A Nova Tradução de Ulysses, de James Joyce

A volta, em nova versão, de um monumento literário

O Estado de São Paulo

 Domingo, 28 de Abril de 2012 (www.estadao.com.br)

Antonio Gonçalves Filho

A nova tradução do romance Ulysses (1922), do irlandês James Joyce, que chega às livrarias no dia 14, consumiu dez anos de trabalho árduo do professor da Universidade Federal do Paraná, Caetano W. Galindo, curitibano de 39 anos que verteu para o português obras de outros autores importantes como Thomas Pynchon, Tom Stoppard e David Foster Wallace. É a terceira tradução brasileira do moderno épico de Joyce (1882-1941), passado num único dia, 16 de junho de 1904, em Dublin. A pioneira, de 1966, levou quase um ano para ser feita e foi assinada pelo filólogo Antonio Houaiss (1915-1999), permanecendo como a única disponível no mercado nacional até 2005. Nesse ano foi lançada a segunda tradução, de Bernardina da Silveira Pinheiro, que dedicou sete anos à tarefa (mais detalhes na página ao lado, em que estão reunidas as três versões brasileiras para o início do romance). Galindo fez a primeira versão de sua tradução antes de ler a de Bernardina Pinheiro. “E, no caso de Houaiss, percebi muito rápido que um processo de constante cotejo e revisão ia me deixar louco e travado”.

Primeiro tradutor da obra, Houaiss previu que seu trabalho teria desdobramentos. “Creio que o texto poderá ser melhorado por um futuro tradutor, porque Ulysses é dessas obras que fatalmente terão duas ou três traduções”, dizia, quando alguém criticava a sua. É mesmo difícil agradar a todos. Afinal, são 265 mil palavras reunidas em mais de 800 páginas escritas por um autor que, insatisfeito com os estilos literários de sua época, oferece em Ulysses pastiches de muitos deles. Não foi apenas um sarcástico ataque contra a literatura convencional que moveu Joyce. Seu objetivo, segundo o inglês Declan Kiberd, doutorado pela Universidade de Oxford e autor da introdução da nova edição nacional, era mostrar que “mesmo a mais refinada literatura não deixa de ser uma imitação paródica da experiência real da vida”. O romance não poupou nem mesmo a modernidade literária, provocando reações de vanguardistas como D.H. Lawrence e Virginia Woolf.

“Pode-se dizer que todo Ulysses, como releitura da Odisseia, é pastiche, mas é fundamental lembrar que o pastiche de Joyce nunca é simplesmente ridicularizador”, observa o tradutor. “Ele escrevia melhor quando estava rindo do estilo que empregava, fazendo com que a ‘paródia’ nunca fosse uma simples questão de negação”.

Antes de fazer uma elegia ou um pastiche do épico Odisseia, de Homero, com o qual estabelece uma relação analógica, Joyce abre sobretudo um caminho para o retorno à tradição oral, seu verdadeiro alvo, segundo Kiberd. Seu herói, Leopold Bloom, um pobre agente publicitário, seria o correspondente nada heroico do mítico Ulisses homerístico nessa história. Sua voluptuosa mulher, Molly Bloom, tomaria o papel de uma nada fiel Penélope. Já o jovem escritor Stephen Dedalus seria o correspondente moderno e laico do virtuoso Telêmaco, filho de Ulisses. Dedalus, o alter ego literário de Joyce, diz que Deus não passa de um grito no meio da rua e que a história é, no máximo, um terrível pesadelo. A atração quase incestuosa do andrógino Bloom por esse filho que não teve, representado por Dedalus, é expressa no penúltimo episódio de Ulysses, o preferido de Joyce – em que Leopold volta para casa acompanhado pelo jovem e os dois urinam no quintal, em meio a devaneios sobre os astros e a trajetória do xixi.

Molly, a mulher de Bloom, tem a “palavra final” no romance. E essa palavra é simplesmente um “sim”, analisado como uma resposta ao autoritário “eu quero” masculino por outro tradutor de Joyce, Sérgio Medeiros (leia na página ao lado). É de Molly o solilóquio do 18.º e último episódio de Ulysses. Nele, a técnica literária de Joyce conhecida como “stream of consciousness” (fluxo de consciência), introduzida no terceiro episódio – dedicado às reminiscências de Dedalus – é levada ao paroxismo. O leitor tenta acompanhar a corrente enlouquecida do monólogo interior de Molly, que suspeita da infidelidade do marido e sonha com possíveis novos parceiros (ela fantasia um encontro sexual com Dedalus, que conheceu quando criança), imaginando ainda um emprego melhor para o marido, capaz de garantir a ela roupas mais elegantes e um estilo de vida menos ordinário.

Uma história como essa, escrita entre 1914 e 1921 e inicialmente publicada em capítulos no jornal norte-americano The Little Review, estava mesmo destinada a provocar barulho. Acusado de obscenidade pela Sociedade para a Supressão do Vício, de Nova York, por causa de um episódio em que Leopold Bloom se masturba, o livro foi levado a julgamento, declarado obsceno e banido nos EUA, sendo apenas publicado em 1922, em Paris (e em 1934, na América). A edição francesa é considerada a oficial, embora com mais de 2 mil erros e ainda assim diferente daquela que o professor alemão de literatura Hans Walter Gabler apresentaria em 1984, supostamente baseada nos originais do autor – ela foi muito criticada como um patchwork de manuscritos, um tanto infiel a Joyce, por trocar nomes de personagens e desrespeitar a sintaxe do autor.

Certo é que Joyce não gostava muito de vírgulas e detestava hifens, como lembra o novo tradutor de Ulysses, Caetano Galindo, mas Gabler teria exagerado em sua edição crítica e sinóptica do romance. Essa recusa ao hífen, diz o brasileiro, “acaba gerando a criação de várias palavras aparentemente novas mas que são apenas uma representação gráfica de um composto conhecido ou mesmo uma junção de substantivo e adjetivo totalmente normal”. Galindo garante que não inventou palavras. “O que pode ser que eu tenha feito, assim como outros tradutores, foi forçar limites possíveis da língua portuguesa e da literatura brasileira, para criar novas combinações e novas fusões.” Assim, no terceiro episódio, o personagem Kevin Egan é descrito como alguém “senhamor” e “senterra”. No episódio 12, em que um narrador não nomeado tenta descrever o personagem “Cidadão”, o preconceituoso senhor sardento é chamado de “sardasmuitas”, “boquimensa” e “ventasgrandes”. Em tempo: o “Cidadão” é um antissemita a quem Bloom, descendente de judeus húngaros e convertido ao cristianismo (para casar com Molly), repreende num pub, lembrando que Cristo era da mesma etnia de seus antepassados.

Essa fixação de Joyce pelo aspecto físico dos personagens é estudada por Kiberd na introdução do livro. Ele alude particularmente à redução estereotípica que T.S. Eliot não conseguiu suportar no irlandês. Joyce suspeitava que a maioria das pessoas estaria mais para tipos do que para indivíduos. Isso não excluía seus contemporâneos companheiros de letras. “Houve um pouco de inveja entre os escritores experimentais e muita recusa ao lado irlandês-beberrão-tosco de Joyce, como se ele não fosse um membro daquela elite de que eles acreditavam fazer parte e, mais ainda, houve muita negação moral, pois Joyce era indecente, inadequado, grosso, e ainda insistia em misturar personagens e fatos reais no texto”, analisa Galindo.

A obsessão de Joyce em descrever detalhes físicos e escatológicos levou o irlandês a fazer de Ulysses, segundo o professor Declan Kiberd, o “épico do corpo”. Não foi outro irlandês, Oscar Wilde, o pioneiro a apresentar o “homem feminil” na literatura, anota Kiberd, mas Joyce, que, segundo ele, “mudou para sempre o modo como os escritores tratavam a sexualidade”.

Nem todos os leitores de Ulysses, escreve Kiberd, viram a androginia de Bloom pelo que era. Ela não seria sinônimo de bissexualidade (interpessoal), mas um fenômeno intrafísico, na medida em que, no caso de Leopold, a androginia representaria muito mais um estado da mente que do corpo. Buck Mulligan, o estudante de medicina que abre o livro, convidando Stephen Dedalus a subir ao altar de Deus (a torre onde Mulligan, no topo da escada, faz a barba), pensa o contrário. Desdenha de Bloom (por ciúmes), achando que ele teria uma atração homossexual pelo amigo Dedalus, quando este busca no garoto um camarada com o qual poderia estabelecer uma relação paternal, serena, impossível num casamento como o dele e Molly.

“Ela é a personagem feminina mais exuberante do século 20, construída a partir de um dos truques literários mais triunfantes da história do romance, quando ele decide compensar as 800 páginas androcêntricas do livro com um único episódio dedicado a Molly”, analisa Galindo. “Ele percebeu que a única maneira de fazer isso é com a total concentração e densidade que o monólogo direto poderia lhe dar.” Já Leopold, para o tradutor, “é simplesmente o personagem mais completo da literatura desde Hamlet, como disse Harold Bloom”. Para quem ainda considera Ulysses criptográfico, como o personagem de Shakespeare, uma última e boa notícia: a Companhia das Letras publica em breve um guia de leitura da obra-prima de Joyce.

(Texto encaminhado por César Garcia para postagem)

Um trabalho de dez anos

Caetano W. Galindo, terceiro tradutor de ‘Ulysses’ no Brasil, diz que teve que manter distância das traduções anteriores pois percebeu que um processo de constante revisão o iria deixar ‘louco e travado’

27 de abril de 2012 | 22h 00 – Estado de São Paulo – www.estadao.com.br

Antonio Gonçalves Filho

Lançado em 1922, em Paris, após ser acusado de obsceno e banido nos EUA, Ulysses, o épico moderno do irlandês James Joyce, ganha sua terceira tradução no Brasil, trabalho de dez anos do professor de literatura e tradutor Caetano W. Galindo. Evitando o cotejo com as traduções anteriores, do filólogo Antonio Houaiss (de 1966) e de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005), Galindo diz que teve que manter distância delas porque percebeu muito rápido que um processo de constante revisão o iria deixar “louco e travado”. Sua tradução chega às livrarias pela Companhia das Letras no dia 14. A mesma editora vai lançar brevemente um guia de leitura do livro.

ENTREVISTA:

Caetano W. Galindo: ‘O que me levou a traduzir foi a necessidade de entender o livro’

E – Nas passagens mais experimentais de Ulysses, você diz que se deu o direito de inventar palavras. Não seria essa uma estratégia capaz de tornar o livro ainda mais caótico para leitores não familiarizados com a leitura de Joyce, considerando que você evitou notas explicativas?

C – Não lembro onde eu disse isso. Mas, veja bem. Inventar palavras não é uma opção, assim ex nihilo, e nem é uma coisa que o Joyce tenha feito, ao menos não no Ulysses. O que pode ser que eu tenha feito, assim como outros tradutores, é forçar os limites possíveis da língua portuguesa e da tradição literária brasileira para criar, a partir de possibilidades reconhecidas como tais pelos leitores, novas combinações e novas fusões, por exemplo. E, um, o livro não é nada caótico e, dois, o meu não terá ficado mais caótico!: trata-se de um livro com dificuldades, e a tradução terá dificuldades, trata-se de um livro que força o leitor nativo a ir a ao dicionário e a tradução fará o mesmo. Trata-se de um livro que, às vezes, força o leitor a compreender algo “novo” a partir dos recursos de formação da língua, e a tradução também.

E – Alguns escritores contemporâneos de Joyce, como D.H. Lawrence e Virginia Woolf, não aceitaram a linguagem inovadora do escritor. Ao que você atribui essa incompreensão de autores que foram igualmente renovadores da literatura de língua inglesa: a uma reação moral contra a ironia de Joyce e ao seu desmonte da tradição épica?

C – Houve um pouco de “inveja” entre os escritores “experimentais” britânicos que viram o sujeito lhes passar a perna num grau difícil de imaginar. Houve muita recusa ao lado irlandês-beberrão-tosco de Joyce, como se ele não fosse um membro daquela elite de que eles acreditavam fazer parte e, mais ainda, houve muita negação moral. Joyce era indecente, era inadequado, era grosso. E ele ainda insistia em misturar personagens e fatos reais no texto, dando a tudo um ar ainda mais “deselegante” na opinião da época e, claro, do nosso ponto de vista, muito mais moderno.

E – Na introdução do livro, Declan Kiberd define Ulysses como um épico do corpo com certa fixação na metempsicose. Após anos estudando e traduzindo o livro, como você o definiria?

C – São 10 anos!.. até eu me surpreendo. Como eu o definiria? O maior romance, a maior celebração do que é ser uma pessoa entre as pessoas.

E – A renovação literária de Ulysses liga-se a uma correspondência analógica com a linguagem musical, mais abstrata que a escrita. Como você lidou com a musicalidade das palavras na tradução?

C – Eu tenho formação de músico. E, mais do que isso, acho ainda que penso mais como músico do que como qualquer outra coisa. Essa “musicalidade” pra mim é sempre um elemento, e encontrar um autor que é tão obcecado por ela quanto Joyce é na verdade um prazer, uma oportunidade, uma chance de dar plena vazão a uma perversão particular minha. Como fazer isso? Respeitando as musicalidades específicas de cada idioma, sem violentar o inglês e o português, mas buscando sempre o efeito mais marcado, mais bonito, mais adequado… mesmo que isso por vezes te force a “criar” mais.

E – A imitação de antigos estilos literários faz de Ulysses um antecessor de paródias pós-modernas que zombam das boas construções literárias e das tramas bem construídas. Como você vê esse mecanismo de Joyce em relação a outros livros dele?

C – Pode-se dizer que todo o Ulysses, como releitura da Odisseia, é pastiche. Mas é fundamental lembrar que o pastiche de Joyce nunca é simplesmente ridicularizador. Ele, como já se disse, escrevia melhor quando estava rindo do estilo que empregava. Ele encarnava os seus alvos plenamente, fazendo com que a “paródia” nunca fosse uma simples questão de negação (como aliás talvez nunca seja mesmo). Ele fazia disso uma extensão da tarefa mais básica do romancista, incorporar vozes, tons, estilos, personalidades. O Ulysses é o apogeu desse processo. Em Um Retrato do Artista Quando Jovem, ele ainda não adotava a distância necessária para esse efeito, e em Finnegans Wake ele conseguiu atingir uma espécie de fusão final em que todos os efeitos e vozes se misturam em um todo inconfundível e, digamos, personalíssimo, exatamente como toda e qualquer voz pessoal, formada sempre de cacos de tudo que de “outro” se pode encontrar na vida.,

E – O começo de Ulysses é uma prova violenta para qualquer tradutor, revelando, de alguma maneira, como ele se aproxima de Joyce. Numa primeira leitura, você parece menos reverente que Antonio Houaiss ou Bernardina Pinheiro. O que o levou a traduzir Ulysses?

C – A reverência nunca seria uma postura produtiva. Nem para mim nem para os outros tradutores. Entender Joyce é entender isso. Ele não inspira reverência. Admiração, sim. Inveja, como já pôde gerar em outros escritores.. mas reverência implica um grau de solenidade que é acima de tudo anti-joyciano. O que me levou a traduzir foi a necessidade de entender o livro. Ele me intrigava, me seduzia, mas eu não achava que fosse capaz de entender dele tudo que queria ou podia entender numa mera leitura. Eu cobicei o livro. Quis que ele fosse meu.

E – Com relação às atitudes antibélicas e à aludida androginia de Leopold Bloom, destacadas por Declan, qual a sua posição a respeito? Ele diz que Joyce apresenta Bloom como o homem andrógino do futuro. Você concorda?

C – Bom.. o Joyce disse isso. Logo, difícil discordar. Sim, Joyce é antibélico. E o Ulysses. E Bloom declama todo um discurso antibelicista num momento em que, vale ressaltar, isso era tudo menos “chique” e “moderno”. E ele é definitivamente andrógino.

E – As traduções anteriores de Ulysses o ajudaram, de alguma forma, ou você preferiu manter distância delas?

C – Eu tive que manter distância. Primeiro, porque eu fiz a primeira versão da minha tradução antes de poder ler a da Bernardina. E, no caso do Houaiss, eu percebi muito rápido que um processo de constante cotejo e revisão ia me deixar louco e travado. Assim, decidi dar as costas e seguir contando apenas com o meu contato com Joyce.

E – Você é também tradutor de Pynchon. Como compara a sua ambição literária diante do legado de Joyce?

C – Ele é menos dedicado à reforma da “forma” romance. Mas a grande empresa joyciana, que era a busca de novas formas de representar com a maior profundidade e a maior abrangência a experiência humana no que ela tenha de mais vário e mais profundo, continua a dar frutos no mundo pynchoniano (como no mundo de David Foster Wallace, por exemplo). As soluções podem ser outras, podem estar em outros campos, outros procedimentos, mas eles são “irmãos” em algo mais central. Nesse aspecto humano, humanista profundo.

E – Gostaria que você definisse em poucas palavras como vê os personagens criados por Joyce, especialmente Leopold e Molly Bloom.

C – Molly Bloom é a personagem feminina mais exuberante do século 20, construída a partir de um dos truques literários mais triunfantes da história do romance. Quando ele decide compensar as 800 páginas androcêntricas do livro com um único episódio dedicado a ela, e percebe que a única maneira de fazer isso é com a total concentração e densidade que o monólogo direto podia lhe dar, ele fez o que de mais brilhante os gênios conseguem fazer: transformar um “problema”, uma “dificuldade”, num trunfo. Leopold Bloom é meu irmão. É teu irmão. Como disse Harold Bloom, ele é simplesmente o personagem mais completo da literatura desde Hamlet. E isso se dá inclusive por força bruta. Nós acompanhamos Bloom por horas a fio, com acesso a quase tudo que ele pensa, vê, lembra, diz ou sente. Nós sabemos dele tudo que ele sabe e, graças, por exemplo, às cenas de alucinações, que encenam recalques e perversões, sabemos até o que ele nem acha que sabe de si próprio…

 

Um difícil começo: a tradução de ‘Ulysse

27 de abril de 2012 – Estado de São Paulo

Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante

A frase inicial de Ulysses (1922) parece simples em inglês: “Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead, bearing a bowl of lather on wich a mirror and arazor lay crossed”. Sua tradução para o português, no entanto, revela, se considerarmos as três versões completas do romance existentes no Brasil, posições cruciais dos tradutores quanto à maneira de verter o romance de James Joyce.

Na pioneira tradução de Antônio Houaiss, publicada em 1966, o uso de duas palavras aparentemente pomposas, raras, conferem à abertura do romance uma solenidade que visa a acentuar talvez o caráter paródico da cena: “Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha.”

Como se sabe, a ação de Ulysses começa às 8 horas do dia 16 de junho e termina no alvorecer do dia 17, um pouco antes das 4 horas da manhã. O vaso de barbear de Buck Mulligan representaria o cálice sagrado e o alto da escada, os degraus do altar. Dizem os estudiosos que a navalha indicaria a matança, o massacre, associando o “padre” ao açougueiro. Publicada em 2005, a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro opta por uma solução mais literal, que acentua de imediato o vínculo entre o sagrado e o profano: “Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba.” Essa segunda versão de Ulysses em português explicita o que Houaiss deixou implícito, a espuma no vaso de barbear, que Joyce, no entanto, menciona.

Isso não significa que a tradução em questão seja sempre mais “acertada” do que a outra. Na sequência do primeiro parágrafo, Bernardina propôs: “Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã”. A tradução de “yellow dressinggown” é literal, mas é difícil visualizar o viril Buck Mulligan usando um penhoar. Houaiss optou por “um roupão amarelo”, que parece combinar mais com o personagem. Vejamos as soluções que Caetano Galindo, o terceiro tradutor de Ulysses, adotou na sua versão do referido parágrafo: “Solene, o roliço Buck Mulligan surgiu no alto da escada, portando uma vasilha de espuma em que cruzados repousavam espelho e navalha. Um roupão amarelo, com cíngulo solto, era delicadamente sustentado atrás dele pelo doce ar da manhã.”

Aparentemente, Galindo estaria mais próximo de Bernardina do que de Houaiss, mas evita usar “penhoar”, que em português cria um estranhamento talvez não previsto por Joyce. Contudo, sua versão tem características próprias, visíveis nesse trecho, que a distinguem da tradução de Bernardina. Joyce não gostava de vírgulas e as dispensava tanto quanto podia. A primeira frase de Galindo parece maisjoyceana do que a de Bernardini. Mas, na sequência, Galindo emprega uma palavra não usual, “cíngulo”, cordão que integra a vestimenta dos sacerdotes, termo “técnico”, não empregado pelos tradutores anteriores. Joyce usa a palavra “urgirdled”, que não é apenas “desamarrado”, mas refere-se a “girdle”, uma cinta sacerdotal, o cíngulo. Foi assim que Galindo entendeu o termo.

Lemos no Ulysses Annotated, de Don Gifford, que o termo “ungirdled” sugere a violação do voto de castidade por parte do sacerdote. Esse aspecto da paródia joyceana é realçada na nova tradução do romance pelo emprego, em português, de “cíngulo”. Assim, quando confrontamos as três versões do parágrafo inicial de Ulysses, podemos identificar claramente, em germe, os caminhos que cada tradutor adotará ao longo do trabalho, hercúleo, de verter na íntegra a complexa obra-prima de Joyce, que ao mesmo tempo é legível e ilegível, séria e cômica, épica e dramática, unificando talvez os contrários, daí o seu sabor especial, o seu fascínio.

 

Os primeiros parágrafos de ‘Ulysses’, segundo os três tradutores brasileiros

27 de abril de 2012  – Estado de São Paulo

ANTÔNIO HOUAISS

Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha. Seu roupão amarelo, desatado, se enfunava por trás à doce brisa da manhã. Elevou o vaso e entoou:

– Introibo ad altare Dei.

Parando, perscrutou a escura escada espiral e chamou asperamente:

– Suba, Kinch. Suba, jesuíta execrável.

Prosseguiu solenemente e galgou a plataforma de tiro. Encarando-os, abençoou grave três vezes a torre, o campo circunjacente e as montanhas no despertar.”

Lançada em 1966, a tradução do filólogo carioca Antônio Houaiss (1915-1999) foi feita por encomenda do editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, entre novembro de 1964 e outubro de 1965 – ou seja, em menos de um ano. Chegou à 17ª edição em dezembro último (960 págs., R$ 80).

BERNARDINA DA SILVEIRA PINHEIRO

“Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba. Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã. Ele ergueu a tigela e entoou:

– Introibo ad altare Dei.

Parado, ele perscrutou a escada sombria de caracol e gritou asperamente:

– Suba, Kinch! Suba, seu temível jesuíta!

Solenemente ele avançou para a plataforma de tiro. Olhou à volta e seriamente abençoou três vezes a torre, o terreno à volta e as montanhas que despertavam.”

A professora carioca Bernardina da Silveira Pinheiro dedicou sete anos à tradução do romance, editada em 2005 pela Objetiva. A obra literária de Joyce – especialmente o épico de Bloom – a levou a pesquisas de pós-doutorado na Irlanda e na Inglaterra. Sua versão ganhou nova edição, da Alfaguara, em 2008 (912 págs., R$ 92,90).

CAETANO W. GALINDO

“Solene, o roliço Buck Mulligan surgiu no alto da escada, portando uma vasilha de espuma em que cruzados repousavam espelho e navalha. Um roupão amarelo, com cíngulo solto, era delicadamente sustentado atrás dele pelo doce ar da manhã. Elevou a vasilha e entoou:

– Introibo ad altare Dei.

Detido, examinou o escuro recurvo da escada e invocou ríspido:

– Sobe, Kinch. Sobe, seu jesuíta medonho.

Altivo, ele se adiantou e subiu na plataforma de tiro redonda. Olhou à volta e abençoou sério e por três vezes a torre, o campo em torno e as montanhas que acordavam.”

O curitibano Caetano Waldrigues Galindo se ocupou da tradução de Ulysses por dez anos. A origem do trabalho foi sua tese de doutorado. A edição que sai agora com o selo Penguin Companhia (1.112 págs., R$ 47) chegou a ter alguns trechos lidos em público, nas festas do Bloomsday.

 

A sra. Molly e o seu inesgotável ‘sim’

27 de abril de 2012

SÉRGIO MEDEIROS

Segundo Edmund Wilson, à medida que avançamos pelo Ulysses, vemos o cenário realista deformar-se e desfazer-se, e ficamos atônitos diante de vozes que não parecem pertencer nem às personagens nem ao autor. Esse intrincado pulular de narradores (o romance tem vários, independentes entre si, como apontou Richard Ellmann, biógrafo de Joyce) confere a Ulysses uma multiplicidade que só acentua algo que lhe é intrínseco: sua heterogeneidade.

De fato, do começo ao fim o texto é lúdico e imprevisto, transgredindo a “tirania” de uma só voz ou um só estilo. Na obra de Joyce nenhum episódio (não convém usar a palavra capítulo, não empregada pelo autor) é igual a outro. Essa sucessão de estilos díspares é um procedimento inédito na história do romance moderno. Depois de Joyce, o procedimento se popularizou entre os autores mais “ousados”, e continua sendo usado no século 21, elevado (ou rebaixado) à condição de linguagem “pós-moderna”.

T.S. Eliot, um ano após a publicação de Ulysses, afirmou que o romance terminara com Gustave Flaubert e Henry James. Insatisfeito com essa forma narrativa, que parecia esgotada, o irlandês James Joyce teria buscado um novo método de composição, um método no qual o paralelo entre a modernidade e a antiguidade teria grande importância. Sabe-se, porém, que Joyce extrapolou o “método mítico”, indo muito além da estrutura homérica que pretendia seguir, a qual visava, segundo Eliot, a “dar Forma e significado ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea”.

O episódio 18, denominado Penélope, se desenrola na cama que Leopold Bloom e Marion, ou Molly, sua mulher, compartilham em Dublin, pouco antes do amanhecer. Eles têm uma filha adolescente, chamada Milly. O episódio corresponde à cena da Odisseia em que Penélope é informada ao despertar que Odisseus (Ulisses) retornou e derrotou os estrangeiros que almejavam ocupar o lugar dele no leito do casal. Sentenças sem pontuação constituem o longo monólogo da sra. Marion Bloom, talvez um dos textos mais sumarentos, mais repletos de líquidos vitais de toda a literatura.

Molly é uma mulher de 30 e poucos anos, preocupada com a barriga, que lhe parece estar ficando um pouco grande. Suas formas são generosas, e ela se tranquiliza afirmando que as magrinhas não estão mais na moda.

Talvez a palavra mais célebre pronunciada por Molly na madrugada do dia 17 de junho, ao nascer do sol, seja “Yes”. É a primeira palavra que ela diz, e também a última, mas, neste caso, as noções de começo e fim se confundem e se anulam. Curiosamente, numa primeira versão desse monólogo, que circulou antes da publicação do livro, não havia o “Yes” final, o qual Jacques Derrida denominou de inesgotável “sim” da fala feminina. O fecho original dizia: “e sim eu disse sim eu quero”. Porém, o tradutor francês, Jacques Benoist-Méchin, em conversa com Joyce, considerou o “I Will” difícil de passar para o seu idioma e acrescentou um “oui” final. Joyce, depois de discutir com ele acrescentou definitivamente um “Yes” ao seu próprio texto. Molly, desde então, abandonou o autoritário “eu quero” e nos endereça o “sim”.

SÉRGIO MEDEIROS É TRADUTOR E POETA, AUTOR DE VEGETAL SEX (UNO PRESS/UNIVERSITY OF NEW ORLEANS PRESS) E TOTENS (ILUMINURAS, NO PRELO). COORGANZIOU E COTRADUZIU DE SANTOS E SÁBIOS (ILUMINURAS), DE JAMES JOYCE

Eu Não Vim Fazer Um Discurso

O livro de Gabriel Garcia Marquez  Eu Não Vim Fazer um Discurso nos traz vários discursos, mesmo que se presentifique a sua malquerença aos momentos de oratória. O discurso é o seu material, articula o sujeito e os outros, expressa na sua verve um estilo engraçado, irônico e crítico. Registra com clareza quando recebe prêmios e homenagens, acontecimentos e circunstâncias cheias de humor.

São muitos os discursos pronunciados em diversos locais e em épocas diferentes trazendo sempre suas deliciosas histórias. Esta, Como Comecei a Escrever, ficou no melhor do seu ato, circulando na sua cabeça e ele gostando, até que resolveu nos contá-la

Li a tentadora historinha e a contei para mais 3 pessoas. Ouvi o reconhecimento em várias opiniões: É assim mesmo no interior, notícias que mete medo se espalham logo. O Correio de Má Notícias estraga o gosto de todo mundo e se alastra ligeiro: “O doutor não disse novidade nenhuma, na cidade onde nasci brincadeiras assim é o divertimento do povo”

O livro Eu Não Vim Fazer um Discurso foi lançado pela Editora Record, Rio de Janeiro, em 2011. A tradução é de Eric Nepomuceno.

Agora, vamos a boa leitura. Reflexões, críticas e muita risadaria.

 João Pessoa, 29 de abril de 2012

Everaldo Soares Júnior .

Travessia do Corpo – Raimundo Carrero

Em Instantaneos Literários do Jornal Valor Econômico da última semana há um excelente artigo de José Castelo, intitulado Travessia do Corpo, sobre a luta do nosso escritor e querido amigo Raimundo Carrero para se recuperar de um AVC . No artigo ele diz ter Carrero descoberto uma reserva de forças que ainda lhe era desconhecida e que cuidou do seu corpo com uma fúria que até o acontecimento do AVC ele havia dedicado à literatura. Durante 15 meses Carrero viveu para fazer a travessia do seu corpo, para reescrevê-lo, diz Castelo. E agora Carrero já começa a falar do que aconteceu com o seu corpo no passado.

O guerreiro ganhou a sua maior batalha e certamente ele sairá dela ainda mais forte, mais corajoso. E com maior fúria cuidará do seu fazer literário. A respeito disso José Castelo fala no artigo dos dois novos livros que Carrero está escrevendo: o romance Tangolomango /Ritual das Paixões Deste Mundo. e o relato da sua doença Às Vésperas do Sol.

O artigo é comovente, encantador :Carrero 1 Carrero 2 Carrero 3

O Padre e a Moça

Quarta-feira – 4/4/2012 –  10 horas em ponto!

Local : Traco Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise

Promoção: Grupo de  Psicanálise e Arte

 

Recortes, realizados por Adelaide Câmara, dos comentários de Rogério Sganzerla (São Paulo, março-abril 1966 – Artes) sobre o filme O Padre e a Moça
 O PADRE E A MOÇA: um filme distante e ao mesmo tempo íntimo.Por isso, misterioso. Nada de suspense ou emoção diante de uma estória romântica. Somente dolorosa reflexão sobre a velha estória de amor impossível. O autor retira toda possibilidade de identificação com os personagens. Não só com os personagens, mas com este “tipo” de cinema: sabemos de antemão o que vai acontecer em cada cena. O espectador se desespera porque Joaquim filma o cotidiano terrível de uma cidade do interior de Minas. Tudo que a gente não gosta de ver na tela: o filme é impiedoso e caracteriza-se por um sábio distanciamento diante do mundo.

 Tudo pensado, trabalhado: as longas tomadas, a falta de ação, os silêncios intermináveis, enfim, a fossa que corrói toda a obra, combinam-se perfeitamente “numa grandeza artística que nasce da humildade”, conforme disse Glauber Rocha num excelente artigo em O JORNAL DO BRASIL. Que continua: “impõe-se o ato de revê-lo e repensá-lo: ali a tristeza brasileira, o esquecimento (…) tudo isso criado não pelo discurso moralizante mas pela dialética do homem contra décor; aqui, movimentando dois excelentes atores contra o testemunho histórico da decadência (a cidade e as serras), Joaquim Pedro aciona um canto livre do amor, um amor que se faz da tortura e da impotência, da negação e do silêncio”.

 O PADRE E A MOÇA está inteiramente mergulhado na tradição da arte mineira. Isto é, barroca. Não só pelas ligações com o poema de Drummond. Mas por tudo: a lentidão, uma obcecada descrição dos ambientes, a atitude contemplativa do autor diante de um mundo decadente. Por uma clareza do estilo que leva ao mistério e principalmente por certa incompreensibilidade.

 25 milhões em duas semanas no Rio e os mais violentos bate-bocas: “absoluto fracasso”, “besteirada hermética”, “chateação” e ainda, “lindo”, “cem vezes superior a Antonioni!”, “melhor do que o poema de Drummond” (que inspirou Joaquim).

 

 Aviso Importante de Adelaide Câmara: Cuidado com a mula sem cabeça!!!

Sinopse

A chegada de um jovem padre sacode o imobilismo de uma pacata cidadezinha de Minas Gerais. Entre o padre e uma bela jovem da cidade surge uma atração, de início casta, e que se transforma em paixão ardente. ENFIM, UM FILME POLÊMICO.

Elenco

  •  Helena Ignez…. Mariana
  •  Paulo José…. padre
  •   Mário Lago…. Fortunato
  •  Fauzi Arap…. Vitorino
  •  Rosa Sandrini

Prêmios e indicações

Instituto Nacional do Cinema (INC) 1966 (Brasil)

  •  Recebeu o Prêmio de Qualidade.

Festival de Berlim 1966 (Alemanha)

  •  O filme foi indicado ao Urso de Ouro.

Festival de Brasília 1966 (Brasil)

  •  Recebeu o Troféu Candango de Ouro nas categorias de Melhor Atriz (Helena Ignez) e de Melhor Fotografia.

 

Os Sexos

 Teresinha Ponce de Leon

 Mudam os tempos, os modos, as modas, mudam até, aparentemente, algumas diferenças essenciais entre os homens e as mulheres. Será?

Existe, desde que o mundo é mundo, uma sutil guerra fria entre os dois sexos que usam as estratégias de que dispõem para ver quem sairá vencedor.

Molière, em 1659, deu um ar de sua  graça com as “Preciosas Ridículas”… na qual criticava a condição das mulheres  por quererem participar de discussões e reuniões literárias, como as  realizadas entre os intelectuais do sexo masculino.  Até os dias de hoje, as inúmeras  piadas sobre as “louras burras” ainda chegam a provocar risos. ( Cá para nós, o que é que as louras têm, que não temos? ) Existe, isso sim,  quem confunda escassez de inteligência com ingenuidade… Enfim…

Essa introdução vem a propósito do conto de Dorothy Parker, “OS SEXOS” ,  no qual os personagens em foco  ―  um jovem casal, de quem não são ditos os nomes, mas que se deduz tratarem-se de pessoas do grupo a que nos referimos  acima ― são  dignos  representantes da guerra dos sexos. A mocinha, vestida de babados, segurava um lencinho , olhando-o  como se fosse a primeira vez que se deparava com um objeto tão encantador. O rapaz ao seu lado, pigarreou de várias formas, sem obter sucesso, e terminou por perguntar-lhe se ela aceitaria um cigarro.. Isso deu margem a uma discussão boba que, entre outras coisas, encobria a verdadeira razão do ar enfastiado da jovem. Afinal, depois de muito discutirem, ela confessou, furiosa, ter visto várias vezes o seu par “arrastando a asa” para Florence Leaming, uma das  moças que fazia sucesso entre  a maioria dos rapazes,  ignorando-a  como se  ela não estivesse lá.

No final do conto, o diálogo dos dois personagens é digno da fala dos Big Brothers. Ninguém fala sério. Ainda bem que, como foi  dito no inicio, essa é uma pequena amostra, o que é, no mínimo, consolador.

Entretanto, não se pode deixar de apreciar, brincadeiras à parte, que o conto de Dorothy Parker não deixa de ser uma lição, no mínimo irônica, sobre as complexidades das emoções humanas, sobre a política sexual  e sobre a escorregadia tensão existente nas sutilezas dos  relacionamentos  entre os sexos.

 

 

Caderno

 

César Garcia

            Entre as pequenas histórias vividas por Fernando, no verão de 2011, na praia de Porto de Galinhas, em Pernambuco, esta mereceu atenção especial de seus pais. A família viera de São Paulo e estava alojada em uma pousada gozando as delícias do sol, do mar e da gastronomia local. Filho único, Fernando nunca estava sozinho graças à facilidade com que fazia amizades, mas, no décimo dia de férias, uma terça-feira, chegou cedo à praia e, não encontrando nenhum amigo, decidiu correr alguns quilômetros para aproveitar o tempo. Em um trecho deserto da praia avistou um caderno na areia que, pela figura da capa, pareceu-lhe pertencer a uma mulher. A ideia acrescentou curiosidade ao impulso natural de apanhar o inesperado objeto. Contrariando seu plano de voltar para encontrar os amigos, parou e sentiu-se preso à leitura das primeiras linhas. Sentou-se e leu o texto até o fim e, em seguida, voltou a casa e contou aos pais o que lhe acontecera. Lidas e relidas as folhas, os três resolveram encarar o desafio de encontrar a proprietária do caderno mesmo sem contar com a informação mais importante: seu nome. A única pista era a estranha reflexão registrada, transcrita abaixo, que revelava realmente tratar-se de uma jovem.

                   EU EXISTO                                                       

 Será verdade que eu não existo? Vejo o mar à minha frente, umas jangadas, uma onda atrás da outra, ouço o barulho da arrebentação. Às minhas costas, os coqueiros altos, verdes, o vento agitando as pás desses moinhos contra o céu azul que nem consigo ver bem por causa do sol que me ofusca. Essa areia sob meus pés, esse cheiro de sargaço, vontade de comer peixe frito com cerveja. Estou só agora, porque quero. Quando desejo, procuro minha turma e converso, ouço suas vozes, sei das notícias, combino  encontro para a noite. Como é que eu não existo? Meus amigos vão dizer: sai dessa, cara, tu existe, sim, isso é coisa de maluco, vai ficar encucada com uma parada dessas? Aí eu vou dizer que existir não é só poder falar, ver, abraçar, pode querer dizer outra coisa mais abstrata que eu ainda não sei explicar. Eu preciso entender porque se for verdade sou capaz de enlouquecer. Serei apenas uma ilusão, uma personagem fictícia? Quem me criou, eu mesma? Se eu me criei quer dizer que eu existo e aí volta tudo à estaca zero. Como uma pessoa pode pensar que não existe? Se pensa, existe, já dizia o filósofo. A questão talvez seja outra, esses caras nunca falam claramente, por exemplo: se uma mulher parir uma menina numa ilha deserta, morrer no parto, as ondas levarem o cadáver e a menina sobreviver – o que é terrivelmente improvável mas é só para raciocinar – a menina não vai existir para os outros porque os outros estão longe dali. Ela não vai saber quem é nem o que é porque isso a gente aprende vendo os outros e falando com eles. Mas é uma exceção muito doida que eu inventei. Eu vivo no meio da minha turma de amigas, não vou sozinha nem ao banheiro. É verdade que, às vezes, mesmo estando com elas eu me sinto sozinha, com a sensação de que não vou poder contar com o grupo para discutir algum assunto. Acho que os homens são mais solidários e nós, solitárias. Mas daí dizer que eu não existo é outra coisa. E elas, existem? Se eu perguntar, cada uma vai dizer que existe e perguntar se eu bebi. Elas existem, sim, cada uma com um nome, uma cabeça, um corpo, um jeito de ser. E eles também, da mesma forma, embora com suas manias de torcer por um time de futebol, pensar em sexo o tempo todo e querer mandar em nós, mulheres. Eles nos tratam como se fôssemos crianças; querem nos ensinar o tempo todo, a dirigir o carro, a dançar, a usar o computador, a TV, o tablet, o ifone… Sei não, eu preciso de um homem para ter filhos, me apoiar, fazer o que eu não tenho força para fazer, matar baratas, mas não quero ser mandada por ele. Quero que ele me console quando eu chorar, que ele me defenda quando me agredirem e nunca se interesse por outra mulher. Já entendi porque é que os homens traem mais do que nós. É porque o que nos excita é a conversa deles, é o que eles dizem, e eles não andam o tempo todo falando aos nossos ouvidos enquanto o que os excita é ver o nosso rosto, nossos seios, nossa cintura, nossa bunda, nossas coxas, enfim, nosso corpo, e tudo isso eles estão vendo o tempo todo, coberto ou não. Então, nós somos assediadas apenas quando eles nos dão uma cantada, dizem algum galanteio que às vezes é de bom gosto e outras é grosseiro, e eles são assediados o tempo todo porque basta nos ver de biquine ou mesmo de roupa justa, shorts, minissaia, decotes, animam-se, o organismo começa a reagir e partem para cima de nós. Há algo de hipócrita em nosso comportamento. Fazemos de conta que não estamos desejando nada, apenas andar na moda, não é verdade. Sabemos que a excitação deles se dá pela visão, não precisamos dizer nada para impressioná-los, basta mostrar algum pedaço do nosso corpo. Veja só aonde cheguei. Se for assim, as muçulmanas têm razão com suas burcas, Deus me livre, que contradição. Aqui, andamos seminuas e os homens se controlam, não nos atacam a toda hora; nos países islâmicos, as mulheres têm que andar cobertas para não sofrerem agressões. As mesquitas estão cheias de homens loucos por sexo, rezando com medo do Inferno. Com toda a nossa devassidão, somos menos hipócritas do que eles lá no Oriente. Acho o Islamismo pior do que o Cristianismo, este pelo menos ninguém leva a sério, cada um interpreta como quer já que as igrejas são totalmente desmoralizadas. Mas, enfim, a mulher existe ou não? O homem existe, a mulher, não. É isso? Quando digo “o homem” estou designando todos os homens; quando digo “a mulher” não posso estar me referindo a todas as mulheres senão a uma só. Por quê? Sabe o que eles dizem? Que o homem tem como ser representado – por seu pênis. A mulher, não, porque não tem nada onde o homem tem o pênis. Quem tem com que se representar, existe; quem não tem, não existe, pronto, voilà. Só não sei dizer por que é que dois peitos bem na frente do nosso corpo não servem para nos representar se são até chamados de “comissão de frente”. E eles, os homens, não têm nada no tórax. Gosto da expressão “peito de homem” para designar uma coisa que não serve para nada, por exemplo, trema, letras duplas como em Mello, Motta; o cargo de primeira dama; o parlamento numa ditadura e assim por diante. Então, se Lacan fosse mulher, teria dito “o homem não existe, porque não tem seios, não tem representação”. Será que iam dar crédito a isso? Acho difícil, muito difícil. Iam dizer que Lacan era maluca, que eles não tinham peitos, mas tinham pênis. Eu, por mim, faria um acordo: vocês existem, porque têm pênis; e nós também, porque temos seios. Isto seria mais sensato do que dizer: o homem existe; a mulher, não. E ainda completam: a mulher só existe uma a uma, na sua solidão, cada uma tem que se inventar. Isso lembra a Simone de Beauvoir: “não se nasce mulher”… Será que ela era trans? Por aquela foto em que ela aparece nua, mesmo de costas, não parece não. E naquele tempo não havia essa cirurgia nem silicone. Aquela ali nasceu mulher, é o que eu penso, voilà. Mas enfim, chega, já peguei meu bronze, pode ser que outra hora eu encontre alguém que dê uma luz para clarear essas ideias, saber se eu existo ou não.

                 Durante o resto das férias, boa parte de cada dia foi dedicada a visitar outras pousadas, consultas à polícia, indagações a todos os grupos de jovens, passeios a praias vizinhas em que o caderno era mostrado, tudo, tudo foi feito numa busca inútil, sem o acréscimo de nenhuma pista, nenhum sinal. Fernando e os pais, lamentando o fracasso de seus esforços, fizeram as malas e regressaram a São Paulo com a justa dúvida sobre a existência da dona do caderno levado como lembrança de um verão.