De volta ao começo

Outra vez,de volta à terra firme, de volta ao começo, ao  fundo do fim, de volta ao começo como diz a música de Roupa Nova. Puído, amarelecido, amarrotado  o tecido do roteiro encontrado no camarim de Navegação na hora do embarque traz as marcas do uso intenso e dos traços dos mares navegados. Plano ambicioso, bem à altura dos seus viageiros.

Antes de lançarmo-nos ao mar, havíamos recebido a benção e os bons augúrios da nossa madrinha Clarice Lispector, com a leitura do conto Viagem a Petrópolis. Sinal de alerta para lembrarmos da implacável linha do tempo quando em  busca de outros horizontes, marujos crestados pelo  sol em mares estranhos que já somos. Narrado na terceira pessoa, Viagem a Petrópolis conta a história de uma velhinha simpática que nasceu e viveu quase toda a sua vida no Maranhão e encontra-se morando no Rio de Janeiro, de caridade, numa casa em Botafogo, com pessoas que não são da sua família e que, cansadas da sua presença, resolvem levá-la para Petrópolis, onde pretendem deixá-la na casa de outro membro da família, sem sequer consultá-lo. É um conto que fala de solidão, desamparo, abandono, derrelição, como dizia Hilda Hilst, do sentir-se só no mundo, da vaziez da alma. Comovente no dizer e no não dito, merecendo muitas releituras para se tentar garimpar as riquezas submersas que escaparam à nossa percepção num primeiro momento. Um verdadeiro iceberg, aliás, como tudo que Clarice Lispector fez: o que está visível é apenas uma pequena parte do que está ali. O conto e a análise literária  foram  publicados nesse Blog, em Clariceando.

Devidamente abençoados e alertas, iniciamos  viagem  seguindo roteiro para aportamento em águas francesas: Calais. Depois, Paris. Paris é uma festa!, dois séculos antes de Hemingway dizer essa frase, o escritor  Laurence Sterne, enfermo, parecia buscar em Viagem Sentimental, alegria para os seus pulmões doentes ao visitar aquela cidade enquanto ainda lhe era possível faze-lo, embora tivesse a intenção de chegar à Itália, se Tânatos não tivesse tido outros planos para ele.

Viagem Sentimental

Seguindo Sterne na sua Viagem Sentimental , constatamos felizes que a  expectativa de encontrar algo diferente de um roteiro de viagem havia se realizado. O tão referenciado estilo, razão maior da nossa escolha,  revelou a maestria do autor com as  palavras, mas,  sobretudo, a sua profunda compreensão da dimensão do humano.  As extravagâncias sintáticas, tão inovadoras, eram apenas uma parte de sua extraordinária engenhosidade, ainda mais se lembrarmos da sua origem, educação e formação religiosa. Afinal, Sterne era um pároco.

Na categoria de viajantes curiosos, acompanhamos Sterne em suas fantasias viageiras … e num Désobligeant. Leitura instigante que nos obrigou a ler e reler várias vezes o mesmo parágrafo para tentar esclarecer melhor o que estava sendo dito. Próximo ao encerramento da leitura, começamos a fazer a tradução da análise literária que  Virgínia Woolf havia feito sobre a Viagem Sentimental – a tradução encontra-se no Blog. Naquela análise, a escritora questiona se Sterne teria controle sobre o que estaria escrevendo e afirma que essa seria uma resposta que  nós leitores dificimente conseguiríamos ter. Vejamos um pequeno trecho da análise:

 Os solavancos, as sentenças desconectadas são tão rápidas e pareciam sob tão pouco controle como as frases que caem dos lábios de um brilhante orador. A própria pontuação é aquela da fala, não da escrita e traz  com ela o som e as  associações da voz falante. A ordem das ideias, a subtaneidade e impropriedade delas, é mais fiel à  vida do que à literatura. Há uma intimidade nessa conversa que permite que as coisas escapem sem censura, e que teriam sido de gosto duvidoso se faladas em público. Sob a influência desse estilo extraordinário o livro se torna semitransparente. As cerimônias costumeiras e convenções que mantêm o leitor e o escritor numa distância cordial desaparecem. Estamos tão perto da vida quanto podemos.

Se Laurence Sterne fosse retirado do livro, diz Virgínia Woolf, pouco ou nada restaria dele, pois  nada acrescenta em termos de informação, ou jamais serviria como um roteiro turístico, porque sequer se preocupa em dizer algo sobre a arte ou a arquitetura da catedral ou fala do sofrimento ou bem-estar da população rural. A sua viagem pela França seguiu o roteiro de sua própria mente e as suas principais aventuras não foram com bandidos ou precipícios, mas com as emoções do seu próprio coração.

Esta mudança radical de abordagem já representava uma ousada inovação. Para Sterne uma garota com uma bolsa de cetim verde era mais importante do que a Catedral de Notre Dame, ansioso que ele estava para captar a essencia das coisas, assim como deveria fazer um viajante sentimental. Enquadrados como viajantes curiosos, na sua classificação, aprendemos que os encontros e desencontros que ocorrem numa viagem dizem mais do lugar do que séculos de tradição arquitetônica.

Ainda em Paris, mas bem longe de uma Viagem Sentimental, encontramos Véra, de Villiers de Lisle-Adam,a quem dedicamos tempo suficiente para surgir a pergunta:  existe fronteira separando o fantástico, a loucura, o estranhamento? De olhos nessa trilha visitamos ETA Hoffmann, O Homem de Areia,  celeiro onde Freud extraiu elementos  para a sua teoria sobre o estranho familiar.Obra fantástica, complexa, tanto em termos literários, a incrível qualidade da escrita, dos recursos técnicos utilizados, do relato especular.  quanto no que se refere aos distúrbios de personalidade, a ambivalência, o estranhamento, a insanidade. Fisgados pelo tema, consultamos, ainda, Erasmo de Roterdã,  Elogio da Loucura, num parágrafo imenso sobre os escritores, mas extraímos, apenas, o trecho em que  a loucura, falando na primeira pessoa, de forma presunçosa, fala da dívida que o escritor tem com ela, não todos os escritores, mas aquele  que escreve sob os seus auspícios, pois  deixa fluir  tudo o que lhe passa pela cabeça, imprime todos os sonhos  de sua imaginação exaltada.Os surrealistas bem que se encaixariam nessa classificação, pois acreditavam que  mentes alteradas liberavam do inconsciente o jorro furioso da criatividade.

Antes de atracarmos em outro grande porto, e ainda com a cabeça cheia de perguntas sem respostas, fizemos  outros pequenos percursos, pequenos em tamanho, mas de grande beleza e importância. Participamos de um velório na casa de Os irmãos Dagobé e de um pequeno percurso de avião em As margens da Alegria com Guimarães Rosa. Assistimos ao duelo entre um negro cantor e um personagem de poema épico argentino, em O Fim,  e ao encontro de difícil diálogo entre um homem maduro e outro  jovem, cujo inevitável destino do jovem era ser o velho no futuro longínquo, os dois ao mesmo tempo muito parecidos e diferentes demais,  em O Outro, ambos de Jorge Luiz Borges. E a disputa entre um casal jovem em Os Sexos, de Dorothy Parker,  todos trazendo profundas revelações sobre as emoções humanas. Mas foi em Nero, de Miguel Torga, que a nossa sensibilidade foi mais atingida com o relato de um cão sobre as suas relações com as pessoas, outros animais e os mistérios da vida e da morte.Resenha sobre Nero, um pequeno glossário com as palavras desconhecidas  e  texto extraordinário de um grande leitor de Torga, Ramires, também estão no blog. Espaço foi reservado, também, para um grande clássico da nossa literatura: A teoria do Medalhão, de Machado de Assis; e um conto de Jean Paul Sartre: O Muro. Sendo o ano de homenagens a Nelson Rodrigues, tempo especial foi dedicado às suas peças: Delicado, A dama da lotação e Os noivos. 

Animados ainda pelas peças de Nelson Rodrigues, rumamos à Argentina para conhecer praias menos sóbrias do que as hoffmanneanas e Borgeanas e encontramos as delícias do tango rasgado de Alfredo Le Pera e Carlos Gardel (Deliciosas criaturas perfumadas,/quiero el beso de sus boquitas pintadas…)  no romance folhetim de Manuel Puig: Boquinhas Pintadas.Que viagem pela alma feminina dos anos cinquenta na província de Coronel Vallejos! Três mulheres circulam todo o livro: Nélida, Mabel e Raba, amigas/inimigas/rivais, tão próximas e tão distintas, heroínas de uma trama que envolve inveja, fofoca, mal-caratice, sexualidade, boa fé, tudo expresso de forma  particular, seja através de cartas, conversas ou  boletins de ocorrência policial.  Se Sterne foi um transgressor da sintaxe, Manuel Puig foi além.  Conhecido como um escritor experimental, nesse livro ele reúne recursos kitsch como fotonovelas, músicas de tango, tudo numa verdadeira polifonia feminina expressa ainda em cartas, anúncios, diários, diálogos, monólogos interiores. Os recursos técnicos são vastos. O autor confessou que buscava criar uma nova forma de literatura popular baseada no velho folhetim. O resultado foi uma leitura fascinante pelos recônditos da alma feminina.

Antes de voltarmos para casa, o timoneiro decidiu fazer manobra arriscada, fora da rota programada, para descobrir os mistérios da Caixa Preta de Jennifer Egan. Os viageiros ficaram tensos com a travessia, quase em clima de amotinação pelo tempo perdido em águas turvas, pouco interessantes. A embarcação arroteou, cortou ondas imensas em mar bravio e navegou a todo pano para atravessar a tempestade e sair para mares mais calmos. Na opinião do timoneiro, valeu a pena, apesar dos riscos, viagem que poderá ser refeita por algum dos viageiros que mesmo em face das tormentas tenha vislumbrado algo interessante naquela paisagem.

Mas, o  melhor da viagem ainda é voltar para casa, principalmente depois da turbulência enfrentada. Essa Terra do escritor baiano Antonio Torres, premiado aqui e na França, permitiu-nos navegar em mares mansos, trouxe-nos o cheiro da cozinha da nossa casa,  ao falar das paisagens e do povo que tanto conhecemos, do sertão do nordeste. Nélo, impulsionado pelos técnicos da Ancar saiu de Junco em direção a São Paulo para voltar muitos anos depois, sifilítico, miserável e se suicidar. O filho querido que havia partido, motivo de orgulho da família e do próprio lugar, retorna para morrer. Muitas histórias de Nelo vamos saber através da narração de Totonhim, o seu irmão. Na verdade, não vai ser possível concluir essa viagem ainda em 2012, sob pena da pressa comprometer a leitura e apreensão da beleza. Foi o terceiro romance escrito por Antonio Torres, o que o consagrou definitivamente como um dos melhores escritores brasileiros contemporâneos.Apesar do estilo regionalista, Essa Terra não se encerra nessa visão. A escrita fragmentada cheia de idas e vindas, como diz Ítalo Moriconi, remete ao grande mestre William Faulkner, a quem Torres prestou tributo já na epígrafe do seu primeiro livro, orgulhoso do seu pai referência.Melhor padrinho, impossível. Os viajantes bem o conhecem desde O Som e a Fúria e Enquanto Agonizo. Será o primeiro porto de 2013 que iremos atracar, com certeza.

Tão importantes quanto as viagens que fizemos por portos estrangeiros foram as que fizemos com as escritas dos nossos viageiros, algumas estimuladas por faíscas criativas, contrangimentos,  outras bem livres e espontâneas. O tema da velhice trazido por Clarice Lispector com Viagem à Petrópolis, levou Teresa Sales a escrever um excelente conto O velho, que empolgou e trouxe muita discussão e lembranças. Mais adiante,  ainda empolgados com  o fator tempo, voltou-se à juventude e Paulo Tadeu iniciou um triálogo com Desencontros de brotos, usando o foco narrativo de três jovens rapazes conta a história de um baile conhecido como encontro de brotos; Edwiges C.C.Rocha, conta uma história do mesmo baile, dessa vez usando o foco narrativo da mãe das moças Nos tempos em que se chamavam brotos;  e por fimTeresa, conta Os bailes da vida, na ótica dos mesmos rapazes muitos anos depois. Todos os contos estimularam as recordações dos próprios viageiros na juventude, ocasionando  muitos risos.

 Estimulados pelo primeiro parágrafo retirado do livro da Laura Restrepo, Delírio, lançado pelo timoneiro como faísca criativa, vários contos foram escritos. O parágrafo era mais ou menos o que segue: Soube  que tinha acontecido algo irreparável no momento em que um homem me abriu a porta daquele quarto de hotel e vi minha mulher sentada ao fundo, olhando pela janela de um modo muito estranho. Foi na minha volta de uma viagem curta, de negócios, só quatro dias. No conto de César Garcia, o marido leva a mulher para a casa e tenta todos os recursos médicos para fazer com que a mulher volte ao normal, até que ele resolve apelar para a homeopatia e então… O final é surpreendente, pega o leitor completamente desarmado. Muito criativo e inteligente. Na versão de Everaldo Júnior, o conto segue cheio de mistério, levando o leitor a ficar cada vez mais interessado em juntar as pedrinhas para construir a história. Não há traição, mas um drama muito pesado que o leitor termina sem saber se realmente aconteceu ou se é fruto da imaginação daquela mulher de olhar fixo por aquela janela. Muito bem constrúido, diálogos tensos, dramáticos. Paulo Tadeu é o nosso nelson rodrigues pela extrema riqueza na construção dos dramas familiares. O marido traz de volta a mulher para a casa, também tenta todos os recursos para salvá-la daquele mutismo, até que um dia … Todos gargalharam, não havia como deixar de escancarar a risada com o final que ele deu ao seu conto. Outros contos escritos por Paulo Tadeu já revelavam esse lado cômico-trágico e a compreensão rodrigueana dos laços de família. Em outro conto escrito por ele, um homem, taxista, sentia-se muito feliz com a sua família, filho prestes a se formar doutor, filha generosa, séria, compenetrada, mulher zelosa, enfim um lar perfeito, tanto que o títtulo do conto é Lar Doce Lar. Um dia, ele descobre no carro um pacote deixado por um cliente e leva para casa e aí começa o desmoronamento do castelo de areia que ele havia construído. Econômico nas palavras, rico no conteúdo, o conto encantou a todos. Mais um conto de Paulo lido na oficina Covardias, traz para reflexão o medo do ser humano, o medo de enfrentar situações que ele pensa não ser capaz de dar conta. Esse conto traz muita tensão para o leitor que só consegue respirar no final dele. Muito bom.

As produções dos viageiros são muito esperadas e motivo de grandes festejos quando chegam. O blog recebeu boas colaborações dos viageiros, ora sob a forma de resenha literária, às vezes com as poesias, notícias, críticas de filme, entre outras. Que em 2013, tanto as produções de contos como as contribuições ao blog venham cada vez mais e mais e mais…

De volta para casa, juntamos os retalhos da carta de navegação para resgatar o brilho do sol na menina dos olhos ao relembrar a viagem maravilhosa de 2012 e assim poder dividir lembranças com todos os velejadores.

                                     Ribeira dos Arrecifes, 22 de dezembro de 2012

                                                        Lourdes Rodrigues

 

 

 

 

 

Viagem Sentimental

Viagem Sentimental

A primeira leitura de romance na Oficina, agora em 2012, foi  Viagem Sentimental,  de Laurence Sterne. A escolha surgiu do interesse em conhecer o estilo daquele escritor, tão mencionado entre os grandes escritores por conta de sua obra literária mais famosa: A Vida e  as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy. Sabíamos que nessa obra ele, com seu humorismo simpático e sentimental e suas “extravagâncias” inovadoras,  havia quebrado todas as convenções, até então vigentes, no modo de fazer literatura. Livro grande, denso e esgotado. Três fatores nos impediram de seguir adiante com a ideia de sua leitura na Oficina:. Tristram Shandy é um livro muito grande para uma leitura coletiva com o objetivo de extrair contribuições para o jeito de escrever e de ler um livro;um livro tão cheio de digressões e enxertos nos levaria a todo momento a muitas discussões e paradas; por fim, o livro estava esgotado nas editoras que o lançaram. Restavam-nos os sebos e mais tentativas de busca. Desistimos.

Por acaso,  ao comprar dois livros de ensaios de Virgínia Woolf: The Common Reader Vol.I e II, da Vintage Classics,2003, na FENAC de Lisboa, nos defrontamos com uma excelente análise literária da autora sobre a Viagem Sentimental, também  de Laurence Sterne, na qual ela diz que nas primeiras palavras desse livrinho de 154 páginas, nós, de certa forma, também estávamos no mundo de Tristram Shandy. Na análise ela está sempre trazendo o autor e as suas duas obras, embora enfatize e detalhe mais Viagem Sentimental.

Optando pela leitura de Viagem Sentimental foi possível realizar o sonho de conhecer o pároco e o escritor Sterne,  o seu estilo revolucionário para a época, tanto em termos literários como em termos dos costumes da sociedade. A leitura, como já era esperado, foi muito instigante pelo estilo que  nos obrigou a ler e reler várias vezes o mesmo parágrafo para esclarecer melhor o que estava sendo dito, quem estava falando, se o narrador ou o personagem que, de tão colados, geravam confusão. Além disso, buscamos no inglês (Ângela Cysneiros conseguiu pela internet ) apoio para tirar as dúvidas geradas pelas quatro traduções que tínhamos na sala. Na categoria de viajantes curiosos, acompanhamos Sterne em suas fantasias viageiras … e num Désobligeant.

Próximo ao encerramento da leitura, começamos a fazer a tradução da análise literária de Virgínia Woolf sobre a Viagem Sentimental, para dividi-la com os participantes da Oficina e com os que acompanham esse Blog, por considerarmos que a escritora  havia feito um excelente trabalho sobre a obra de Sterne. Quando já estávamos quase no final, a nossa colega Adelaide Câmara, uma das responsáveis pela tradução, encontrou o livro de Virginia Woolf na Livraria Cultura, em Português, sob o título  O Leitor Comum, da Editora Graphia, tradução de Luciana Viégas. Assim, revisamos as nossas traduções e percebemos algumas discrepâncias. A principal delas está no início do primeiro parágrafo quando a tradutora diz que Tristram Shandy, embora seja o primeiro romance de Sterne, foi escrito em uma época em que muitos escreviam sobre seus vinte anos, isto é, quando tinham vinte e cinco. Pela nossa tradução, Virgínia dizia que Laurence Sterne escreveu seu primeiro livro numa época em que muitos já haviam escrito o seu vigésimo, ou seja, aos quarenta e cinco anos.

Diante disso, resolvemos considerar a nossa versão na maior parte do texto, recorrendo a Luciana Viégas, sempre que surgia dúvida. Foi um excelente exercício de leitura, releitura e interpretação, principalmente pelo belo texto que Virgínia Woolf nos legou.

A seguir, a tradução feita por Adelaide Câmara e Lourdes Rodrigues, com apoio de Monica Raposo e Supervisão de Tim Beech. E, claro, cotejada com a de Luciana Viégas.

 

*A VIAGEM SENTIMENTAL

Virgínia Woolf

 

Tristram Shandy, embora seja o primeiro romance de Sterne, foi escrito num tempo em que muitos já haviam escrito seu vigésimo, isto é, quando ele tinha quarenta e cinco anos. Mas exibe todo sinal de maturidade. Nenhum escritor jovem  poderia ter ousado tomar  tais liberdades com a gramática, a sintaxe, o sentido e a convenção, nem com a tradição longamente estabelecida de como um romance deve ser escrito. Era necessário  uma forte dose de confiança própria da meia idade e sua indiferença à censura para correr tais riscos de chocar os letrados pela não convencionalidade do próprio estilo e a reputação pela irregularidade da própria moralidade. Mas o risco foi corrido e o sucesso prodigioso. Todos os grandes, todos os exigentes ficaram encantados. Sterne tornou-se o ídolo da cidade. Apenas, no rugido do riso e  aplauso dos que saudaram o livro, a voz do público comum em geral era  largamente ouvida protestando que aquilo era um escândalo vindo de um clérigo, e que o Arcebispo de York deveria aplicar,   para dizer o mínimo, uma repreensão. O Arcebispo, parece, não fez nada. Mas Sterne, contudo, por menos que deixasse transparecer, sentiu a crítica como um golpe no coração. Aquele coração também já havia sido atingido desde a publicação de Tristram Shandy. Eliza Draper, objeto de sua paixão,  tomara um navio para juntar-se ao marido em Bombaim. Em seu próximo livro Sterne estava determinado a mostrar o efeito da mudança que o afetou, e não somente o brilho de sua inteligência, mas sua profunda sensibilidade. Em suas próprias palavras, “nisso, meu intento era ensinar-nos a amar o mundo e o nosso próximo melhor do que o fazemos. Foi com essa motivação a animá-lo que ele sentou-se para escrever a narrativa de um pequeno tour na França a que chamou Uma Viagem Sentimental.

Mas se era possível para Sterne corrigir suas maneiras, era impossível para ele corrigir o próprio estilo. Esse tinha se tornado como uma parte dele mesmo tanto quanto seu nariz grande e seus olhos brilhantes.  Com as primeiras palavras ― Eles lidam, digo eu,  melhor com essa questão na França ― nós estamos no mundo de Tristram Shandy. Um mundo em que qualquer coisa pode acontecer. Nós dificilmente sabemos que gracejo, que provocação, que lampejo de poesia não vai brilhar subitamente através da brecha que esta pena extraordinariamente ágil corta na bem fechada cerca viva da prosa inglesa. É o próprio Sterne responsável por isso?  Sabe o que está indo dizer em seguida a todos. De sua determinação de estar no seu melhor comportamento dessa vez? Os solavancos, as sentenças desconectadas são tão rápidas e pareciam sob tão pouco controle como as frases que caem dos lábios de um brilhante orador. A própria pontuação é aquela da fala, não da escrita e traz  com ela o som e as  associações da voz falante. A ordem das ideias, a subtaneidade e impropriedade delas, é mais fiel à  vida do que à literatura. Há uma intimidade nessa conversa que permite que as coisas escapem sem censura, e que teriam sido de gosto duvidoso se faladas em público. Sob a influência desse estilo extraordinário o livro se torna semitransparente. As cerimônias costumeiras e convenções que mantêm o leitor e o escritor numa distância cordial desaparecem. Estamos tão perto da vida quanto podemos.

Que Sterne alcançou essa ilusão apenas pelo uso de extrema arte e sofrimentos extraordinários é óbvio sem se precisar ir ao seu manuscrito para prová-lo. Se bem que o escritor está sempre capturado pela crença de que por algum meio deve ser possível deixar de lado as cerimônias e convenções para escrever e falar para o leitor tão diretamente como quando as palavras saem diretamente da boca, alguém que já tenha tentado a experiência foi emudecido pela dificuldade, ou se perdeu na desordem e numa dispersão indizível.Sterne de alguma forma conseguiu alcançar essa extraordinária combinação. Nenhuma escrita parece fluir mais diretamente nas várias dobras e rugas da mente do indivíduo, para expressar suas mudanças de humor, refletir suas ideias caprichosas e impulsos, e ainda o resultado ser perfeitamente preciso e sereno.  A mais extrema fluidez coexiste com a mais extrema permanência. É como se a maré subisse e agitasse o mar para lá e para cá e deixasse as marcas do ir e vir das ondas na areia como que em mármore..

Ninguém, naturalmente, precisava mais de liberdade para ser ele próprio do que Sterne. Embora existam escritores cujo dom é impessoal, assim como Tolstoi, por exemplo, que pode criar um personagem e nos deixar em paz com ele, Sterne precisa sempre estar lá em pessoa para nos ajudar em nosso percurso. Pouco ou nada de Uma Viagem Sentimental sobraria se tudo a que nós chamamos do próprio Sterne fosse eliminado. Ele não tem qualquer informação valiosa para dar, nenhuma razão filosófica para repartir. Ele deixou Londres, conta-nos, “com tanta precipitação que nunca entrou na minha mente que nós estivéssemos em guerra com a França”. Ele não tem nada para dizer das pinturas e igrejas ou do sofrimento ou bem-estar da população rural. Ele estava viajando pela França realmente, mas a rota era frequentemente através da sua própria mente, e suas principais aventuras não foram com bandidos ou precipícios, mas com as emoções de seu próprio coração.

Esta mudança no ângulo de visão era em si mesmo uma ousada inovação. Até então, o viajante tinha observado certas leis de proporção e perspectivas. A Catedral tinha sempre sido um vasto edifício em qualquer livro de viagens e o homem uma pequena figura, propriamente diminuta, pelo seu lado. Mas Sterne foi realmente capaz de omitir a Catedral completamente. Uma garota com uma bolsa de cetim verde pode ser muito mais importante do que a Notre-Dame. Pois não há, ele aparentemente insinua, nenhuma escala universal de valores. Uma garota pode ser mais interessante que uma catedral; a morte de um macaco mais instrutiva que um filósofo vivo. É tudo uma questão de seu próprio ponto de vista. Aos olhos de Sterne as coisas pequenas muitas vezes pareciam maiores do que as grandes.  A conversa de um barbeiro acerca da presilha de sua peruca diz a ele mais acerca do caráter  da França do que a grandiloquência dos estadistas dela.

Eu penso que eu posso ver os sinais precisos e distintos do caráter nacional mais nestes absurdos detalhes, do que nos mais importantes assuntos de estado; onde os grandes homens de todas as nações conversam e andam tão parecidos uns com os outros, que eu não daria  nove pences  para eleger um  dentre eles.

Assim, também se alguém deseja agarrar a essência das coisas como deve fazer um viajante sentimental, deve procurar por isso, não sob o claro meio-dia em ruas largas e abertas, mas em uma esquina despercebida de entrada escura. Deve-se cultivar um tipo de taquigrafia que consiga traduzir os vários jeitos de olhar, dos braços e pernas em palavras claras e simples. Era uma arte que Sterne tinha treinado longamente a si próprio para praticar.

De minha parte,  por longo hábito, eu faço isso tão mecanicamente que quando eu caminho pelas  ruas de Londres, eu vou interpretando todo o caminho; e por mais de uma vez eu permaneci parado atrás de uma roda de pessoas, onde não mais de três palavras haviam sido ditas, e levei comigo vinte diálogos diferentes, os quais eu poderia ter transcrito e assinado embaixo.

É assim que Sterne transfere nosso interesse do exterior para o interior. Não adianta usar um  guia de viagem; nós devemos consultar nossas próprias mentes; somente elas podem dizer-nos  qual é a importância comparativa de uma catedral, de um burro e de uma garota com uma bolsa de cetim verde. Preferindo as sinuosidades de sua própria mente ao guia de viagens e suas castigadas estradas, Sterne é singularmente de nossa própria época. Neste interesse em silenciar em vez falar, Sterne é o precursor dos modernos. E por estas razões ele é hoje, de longe, muito mais íntimo de nós do que seus grandes contemporâneos os Richardsons e os Fieldings.

Ainda existe uma diferença. Apesar de seu interesse em psicologia, Sterne foi muito mais ágil e menos profundo do que os mestres desta escola um tanto sedentária se tornaram desde então. Ele está afinal, contando uma história, seguindo uma viagem, conquanto seu método seja  arbitrário e em zigue-zague. A despeito de nossas divagações, nós percorremos a distância entre Calais e Modena no espaço de muito poucas páginas. Interessado como ele era na forma como ele via as coisas, as coisas em si também interessavam extremamente a ele. Sua escolha é caprichosa e individual, mas nenhum realista seria mais brilhantemente bem sucedido em traduzir a impressão do momento. A Viagem Sentimental é uma sucessão de retratos — o Monge, a dama, o Cavalheiro vendendo patês, a garota na livraria, La Fleur em seus novos culotes, —uma sucessão de cenas. E embora o voo desta mente errante seja tão ziguezagueante como o de uma libélula, não se pode negar que esta libélula tem algum método no seu voo, e escolhe as flores não aleatoriamente, mas por alguma primorosa harmonia ou por alguma brilhante discordância. Nós sorrimos, choramos, zombamos, simpatizamos por momentos. Nós mudamos de uma emoção para o seu oposto no piscar de um olho. Esta frágil ligação com a realidade aceita, esta negligência com a organização da narrativa permite a Sterne quase uma licença poética. Ele pode expressar ideias em linguagem que os romancistas comuns  deixariam de lado, mesmo que os romancistas comuns pudessem dominá-la, iria parecer-lhe intoleravelmente estranho em suas páginas.

Caminhei solenemente para a janela em meu casaco preto empoeirado e olhei através da vidraça vi todo o mundo em amarelo, azul e verde, correndo na arena do prazer. – O velho com suas lanças quebradas, e elmos que tinham perdido suas viseiras – o jovem em armadura esplendorosa que brilhava como ouro, emplumado com vistosas penas orientais – todos – todos lutando como se empunhassem espadas fascinantes em torneios de outrora por fama e amor.

Há muitas passagens como esta de pura poesia em Sterne. Algumas podem ser retiradas e lidas à parte do texto, e ainda assim – Sterne era o mestre da arte do contraste – elas assentariam harmoniosamente lado a lado na página impressa. Seu frescor, sua leveza,seu perpétuo poder de surpreender e de assustar são o resultado destes contrastes. Ele nos leva às verdadeiras margens de algum profundo precipício da alma; lançamos um breve olhar em suas profundezas; no momento seguinte, somos empurrados de volta para olhar os prados verdes brilhando do outro lado.  Se Sterne nos inquieta, é por outra razão. E aqui a responsabilidade repousa, ao menos em parte, sobre o público. – o público que ficou chocado, que reclamou após a publicação de Tristram Shandy que o escritor era um cínico que merecia ser destituído da batina. Sterne, lastimavelmente, considerou necessário replicar.

O mundo imagina (disse a Lord Shelburne) porque eu escrevi Tristram Shandy que eu era mais Shandeano que eu realmente fui. Se ele (Uma viagem Sentimental) não é considerado um livro casto, tende piedade daqueles que o leram, pois devem ter uma imaginação ardente, sem dúvida.

Assim sendo em Uma Viagem Sentimental  nunca nos é permitido esquecer que Sterne é acima de todas as coisas sensível, simpático, humano; que acima de todas as coisas preza a decência, a simplicidade do coração humano. E sem rodeios um escritor se ergue para provar a si mesmo que esta ou aquela de nossas suspeitas são incitadas. Pois a pequena tensão excedente depositada na qualidade que deseja que vejamos nele, torna-a grosseira e de um colorido borrado, de forma que em vez de humor, temos farsa, e em vez de sentimento, sentimentalismo. Ai, em vez de sermos convencidos da ternura do coração de Sterne,— que em Tristram Shandy  jamais esteve em questão  –começamos a duvidar.. Pois sentimos que Sterne está pensando não na coisa em si, mas na sua repercussão sobre o que achamos dele. Os mendigos se juntam ao seu redor e ele dá ao pauvre honteux (pobre envergonhado) mais do que pretendia. Sua mente, porém, não está apenas e tão simplesmente nos mendigos; sua mente está particularmente em nós. Para verificar se apreciamos sua bondade. De modo que sua conclusão “e acreditei que ele me agradeceu mais do que todos os outros”, colocado, para maior ênfase, ao fim do capítulo, nos enjoa com sua doçura como um torrão de açúcar puro no fundo de uma xícara. Na realidade, a principal falha de Uma Viagem Sentimental vem do interesse de Sterne por nossa boa opinião sobre seu coração. Há uma monotonia acerca disso, apesar de seu brilhantismo, como se o autor tivesse refreado a variedade natural e a vivacidade de seus gostos, com receio de que pudessem ser ofensivos. A jocosidade se reduz a um humor invariavelmente muito bondoso, terno e compadecido demais para ser completamente natural. Perde-se a variedade, o vigor, a libertinagem de Tristram Shandy. O interesse pela sua sensibilidade cegou sua agudeza natural, e somos obrigados a fitar por longo tempo a modéstia, a simplicidade e a virtude numa postura imóvel demais para que aguentemos olhá-las.

Contudo é significativo da mudança de gosto que nos atinge que seja o sentimentalismo de Sterne que nos ofende e não sua imoralidade. Aos olhos do século dezenove tudo o que Sterne escreveu ficou enevoado por sua conduta como marido e amante. Thackeray chicoteou-o com sua justa indignação, e exclamou que “Não há uma página dos textos de Sterne que não tenha alguma coisa que seria melhor tirar, uma perversão latente – uma insinuação de uma impura presença.” Para nós, nos dias atuais, a arrogância do romancista vitoriano parece pelo menos tão censurável quanto as infidelidades do pároco do século dezoito. No lugar de suas mentiras e frivolidades, deploradas pelos vitorianos, são muito mais evidentes agora a coragem com que devolveu todas as aflições da vida ao riso e o brilhantismo da expressão.

De fato, Uma Viagem Sentimental, apesar de toda sua leveza e espirituosidade é baseada em alguma coisa fundamentalmente filosófica. É verdade que é uma filosofia que estava bem fora de moda na era vitoriana – a filosofia do prazer; a filosofia que defende que é necessário se comportar bem tanto com as pequenas coisas quanto com as grandes, que faz a alegria, mesmo a de outras pessoas, parecer mais desejável que seus sofrimentos. O homem descarado teve a ousadia de confessar “ter tido um caso amoroso com uma princesa ou outra por quase toda a minha vida”, e de acrescentar, “e espero poder continuar assim até morrer, firmemente convencido de que se alguma vez realizei uma ação maldosa, deve ter sido em algum intervalo entre uma paixão e outra”. O desgraçado teve a audácia de gritar através dos lábios de um de seus personagens. “Mais vive la joie…Vive  l’amour! Et vive la bagatelle!” Embora fosse clérigo, teve a irreverência de refletir, enquanto assistia aos lavradores franceses dançando, que poderia distinguir uma elevação de espírito, diferente da que é causa ou cosequência de simples alegria. – “Numa palavra, creio que vejo Religion misturada à dança”.

Era um atrevimento para um clérigo perceber a relação entre religião e prazer. Porém, o que pode, talvez, desculpá-lo é que, em seu caso, a religião da felicidade teve grandes dificuldades para enfrentar. Se você não é mais jovem, se está profundamente endividado, se sua esposa é desagradável, se, ao sacolejar pela França em uma carruagem, você está morrendo de tuberculose, então, afinal, a procura da felicidade não é tão fácil. Mesmo assim, persegui-la é uma obrigação. É preciso piruetar pelo mundo, olhando e perscrutando, deleitando-se com um flerte aqui, entregando uns cobres ali, e sentando-se em qualquer pedaço de terra ensolarado que se possa achar. É preciso contar uma piada, mesmo que a piada não seja muito decente. Mesmo na vida diária é preciso não se esquecer de gritar “Ave, minúsculas, doces cortesias da vida, pois tornais a estrada da vida mais fácil!” É preciso – basta de tanto precisar; este não seria um termo que Sterne gostava de usar. Somente quando se põe o livro de lado e se invoca seu equilíbrio, sua graça, sua sincera alegria em todos os diferentes aspectos da vida, e a tranquilidade e a beleza brilhantes com que nos são transmitidas, credita-se ao escritor a espinha dorsal/caráter moral da convicção para sustentá-lo. Não foi o covarde de Thackeray – o homem que desperdiçou seu tempo de forma tão imoral com tantas mulheres e escrevia cartas de amor em papéis ornados de ouro quando deveria estar deitado em uma cama doente ou redigindo sermões – não foi ele um estoico à sua maneira e um moralista, e um professor? A maioria dos grandes escritores o são, afinal. E de que Sterne foi um grande escritor não podemos duvidar.

*Tradução de Adelaide Câmara e Lourdes Rodrigues, com apoio de Monica Raposo. Supervisão: Tim Beech. Cotejada com a de Luciana Viégas.