Cronicas para lembrar

Um sonho

 Rubem Braga

 

 

Não posso escrever sobre outra coisa. E não devia escrever nada hoje. Penso um instante no que sentirão os leitores: essa coisa que me emociona de maneira tão profunda, o sonho que, ainda me dói no corpo e na alma, será para eles uma vitória vulgar; pior ainda, precisarei escrever com muito cuidado, para que esse instante de infinita pureza que eu vivi não pareça, a outrem, apenas um pequeno trecho de literatura barata.

Na verdade não houve nem mesmo um beijo, ou, se houve, ele perdeu qualquer sentido, para ficar apenas dentro de mim essa impressão de doçura profunda e perfeita de felicidade. Aquela mulher estava nua. E escrevendo “mulher nua” no jornal, como soa a escândalo! Seria preciso escrever com uma grande delicadeza para fazer sentir como eu senti naquele momento: beleza, pureza – alguma coisa tão limpa e tão suave, além de qualquer desejo, apenas o sentimento da vida mansa daquela pele de um dourado pálido.

Além dos nossos sentidos há um outro – mas não estou falando de coisas espirituais, eu estou falando de sentimentos vividos em um instante em que não há diferença entre coisas materiais e espirituais. Se as linhas de seu corpo ainda existiam, eram como uma vaga lembrança, um desenho imaterial suspenso no ar. O que me emocionava era a carne, como se eu vivesse a vida de seus tecidos, a sua doce vida perante o ar – leve como um sussurro de ramos longe, como um ruflar de ave imponderável, um murmúrio perdido na distancia. E seu corpo era tão belo que senti um aperto na garganta, e os olhos úmidos.

Perdido! Eu lutava confusamente para não despertar de todo, pois sabia que então estaria perdido para sempre esse corpo feito de carne e sonho. Uma angústia se apossou de mim, a claridade da janela me feria os olhos, afundei a cabeça no leito para salvar essa visão de vinte anos antes.

E ainda o revi por um instante, como se estivesse sumindo em uma luz dourada, e na luz se perdendo, voltando a ser apenas luz.

Desperto. Penso um instante nessa mulher de quem há tantos anos não tenho notícia nem quase lembrança, essa que foi perfeita na dignidade e na pureza de sua nudez – e que hoje ainda não sei em que cidade ou país, não sei ao lado de quem – nem sei mesmo se ainda vive. Sua pessoa, sua risada, sua amargura, e o som de sua voz, tudo se perdeu em mim. Mas por um instante viveu, no meu sonho, aquele esplendor suave de uma nudez, que eu guardara tão quietamente no fundo de minha emoção como se quisesse proteger de todo o lirismo e de toda a sensualidade o momento melhor de minha vida.

 

Crônicas para lembrar


imagesCAWV3K9A*Somos todos estrangeiros

**Ivan Lessa

Estrangeiro é o bairro em que moramos, estrangeira é a mulher que encoxamos no elevador, estrangeiros são nossos pais, nossos filhos. Nunca me senti em casa no Brasil, ninguém está em casa no Brasil: todo mundo foi até a esquina, todo mundo foi tomar um cafezinho. Achava que, de uma maneira ou de outra, eu estava embromando ou sendo embromado por alguém. Que viver não era nada daquilo, que eu não tinha nada com o peixe, que os verdadeiros brasileiros estavam misteriosamente ocupados com seus sofrimentos, ou então atarefados criando um Brasil melhor: gente andando rapidamente nas ruas da cidade, ou cavando uma terra dura e ingrata. Os brasileiros eram abstratos, distantes, mais calados do que comumente se supõe. Conheço algumas vozes brasileiras: gostaria de saber escrever na tonalidade do Jorge Veiga, ou do Moreira da Silva, misturada a uma retórica aborrecida e às avessas semelhante à de Ruy Barbosa — como o Hino à Bandeira acompanhado de caixinha de fósforos. Os sambinhas, claro, eram brasileiros, o pessoal que sentava ao meu lado no Maracanã era brasileiro, as piadas de papagaio eram brasileiras. Mas tudo era de mentirinha, beirando sempre o pitoresco ou se precipitando na tragédia policial ou no editorial dos jornais. A vida a sério, os seis quarteirões em que me locomovia, as seis pessoas com quem convivia não eram, digamos assim, bem brasileiros — assim como eu, tinham máquina fotográfica a tiracolo e camisas com palmeiras.

Em tudo que eu engolia ficava uma ponta de tradução atravessada em minha garganta: os filmes com legendas em português, as histórias em quadrinhos, os livros, as notícias; os foxes. Éramos uma versão pobre do que a vida deveria ser — e a vida vinha sempre em inglês, em francês, em alemão. Mesmo quando dizia “eu te amo”, ou “não me chateia”, eu me sentia vagamente ridículo, apropriador — feito um homem de série da televisão mal dublado: minha boca fechada e as palavras ainda saindo, um ventríloquo com descontrole psicomotor.

Reconheci, pelo paladar, pelos olhos, certos molhos, certas bossas tipicamente brasileiras (o problema é que eram típicos): feijoada, dendê, folha seca de Didi, Noel Rosa, escola de samba. Mas a essência, a parte que tratava de mim (nos meus seis quarteirões, na cidade no sul do país) e de minha relação com os severinos todos, essa parte era sempre tratada em outra língua; eu pertencia aos estrangeiros, foram eles que me disseram como vim a fazer parte ou como nunca fiz parte. Eu era, como todo brasileiro, um improvisador, um adaptador, um tradutor, conseqüentemente um traidor — porque eu olhava para a cara de meu semelhante e não sabia como poderíamos nos entender, o que ele tinha a me dizer, o que eu poderia lhe dizer, como juntos conseguiríamos nos salvar. No entanto, o tempo todo, eu era, eu sou, apenas mais um João, só que em russo.

Não consegui, como tanta gente de minha geração ou mais moça do que eu, me interessar pelo folclore caboclo. A própria palavra folclore já leva embutido um desaforo urbano. No entanto, achava que o setor, devidamente estudado por profissionais competentes, me seria útil, me forneceria, por exemplo, dados para escrever com justeza para um público moço que vive de cinema, disco e que sabe, curiosamente, que há uma tremenda safadeza, uma violência no ar. Não lia, portanto, O Negrinho do Pastoreio — o que já preparava o terreno até para eu deixar de ler Machado de Assis ou Dalton Trevisan. Comprava pocketbooks, que eram mais baratos, mais engraçados, e, de certa forma, sobre mim, a meu respeito. Preocupado comigo mesmo, com esse “meu respeito”, descobri-me sozinho no meio da avenida repetindo eu… eu… eu… como um pronome enguiçado que não consegue engatar a segunda e a terceira do singular. Perdi os joões, os josés, os severinos, vim para o original, o estrangeiro, dando início a uma certa paz, tranqüilidade, a noção de ordem: as legendas acabaram, sou finalmente, completamente, um estrangeiro. Posso agora conjugar-me no plural, dizer nós. Somos todos estrangeiros, sois todos estrangeiros, são todos estrangeiros. Não há nada a fazer a não ser descobrir esse estrangeiro que há na gente. Daí então a gente começa a falar brasileiro, coça o saco, conta como é que é. Daí então o papo, aquele papo, pode começar. Só que agora pra valer.

Londres, 7 de setembro, 1970

* Está nas 100 Melhores Crônicas Brasileiras.
**Ivan Lessa ou Ivan Pinheiro Themudo Lessa, escritor, jornalista,  filho do escritor Orígenes Lessa e da jornalista e cronista Elsie Lessa. Bisneto de Júlio César,autor de A Carne. Ivan publicou, Garotos da Fuzarca (contos), Ivan Vê o Mundo (crônicas), O Luar e a Rainha (crônicas). Ele morava em Londres desde os anos 70, morreu em junho de 2012.

 

 

Segunda-feira azul

 

Soneto do Desmantelo Azul

 
Carlos Pena Filho


 

Então pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas. 

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

 

Dia Internacional da Mulher

Na Oficina, quarta-feira, comemoramos o dia internacional da mulher com fragmentos do Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam, e um texto de Virgínia Woolf, apresentado por ela, em 21 de janeiro de 1931, para a Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres.

Por que escolhi esses dois textos para celebrar a mulher? 

images[1]No Elogio da Loucura, (L&PM, tradução de Paulo Neves), o narrador é a própria Loucura que, numa linguagem coloquial, fala dos deuses e dos homens, muito à vontade, e sem qualquer sombra de modéstia, afirma: Não, não há na terra nem alegria, nem felicidade, nem prazer que não venha de mim. Ao falar da Mulher, ela (a Loucura) diz que a mulher é sempre mulher, isto é, sempre louca, ainda que se esforce para disfarçá-lo, e não acredita que as mulheres fiquem com raiva dela por falar assim,  na realidade, ela as está elogiando, até porque, também, ela própria, é mulher. 

No Prólogo, o autor fala que a inspiração para o livro veio-lhe durante uma longa viagem a cavalo, da Itália à Inglaterra, lembrando-se dos amigos que estaria para rever, em especial de Tomás Morus, por quem tinha afeto especial,e dedicou a obra. Começou pela associação do nome de Morus à Moria, nome que os gregos dão à Loucura, e a intenção era de apenas de se distrair, não era de fazer uma obra séria. Mais de seis séculos se passaram e o livro continua  sendo publicado e admirado por todos os leitores, numa demonstração irrefutável de que se tornou um clássico da literatura.

Erasmo de Rotterdam, por conta do nome do lugar onde nasceu, na verdade, chamava-se Geraldo Elia, herdado do pai. Mais tarde, traduzindo-o do grego e do latim chegou a Desidério Erasmo, conhecido, também, como o Voltaire Latino, face às suas críticas à Igreja. Nasceu no século XV, filho da relação ilícita de Geraldo com Margarida, cuja família passou a persegui-lo, obrigando-o a se refugiar em Roma. Lá, ele soube da morte de Margarida, entrou para o convento e tornou-se padre. Descoberto o engano, abandonou tudo, foi para a Alemanha e passou a viver com a esposa e o filho.  Os seus pais morreram muito jovens e o tutor de Erasmo.internou-o num convento, onde ele, muito amargurado, dedicou-se vigorosamente aos estudos. Aos 21 anos de idade escreveu o seu primeiro livro, O Desespero do Mundo. Elogio da Loucura foi publicado em Paris, em 1509, quando ele já estava bem maduro.

Aqui estão os fragmentos sobre as mulheres, em que  a  Loucura, usando de uma narração autodiegética, na primeira pessoa, protagonista, com total saber sobre fatos e emoções dos personagens diz:  

A exemplo de Homero, que vai sucessivamente da terra aos céus e dos céus à terra, deixo, porém o Olimpo, para voltar uma vez mais entre os homens. Não, não há na terra nem alegria, nem felicidade, nem prazer que não venha de mim. Vêde, primeiramente, com que previdência a natureza, essa terna mãe do gênero humano, teve o cuidado de semear em toda parte o condimento da loucura! Pois, segundo os estóicos, ser sábio é tornar a razão como guia; ser louco é deixar-se levar ao sabor das paixões. Ora, Júpiter, para suavizar um pouco as agruras e os desgostos da vida, não deu aos homens mais paixões do que razão? A proporção de umas à outra é como a de um grão a uma dracma. E essa razão, ele a relegou a um pequeno canto da cabeça, enquanto entregou o resto do corpo às agitações contínuas das paíxões. Depois, ele ainda opôs a essa pobre razão, completamente sozinha, dois tiranos muito impetuosos e violentos: a cólera, que reina na parte superior, e portanto no coração, que é a fonte da vida, e a concupiscência, cujo império estende-se até o púbis. A conduta dos homens mostra bem, diariamente, o que pode a razão contra esses dois poderosos inimigos. Ela prescreve as leis da honestidade, grita até ficar rouca para que sejam observadas; é tudo o que pode fazer. Seus inimigos zombam dessa pretensa rainha, insultam-na e berram mais alto, até que enfim, cansada da resistência inútil, ela se entrega e consente tudo o que eles querem.

Mas como o homem, destinado aos afazeres, não tivesse mais que um pingo de razão para se conduzir, Júpiter, não sabendo o que fazer, me chamou, como de costume, para me consultar. Dei-lhe então um conselho digno de mim: “Faça uma mulher, eu disse, e a dê ao homem como companheira. É verdade que a mulher é um animal extravagante e frívolo; mas é também divertida e agradável. Vivendo com o homem, ela saberá, com suas loucuras, temperar-lhe e suavizar-lhe o humor tristonho e rabugento.”

Quando Platão parece duvidar se deve colocar a mulher na classe dos animais racionais ou na dos brutos, ele quer apenas nos indicar com isso a extrema loucura desse sexo encantador. Com efeito, se acontece de uma mulher querer passar por sábia, ela não faz senão acrescentar uma loucura à que já possuía; pois, quando se recebeu da natureza algum pendor vicioso, querer resistir-lhe ou ocultá-lo sob a máscara da virtude é aumentá-lo. Um macaco é sempre macaco, diz um provérbio grego, mesmo quando vestido de púrpura. Do mesmo modo, uma mulher é sempre uma mulher, isto é, sempre louca, ainda que se esforce por disfarçá-lo.

Não creio que as mulheres sejam tão loucas a ponto de se zangarem com o que digo aqui. Sou do sexo delas, sou a Loucura; provar que são loucas não é o maior elogio que se pode fazer delas? De fato, considerando bem as coisas, não é a essa Loucura que elas devem agradecer por serem infinitamente mais felizes que os homens? Não é dela que recebem aquelas graças, aqueles atrativos, que elas têm razão de preferir a a tudo, e que lhes servem para acorrentar os mais orgulhosos tiranos?

De onde vêm, nos homens, essa aparência repulsiva e selvagem, essa pele áspera, essa floresta de barba e esse ar de velhice que eles têm em todas as idades? Tudo isso vem do maior de todos os vívios, a prudência, As mulheres, ao contrário, têm a face lisa, a voz suave, a pele delicada, tudo nelas oferece a imagem encantadora de uma juventude contínua. Aliás, têm elas outro desejo na vida senão o de agradar os homens? Não é esse o objetivo dos enfeites, das maquiagens, dos banhos, dos penteados, dos perfumes, dos odores, enfim, de todos esses preparados cosméticos que servem para embelezar, pintar ou disfarçar o rosto, os olhos e a pele? Pois bem, não é pela loucura que elas podem atingir esse objetivo tão desejado? E, se os homens toleram tudo nas mulheres, não é unicamente em vista do prazer que delas esperam? E esse prazer, o que é senão a loucura? Estaremos convencidos dessa verdade se atentarmos a todas as futilidades que um homem diz, a todas as loucuras que ele faz com uma mulher, sempre que tem vontade de gozar de seus favores.

Sabeis agora, portanto, qual é a fonte do maior prazer da vida. Mas muita gente, e sobretudo os velhos, preferindo os favores de Baco aos do amor, acha que a soberana volúpia consiste nos prazeres da mesa. Não examinarei aqui se é possível fazer uma boa refeição sem mulheres. O certo é que não haverá nenhuma que seja triste ou insípida, se for alegrada pela loucura.

O segundo texto lido na oficina, foi o discurso que Virgínia Woolf fez na Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres, em 1931. Além de ficcionista, Virgínia Woolf foi excelente ensaísta e resenhista. Grandes autores, grandes obras foram resenhadas por ela. Na Oficina tivemos a oportunidade de ler a resenha sobre Viagem Sentimental, de Laurence Sterne, objeto de  postagem nesse blog. Além disso, foi uma militante da causa feminista, havendo muitos escritos que retratam bem essa sua posição em favor do gênero, ela era sempre convidada para falar em encontros onde se discutia a questão da mulher.

Eis o texto lido na oficina, extraído do livro publicado pela L&PM, com  tradução de Denise Bottman: Profissões para mulheres e outros artigos feministas.. Vale a pena ler o livro,, são excelentes todos os textos escritos pela autora.

 

 

 Profissões para mulheres


Virgínia Wòolf  leu esse texto para a Sociedade
Nacional de Auxílio às Mulheres em 2 1 de janeiro de 1931 . Foi publicado postumamente em A Morte da Mariposa,  1942.

 
profissoes_para_mulheres_m[1]Quando a secretária de vocês me convidou para vir aqui, ela me disse que esta Sociedade atende à colocação profissional das mulheres e sugeriu que eu falasse um pouco sobre minhas experiências profissionais. Sou mulher, é verdade; tenho emprego, é verdade; mas que experiências profissionais tive eu? Difícil dizer. Minha profissão é a literatura; e é a profissão que, tirando o palco, menos experiência oferece às mulheres — menos, quero dizer, que sejam específicas das mulheres. Pois o caminho foi aberto muitos anos atrás — por Fanny- Bumey, Aphra Behn, Harriet Maitineau, Jane Austen, George Eliot* —; muitas mulheres famosas e muitas outras desconhecidas e esquecidas vieram antes, aplainando o terreno e orientando meus passos. Então, quando comecei a escrever, eram pouquíssimos os obstáculos concretos em meu caminho. Escrever era uma atividade respeitável e inofensiva. O riscar da caneta não perturbava a paz do lar. Não se retirava nada do orçamento familiar. Dezesseis pences bastam para comprar papel para todas as peças de Shakespeare — se a gente for pensar assim. Um escritor não precisa de pianos nem de modelos, nem de Paris, Viena ou Berlim, nem de mestres e  amantes. Claro que foi por causa do preço baixo do papel que as mulheres deram certo como escritoras, antes de dar certo nas outras profissões.

Mas vamos à minha história — ela é simples. Basta que vocês imaginem uma moça num quarto, com uma caneta na mão. Só precisava mover aquela caneta da esquerda para a direita— das dez à uma. Então ela teve uma ideia que no fundo é bem simples e barata – enfiar algumas daquelas páginas dentro de um envelope, colar um selo no canto de cima e pôr o envelope na caixa vermelha da esquina. Foi assim que virei jornalista,- e meu trabalho foi recompensado no primeiro dia do mês seguinte—um dia gloriosíssimo para mim — com uma carta de um editor, um cheque de uma libra, dez xelins e seis pences. Mas, para lhes mostrar que não mereço muito ser chamada de profissional, que não conheço  muito as lutas e as dificuldades da vida de mulher profissional, devo admitir que, em vez de gastar aquele dinheiro com pão e manteiga, aluguel, meias e sapatos ou com a conta do açougueiro, saí e comprei um gato — um gato lindo, um gato persa, que logo me criou sérias brigas com os vizinhos.

Existe coisa mais fácil do que escrever artigos e comprar gatos persas com o pagamento? Mas esperem aí. Os artigos têm de ser sobre alguma coisa. O meu, se bem me lembro, era sobre um romance de um homem famoso. E, quando eu estava escrevendo aquela resenha, descobri que, se fosse resenhar livros, ia ter de combater
certo fantasma. E o fantasma era uma mulher, 
  quando a conheci melhor, dei a ela o nome da heroína de um famoso poema, “O Anjo do Lar”. Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher. Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido falar dela—talvez não saibam o que quero dizer com o Anjo do Lar. Vou tentar resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta.  Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar—em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo — nem preciso dizer — ela era pura. Sua pureza era tida como
sua maior beleza — enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias — os últimos da rainha Vitória — toda casa tinha seu Anjo. E,  quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página; ouvi o
farfalhar de suas saias no quarto. Quer dizer, na  hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: “Querida, você é uma moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura” . E ela fez que ia guiar minha caneta. E agora eu conto a única ação minha em que vejo algum mérito próprio, embora na verdade o mérito seja de alguns excelentes antepassados que me deixaram um bom dinheiro—digamos, umas quinhentas libras anuais? — e assim eu não precisava só do charme para viver. Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta. Fiz de tudo para esganá-la. Minha desculpa, se tivesse de comparecer a um tribunal, seria legítima defesa. Se eu não a matasse, ela é que me mataria. Arrancaria o coração de minha escrita. Pois, na hora em que pus a caneta no
papel, percebi que não dá para fazer nem mesmo uma resenha sem ter opinião própria, sem dizer o que a gente pensa ser verdade nas relações humanas, na moral, no sexo. E, segundo o Anjo do Lar, as mulheres não podem tratar de nenhuma dessas questões com liberdade e franqueza; se querem se dar bem, elas precisam agradar, precisam conciliar, precisam — falando sem rodeios — mentir.
Assim, toda vez que eu percebia a sombra de sua asa ou o brilho de sua auréola em cima da página, eu pegava o tinteiro e atirava nela. Demorou para morrer. Sua natureza fictícia lhe foi de grande ajuda. É muito mais difícil matar um fantasma
do que uma realidade. Quando eu achava que já tinha acabado com ela, sempre reaparecia sorrateira. No fim consegui, e me orgulho, mas a luta foi dura; levou muito tempo, que mais valia ter usado para aprender grego ou sair pelo mundo
em busca de aventuras. Mas foi uma experiência
  real; foi uma experiência inevitável para todas as escritoras daquela época. Matar o Anjo do Lar fazia parte da atrvidade de uma escritora.

Mas continuando minha história: o Anjo morreu, e o que ficou? Vocês podem dizer que o que ficou foi algo simples e comum — uma jovem num quarto com um tinteiro. Em outras palavras, agora que tinha se livrado da falsidade, a moça só tinha de ser ela mesma. Ah, mas o que é “ela mesma”? Quer dizer, o que é uma mulher? Juro
que não sei. E duvido que vocês saibam. Duvido que alguém possa saber, enquanto ela não se expressar em todas as artes e profissões abertas às capacidades humanas. E de fato esta é uma das razões pelas quais estou aqui, em respeito a vocês, que estão nos mostrando com suas experiências o que é uma mulher, que estão nos dando, com seus fracassos e sucessos, essa informação da
maior importância.

Mas retomando a história de minhas experiências profissionais. Recebi uma libra, dez xelins e seis pences por minha primeira resenha, e comprei um gato persa com esse dinheiro. E aí fiquei ambiciosa. Um gato persa é uma coisa ótima, disse eu; mas um gato persa não chega.Preciso de um carro.! E foi assim que virei romancista — pois é muito estranho que as pessoas nos dêem um carro se a gente contar uma história para elas. E é ainda mais estranho, pois a coisa mais gostosa do mundo é contar histórias. E muito mais agradável do que escrever resenhas
de romances famosos. Mas, se é para atender à secretária de vocês e lhes contar minhas experiências profissionais como romancista, preciso falar de uma experiência muito esquisita que me aconteceu como romancista. E, para entender, primeiro vocês têm de tentar imaginar o estado de espírito de um romancista. Acho que não estou revelando nenhum segredo profissional ao dizer que o maior desejo de um romancista é ser o mais inconsciente possível. Ele precisa se induzir a um
estado de letargia constante. Ele quer que a vida siga com toda a calma e regularidade. Enquanto escreve, ele quer ver os mesmos rostos, ler os mesmos livros, fazer as mesmas coisas um dia depois do outro, um mês depois do outro, para que nada venha a romper a ilusão em que vive — para que nada incomode ou perturbe os misteriosos movimentos de farejar e sentir ao redor, os saltos, as arremetidas e as súbitas descobertas daquele  espírito tão tímido e esquivo, a imaginação. Desconfio que seja o mesmo estado de espírito para homens e mulheres. Seja como for, quero que vocês me imaginem escrevendo um romance em estado de transe. Quero que vocês imaginem uma moça sentada com uma caneta na mão, passando  minutos, na verdade horas, sem molhar a pena no tinteiro. Quando penso nessa moça, a imagem que me ocorre é alguém pescando, em devaneios à beira de um lago fundo, com um caniço na mão. Ela deixava a imaginação vaguear livre por todas as pedras e fendas do mundo submerso nas profundezas de nosso ser inconsciente. Então vem a experiência, a experiência que creio ser muito mais comum com as mulheres do que com os homens que escrevem. A linha correu pelos dedos da moça. Um tranco puxou a imaginação. Ela tinha sondado as poças, as funduras, as sombras onde ficam os peixes maiores. E então bate em alguma coisa. Foi uma pancada forte. Espumarada, tumulto. A imaginação tinha colidido numa coisa dura. A moça foi despertada do sonho. E de
fato ficou na mais viva angustia e aflição. Falando sem metáforas, ela pensou numa coisa, uma coisa sobre o corpo, sobre as paixões, que para ela, como mulher, era impróprio dizer. E a razão lhe diz que os homens ficariam chocados. Foi a consciência do que diriam os homens sobre uma mulher que fala de suas paixões que a despertou do estado de inconsciência como artista. Não podia mais escrever. O transe tinha acabado. A imaginação não conseguia mais trabalhar. Isso creio que é uma experiência muito comum entre as mulheres que escrevem — ficam bloqueadas pelo extremo convencionalismo do outro sexo. Pois, embora sensatamente os homens se permitam grande liberdade em tais assuntos, duvido que percebam ou consigam controlar o extremo rigor com que condenam a mesma liberdade nas mulheres.

Então, essas foram duas experiências muito genuínas que tive. Foram duas das aventuras de minha vida profissional. A primeira — matar o Anjo do Lar — creio que resolvi.  Ele morreu. Mas a segunda, falar a verdade sobre minhas experiências do corpo, creio que não resolvi. Duvido que alguma mulher já tenha resolvido. Os obstáculos ainda são imensamente grandes — e muito difíceis de definir. De fora, existe coisa mais simples do que escrever livros? De fora, quais os obstáculos
para uma mulher, e não para um homem? Por dentro, penso eu, a questão é muito diferente; ela ainda tem muitos fantasmas a combater, muitos preconceitos a vencer. Na verdade, penso eu, ainda vai levar muito tempo até que uma mulher
possa se sentar e escrever um livro sem encontrar com um fantasma que precise matar, uma rocha que precise enfrentar- E se é assim na literatura, a profissão mais livre de todas para as mulheres, quem dirá nas novas profissões que agora vocês 
estão exercendo pela primeira vez? São perguntas que gostaria de lhes fazer,
se tivesse tempo. Na verdade, se insisti nessas minhas experiências profissionais, foi porque creio que também sejam as  de vocês, embora de outras maneiras. Mesmo quando o caminho está nominalmente aberto—quando nada impede qu
uma mulher seja médica, advogada, funcionária pública —, são muitos, imagino eu, os fantasmas e obstáculos pelo  caminho. Penso que é muito bom e importante discuti-los e defini-los, pois só assim é possível dividir o trabalho, resolver a
dificuldades. Mas, além disso, também é necessário discutir as metas e os fins pelos quais lutamos, pelos quais combatemos esses obstáculos tremendos. Não podemos achar que essas metas estão dadas; precisam ser questionadas e examinadas constantemente. Toda a questão, como eu vejo – aqui neste salão, cercada de mulheres que praticam pela primeira vez na história não sei quantas
profissões diferentes —, é de importância e interesse extraordinário. Vocês ganharam quartos próprios na casa que até agora era só dos homens. Podem, embora com muito trabalho e esforço, pagar o aluguel. Estão ganhando suas quinhentas libras por ano. Mas essa liberdade é só o começo; o quarto é de vocês, mas ainda está vazio. Precisa ser mobiliado, precisa ser decorado, precisa ser dividido- Como “vocês vão mobiliar, como voces vão decorar? Com quem vão dividi-lo e em que termos? São perguntas, penso eu, da  maior importância e interesse. Pela primera vez na história, vocês podem fazer essas perguntas; pela primeira vez, podem decidir quais serão as respostas. Bem que eu gostaria de ficar e discutir essas perguntas e respostas — mas não hoje. Meu tempo acabou, e paro por aqui.