bartleby, mas com o sucesso ou insucesso de algum candidato à prefeitura. Com o estado de espírito inquieto, eu havia, aparentemente, imaginado que toda a Broadway dividia a minha expectativa e debatia comigo a mesma pergunta. Segui adiante, bastante grato pelo fato de que o barulho da rua havia ocultado minha distração momentânea.
Como pretendia, cheguei à porta de meu escritório mais cedo do que de costume. Fiquei escutando do lado de fora por um instante. Tudo estava parado. Ele não devia estar mais ali, Tentei abrir a maçaneta. A porta estava trancada. Sim,o meu procedimento havia funcionado perfeitamente; ele realmente deveria ter desaparecido. Ainda assim, uma certa melancolia confundiu-se com meu sentimento de vitória: quase lamentei meu sucesso estupendo. Estava tateando sob o capacho a procura da chave, que Bartleby deveria ter deixado ali para mim, quando, acidentalmente, meu joelho bateu contra a porta, produzindo um ruído. Em resposta, veio uma voz de dentro:
– Ainda não, estou ocupado.
Era Bartleby.
Fui fulminado. Por um instante, fiquei como o homem que, com o cachimbo na boca, foi morto numa tarde de céu claro há muito tempo na Virgínia, atingido por um raio de verão; ele morreu em sua própria janela aberta e permaneceu encostado diante da deliciosa tarde quente até que alguém o tocou, e ele caiu.
– Ainda aqui! – murmurei afinal.
Mas, uma vez mais, obedecendo à impressionante ascendência que o impenetrável escriturário tinha sobre mim e da qual eu não conseguia escapar completamente apesar de minha irritação, desci lentamente as escadas e saí para a rua. E enquanto caminhava em volta do quarteirão, pensei no que deveria fazer a seguir quanto a essa confusão sem precedentes. Expulsá-lo literalmente empurrando-o para fora era algo que eu não poderia fazer; afastá-lo dizendo-lhe palavras obscenas não funcionaria; chamar a polícia era urna idéia desagradável; mas permitir que ele obtivesse seu triunfo cadavérico sobre mim… isso eu também não podia sequer cogitar.
O que havia a ser feito? Ou, se nada pudesse ser feito, havia algo mais a concluir a respeito daquilo? Sim, como antes eu havia concluído prospectivamente que Bartleby deveria partir, então agora eu deveria retrospectivamente decidir que ele iria embora. Na legítima execução dessa hipótese, eu deveria entrar em meu escritório muito apressado e, fingindo não ver Bartleby, andar diretamente contra ele como se ele fosse ar. Tal atitude definitivamente surtiria o efeito desejado. Era pouco provável que Bartleby pudesse resistir a tal aplicação da doutrina das decisões. Mas depois de pensar melhor, o sucesso do plano pareceu-me bastante duvidoso. Decidi discutir o assunto com ele novamente.
– Bartleby – falei, entrando no escritório com uma expressão severa, porém tranqüila -, estou seriamente descontente. Estou aflito, Bartleby. Eu fazia outro juízo de você. Imaginei-o como um cavalheiro de tal gentileza que em qualquer dilema delicado como este, uma simples sugestão seria suficiente – em resumo, uma indireta. Mas aparentemente estou enganado. Mas por que – acrescentei, sem disfarçar meu espanto – você sequer tocou no dinheiro? – apontei para as notas exatamente no lugar em que eu as havia deixado na noite anterior.
Ele não respondeu.
– Você vai ou não vai me deixar? – perguntei, agora num acesso de cólera, aproximando-me dele.
– Eu prefiro não deixá-lo – respondeu, enfatizando delicadamente a palavra não.
– Que direito você tem de ficar aqui? Você paga algum aluguel? Você paga meus impostos? Ou essa é sua propriedade?
Ele não respondeu.
– Você está pronto para voltar a escrever agora? Seus olhos se recuperaram? Você poderia copiar um pequeno documento para mim esta manhã? Ou ajudar-me a revisar algumas linhas? Ou ir até o correio? Em suma, você fará qualquer coisa que seja para justificar sua recusa em deixar este local?
Ele silenciosamente retirou-se para seu canto.
Eu agora estava num estado de ira tão grande que pensei ser prudente evitar quaisquer demonstrações de minha parte. Bartleby e eu estávamos a sós. Lembrei-me da tragédia do desafortunado Adams e do ainda mais desafortunado Colt no solitário escritório deste último; e de como o pobre Colt, sendo terrivelmente provocado por Adams e permitindo-se atingir um alto estado de nervosismo, viu-se surpreendentemente levado a cometer seu ato fatal – um ato que certamente homem algum poderia considerar mais deplorável do que seu próprio ator. Ocorreu-me muitas vezes durante minhas reflexões sobre o assunto que, se aquela discussão tivesse ocorrido em passeio público ou numa residência particular, o desfecho seria diferente. Foi a circunstância de estarem os dois a sós num escritório solitário, num andar alto de um edifício inteiramente desprovido de relações domésticas humanizadoras – um escritório sem tapetes, sem dúvida, e de aparência empoeirada e desagradável -, deve ter sido isso que ajudou a aumentar o irritável desespero do miserável Colt.
Mas quando esse velho Adão ressentido cresceu dentro de mim e tentou-me a respeito de Bartleby, eu o dominei e expulsei-o de mim. Como? Ora, simplesmente relembrando a ordem divina: “Este é meu mandamento: amai-vos uns aos outros”. Sim, foi isso o que me salvou. Exceto por considerações mais altas, a caridade frequentemente opera como um princípio vastamente sábio e prudente – uma grande proteção para quem a possui. Homens já cometeram assassinatos por causa de ciúme, e raiva, e ódio, e egoísmo, e orgulho espiritual, mas nenhum homem, do qual eu jamais tenha ouvido falar, cometeu um assassinato diabólico por causa da doce caridade. Então, o mero interesse próprio, se não há melhor razão para se evocar, deveria, especialmente com homens de temperamento forte, levar todos os seres a praticarem caridade e filantropia. De qualquer modo, na ocasião a que me refiro, esforcei-me para sufocar meus sentimentos de exasperação em relação ao escriturário interpretando sua conduta com benevolência. “Pobre rapaz, pobre rapaz!”, pensei eu, ele não é mal-intencionado. Além disso, viveu tempos difíceis, merece indulgência.
Esforcei-me também para ocupar-me imediatamente e, ao mesmo tempo, aliviar meu desânimo. Tentei acreditar que, durante a manhã, quando lhe parecesse agradável,
Bartleby, de iniciativa própria, surgiria de seu canto e marcharia decididamente em direção à porta. Mas, não. Meia hora passada do meio-dia, Turkey começou a ferver, derrubou seu tinteiro e transformou-se no turbulento de sempre; Nippers foi tomado pelo silêncio e pela cortesia; Ginger Nut devorou sua maçã do almoço; e Bartleby continuou parado diante de sua janela em uma de suas mais profundas contemplações da parede sem vida. Dava para acreditar naquilo? Deveria eu tomar conhecimento daquilo? Naquela tarde, deixei o escritório sem dirigir qualquer outra palavra a ele.
Passaram-se alguns dias, durante os quais, em intervalos de folga, eu dava uma olhada em Sobre a Vontade, de Edwards, e Sobre a Necessidade, de Priestley. Naquelas circunstâncias, esses livros estimulavam os bons sentimentos. Pouco a pouco, fui me convencendo de que meus problemas com o escriturário haviam todos sido predestinados a mim desde a eternidade e que Bartleby me havia sido designado por conta de algum propósito misterioso de uma sábia Providência, algo incompreensível para um simples mortal como eu. Sim, Bartleby, fique aí atrás de seu biombo, pensei; não vou mais persegui-lo; você é tão inofensivo e silencioso como qualquer uma dessas velhas cadeiras; em resumo, nunca me sinto to à vontade como quando sei que você está aqui. Ao menos eu vejo, eu sinto; eu compreendo o propósito predestinado da minha vida. Estou satisfeito. Outros podem ter tarefas mais relevantes a cumprir, mas a minha missão neste mundo, Bartleby, é fornecer-lhe um escritório para que você fique pelo tempo que considerar adequado.
Acredito que esse estado de espírito sábio e abençoado teria permanecido comigo não fosse pelas observações não-solicitadas e nada generosas impostas a mim por meus amigos profissionais que visitavam meu escritório. Mas assim ocorre com freqüência: o constante atrito de mentes de pouca luz enfraquece até mesmo as melhores resoluções dos mais generosos. Entretanto, para ser sincero, quando eu refletia sobre o assunto, não me parecia estranho que as pessoas que entravam em meu escritório ficassem impressionadas pela situação peculiar do incompreensível Bartleby e então ficassem tentadas a tecer observações sinistras a respeito dele. Algumas vezes, um advogado que tivesse negócios a tratar comigo procurava-me no escritório e encontrava lá apenas o escriturário. Então, tentava obter alguma informação precisa sobre onde eu estaria; mas, sem prestar atenção à conversa despropositada, Bartleby permanecia imóvel no meio da sala. Depois de observá-lo naquela posição durante um tempo, o advogado deixava o local, sabendo tanto quanto antes.
Algumas vezes, quando havia consultas em curso, e o ambiente estava repleto de advogados e testemunhas, com o trabalho andando a todo vapor, algum homem de lei profundamente ocupado via Bartleby inteiramente desocupado e pedia-lhe que fosse até o seu escritório (do homem de lei) pegar alguns documentos. Feito o pedido, Bartleby tranqüilamente declinava e permanecia tão ocioso como antes. Nesse momento, o advogado encarava-o perplexo e virava-se para mim. O que eu podia dizer? Por fim, fiquei sabendo que por todo o meu círculo de conhecidos profissionais corriam boatos sobre o que estava acontecendo em relação à estranha criatura que eu mantinha em meu escritório. Isso me deixou deveras preocupado. E quando fui assaltado pelo pensamento de que ele poderia ter uma vida muito longa e continuar ocupando minhas salas, e negando minha autoridade, e constrangendo meus visitantes, e escandalizando minha reputação profissional, e trazendo um ar sombrio ao local, mantendo corpo e alma juntos até o final com suas economias (porque sem dúvida ele não gastava mais do que cinco centavos por dia), e no final talvez viver mais do que eu e reivindicar a posse de meu escritório por direito de ocupação perpétua; conforme essas previsões obscuras tomavam mais e mais conta do meu pensamento, com meus amigos fazendo continuamente suas cruéis observações sobre a aparição em meu escritório, forjou-se em mim uma grande mudança. Decidi reunir todas as minhas faculdades e livrar-me para sempre daquele pesadelo intolerável.
Entretanto, antes de pensar em qualquer projeto complicado adaptado para esse fim, simplesmente sugeri a Bartleby a conveniência de sua partida definitiva. Num tom calmo e sério, recomendei que ele considerasse a idéia cuidadosamente e com maturidade. Mas depois de ter três dias para pensar no assunto, ele informou-me que sua determinação original permanecia a mesma. Em resumo, que ele ainda preferia continuar comigo.
O que farei? Perguntei a mim mesmo, abotoando meu casaco até o colarinho, O que farei? O que devo fazer? O que a consciência diz que devo fazer com esse homem, ou melhor, com esse fantasma? É imperativo que me livre dele, ele precisa ir. Mas, como? Você não pode enxotá-lo, o pobre, pálido, passivo mortal – você não enxotará uma criatura tão indefesa porta afora? Você não vai manchar sua honra com tamanha crueldade? Não, não vou, eu não posso fazer isso. É preferível deixá-lo viver e morrer aqui, e então sepultar seus restos na parede. O que você fará, então? Ele não vai ser mover nem mesmo com toda a sua argumentação. Subornos, ele os deixa debaixo de seu próprio peso de papel sobre a sua mesa. Em resumo, está bastante claro que ele prefere unir-se a você.  Então é preciso tomar uma atitude severa e eficaz. O quê? Você certamente não fará com que ele seja levado pelo colarinho por um policial e tenha sua palidez inocente condenada à prisão? E com que argumentos você poderia conseguir que isso fosse feito? Um vadio, seria ele? O quê? ele, um vadio, um errante, que se recusa a sair do lugar? É porque ele se nega a ser um errante, então, que você tenta enquadrá-lo como tal? Isso é muito absurdo. Falta de meios visíveis de subsistência: isso sim. Errado novamente: porque indubitavelmente ele sustenta a si mesmo, e essa é a única prova irrefutável que um homem pode apresentar a seu favor. Nada mais, então. Já que ele não vai me deixar, eu devo deixá-lo. Trocarei de escritório. Vou mudar- me para outro lugar e avisá-lo de que, se vier a encontrá-lo em minha nova sala, ele será tratado como um invasor qualquer.
Agindo como o planejado, no dia seguinte enviei-lhe esta mensagem: “Considero este escritório distante demais da prefeitura; o ar não é saudável. Em poucas palavras, proponho mudar meu escritório na próxima semana e não mais necessitarei de seus serviços. Digo-lhe isto agora para que possa procurar um novo local”.
Ele não respondeu, e nada mais foi dito. No dia indicado, contratei carros e homens e segui para meu escritório. Como havia poucos móveis, tudo foi retirado das salas em poucas horas. Durante todo o tempo, o escriturário permaneceu de pé atrás do biombo, o qual dei ordens para que fosse retirado por último. Foi removido e, ao ser dobrado como um imenso fólio, deixou-o como o ocupante imóvel de um ambiente vazio. Fiquei de pé na entrada observando-o por um instante, enquanto algo dentro de mim censurava-me.
Entrei novamente, com a mão no bolso e… e… o coração na boca.
– Adeus, Bartleby, estou indo… adeus, e que Deus o abençoe de alguma maneira. E tome isso – disse, colocando algum dinheiro em sua mão. Mas as notas caíram no chão, e, então, é estranho dizer, afastei-me daquele de quem eu tanto quisera livrar-me.
Estabelecido em meu novo escritório, por um ou dois dias mantive a porta trancada, e cada ruído de passos no corredor deixava- me sobressaltado. Quando voltava lá depois de qualquer curto período de ausência, parava por um momento na soleira da porta e escutava atentamente antes de enfiar a chave na fechadura. Mas esses medos eram desnecessários. Bartleby nunca se aproximou de mim.
Pensei que tudo estava indo bem, quando fui visitado por um estranho de aparência perturbada perguntando-me se eu era a pessoa que até recentemente ocupava salas no n°… da Wall Street.
Cheio de pressentimentos, respondi que sim.
– Então, senhor – disse o estranho, que se apresentou como advogado -, o senhor é responsável pelo homem que lá deixou. Ele se recusa a fazer qualquer cópia; recusa-se a fazer qualquer coisa; diz que prefere não fazer e recusa-se a deixar o local.
– Sinto muitíssimo, senhor – falei, fingindo tranqüilidade, porém tremendo por dentro -, mas, realmente, o homem a quem o senhor faz alusão não é nada meu… não tem comigo qualquer relação nem é meu aprendiz, para que o senhor considere-me responsável por ele.
– Por piedade, quem é ele?
– Eu certamente não tenho como informá-lo. Nada sei sobre ele. Já o contratei como copista, mas há um bom tempo que ele não faz nada para mim.
– Então cuidarei dele. Bom-dia, senhor.
Passaram-se muitos dias, e não ouvi mais notícias; embora eu sentisse freqüentemente um impulso caridoso de ir até o local e ver o pobre Bartleby, uma certa relutância, não sei por que, impedia-me de fazê-lo.
Está tudo acabado, a essa altura, pensei, finalmente, após mais uma semana sem receber qualquer notícia. Mas, ao chegar a minha sala no dia seguinte, encontrei várias pessoas esperando diante de minha porta num estado de alta excitação nervosa.
– Aquele é o homem, lá vem ele – gritou um deles primeiro, a quem eu reconheci como o advogado que me havia visitado sozinho anteriormente.
– O senhor deve tirá-lo de lá imediatamente, senhor – gritou um homem corpulento entre eles, avançando em minha direção, o qual eu sabia ser o senhorio do no… da Wall Street. – Estes senhores, meus inquilinos, não suportam mais a situação. O senhor B… – disse, apontando para o advogado – já o expulsou de sua sala, e agora ele insiste em assombrar todo o edifício, sentado nos corrimões das escadas durante o dia e dormindo na entrada à noite. Todos estão preocupados. Clientes estão abandonando os escritórios. Tememos inclusive que haja grandes confusões. O senhor deve fazer algo, e sem demora.
Recuei horrorizado com a torrente de reclamações e teria de bom grado trancado a porta atrás de mim em meu novo escritório. Em vão, insisti que Bartleby não era nada meu – não mais do que de qualquer outra pessoa. Em vão: que se soubesse, eu era a última pessoa a ter qualquer coisa a ver com ele, e eles me consideravam o responsável. Temeroso de ver-me exposto nos jornais (como um dos presentes ameaçou assustadoramente), pensei no assunto e disse, afinal, que, se o advogado me concedesse uma entrevista confidencial com o escriturário em seu próprio (do advogado) escritório, eu faria de tudo naquela tarde para livrá-los do aborrecimento de que reclamavam.
Subindo as escadas até meu antigo escritório, encontrei Bartleby sentado em silêncio no corrimão do patamar.
– O que você está fazendo aqui, Bartleby? – perguntei.
– Estou sentado no corrimão – respondeu calmamente.
Levei-o até a sala do advogado, que nos deixou a sós.
– Bartleby – falei -, você está ciente de que me provoca grande tormento ao insistir em ocupar a entrada do edifício depois de ter sido despedido do escritório?
Sem resposta.
– Agora, uma das duas coisas precisa ocorrer: ou você faz alguma coisa, ou algo será feito a você. Então, a que tipo de trabalho você gostaria de se dedicar? Você gostaria de voltar a fazer cópias para alguém?
– Não. Eu prefiro não fazer qualquer mudança.
– Você gostaria de um emprego num armazém?
– Fica-se muito isolado num trabalho desses. Não, eu não gostaria de um emprego desse tipo. Mas não sou exigente.
– Fica-se muito isolado! – gritei. – Mas você mantém-se isolado o tempo todo.
– Prefiro não trabalhar num armazém – respondeu, como se para deixar aquele detalhe resolvido de uma vez.
– Que tal tomar conta de um bar? Não há necessidade de forçar a vista num trabalho desses.
– Eu não gostaria nem um pouco disso. Embora, como falei antes, eu não seja exigente.
Sua rara eloqüência inspirou-me. Voltei à carga.
– Então você gostaria de viajar pelo país cobrando contas para os comerciantes? Isso faria bem à sua saúde.
– Não, eu preferiria fazer outra coisa.
– E o que lhe parece ir para a Europa como acompanhante, para entreter jovens cavalheiros com a sua conversa? Agrada-lhe a idéia?
– De modo algum. Isso me parece muito indefinido. Gosto de ser sedentário. Mas não sou exigente.
– Então você será sedentário! – gritei, perdendo completamente a paciência e, pela primeira vez em toda minha irritante ligação com ele, tendo um acesso de fúria. – Se você não deixar este local antes do anoitecer, vou me sentir realmente tentado a… a… a… deixar o local eu mesmo! – concluí, de modo bastante absurdo, sem saber que tipo de ameaça fazer para tentar transformar sua imobilidade em obediência.
Sem esperanças em quaisquer novas tentativas, decidi precipitadamente deixá-lo, quando me ocorreu uma última idéia, que eu já havia considerado anteriormente.
– Bartleby – falei, no tom mais gentil que consegui arranjar levando em conta as circunstâncias enervantes -, você vai embora para casa comigo agora. Não para o meu escritório, mas para minha casa, e permanecerá lá até que possamos decidir sobre uma solução conveniente para o seu caso com calma, sim? Venha, vamos começar a debater o assunto agora, imediatamente.
– Não. Presentemente prefiro não fazer qualquer mudança.
Nada respondi, mas consegui driblar a todos com eficácia graças à rapidez de minha fuga, saí correndo do edifício, corri pela Wall Street em direção à Broadway e, ao pular no primeiro ônibus, logo estava fora de alcance. Assim que consegui acalmar-me, percebi claramente que agora havia feito tudo o que estava em minhas mãos, tanto em relação aos pedidos do senhorio e seus inquilinos quanto ao meu próprio desejo e a meu senso de dever, para ajudar Bartleby e protegê-lo de toda perseguição. Agora esforçava-me para ficar inteiramente despreocupado e tranqüilo, e minha consciência aprovava meu esforço, embora eu não houvesse sido realmente tão bem-sucedido em minha tentativa como poderia desejar. Eu estava tão temeroso de ser novamente perseguido pelo senhorio irado e seus inquilinos exasperados que, deixando meus negócios nas mãos de Nippers durante alguns dias, percorri a parte alta da cidade e os subúrbios, em meu cabriolé; cruzei até Jersey City e Hoboken e fiz visitas rápidas a Manhattanville e Astoria. Na verdade, praticamente vivi em meu cabriolé durante esse período.
Quando retornei ao meu escritório, que surpresa! Sobre a mesa estava um bilhete do senhorio. Abri-o com as mãos trêmulas. A nota informava que o autor havia chamado a polícia e mandado Bartleby para a Prisão Municipal como vadio. Além disso, como eu sabia mais sobre ele do que qualquer outra pessoa, gostaria que eu fosse até o local e fizesse um relato adequado dos fatos. Essas notícias provocaram um efeito conflitante em mim. Inicialmente, indignei-me. Mas, afinal, quase aprovei o que havia sido feito. A disposição enérgica e sumária do senhorio levara-o a adotar um procedimento pelo qual não sei se eu mesmo teria optado. Ainda assim, em última instância, dadas as circunstâncias peculiares, parecia ser o único plano cabível.
Como fiquei sabendo mais tarde, o pobre escriturário, quando soube que seria levado à Prisão Municipal, não ofereceu a menor resistência, mas aquiesceu silenciosamente em seu modo pálido e imóvel.
Alguns dos espectadores misericordiosos e curiosos uniram-se ao grupo. Liderada por um dos policiais, de braços dados com Bartleby, a procissão silenciosa seguiu seu caminho através de todo barulho, calor e alegria das ruas vibrantes da tarde.
No mesmo dia em que recebi o bilhete fui até a Prisão Municipal. Procurei pelo oficial responsável, disse qual era o objetivo de minha visita, e fui informado de que o indivíduo por mim descrito realmente estava lá. Então assegurei ao funcionário que Bartleby era um homem absolutamente honesto e muito generoso, embora inexplicavelmente excêntrico. Contei-lhe tudo o que sabia e encerrei sugerindo a idéia de deixá-lo permanecer confinado do modo mais indulgente possível até que algo menos cruel pudesse ser feito – embora na realidade eu mal soubesse dizer o quê. Em todo caso, se nada mais pudesse ser decidido a respeito, o asilo dos pobres deveria recebê-lo. Então pedi para ter uma entrevista com ele.
Por não estar preso sob qualquer acusação grave e mostrar-se completamente tranqüilo e inofensivo, Bartleby tinha permissão para andar livremente pela prisão e especialmente nos pátios fechados com grama. Foi onde o encontrei, sozinho no mais silencioso dos pátios, o rosto voltado para um grande muro, enquanto ao redor, das estreitas brechas das janelas da prisão, pensei ter visto observarem- no os olhos de assassinos e ladrões.
– Bartleby!
– Eu conheço você – disse ele, sem virar-se para olhar – e não quero lhe dizer nada.
– Não fui eu quem o trouxe para cá, Bartleby – falei, profundamente ferido por sua suspeita implícita. – E, para você, este não deve ser um lugar tão vil. Ficar aqui não é vergonhoso para você. Veja, não é um lugar tão triste como se pode imaginar. Olhe, ali está o céu, e aqui, o gramado.
– Eu sei onde estou – ele respondeu. Mas nada mais disse, então o deixei.
Quando voltei ao corredor, um homem gordo e forte, de avental, veio até mim e, apontando com o dedão sobre o ombro, perguntou-me:
– Ele é seu amigo?
-Sim.
– Ele quer morrer de fome? Se quiser, deixe-o viver com a comida da prisão, é o que basta.
– Quem é o senhor? – perguntei, sem saber o que pensar de alguém que falava de modo tão pouco oficial num lugar daqueles.
– Sou o homem-da-bóia. Alguns cavalheiros que têm amigos aqui me contratam para fornecer-lhes algo melhor para comer.
– Isso é verdade? – questionei, virando- me para o carcereiro.
Ele disse que era.
– Então – falei, colocando algumas pratas na mão do homem-da-bóia (porque era assim que o chamavam) -, quero que você dê uma atenção especial ao meu amigo. Dê-lhe a melhor comida que conseguir. E seja muito educado com ele.
– O senhor pode me apresentar a ele? – perguntou o homem-da-bóia, olhando para mim com uma expressão que parecia dizer que ele estava impaciente por uma oportunidade de me dar uma demonstração de sua civilidade.
Pensando que seria bom para o escriturário, aquiesci. Perguntei o nome do homem- da- bóia e fui com ele até onde estava Bartleby.
– Bartleby, este é o Sr. Cutlets* (* Cutlets, em inglês, significa “costeletas”. N. do T.); ele vai lhe ser muito útil.
– Seu criado, senhor, seu criado – disse o homem-da-bóia, fazendo uma profunda reverência com o seu avental. – Espero que o senhor considere o local agradável, senhor. Ambientes espaçosos, apartamentos frescos, senhor. Espero que o senhor permaneça conosco durante um tempo. Tente tornar sua estada agradável. Eu e a sra. Cutlets podemos ter o prazer de sua companhia para o jantar, senhor, na sala particular da sra. Cutlets?
– Prefiro não jantar hoje – disse Bartleby, virando-se -, não me cairia bem. Não estou habituado a jantares – assim dizendo, caminhou lentamente para o lado oposto do pátio fechado e ficou parado encarando o muro.
– Como assim? – perguntou o homem-da-bóia, dirigindo-se a mim com um olhar de espanto. – Ele é estranho, não é?
– Acho que ele é um pouco perturbado
– falei, tristemente.
– Perturbado? Perturbado, é? Bem, palavra de honra, pensei que aquele seu amigo era um cavalheiro falsário. Eles são sempre pálidos e educados, os falsários. Não consigo deixar de ter pena deles… não consigo, senhor. O senhor conheceu Monroe Edwards? – acrescentou comovido, fazendo urna pausa.
Então, pousou a mão piedosamente em meu ombro e suspirou:
– Ele morreu de tuberculose, em Sing Sing
Então o senhor não era conhecido de Monroe?
– Não, nunca me relacionei socialmente com qualquer falsário. Mas não posso mais permanecer aqui. Cuide do meu amigo ali. Você não perderá por fazê-lo. Voltaremos a nos ver.
Alguns dias depois disso, voltei a obter autorização para entrar na prisão e andei pelos corredores em busca de Bartleby, mas não o encontrei.
– Vi-o saindo de sua cela não faz muito tempo – disse-me um carcereiro. – Talvez ele tenha ido matar tempo no pátio.
Então fui naquela direção.
– O senhor está procurando pelo mudinho? – perguntou um outro carcereiro que passou por mim. – Ele está lá, dormindo naquele pátio. Não faz vinte minutos desde que o vi deitar-se.
O pátio estava completamente silencioso. Não era acessível aos prisioneiros comuns. Os muros ao redor, de espessura impressionante, isolavam todos os sons atrás deles. O estilo egípcio da alvenaria pesava sobre mim de modo lúgubre, mas um suave gramado encarcerado brotava sob os pés. Era como se o coração das eternas pirâmides, por alguma estranha magia, fizesse brotar, através das fendas, sementes de grama largadas ali por pássaros.
Estranhamente enroscado ao pé do muro, com as pernas encolhidas e deitado de lado, a cabeça tocando as pedras frias, avistei o enfraquecido Bartleby. Não havia qualquer movimento. Parei um pouco e então me aproximei. Inclinei-me e vi que seus olhos turvos estavam abertos. Apesar disso, ele parecia profundamente adormecido. Algo me levou a tocá-lo. Peguei a sua mão, e um arrepio subiu pelo meu braço e desceu pela minha espinha até os meus pés.
O rosto redondo do homem-da-bóia estava me olhando agora.
– A comida dele está pronta. Ele não vai comer hoje também? Ou ele vive sem comer?
– Vive sem comer – falei, fechando os olhos.
– Ei! Ele está dormindo, não é?
– Com reis e conselheiros – murmurei.

Parece desnecessário dar prosseguimento a essa história. A imaginação fornece prontamente a imagem miserável do enterro de Bartleby. Mas antes de me despedir do leitor, deixe-me dizer que, se esta pequena narrativa interessou-o suficientemente para despertar curiosidade sobre quem era Bartleby e que tipo de vida ele levava antes de o presente narrador conhecê-lo, posso apenas responder que partilho completamente dessa curiosidade, mas sou totalmente incapaz de satisfazê-la. Embora quanto a isso eu não saiba ao certo se devo divulgar um pequeno boato que chegou aos meus ouvidos alguns meses depois do falecimento do escriturário. Nunca pude verificar as fontes da história, portanto não posso dizer quão verdadeira ela é. Mas considerando que este relato vago não deixou de ter um estranho e sugestivo interesse para mim, embora triste, pode funcionar da mesma maneira com outras pessoas. Então vou mencioná-lo brevemente. O relato foi o seguinte: Bartleby havia sido um funcionário na Seção de Cartas Extraviadas em Washington, da qual fora afastado repentinamente por conta de uma mudança na administração.
Quando penso sobre esse boato, não posso expressar adequadamente as emoções que tomam conta de mim. Cartas extraviadas! Isso não se parece com homens extraviados? Pense num homem cuja natureza e má-sorte fizeram tender a uma pálida desesperança – pode qualquer trabalho parecer mais adequado para aumentar essa desesperança do que lidar continuamente com essas cartas extraviadas e classificá-las para as chamas? Pois elas são incineradas anualmente em abundância. Algumas vezes, o pálido funcionário encontra um anel dentro do papel dobrado – o dedo a que se destinava, talvez, esteja apodrecendo debaixo da terra; uma nota bancária enviada em rápida caridade – aquele a quem iria aliviar já não come nem passa fome; perdão para aqueles que morreram em desespero; boas novas para os que morreram sem assistência em calamidades. Com mensagens de vida, essas cartas corriam para a morte.
Ah, Bartleby! Ah, humanidade!

  
  
A VELHA E A ARANHA

Mia Couto

Deu-se em época onde o tempo nunca chegou. Está-se escrevendo, ainda por mostrar a redigida verdade. O tudo que foi, será que aconteceu? Começo na velha, sua enrugada caligrafia. Oculta de face, ela entretinha seus silêncios numa casinha tão pequena, tão mínima que se ouviam as paredes roçarem, umas de encontro às outras. O antigamente ali se arrumava. A poeira, madrugadora, competia com o cacimbo. A mulher só morava em seu assento, sem desperdiçar nem um gesto. Em ocasiões poucas, ela sacudia as moscas que lhe cobiçavam as feridas das pernas. Sentada, imovente, a mulher presenciava-se sonhar. Naquela inteira solidão, ela via seu filho regressando. Ele se dera às tropas, serviço de tiros.
– Esta noite chega Antoninho. Vem todo de farda, sacudu.
Para receber António ela aprontava o vestido mais a jeito de ser roupa. Azul-azulinho. O vestido saía da caixa para compor sua fantasia. Depois, em triste suspiro, a roupa da ilusão voltava aos guardos.
– Depressa-te Antoninho, a minha vida está-te à espera.
Mas era mais as esperas do que as horas. E o cansaço era sua única caricia. Ela adormecia-se, um leve sorriso meninando-lhe o rosto. E assim por nenhum diante. Desconhece-se a data, talvez nem tenha havido, mas num dos seus olhares demorados, a velha encontrou um brilho cintilando num canto do tecto. Era uma teia de aranha. Ali onde apenas o escuro fazia esquina, havia agora a alma de uma luz, flor em fundo de cinza. A velha levantou-se para mais olhar o achado. Não era a curiosidade que lhe puxava o movimento. Assustava-lhe a sua transparência demasiada. E, de logo, lhe surgiu a pergunta que luz tecera aquele bordado? Não podia ser obra de bicho. Não. Aquilo era trabalho para ser feito por espirito, criaturamente. A teia podia só ser um sinal, uma prova de promessa. Decidiu-se então a velha surpreender o autor da maravilha. A partir dessa tarde, seus olhos emboscaram o tempo, no degrau de cada minuto. Esquecida do sono e do sustento, não houve nunca sentinela mais atenta. Até que, certa vez, , se escutou um rumor quase arrependido, desses feitos para ser ouvido apenas pelos bichos caçadores. Por uma breve fresta se injanelava uma aranha. Era de um verde pequenino, quase singelo. Com vagaroso gesto a velha foi tirando o vestido do caixote. Usava os mais lentos gestos, fosse para o bicho não levar susto.
– Qualquer uma coisa vai acontecer!
Era suspeita que ela bem sabia. Confirmou-se quando as duas, mulher e aranha, se olharam de frente. E se entregaram em fundo entendimento, trocando muda conversa de mães. A velha sentiu o bicho pedia-lhe que ficasse quieta, tão quieta que talvez qualquer coisa pudesse acontecer. Então ela se fez exacta, intranseunte. As moscas, no sobrevoo das feridas, estranharam nem serem sacudidas. Foi quando passos de bota lhe entraram na escuta. Antoninho! A velha esmerava-se na sua imobilidade para que o regresso se completasse, fosse o avesso de um nascer. E lhe vieram as dores, iguais, as mesmas com que ele se havia arrancado da sua carne. Encontraram a velha em estado de retrato, ao dispor da poeira. Em todo o seu redor, envolvente, uma espessa teia. Era como um cacimbo, a memória de uma fumaragem. E a seu lado, sem que ninguém vislumbrasse entendimento, estava um par de botas negras, lustradas, sem gota de poeira.

  

LIXO, LIXADO

Mia Couto

Orolando Mapanga não tinha onde cair vivo? É a impura verdade. Dele se fica sabendo que não existe pobreza de espírito. O que há é miséria sem espírito. O caso sendo universátil merece as tantas linhas. Pois o que importa não é o acontecimento mas a gente que há no não.acontecer da vida. Lugar de viver de Orolando era na lixeira, lá no interior, primeira transversal, à direita. Com boas vistas para o mar, mesmo na vertente de um monte de desperdicio. Apanhando boa brisa, mau grado os péssimos odores. Ali ele despachava os seus afazeres. Ao fim da tarde, saía a procurar restos de comida, gordurazinhas, singelas putrefacções. Raspava o fundo das latas, auscultava o ventre dos sacos. Ao ler seu constante sorriso, dir-se-ia que a felicidade é coisa encontrável mesmo na imundície. Orolando bem que defendia as vantagens do lugar:
– Aqui não chega nenhum bandido.
Lugar seguro de viver, isso ele garantia. Sossegado, também. Só no fim da madrugada o silêncio se sujava com os camiões trazendo o lixo. Mas, para ele, aquele barulho era o anunciar da mantimentação. Nunca se aproximou dos camiões. Ele não queria mostrar a sua vivência a ninguém, chamar a inveja dos outros. Essa gente quer coisas completas, cheias. A mim me basta o bocadinho da metade era o pensar dele enquanto empurrava um velho carrinho de mão pelas ruelas da lixeira. Outra vantagem era a guerra morar longe. É verdade que ali sempre se escutavam disparos. Mas era coisa da distancia, lá no lugar dos citadinos. Certa noite, ao buscar adomercimento, Mapanga escutou um ronco.
– É um porco, isso.
Sabia, o campo  lhe ensinara. Voz de bicho era sua sapiência. Pelo cantar de uma só galinha ela adivinhava o tamanho de toda a criação. Pelo balido do cabrito ele sabia a cor do bicho. Desta vez, porém, ao invés da doce lembrança dos campos, seus olhos se nevoaram de ódio. Afinal, havia outro ser disputando as sobras. E ali mesmo jurou morte ao intruso. Desde então se dedicou a perseguir o suíno. Saía manhã cedinho à procura dele. A lixeira nunca lhe parecera tão grande. Ele conhecia os recantos, os fedores, os charcos. Porém, não havia maneira. O bicho esburacava nos monturos, sacana, não ficava nem rasto do cheiro. Vantagem do porco é ter um focinho polivalente, dá para escavar também. Até que, numa madrugada, Orolando desapertou com um bafo que se despejava em seu rosto. Berrou, borrou-se.
– Maiuê, as hienas me comem o nariz!
Palpou  o escuro, deu de mãos numa pele lisa, agarrou com força. Foi como se espremesse um saco cheio de gritos. Era o porco em aflição. Segurou a presa com força, que a bicheza é inteligente há muito mais tempo que os homens. Amarrou-lhe as pernas e ficou-se longo tempo a contemplar a berraria do prisioneiro. Primeiro, lhe chegou um sentimento que há muito tempo não experimentava. Ali estava um vencido implorando as clemencias. Gozou aquele poder, em desconhecimento fundo de sua alma. Afinal, agora ele era proprietário, não de restos mas de uma vida inteira e recheada. Enquanto matutinava este sentimento, de quando em quando, despachava uns pontapés no bicho. Nesse dia, nem saiu a procurar abastecimento. Só ficou ali, olhando o novo habitante, escolhendo o destino a lhe aplicar. Indecidia-se morte haveria de ser. Mas o porco merecia ser comido? Deixou o despacho para mais tarde aquela era sentença que não viria do pensamento. A noite chegou, cansada do seu trabalho na outra face do mundo. Orolando Mapanga anotou o frio, juntou velhos jornais à sua volta. Mas o cacimbo lhe trouxe arrepios, esgotados que estavam seus agasalhos. Então ele se chegou ao porco, abraçou-lhe como  só merece uma mulher. E, aos poucos, se foi contagiando com o quentinho  de uma outra vida. No seguinte dia, ele se polemicava mais vale a fome ou o calor de uma companhia? Pelo sim pelo talvez, decidiu adiar a sentença do bicho. E quando, entre os lixos, descobriu uma velha corda, lhe deu uso de trela e levou o suíno a passear. Mesma coisa os brancos fazem com os cães. O bicho de estimação mereceu até nome téksmanta. [Texmanta nome de uma fabrica textil em Moçambique] Agora, quem passar pela lixeira pode ver um porco, com dignidade canina, encaminhando seu dono pelos detritos, oferecendo seu faro para a escolha da migalhas da sobrevivência. Dizem o Mapanga se vai esquecendo da lingua humana, soletrando só a fonética do bicho. Afinal, vivendo na porcaria ele combina melhor com o idioma dos porcos é o parecer dos trabalhadores do lixo quando se despedem dos domínios de Orolando Mapanga.

 

OS INFELIZES CÁLCULOS DA FELICIDADE

Mia Couto

O homem da história é chamado Julio Novesfora. Noutras falas o mestre Novesfora. Homem bastante matemático, vivendo na quantidade exacta, morando sempre no acertado lugar. O mundo, para ele, estava posto em equação de infinito grau. Qualquer situação lhe algebrava o pensamento. Integrais, derivadas, matrizes para tudo existia a devida fórmula. A maior parte das vezes mesmo ele nem incomodava os neurónios:
– É conta que se faz sem cabeça.
Doseava o coração em aplicações regradas, reduzida a paixão ao seu equivalente numérico. Amores, mulheres, filhos tudo isso era hipótese nula. O sentimento, dizia ele, não tem logaritmo. Por isso, nem se justifica a sua equação. Desde menino se abstivera de afectos. Do ponto de vista da algebra, dizia, a ternura é um absurdo. Como o zero negativo. Vocês vejam, dizia ele aos alunos a erva não se enerva, mesmo sabendo-se acabada em ruminagem de boi. E a cobra morde sem ódio. É só o justo praticar da dentadura injectavel dela. Na natureza não se concebe sentimento. Assim, a vida prosseguia e Julio Novesfora era nela um aguarda-factos. Certa vez, porém, o mestre se apaixonou por uma aluna, menina de incorrecta idade, toda a gente advertia essa menina é mais que nova, não dá para si.
– Faça as contas mestre.
Mas o mestre já perdera o calculo. Desvalessem os razoáveis conselhos. Ainda mais grave ele perdia o matemático tino. Já nem sabia o abecedário dos números. Seu pensamento perdia as limpezas da lógica. Dizia coisas sem pés. Parecia, naquele caso, se confirmar o lema quanto mais sexo menos nexo. Agora, a razão vinha tarde de mais. O mestre já tinha traçado a hipotenusa à menina. Em folgas e folguedos, Julio Novesfora se afastava dos rigores da geometria. O oito deitado é um infinito. E, assim, o professor ataratonto, relembrava:
– A paixão é o mundo a dividir por zero.
Não questionassem era aquela a sua paixão. Aquilo era um amor idimensional, desses para os quais nem tanto há mar, nem tanto há guerra. Chamaram um seu tio, único familiar que parecia merecer-lhe as autoritárias confianças. O tio lhe aplicou muita sabedoria, doutrinas de por facto e roubar argumento. Mas o matemático resistia:
– Se reparar, tio, é a primeira vez que estou a viver.
Corolariamente, é natural que cometa erros.
– Mas, sobrinho, você sempre foi de calculo. Faça agora contas à sua vida.
– Essa conta tio, não se faz de cabeça. Faz-se de coração.
O professor demonstrava seu axioma, a irresoluvel paixão pela desidosa menina. Tinha experimentado a fruta nessa altura que o Verão ainda está trabalhando nos açucares da polpa. E de tão regalado, arregalava os olhos. Estava com a cabeça lotada daquela arrebitada menina. O tio ainda desfilou avisos não vislumbrava ele o perigo de um desfecho desilusionista? Não sabia ele que toda a mulher saborosa é dissaborosa? Que o amor é falso como um tecto. Cautela, sobrinho, olho por olho, dente prudente. Novesfora, porém, se renitentava, inóxidável. E o tio foi dali para a sua vida. Os namoros prosseguiram. O mestre levava a menina para a margem do mar onde os coqueiros se vergavam, rumorosos, dando um fingimento de frescura.
– Para bem amar não há como ao pé do mar, ditava ele.
A menina só respondia coisas simples, singelices. Que ela gostava do Verão.
– Do Inverno gosto é para chorar. As lágrimas, no frio, me saem grossas, cheiinhas de água.
A menina falava e o mestre Novesfora ia passeando as mãos pelo corpo dela, mais aplicado que cego lendo braille.
– Vai falando, não pare ¬ pedia ele enquanto divertia os dedos pelas secretas humidades da menina. Gostava dessa fingida distracção dela, seus actos lhe pareciam menos pecaminosos. Os transeuntes passavam, deitando culpas no velho professor. Aquilo é idade para nenhumas-vergonhas? Outros faziam graça:
– Sexagenário ou sexogenário?
O mestre se desimportava. Recolhia a lição do embondeiro que é grande mas não dá sombra nenhuma. Vontade de festejar deve eclodir antes de acabar o baile. Tanto tempo decorrera em sua vida e tão pouco tempo tivera para viver. Tudo estando ao alcance da felicidade porque motivo se usufruem tão poucas alegrias? Mas o sapo não sonha com charco se alaga nele. E agora que ele tinha a mão na moça é que iria parar? Uma noite, estando ela em seu leito, estranhos receios invadiram o professor essa menina vai fugir, desaparecida como o arco-íris nas traeiras da chuva. Afinal, os outros bem tinham razão chega sempre o momento em que o amendoim se separa da casca. Novesfora nem chegou de entrar no sono, tal lhe doeram as suspeitas do desfecho. Passaram-se os dias. Até que, certa vez, sob a sombra de um coqueiro, se escutaram os acordes de um lamentochão. O professor carpia as já previsiveis mágoas? Foram a ver, munidos de consolos. Encontraram não o professor mas a menina derramada em pranto, mais triste que cego sentado em miradouro. Se aproximaram, lhe tocaram o ombro. O que passara, então? Onde estava o mestre?
– Ele foi, partiu com outra.
Resposta espantável afinal, o professor é que se fora, no embora, sem remédio. E partira como? Se ainda ontem ele aplicava a ventosa naquele lugar? A ditosa namorada respondeu que ele se fora com outra, extranumerária. E que esta seria ainda muito mais nova, estreável como uma manhã de Domingo. Provado o doce do fruto do verde se quer é o sabor da flor. Enquanto a lagrimosa encharcava réstias de palavras os presentes se foram afastando. Se descuidavam do caso, deixando a menina sob a sombra do coqueiro, solitária e sózinha, no cenário de sua imprevista tristeza. Era Inverno, estação preferida por suas lágrimas.

CARTA

Mia Couto

A velha dobrou as pernas como se dobrasse os séculos. Ela sofria doença do chão, mais e de mais se deixando nos caídos. Amparava-se em poeiras, seria para se acostumar à cova, na subfície do mundo?
– Me leia a carta. Me entregava o papel marrotado, dobrado em mil sujidades. Era a Carta de seu filho, Ezequiel. Ele se longeara, de farda, cabelo no zero. A carta, ele a enviara fazia anos muito coçados. Sempre era a mesma, já eu lhe conhecia de memória, vírgula a vírgula.
– Outra vez, mamã Cacilda?
– Sim, maistravez.
Sentei o papel sob os olhos, fingi acarinhar o desenho das letras. Quase nem se viam, suadas que estavam. Dormiam sob o lenço de Cacilda, desde que chegara a guerra. Essas letras cheiram a pólvora, me rodilham o coração. Era o dito da velha. Agora, passados os tempos, aquele papel era a única prova do seu Ezequiel. Parecia que só pelo escrito, sempre mais desbotado, seu filho acedia à existencia. Nas primeiras vezes eu até me procedia à leitura, traduzindo a autêntica versão do pequeno soldado. Eram letras incertinhas, pareciam crianças saindo da formatura. Juntavam-se ali mais erros que palavras. O recheio nem era maior que o formato. Porque naquela escrita não havia nem linha de ternura. O soldado aprendera a guerra desaprendendo o amor? Em Ezequiel, morrera o filho para nascer o tropeiro? Nas primeiras leituras, meu coração muito se apertava em inventadas dedicatórias aquela mãe. Enquanto lia, eu espreitava o rosto da idosa senhora, tentando escutar uma ruga de tristeza. Nada. A velha se imovia, como se tivesse saudade da morte. Seus olhos não mencionavam nenhuma dor. Eu tentava um alivio, desculpar o menino que não sobrevivera à farda. Nem se entristenha, mamã Cacilda. Também, maneira como carregaram esse menino para a tropa! Sem camisa, sem mala, sem notícia. Atirado para os fundos do camião como se faz às encomendas sem endereço.
– Entenda, mamã Cacilda.
Mas ela já dormia, deitada em antiquíssima sombra. Ou mentia que Dormia, debruçada na varanda da alma? Fingia, a velha. Como o rio, num açude, se disfarça de lagoa. Depois, ela regressava às pálpebras, me apressava.
– Continua. Por que paraste?
Já não restava nada que ler. Era só o gorduroso gatafunho, despedida Sem nenhum beijo. Pode a carta de um saudoso filho terminar assim «unidade, trabalho, vigilância»? Mas a velha insistia, cismalhava. Eu que lesse, toda a gente sabe, as letras igualam as estrelas mesmo poucas são infinitas. Eu lhe fosse paciente, pobre mãe, sem nenhuma escola. Foi então que passei a alongar aquela tinta, amolecendo as reais palavras. Inventava. Em cada leitura, uma nova carta surgia da velha missiva. E o Ezequiel, em minha imagináutica, ganhava os infindos modos de ser filho, homem com méritos para permanecer menino. Cacilda escutava num embalo, houvessem em minha voz ondas de um sepultado mar. Ela embarcava de visita a seu filho, tudo se passando na bondade de uma mentira. Diz-se na própria doideira dos vamos loucurando. Até, um dia, me trouxeram notícia. Ezequiel perdera, para sempre, a existencia. Ele se desfechara em incógnitos matos, vitima dos bandos. A mãe nem suspeitava. Perguntei desconhecia-se o paradeiro dela. Ficasse eu atribuido de lhe entregar o escuro anúncio. Esperei. Nesse fim de tardinha, porém, mamã Cacilda não compareceu em minha casa. Assustei adivinhara ela o destino do Ezequiel? Quem conhece os poderes de uma mãe em exercicio de saudade? Decidi ir ao seu lugar. Parti ainda restavam manchas do poente. Cacilda cozinhava uns míseros grãos, ementa de passarinho.
– Senta, meu filho, fica servido, não custa dividir pobrezas.
Fui ficando, me compondo de coragem. Como podia eu deflagrar aquele luto? Comemos. Melhor fingimos comer. Faz conta é uma refeição, meu filho. Faz conta. Modo que eu vivo, fazendo de conta.
– E agora, diz porque vieste nesta minha casa?
Olhei o chão, o mundo escapava pelo fundo. Ela venceu o silêncio.
– Me vens ler o meu filho?
Acenei que sim. Aceitei o velho papel mas demorei a começar. Eu queria acertar os meus tons, evitando o emergir de alguma tremura. Finalmente, atravessei a escrita, ao avesso da verdade. Trouxe as novas do filho, seus consecutivos heroísmos. Ele, o mais bravo, mais bondoso, mais único. Como sempre, a mãe escutou em qualificado silêncio. Às vezes, no colorir de um parágrafo, ela sorria sempre igual, esse meu filho. Eu me parabendizia, cumprida a missão do fingimento. Me despedi, quase em alívio. Foi então, em derradeiro relance, que eu vi a velha mãe lançava a carta sobre a fogueira. Ao meu virar, ela emendou o gesto. O papel demorou um instante a ser mastigado pelo fogo. Nesse brevíssimo segundo, eu anotei a lágrima pingando sobre a esteira. Ela fingiu tirar um fumo do rosto, fez conta que metia a carta sob o lenço. Me voltei a despedir, fazendo de conta que aquele adeus era igual aos todos que já lhe concedera.
 

SANGUE DA AVÓ MANCHANDO A ALCATIFA

Mia Couto

Siga-se o improvérbio dá-se o braço e logo querem a mão. Afinal, quem tudo perde, tudo quer. Contarei o episódio evitando juntar o inutil ao desagradável. Veremos, no final sem contas, que o ultimo a melhorar é aquele que ri. Mandaram vir para Maputo a avó Carolina. Razões de guerra. A velha mantinha magras sobrevivências lá, no interior, em terra mais frequentada por balas que por chuva. Além disso, a avó estava bastante cheia de idade. Carolina merecia as penas. A vovó chegou e logo se admirou dos luxos da familia. Alcatifas, mármores, carros, uisques tudo abundava. Nos principios, ela muito se orgulhou daquelas riquezas. A Independencia, afinal, não tinha sido para o povo viver bem? Mas depois, a velha se foi duvidando. Afinal, de onde vinham tantas vaidades? E porque razão os tesouros desta vida não se distribuem pelos todos? Carolina, calada em si, não desistia de se perguntar. Parecia demorar-se em estado de domingo. Mas, por dentro, os mistérios lhe davam serviço. Na aldeia, a velha muito elogiara a militancia dos filhos citadinos, comentando os seus sacrificios pela causa do povo. Em sua boca, a familia era bandeira hasteada bem no alto, onde nem poeira pode trazer mancha. Mas agora ela se inquietava olhando aquela casa empanturrada de luxos. A filha vinha da loja com sacos cheios, abarrotados.
– Este abastecimento não é tão demais?
– Cala vovó. Vai lá ver televisão.
Sentavam a avó frente ao aparelho e ela ficava prisioneira das Luzes. Apoiada numa velha bengala, adormecia no sofá. E ali lhe deixavam. Mais noite, ela despertava e luscofuscava seus pequenos olhos pela sala. Filhos e netos se fechavam numa roda, assistindo video. Quase lhe vinha um sentimento doce, a memória da fogueira arredondando os corações. E lhe subia uma vontade de contar estórias. Mas ninguém lhe escutava. Os miudos enchiam as orelhas de auscultadores. O genro, de óculos escuros, se despropositava, ressonante. A filha tratava-se com pomadas, em homenagem aos gala-galas(*) [* lagarto de cabeça azul]. A avó regressava à sua ilha, recordando a aldeia. Lá, no incendio da guerra, tudo se perdera. Ficaram sofrimentos, cinzas, nadas.
– Essas coisas todas, meu genro, de onde vêm?
– São horas extraordinárias.
Devia ser horas muito extraordinárias, avaliava a avó. Cansada de tanta coisa que não podia explicar, ela pediu para regressar. Voltava para o lugar onde pertencia, vizinha da ausência. Então, os filhos lhe ofereceram roupas bonitas, sapatos de muito tacão e até um par de óculos para corrigir as atenções da idosa senhora. Carolina cedeu à tentação. Bonitou-se. Pela primeira vez saiu a ver a cidade.
– Nunca atravesse nenhuma rua. Você não tem idade para pedestrar.
Não chegou de atravessar. Logo no passeio, ela viu os meninos farrapudos, a miséria mendigando. Quantas mãos se lhe estenderiam, acreditando que ela fosse proprietária de fundos bolsos? A avó sentou-se na esquina, tirou os óculos, esfregou os olhos. Chorava? Ou sentia apenas lágrimas faciais, por causa das indevidas lentes? Regressada a casa, ela despiu as roupas, atirou no chão os enfeites. Da mala de cartão retirou as consagradas capulanas, cobriu o cabelo com o lenço estampado. E juntou-se à sala, inexistindo, entre o parentesis dos parentes. Nessa noite, a televisão transmitia uma reportagem sobre a guerra. Mostravam-se bandidos armados, suas medonhas acções. De subito, sem que ninguém pudesse evitar, a velha atirou sua pesada bengala de encontro ao aparelho de televisão. O ecran se estilhaçou, os vidros tintilaram na alcatifa. Os bandidos se desligaram, ficou um fumo rectangular.
– Matei-lhes, satanhocos ¬ gritou a avó.
Primeiro todos se estupefactaram. Os meninos até choraram, assustados. O genro reabilitou-se aos custos. Soprando raivas, ergueu-se em gesto de ameaça. Mas a avó, apanhando a bengala, avisou o homem:
– Tu cala-te. Não sentes vergonha? Há bandidos a passear aqui na tua sala e tu não fazes nada.
Incrustada em espanto, a familia encarava a anciã. Carolina monumentara-se, acrescida de muitos tamanhos. Então, atravessou a sala, vassourou os estragos, meteu os vidrinhos num saco de plástico.
– Estão aqui todos ¬ disse.
E entregou o saco ao genro. Do plástico pingavam gotas de sangue. O genro espreitou as próprias mãos. Não, ele não se tinha cortado. Era sangue da avó, gotas antiquissimas. Tombaram no tapete, em vermelha acusação. Na manhã seguinte, a avó despachou o seu regresso. Voltou à sua terra, nem dela se soube mais. Na cidade, a familia se recompos sem demora. Compraram um novo aparelho de televisão, até que o anterior já nem era compativel. De vez em quando recordavam a avó e todos se riam por unanimidade e aclamação. Festejavam a insanidade da velha. Coitada da avó. No entanto, ainda hoje uma mancha vermelha persiste na alcatifa. Tentaram lavar desconseguiram. Tentaram tirar os tapetes impossível. A mancha colara-se ao soalho com tal sofreguidão que só mesmo arrancando o chão. Chamaram o parecer do feiticeiro. O homem consultou o lugar, recolheu sombras. Enfim, se pronunciou. Disse que aquele sangue não terminava, crescia com os tempos, transitando de gota para o rio, de rio para oceano. Aquela mancha não podia, afinal, resultar de pessoa única. Era sangue da terra, soberano e irrevogável como a própria vida.

ISAURA PARA SEMPRE DENTRO DE MIM

Mia Couto

Isaura entrou pelo bar como se entrasse pela última porta e nós fôssemos os deuses que a aguardássemos do outro lado. Fora ficava esse céu todo azulzinado, os zunzuns da gente no bazar.
A aparição da mulher fez estancar meu coração, suspenso na rédea do espanto. Escutei íntimos desacordes, sangue para um lado, veias para outro. É que eu não via a Isaurinha há mais de vinte anos, mais de metade do tempo que eu amealhava existências. De repente, me chegaram lembranças como se em meu peito desembarcassem imagens e sons, atropelando-se em desordem.
Foi no tempo colonial. Eu e a Isaurinha éramos empregados domésticos na mesma casa. Ela empregada de dentro, eu de fora. Ambos, miúdos, em idade mais de brincar. Aos fins da tarde, quando ela despegava me vinha contar as novidades, segredos da vida dos brancos. Era hora de eu passear a cãozoada. Ela me acompanhava, rodávamos pelos quarteirões enquanto ela me fazia rir, com as suas revelações. Que o patrão a empurrava nos cantos sombrios e a apertava de encontro às paredes. Não havia parede em que ele, de pé, não tivesse deitado.
Tudo aquilo lhe dava nojeira, reviragem nas vísceras. Queixar a quem? A Deus? Eu sonhava que me subiam coragens e enfrentava o patrão. Mas adormecia sem ousadia sequer de terminar o sonho.
E agora Isaura interrompia o meu tempo de existir, rompante adentro da cervejaria. Estava quase na mesma, o tempo não a redesenhara. magra, como sempre fora. Olhos acesos como réstias de brasa. Em seus dedos um cigarro me sacudiu lembranças. Como se o centro de minha memória fosse um fumo. Sim, o fumo de cigarro que ela, vinte anos antes, trazia de dentro da casa dos patrões para as traseiras onde eu a esperava. Fazia o seguinte pegava a beata distraída num cinzeiro de salão e chupava umas boas passas.       Enchia as bochechas de fumo vinha ter comigo ao pátio. Ganhava um ar apalhaçado, com dupla cara como a coruja. Chegava-se a mim e vizinhávamo-nos, cara com cara. Depois, boca com boca, os lábios meus em concha recebiam os dela. Isaura soprava para dentro de mim esse fumo. Sentia aquecer-me meus interiores, a saliva quase fervendo. Depois, não era só a boca todo o meu corpo se ia esquentando. Era assim que fumávamos, a meio hálito, boca de um cruzamento e peito do outro.
Praticávamos o quê? Fumigação boca-a-boca? Uma coisa era de certeza meu endereço era o céu, nesses instantes. Isaura me exaltava eternidades, lábios vaporosos me roçando o coração. Tudo ali na cubata das traseiras.
Simples procedimento aquele Isaura aparava as unhas dos cigarrinhos, beatas ainda moribundas. Não parecia que Isaura deitasse valor naquele trocar de lábios. Ela gostava mesmo era de tabaco, pouco a pouco se adentrando no vício das fumagens. Eu e a descarga suja em meus pulmões eram simples acidentes sem percurso.
Até que, certa vez, o patrão nos surpreendeu naquelas disposições. Choveram insultos, imediatas pancadas. E logo eu, desculpando Isaura, assumi as inteiras culpas. Construí a versão eu a tinha assaltado, obrigado contra as suas vontades. Nesse mesmo dia, fui expulso, despedido. Nem me despedi de Isaurinha. Levei meus pertences, por baixo de uma lua tristonha. E nunca mais Isaura, nunca mais notícias dela.
Vinte anos depois, Isaura desarrumava a tarde, interrompendo o bar. Para mais, ela trazia entre os dedos um cigarro, fumejante.
Ela se sentou em minha mesa e, sem me olhar, desatou as falas. Tanta lembrança boa. Mas a favorita é você, Raimundano. Lhe digo esse fumo todo que lhe deitei sabe o que eu queria, só mais nada? Era um beijo.
Estremeci. Aquilo era a justa navalha, me lacerando? Mas ela seguia, no avanço de seus ditos. Sim, que ela em tempos, me amara. Nunca mostrara aquele querer dela, por motivo de decências. É que era tão magra que era má educação se exibir. Que ela escolhia para mim suas melhores belezas, como quem tem prendas mas não sabe nem a quem dar.
– Porquê, Isaura? Porque nunca me procurou?
– Porque lhe deixei de amar. Foi aquele sua mentira para me proteger. Isso, me fez muito mal.
Desde o momento que eu a defendera, o sentimento tombara, sobra de sombra.
Ofensa de quê? Nunca saberei. Isaura, ali sentada, não me explicaria nada. Como se tivesse passado não o tempo, mas a vida inteira. Levantou-se, arrastou a cadeira como se arrumar os móveis fosse mais importante neste mundo. E se dirigiu para a saída, a angústia me resumindo como se, pela segunda vez, minha vida se ecoasse por aquela porta. Minha voz, nem a reconheci
-Sopre-me outra vez um fumo, Isaura. Um fuminho, só.
Ela me olhou, os olhos tão longe que parecia nem ter focagem. Aspirou fundo o cigarro, refreou umas tosses e veio em minha renteza. Quando ela colou seus lábios em mim, se fabulou o seguinte a mulher se converteu em fumo e se desvaneceu. Primeiro no ar e, depois, lento, na aspiração de meu peito. Nessa tarde, eu fumei Isaurinha. 

O assalto

Mia Couto

 

Uns desses dias fui assaltado. Foi num virar de esquina, num desses becos onde o escuro se aferrolha com chave preta. Nem decifrei o vulto: só vi, em rebrilho fugaz, a arma em sua mão. Já eu pensava fora do pensamento: eis-me! A pistola foi-me justaposta no peito, a mostrar-me que a morte é um cão que obedece antes mesmo de se lhe ter assobiado.
Tudo se embrulhava em apuros e eu fazia contas à vida. O medo é uma faca que corta com o cabo e não com a lâmina. A gente empunha a faca e, quanto maior a força de pulso, mais nos cortamos.
— Para trás!
Obedeci à ordem, tropeçando até me estancar de encontro à parede. O gelo endovenoso, o coração em cristal: eu estava na ante-câmara, à espera de um simples estalido. Cumpria os mandamentos do assaltante, tudo mecanicamente. E mais parvalhado que o cuco do relógio. O que fazer? Contra-atacar? Arriscar tudo e, assim sem mais nem nada, atirar a vida para trás das costas?
— Diga qualquer coisa.
— Qualquer coisa?
— Me conte quem é. Você quem é?
Medi as palavras. Quanto mais falasse e menos dissesse melhor seria. O maltrapilho estava ali para tirar os nabos e a púcara. Melhor receita seria o cauteloso silêncio. Temos medo do que não entendemos. Isso todos sabemos. Mas, no caso, o meu medo era pior: eu temia por entender. O serviço do terror é esse — tornar irracional aquilo que não podemos subjugar.
— Vá falando.
— Falando?
— Sim, conte lá coisas. Depois, sou eu. A seguir é a minha vez.
Depois era a vez dele? Mas para fazer o quê? Certamente, para me executar a sangue esfriado, pistolando-me à queima-roupa. Naquele momento, vindo de não sei onde, circulou por ali um furtivo raio de luz, coisa pouca, mais para antever que para ver. O fulano baixou o rosto, e voltou a pistola em ameaça.
— Você brinca e eu …
Não concluiu ameça. Uma tosse de gruta lhe tomou a voz. Baixou, numa fracção, a arma enquanto se desenvencilhava do catarro. Por momento, ele surgiu-me indefeso, tão frágil que seria deselegância minha me aproveitar do momento. Notei que tirava um lenço e se compunha, quase ignorando minha presença.
— Vá, vamos mais para lá.
Eu recuei mais uns passos. O medo dera lugar à inquietação. Quem seria aquele meliante? Um desses que se tornam ladrões por motivo de fraqueza maior? Ou um que a vida empurrara para os descaminhos? Diga-se de passagem que, no momento, pouco me importavam as possíveis bondades do criminoso. Afinal, é do podre que a terra se alimenta. E em crise existencial, até o lobisomem duvida: será que existe o cão fora da meia-noite?
Fomos andando para os arredores de uma iluminação. Foi quando me apercebi que era um velho. Um mestiço, até sem má aparência. Mas era um da quarta idade, cabelo todo branco. Não parecia um pobre. Ou se fosse era desses pobres já fora de moda, desses de quando o mundo tinha a nossa idade. No meu tempo de menino tínhamos pena dos pobres. Eles cabiam naquele lugarzinho menor, carentes de tudo, mas sem perder humanidade. Os meus filhos, hoje, têm medo dos pobres. A pobreza converteu-se num lugar monstruoso. Queremos que os pobres fiquem longe, fronteirados no seu território. Mas este não era um miserável emergido desses infernos. Foi quando, cansado, perguntei:
— O que quer de mim?
— Eu quero conversar.
— Conversar?
— Sim, apenas isso, conversar. É que, agora, com esta minha idade, já ninguém me conversa.
Então, isso? Simplesmente, um palavreado? Sim, era só esse o móbil do crime. O homem recorria ao assalto de arma de fogo para roubar instantes, uma frestinha de atenção. Se ninguém lhe dava a cortesia de um reparo ele obteria esse direito nem que fosse a tiro de pistola. Não podia era perder sua última humanidade — o direito de encontrar os outros, olhos em olhos, alma revelando-se em outro rosto.
E me sentei, sem hora nem gasto. Ali no beco escuro lhe contei vida, em cores e mentiras. No fim, já quase ele adormecera em minhas histórias eu me despedi em requerimento: que, em próximo encontro, se dispensaria a pistola. De bom agrado, nos sentaríamos ambos num bom banco de jardim. Ao que o velho, pronto, ripostou:
— Não faça isso. Me deixe assaltar o senhor. Assim, me dá mais gosto.
E se converteu, assim: desde então, sou vítima de assalto, já sem sombra de medo. É assalto sem sobressalto. Me conformei, e é como quem leva a passear o cão que já faleceu. Afinal, no crime como no amor: a gente só sabe que encontra a pessoa certa depois de encontrarmos as que são certas para outros.
 !

O baralho erótico

Mia Couto

Em sua maior parte, o matrimónio é um maltrimónio. Os dois pensando somar, afinal, se traem e subtraem. Era o caso de Fula Fulano mais sua respectiva Dona Nadinha. O homem era um vidamundo, formado nas malandragens. A mulher era muda durante o dia. Mesmo que pretendesse não lhe saía palavra.”…”No resto, se arredava, imóvel de fazer inveja às plantas. Se sentava a desfolhar fotos e postais.
Nadinha vivia por fotografia, sonhava por interposição de imagens recortadas em revistas. Coleccionava retratos, cromos, postais. Ficava horas contemplando as figurinhas. Assim, ela se desconhecia, desaparecendo de si mesma, invisibilizando a vida.”…”Se enamorava das mulheres das capas, que lindas, nem transpiram, nem enrugam com os tempos.”

 

FRASES DE MIA COUTO

 

… mutilado de Guerra e incapacitado de paz.

A cozinha é onde se fabrica a casa inteira.

É que o tempo namora com ele próprio. Só finge que gosta de nós.

Eu nasci na arrecadação da paisagem, num lugar bem desmapeado do mundo.

Como se esse nó de forca fosse o meu cordão desumbilical.

Que o amor é como o mar: sendo infinito espera ainda em outra água se completar.

Os que beijam são sempre príncipes. No beijo todas são belas e adormecidas.

Na vida tudo chega de súbito. O resto, o que desperta tranquilo, é aquilo que, sem darmos conta, já tinha acontecido.

Domingo não é dia. É uma ausência de dia.

Você tem doença da água: mesmo da nuvem sempre regressa.

A morte gosta muito de ouvir cantar. Se distrai de mim e dança.

Velhos são aqueles que não visitam as suas próprias idades.

De improvável a vida é uma goteira pingando ao avesso.

Nessa altura eu receava o amor. Não sei se temia a palavra ou o sentimento. Se o sentimento me parecia insuficiente, a palavra soava a demasiado.

Eu quero a paz de pertencer a um só lugar, a tranquilidade de não dividir memórias. Ser todo de uma vida. E assim ter a a certeza que morro de uma só única vez.

Me deram o caso para que lhe desvendasse os acasos.

Demorei em coisas nenhumas.

A punição do sonho é aquela que mais dói.

Em sua maior parte, o matrimónio é um maltrimónio. Os dois pensando somar, afinal, se traem e subtraem.

O que o homem tem do pássaro é inveja. Saudade é o que o peixe sente da nuvem.

O cansaço é um modo do corpo ensinar a cabeça.

Há mulheres que buscam um homem que lhes abra o mundo. Outras buscam um que as tire do mundo. A maior parte, porém, acaba se unindo a alguém que lhes tira o mundo.

A vida é um por enquanto no que há-de vir.

… a água corre com saudade do que nunca teve: o total, imenso mar.

… suas vestes eram a sujidade. Havia quase nenhuma roupa em seu sarro.

… o vagabundo se ergueu e apressou umas passadas para alcançar o longe. Se entrecruzou com a sua sombra, assustado de haver escuro e luz.

… os homens se comportam, neste mundo, como estrangeiros. A machice é arrogância dos que têm medo, mais excluídos que emigrantes. Só as mulheres são indígenas da vida.

Tal pai, fatal filho.

A tristeza é uma janela que se abre nas traseiras do mundo.

Estrangeiro é o lugar onde não se espera ninguém.

– homem não deve mexer em sangue. Só a mulher.
– e porquê?
– em vocês, homens, o sangue anda sempre junto com a morte.
– você fala coisa que não sabe.
– a mulher é que pega no sangue e faz nascer uma outra vida.

Sempre onde chego é um lugar. Mas abrigo maior não encontrei senão nas paragens da memória.

Verdade é como ninho de cobra: se confirma apanhando não o ovo, mas a fatal picada.

A gente nasce grão. Morre terra.

Deus é bonito de lhe não vermos, Padre. Mesmo eu estou negar de ir para o céu para não sofrer desilusão.

Entendo só de raízes, vésperas de flores.

Formigas transportam infinitamente a terra. Estarão mudando eternamente de planeta? Estarão engolindo o mundo?

Sei só escrever palavras que não há.

… a lua morre e é grande enquanto as estrelas, ainda que pequeninas, ficam a brilhar.

Nem tudo se explica, para que se compreenda melhor.

Quando não se podem tomar decisões só se tomam decisões erradas.

Quando o pão é magro quem escasseia é o homem.
 

“Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão.”

MIA COUTO
 ” A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o vôo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem, é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.

Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.”

 
 
Prelúdio

*Alda Lara

Pela estrada desce a noite…
Mãe-Negra, desce com ela…

Nem buganvilias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guisos,
nas suas mãos apertadas.

Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro…

Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada…

Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?…

Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?…
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?…

Mãe-Negra não sabe nada…

Mas aí de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!

Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
que costumavas contar…

Muitos partiram p’ra longe,
quem sabe se hão-de voltar!…

Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta, bem calada.

É tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada…

*Alda Lara, médica e poetisa angolana (1930-1960)
  
 

 

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