Psicanálise e Literatura

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Psicanálise e Literatura

*Fernando Gusmão

Sabemos que Sigmund Freud, enquanto criava a Psicanálise, mostrava-se para o mundo como um escritor de invejável qualidade. Já em 1930, Walter Muschg, o primeiro crítico a estudar a prosa freudiana, na abertura do ensaio “Freud como escritor”, comentava: “… Ele exprime a rara unidade entre conteúdo e forma que sentimos como algo espontâneo”.

Como escritor, Freud, no seu robusto artigo “Escritores Criativos e Devaneio” (1908/1996), coloca questões que muito nos interessam: O que os escritores fazem, ao elaborar suas criações literárias? De onde eles extraem seus conteúdos? Como suas criações afetam seus leitores?

Tirei desse artigo passagens que dizem respeito a essas indagações:

Sempre sentimos uma intensa curiosidade em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes. Nosso interesse intensifica-se ainda mais pelo fato de que, ao ser interrogado, o escritor não nos oferece uma explicação, ou pelo menos nenhuma explicação satisfatória.

Os escritores, o que, de fato, eles fazem?

Para responder a essa pergunta, comecemos por compreender que a ocupação favorita e mais intensa da criança é o brinquedo ou os jogos. Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e despende na mesma muita emoção. Vale notar que a antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real. Ela distingue perfeitamente seu mundo de brinquedo da realidade e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o ‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’.

Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham nesse brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado. Acredito que a maioria das pessoas construa fantasias em algum período de suas vidas. Este é um fato a que, por muito tempo, não se deu atenção, e cuja importância não foi, assim, suficientemente considerada. Em vez de brincar, agora fantasiamos. Construímos castelos no ar e criamos o que chamamos de devaneios.

As fantasias das pessoas são menos fáceis de observar do que o brincar das crianças. A criança, mesmo que não brinque em frente dos adultos, não lhes oculta seu brinquedo. O adulto, ao contrário, envergonha-se de suas fantasias, escondendo-as das outras pessoas. Acalenta suas fantasias como seu bem mais íntimo, e em geral preferiria confessar suas faltas do que confiar a outro suas fantasias.

Vamos agora examinar algumas características do fantasiar. Podemos partir da tese de que a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita. As forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória. Ademais, os desejos motivadores variam de acordo com o sexo, o caráter e as circunstâncias da pessoa que fantasia.

No que diz respeito à relação entre a fantasia e o tempo é como se ela flutuasse entre três tempos – os três momentos abrangidos pela nossa ideação. O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une.

Não posso ignorar a relação entre as fantasias e os sonhos. Nossos sonhos noturnos nada mais são do que fantasias dessa espécie, como podemos demonstrar pela interpretação de sonhos. A linguagem, com sua inigualável sabedoria, há muito lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando de ‘devaneios’ as etéreas criações da fantasia.

Deixemos agora as fantasias e passemos ao escritor criativo. Acaso é realmente válido comparar o escritor imaginativo ao ‘sonhador em plena luz do dia’, e suas criações com os devaneios? Para que nossa comparação do escritor imaginativo com o homem que devaneia —e da criação poética com o devaneio— tenha algum valor é necessário, acima de tudo, que se revele frutuosa, de uma forma ou de outra.

O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias. Em minha opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da mesma natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nossas mentes.

Assim, podemos considerar as criações literárias como uma realidade convencional, libertadora, que promove fuga da penosa e austera realidade concreta. São criações imaginárias, é verdade, mas despertam emoções reais antes vistas como impróprias a um adulto.

As criações literárias são uma das principais vias de acesso aos conteúdos inconscientes. Proporcionam prazeres psíquicos elevadíssimos aos seus criadores, ao passo que aos seus leitores trazem, igualmente, prazeres psíquicos que, mesmo se parciais, não são menos importantes.

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Texto produzido a partir da leitura de

FREUD, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneio (1908/1996). In: FREUD, Sigmund. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1906-08/1996). Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: IMAGO. Disponível em 26/10/2018 em:

http://www.portalentretextos.com.br/noticias/escritores-criativos-e-devaneio-1908-1907,2137.html >

  • Fernando Gusmão, engenheiro, poeta, cronista, ensaísta, contista.