Viagem Quinta pelo Riso

Assim como no ano anterior, comemoramos o dia Internacional da Mulher com poesia, que outra forma melhor para se homenagear um ser tão inspirador dos poetas? Foi por isso que levamos o papa da poesia americana, com assento no panteão poético universal, Walt Whitman, com Esta é a Forma Fêmea:

Esta é a Forma Fêmea

*Walt Whitman

Esta é a forma fêmea:
dos pés à cabeça dela exala um halo divino,
ela atrai com ardente
e irrecusável poder de atração,
eu me sinto sugado pelo seu respirar
como se eu não fosse mais
que um indefeso vapor
e, a não ser ela e eu, tudo se põe de lado
— artes, letras, tempos, religiões,
o que na terra é sólido e visível,
e o que do céu se esperava
e do inferno se temia,
tudo termina:
estranhos filamentos e renovos
incontroláveis vêm à tona dela,
e a acção correspondente
é igualmente incontrolável;
cabelos, peitos, quadris,
curvas de pernas, displicentes mãos caindo
todas difusas, e as minhas também difusas,
maré de influxo e influxo de maré,
carne de amor a inturgescer de dor
deliciosamente,
inesgotáveis jactos límpidos de amor
quentes e enormes, trémula geléia
de amor, alucinado
sopro e sumo em delírio;
noite de amor de noivo
certa e maciamente laborando
no amanhecer prostrado,
a ondular para o presto e proveitoso dia,
perdida na separação do dia
de carne doce e envolvente.

Eis o núcleo — depois vem a criança
nascida de mulher,
vem o homem nascido de mulher;
eis o banho de origem,
a emergência do pequeno e do grande,
e de novo a saída.

Não se envergonhem, mulheres:
é de vocês o privilégio de conterem
os outros e darem saída aos outros
— vocês são os portões do corpo
e são os portões da alma.

A fêmea contém todas
as qualidades e a graça de as temperar,
está no lugar dela e movimenta-se
em perfeito equilíbrio,
ela é todas as coisas devidamente veladas,
é ao mesmo tempo passiva e activa,
e está no mundo para dar ao mundo
tanto filhos como filhas,
tanto filhas como filhos.
Assim como na Natureza eu vejo
minha alma refletida,
assim como através de um nevoeiro,
eu vejo Uma de indizível plenitude
e beleza e saúde,
com a cabeça inclinada e os braços
cruzados sobre o peito
— a Fêmea eu vejo.

Sempre procuramos postar, junto ao traduzido, o poema no seu original, para dar a sua verdadeira dimensão, força e beleza. Não foi fácil dessa vez,  o único encontrado pelas minhas pesquisas estava incompleto, então recorri a Adelaide, a nossa maruja garimpadora de perolas poéticas, para me ajudar. E aqui está o poema em Inglês completo: This is the female form , in  Leaves of Grass. 

This is the female form

A divine nimbus exhales from it from head to foot,
It attracts with fierce undeniable attraction,
I am drawn by its breath as if I were no more than a helpless
vapor, all falls aside but myself and it,
Books, art, religion, time, the visible and solid earth, and what was
expected of heaven or fear’d of hell, are now consumed,
Mad filaments, ungovernable shoots play out of it, the response
likewise ungovernable,
Hair, bosom, hips, bend of legs, negligent falling hands all dif
fused, mine too diffused,
Ebb stung by the flow and flow stung by the ebb, love-flesh swell-
ing and deliciously aching,
Limitless limpid jets of love hot and enormous, quivering jelly of
love, white-blow and delirious juice,
Bridegroom night of love working surely and softly into the pros-
trate dawn,
Undulating into the willing and yielding day,
Lost in the cleave of the clasping and sweet-flesh’d day.

This the nucleus—after the child is born of woman, man is born
of woman,
This the bath of birth, this the merge of small and large, and the
outlet again.

Be not ashamed women, your privilege encloses the rest, and is the
exit of the rest,
You are the gates of the body, and you are the gates of the soul.

The female contains all qualities and tempers them,
She is in her place and moves with perfect balance,
She is all things duly veil’d, she is both passive and active,
She is to conceive daughters as well as sons, and sons as well as
daughters.

As I see my soul reflected in Nature,
As I see through a mist, One with inexpressible completeness,
sanity, beauty,
See the bent head and arms folded over the breast, the Female
I see.

No ano anterior trouxemos Carlos Drummond de Andrade para homenagear a Mulher. Agora, em 2017,  revemos poema já lido anteriormente na Oficina,  de Vinicius de Moraes, A Mulher que Passa, uma entre várias celebrações desse poeta às mulheres.

A Mulher que Passa

Vinicius de Moraes

 

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! Como és linda, mulher que passas
que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Porque me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passa?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.

O nosso companheiro de viagens, Everaldo Soares Júnior, levou para a Oficina um grande poeta: Ezra Pound, famoso pelos seus poemas e pela influência sobre escritores e poetas famosos como James Joyce, T.S Eliot e muitos outros cardeais da Literatura.

Júnior levou uma pequena biografia do poeta para que nos familiarizássemos um pouco mais com ele, até porque ficou muito marcado pela sua posição política, principalmente, durante um dos períodos mais negros da nossa história que foi a Segunda Guerra MUndial.

Americano, nascido em Halley, Idaho, cresceu perto da Filadéfia e formou-se na Universidade da Pensilvânia. Durante algum tempo foi professor e em seguida viajou pela Espanha, Itália e França. O primeiro livro de poesias ele  publicou em Veneza, em 1908. Mudou-se para Londres onde fez um círculo de amizade com escritores importantes como Ford Madox, James Joyce, Yeats, T.S.Eliot, Windham Lewis, influenciando todos eles. Nesse período, publicou Personae e Exultations e um volume de ensaios sobre o Romance. Participou como coautor de Revistas em Londres e depois em Paris, para onde foi morar. Data de 1920 a publicação de textos críticos sobre Literatura. Conhecedor da Literatura Ocidental e Oriental, Pound, associou-se ao movimento Imagista, do qual foi o líder durante algum tempo. A ideia que circunscrevia esse movimento era que o poeta deveria explorar de forma disciplinada as potencialidades da imagem e da metáfora., consideradas a essência da poesia.  As origens desse movimento se encontravam na poesia chinesa e japonesa, na poesia latina, em poemas de tradição medieval inglesa. Pound escreveu Cantos, publicados ao longo de 1917/1949, e inacabados, onde pretendia fazer uma versão moderna da Divina Comédia de Dante.

Ao se mudar para a Itália, em 1924, as suas posições teóricas sobre política e economia o associaram ao fascismo, tendo inclusive feito pronunciamentos antidemocráticos numa radio italiana, durante a Segunda Guerra Mundial. Devido ao seu comprometimento com o fascismo foi preso em 1945 e solto pela pressão internacional dos artistas, quando foi repatriado. A defesa usou como argumento para que fosse libertado, que ele era mentalmente incapaz. Por conta disso, ao ser repatriado ele ficou internado num hospital psiquiátrico em Washington. Quando a acusação de traição, enfim,  foi retirada, em 1958, Pound voltou à Itália e continuou escrevendo os seus Cantos  até 1972, ano da sua morte.

Considerado um dos maiores poetas do século XX,  título que divide com Maiakóvski, a sua obra lírica, erudita, carregada de citações e alusões históricas, renovou a linguagem poética. Sendo o primeiro líder do modernismo dos Estados Unidos, sua influência fez-se sentir inclusive na poesia da Geração beat, que levou a extremos a ideia poundiana de que o poema deve reproduzir a ordem natural da sintaxe de uma língua (falada) e não afastar-se demais da música ou da própria língua falada, já que o poema deve soar natural ao ouvido se lido em voz alta. 

Pound classifica três maneiras de escrever poesia: uma voltada para as suas qualidades sonoras, pela sua melodia (melopeia); outra voltada para as imagens, para o visual (fanopeia), e outra para o que ele chamou de “a dança das ideias”, (logopeia).  Ele continua presente na poesia, ultrapassando as fronteiras da Europa e da língua inglesa.  No Brasil, a sua influência foi percebida no grupo da Poesia Concreta, na defesa pela economia verbal, sendo o exemplo mais claro João Cabral de Melo Neto.

Aqui estão as poesias trazidas por Everaldo Júnior no original e traduzidas, a exceção de Salvação que não consegui encontrar:

Envoi (1919)

Ezra Pound – tradução de Augusto Campos

Vai, livro natimudo,
E diz a ela
Que um dia me cantou essa canção de Lawes:
Houvesse em nós
Mais canção, menos temas,
Então se acabariam minhas penas,
Meus defeitos sanados em poemas
Para fazê-la eterna em minha voz

Diz a ela que espalha
Tais tesouros no ar,
Sem querer nada mais além de dar
Vida ao momento,
Que eu lhes ordenaria: vivam,
Quais rosas, no âmbar mágico, a compor,
Rubribordadas de ouro, só
Uma substância e cor
Desafiando o tempo.

Diz a ela que vai
Com a canção nos lábios
Mas não canta a canção e ignora
Quem a fez, que talvez uma outra boca
Tão bela quanto a dela
Em novas eras há de ter aos pés
Os que a adoram agora,
Quando os nossos dois pós
Com o de Waller se deponham, mudos,
No olvido que refina a todos nós,
Até que a mutação apague tudo
Salvo a Beleza, a sós.

 

Envoi

By Ezra Pound

Go, dumb-born book,
Tell her that sang me once that song of Lawes:
Hadst thou but song
As thou hast subjects known,
Then were there cause in thee that should condone
Even my faults that heavy upon me lie
And build her glories their longevity.

Tell her that sheds
Such treasure in the air,
Recking naught else but that her graces give
Life to the moment,
I would bid them live
As roses might, in magic amber laid,
Red overwrought with orange and all made
One substance and one colour
Braving time.

Tell her that goes
With song upon her lips
But sings not out the song, nor knows
The maker of it, some other mouth,
May be as fair as hers,
Might, in new ages, gain her worshippers,
When our two dusts with Waller’s shall be laid,
Siftings on siftings in oblivion,
Till change hath broken down
All things save Beauty alone.

E ASSIM EM NÍNIVE

Ezra Pound – tradução de Augusto Campos

“Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

“Veja! não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

“Não é, Ruaana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho.”

And Thus In Nineveh – Poem by Ezra Pound

Aye! I am a poet and upon my tomb
Shall maidens scatter rose leaves
And men myrtles, ere the night
Slays day with her dark sword.

‘Lo ! this thing is not mine
Nor thine to hinder,
For the custom is full old,
And here in Nineveh have I beheld
Many a singer pass and take his place
In those dim halls where no man troubleth
His sleep or song.
And many a one hath sung his songs
More craftily, more subtle-souled than I;
And many a one now doth surpass
My wave-worn beauty with his wind of flowers,
Yet am I poet, and upon my tomb
Shall all men scatter rose leaves
Ere the night slay light
With her blue sword.

‘It is not, Raana, that my song rings highest
Or more sweet in tone than any, but that I
Am here a Poet, that doth drink of life
As lesser men drink wine.’
Ezra Pound

SAUDAÇÃO

Ezra Pound – tradução de Mário Faustino

Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.

Foi um dia muito intenso na Oficina, além dos poetas referidos, lemos uma peça teatral de Moliére, As Preciosas Ridículas . Dividimos os papéis e ficou muito interessante a leitura, momento de descontração incrível por perceber o drama dos burgueses querendo apresentar uma cultura que eles não tinham.

Molière  (1622/1673) foi um dramaturgo francês, além de encenador e ator. Ele foi considerado um mestre no teatro, especialmente na comédia satírica que, até então, era muito dependente das tragédias gregas. Ele inaugurou uma nova forma de fazer teatro, em que a crítica aos costumes da época era a tônica. Foi considerado o fundador da Comédie -Française . As Preciosas Ridículas chamou a atenção da crítica para Moliére, mas não foi um sucesso absoluto, na época. Só muitos anos depois a peça começou a figurar entre as grandes obras do autor.

Não houve tempo para se discutir mais a peça nem o seu autor porque havia se esgotado o tempo e nem nos déramos conta.

Lourdes Rodrigues

 

 

Viagem Quarta pelo Riso

Às vésperas do Carnaval, os rufos dos tambores já sendo ouvidos muito próximos, a batucada no ar, a cuíca gemendo, alguns viageiros já alhures para não cederem a apelos tão fortes, nós navegantes que permanecemos a velejar vestimos as  fantasias e fizemos um carnaval literário com direito a muitos poemas, teatro e cantos. E festejamos a chegada do novo viageiro Sarmento que se diz disposto a enfrentar os mares das palavras com toda paixão que eles exigem. Salve, navegante! . 

O Momento Poético começou com Zodíaco,  de Daniel Lima, escolhido pela nossa viageira Adelaide Câmara que, infelizmente, não pôde estar presente  embora muito o quisesse. Só a saúde bombardeada por uma tosse inimiga atroz a impediria de ali estar para ela mesma ler o seu poeta. O poema escolhido fala mesmo do carnaval, do mês de fevereiro:

ZODÍACO
5 – Janeiro e fevereiro

                                                                                      Daniel Lima       

             E ao chegar fevereiro
             ainda serás imortal
            da trágica imortalidade dos palhaços
            das colombinas e dos arlequins.
 
                Fevereiro é o Brasil,
               já vem gingando.
             (e o que é gingar?
               Não perguntes,
           não se diz,
               não se explica:
                              só se vendo (ou se fazendo)
             Fevereiro desfila
                      gosta de ser fevereiro.
 
Ele se adora.
 
           E porque se adora,
              fevereiro samba e ri
              e se cobre todo de miçangas.
 
              Há borboletas que não vejo
                         no jardim de rosas que não tenho.
 
          Mas fevereiro cria
as rosas e o jardim
              e as borboletas.
 
                   Fevereiro não gosta de Scarlatti
               mas gosta de escarlate
                         e azul
                   e cores misturadas.
 
                  Fevereiro é ligeiro,
            um vôo de pássaro encantado,
                     um relâmpago no céu inesperado
                (o relâmpago e o céu),
                    o céu de fevereiro,
          a luz fugaz de um fósforo aceso.
 
            A alegria que levas de reserva
        colheste-a por certo em fevereiro,
         para queimá-la talvez a vida inteira.
 
               Mês leviano, essencial
                eterno e contingente.

               Fevereiro é geral, não te pertence.
         Universal riso puro
             de todos e ninguém.
 
          Fevereiro é Brasil.
       Viva Macunaíma!
      Ai, que preguiça!
     Do jeito que ora está
  Ninguém aguenta.
    Vou embora pra Bahia
Hoje mesmo,
Que ninguém é de ferro.
E a vida vai comigo.
E fevereiro fica.
Não te esqueças:
Dize:”adeus , fevereiro!”
E outra vez mais:
“Viva Macunaíma!
Ai que preguiça!”
                          Poemas,2011.

E os viageiros  quiseram saber mais de Daniel Lima. Nascido em Timbaúba, foi sacerdote, diretor da Gazeta de Nazaré, um Jornal literário de Recife durante mais de 20 anos, lecionou Psicologia e Filosofia na UFPE. Até 2011 havia escrito 27 livros, 13 de poesia e 14 de Filosofia. Modesto, recusava-se a publicar suas obras, uma de suas alunas levou os originais de Poemas para a CEPE que o editou. Com este livro ele conquistou o primeiro lugar no Prêmio Alphonsus de Guimarães da Biblioteca Nacional. Morreu às vésperas de completar 96 anos, em 2012.

 

Outros poemas de Daniel Lima:

Ao nasceres, tinhas o prefigurado rosto
Que hoje terias se houvesses sido tu mesmo
No tempo singular de tua vida.
Mas viveste o relógio, não teu tempo
e agora vê teu rosto:
o que dele te resta é a desfigurada
sombra do primeiro rosto
que não soubeste ter,
nem mereceste.

x.x.x.x.x.x.x.x.x.x

Minha mãe era feita de incertezas.
tecida de solidão de infindas luas.
Nunca assentou seu coração viajeiro
de medo de esquecer o fim da viagem.
Não dormia, sonhava,
Vivia os sonhos acordada e louca
e amava a vida
com tal ódio e paixão, que até se percebia nos seus olhos,
nas mãos, nos gestos
na vontade de ser e o desespero
de não ser nunca e ainda.
E eu perguntava coisas
E ela não respondia,
apenas navegava incertos mares,
guiada por estrelas que eu não via.
Minha mãe era feita de incertezas
mas, por certo, sabia o que queria.

x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x

Nada será jogado no vazio.
Nem mesmo o vazio da vida,
porque é vida.

Nem mesmo o gesto inútil,
pois-que é gesto.

Nem mesmo o que não chegou a realizar-se,
pois-que é possível.

Nem mesmo ainda o que jamais se realizará,
porque é promessa.

E o próprio impossível
é vontade absurda de existir.
E nisso existe.

x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x

Os pássaros são sábios.
Não discutem: cantam.
Cantar é o jeito mais puro de entender
a vida.

Em seguida foi lido o poema Apego, da nossa viageira-poeta Salete Oliveira:

Apego

Salete Oliveira

Ah pego
Apego
Afeição
Ah pego
Simpatia
Gosto
Ah pego
Amor
Enamorar-me
Ah pego
Zelo
Paixão
Ah pego
Admiração
Enternecimento
Ah pego
Porque não sou uma pedra
E mesmo as pedras,
Vestem-se de multicoloridos limos

Após o Momento Poético, dirigimo-nos ao teatro para assistir o poema lírico em formato de peça teatral Máscaras, de Menotti Del Picchia, que fala do encantamento de dois homens muito diferentes, Arlequim e Pierrot, por uma mesma Mulher, Colombina.

Paulo Menotti del Picchia, paulista (1892/1988), poeta, ficcionista, ensaísta, editor, jornalista, industrial, banqueiro, deputado estadual e federal, escultor.  Ficou conhecido ao projetar a Semana de Arte Moderna de 1922, da qual fez um diário na imprensa entre 20 e 30, tendo sido membro das Academias Paulista e Brasileira de Letras. Ao completar 85 anos, Menotti concedeu entrevistas das quais transcrevemos um trecho que pensamos traduzir bem a sua escrita:

Em matéria de arte não admito pressão externa: a arte deve ser pessoal, independente e livre; é ela que tira o ser humano da animalidade. (Folha de S.Paulo, 20 mar.1982).

O texto foi escrito em 1920 período  de extrema  efervescência cultural no Brasil. Os personagens, entretanto, já eram conhecidos, vieram da Commedia dell”arte,  século XVIII, na Itália, também chamada de Comedia de Ofício e Comédia Artesã porque nasceu nos berços da cultura popular, com roteiros simples,  os personagens usavam máscaras durante a encenação para não serem identificados. Tratava-se de uma espécie de resposta ao teatro clássico, ao teatro dos grandes e nobres salões. Na ocasião lemos um texto que falava de cada personagem, de como ele surgiu, de suas características Quem são o Pierrô, o Arlequim e a Colombina?

Na leitura da peça, Salete foi a Colombina que Paulo-Arlequim e Eleta-Pierrot tentaram conquistar.  Foi muito engraçado, principalmente quando Colombina se confessava em dúvida com qual dos dois ficar. Foram horas muito divertidas.

Após a leitura, Sarmento disse que sempre havia gostado muito do tema, embora jamais houvesse pesquisado sobre as suas origens, disse ter gostado muito das informações e análises que foram levadas naquela tarde. Ele, inclusive, falou de  uma marchinha de carnaval que havia feito há alguns anos, usando os personagens, e nós tivemos que insistir para que ele a cantasse..

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Lemos ainda trechos de um artigo que analisa sob o ponto de vista psicanalítico e um pouco literário este poema e dá uma breve biografia do seu autor, As máscaras de Menotti del’Picchia: Arlequim, o desejo − Colombina, a mulher − Pierrot, o sonho, de Stetina Trani de Meneses Dacorso. A epigrafe deste trabalho, retirada de uma música de Chico Buarque e Edu LObo, diz muito dos conflitos amorosos, triangulares ou não:

Mesmo sendo errados os amantes, 
Seus amores serão bons.
 
(Choro Bandido,Chico Buarque/Edu Lobo)

 

E encerramos nossos trabalhos.

Jaboatão dos Guararapes, carnaval de 2017.

Lourdes Rodrigues

 

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Viagem Terceira pelo Riso, por Juan Rulfo, digo, João Gratuliano

Registro de nosso encontro em 15 de fevereiro de 2017
por Juan Rulfo, digo, Gratuliano.

Vim a oficina porque me disseram que aqui vivia uma musa, uma tal de literatura. Minha amiga me disse.

Aquele era o tempo do verão, quando o ar de fevereiro sopra quente, envenenado pelo odor apodrecido dos esgotos do Recife. No portão Lu me recebeu com seu cordial boa tarde. Estou aqui esperando dona Lurdinha, para ajudar com as sacolas. Ela vem sempre tão carregada. A porta está aberta. Pode entrar.

Agora eu estava aqui, nesta sala ainda sem os risos. Ouvia meus passos caírem sobre a cerâmica que empedrava o chão. Meus passos ocos, repetindo seu som no eco das paredes tingidas pelo cartazes de seminários do Traço.

Naquela hora, fui andando para o meu lugar. Olhei as cadeiras vazias; apenas quatro estavam ocupadas: Everaldo, Eleta, Cacilda e Salete. Uma bolsa feminina indicava que mais alguém estaria por ali e não tardou para que Anita aparecesse com sua elegância habitual.

Lourdes telefonou nos autorizando a começar a leitura das poesias. Como era mesmo o nome daquele fulano que Eleta nos apresentou? Walt Whitman! Sim, esse senhor um tanto barbudo, que bem poderia ser Pedro Páramo…


Walt Whitman (Huntington, 31 de maio de 1819 – Camden, 26 de março de 1892) foi um poeta, ensaísta e jornalista norte-americano, considerado por muitos como o “pai do verso livre”. Paulo Leminski o considerava o grande poeta da Revolução americana, como Maiakovsky seria o grande poeta da Revolução russa.

Eleta fez uma bela introdução sobre o escritor. E lemos dois poemas curtos:

A um Estranho

Estranho que passa! você não sabe com quanta saudade eu lhe olho,
Você deve ser aquele a quem procuro, ou aquela a quem procuro, (isso me vem, como em um sonho,)
Vivi com certeza uma vida alegre com você em algum lugar,
Tudo é relembrado neste relance, fluído, afeiçoado, casto, maduro,
Você cresceu comigo, foi um menino comigo, ou uma menina comigo,
Eu comi com você e dormi com você – seu corpo se tornou não apenas seu, nem deixou o meu corpo somente meu,
Você me deu o prazer de seus olhos, rosto, carne, enquanto passamos – você tomou de minha barba, peito, mãos, em retorno,
Eu não devo falar com você – devo pensar em você quando sentar-me sozinho, ou acordar sozinho à noite,
Eu devo esperar – não duvido que lhe reencontrarei,
Eu devo garantir que não irei lhe perder.

To a Stranger

Passing stranger! you do not know how longingly I look upon you,
You must be he I was seeking, or she I was seeking, (it comes to me, as of a dream,)
I have somewhere surely lived a life of joy with you,
All is recall’d as we flit by each other, fluid, affectionate, chaste, matured,
You grew up with me, were a boy with me, or a girl with me,
I ate with you, and slept with you—your body has become not yours only, nor left my body mine only,
You give me the pleasure of your eyes, face, flesh, as we pass—you take of my beard, breast, hands, in return,
I am not to speak to you—I am to think of you when I sit alone, or wake at night alone,
I am to wait—I do not doubt I am to meet you again,
I am to see to it that I do not lose you.

A Você

Estranho! se, ao passar, você me encontrar e desejar falar comigo, por que não falar comigo?
E por que eu não falaria com você?

To You

Stranger! if you, passing, meet me, and desire to speak to me, why should you not speak to me?
And why should I not speak to you?

Chegaram nesse meio tempo, Saló, Lourdes e Luzia carregando a tal bagagem que Lu estava esperado para ajudar.

Dando continuidade ao Momento Poetico, Anita lembrou que o Riso, tema dos nossos trabalhos este ano, também faz poesia e leu o Poema Matuto, Eu e Maria:

POEMA MATUTO

*DO LIVRO ‘CANTIGAS QUE VÊM DA TERRA”

EU E MARIA

Nasci no sítio Belém
Lá nasci e me criei
E desde novo eu jurei
De num casar com ninguém
Por arte num sei de quem
Com Maria me encrontei
Quebrei tudo que jurei
Passei dois mês namorano
Passei três me ajeitano
Com quatro mês me casei
Me casei com muita fé
Mas pro pintura do diacho
Lá perto morava um macho
Inludidô de muié
Um tal de Joca Romeu
E esse um dia apareceu
No rancho que nós vivia
Com um jeitão muito estranho
Um oiá desse tamanho
Reparando pra Maria
Depois de um mês de casado
Eu notei que tinha um sócio
Ela inventou um negócio
De nós drumir apartado
Inventava um bucho inchado
Dô de cabeça e de ouvido
Um tal de corpo doído
Umas fireira no pé…
Essas manha de muié
Que quer dexá o marido
Eu só vivia dizeno:
Talvez nunca me acostume
Eu morrendo de ciúme
E os amô dela cresceno
Sempre aquelas coisa, eu veno
Ela toda diferente
Ele metido a valente
E pra terminar a novela
Tratou de vim buscá ela
Na outra noite da frente
Inda vi eles sainno
Ele perguntou por mim
Ela arrespondeu assim:
O bestaião tá drumino
Eu aquelas coisa ouvino
Fui me levantei também
Ela dizia: Ele vem
Mas num vá temê acocho
Que aquele meu véi é frôxo
Nunca brigou com ninguém
Isso era de madrugada
Quaje amanheceno o dia
Quando eu oiei, eles ia
Já descambando a chapada
Larguei os pés na estrada
Pra ver se ela me atendia
Gritava: Vem cá, Maria
Vorta pronde tu morava!
Mas quato mais eu gritava
Mais a danada corria
Mas sabe o que aconteceu
Com a vida de nós dois?
Com uns dez anos depois
Maria me apareceu
Deixou o Joca Romeu
Voltou toda diferente
Com oito fios na frente
Uns com tosse, outros com gogo
E eu tenho comido é fogo
Pra sustentar tanta gente

*Lançado em 2002 por Geraldo Amâncio e Wanderley Pereira

Após os poemas contamos algumas piadas, rimos muito, mas a coordenadora colocou ordem na casa. Fizemos uma rápida reprogramação da agenda e deixamos a leitura de As Preciosos Ridículas para o próximo encontro.

Lemos um conto de humor, O homem que nem é dental, de João Gratuliano (estranho falar de si mesmo na terceira pessoa) e depois lemos Ele? de Guy de Maupassant. Júnior fez ótimas pontuações sobre a doença que afligiu Guy.

Salete comentou sobre a sessão de leitura do livro de Anita e comentou que pelo prefácio havia descoberto um João Gratuliano menos irônico e mais romântico. E me desafiou a mostrar esse lado. Então eu aproveitei que a audiência estava pequena. Everaldo e Saló já tinham vazado, e li um do meu vasto repertório de três ou quatro poemas meu.

Assim nos despedimos no clima habitual de alegria entre os leitores e escritores de boa vontade. Fomos em paz e que Clarice nos acompanhe.