Poesia às Quartas-Feiras

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O OVO DA GALINHA

João Cabral de Melo Neto

I

Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.

Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.

No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa descobre
que nele há algo suspeitoso:

que seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.

II

O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.

E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas

cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.

No entretanto, o ovo, e apesar
de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.

III

A presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.

O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada. 

A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.

É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.

IV

Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.

Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.

O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:

procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspecta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela. 

Everaldo Júnior, nosso grande viageiro,  trouxe-nos  O Ovo da Galinha, de João Cabral de Melo Neto, na voz de Paulo Autran. Bons momentos estão sendo vivenciados com esse espaço para a poesia na Oficina!

O poema nos deixa a sensação de estranhamento que sempre acontece quando estamos muito familiarizados com algo e ele nos chega de forma diferente. O significado de ovo nos remete à figura ovalada branca ou vermelha que encontramos nas prateleiras dos supermercados, dentro das nossas geladeiras ou em nossos pratos. Mas o ovo trazido por João Cabral de Melo Neto é diferente. Ele derruba a nossa concepção inicial e nos quedamos a indagar que ovo de galinha é esse? Há que se empreender uma longa viagem para o saber, desvestidos de todos os conceitos anteriores, com o espírito alado para dar os vôos que o poema possibilita.  E isso não se faz com apenas uma leitura. Assim, o poema de João Cabral deve ser lido e relido para que possamos captar seus vários sentidos.

                          Jaboatão dos Guararapes, 25 de agosto de 2015

                                              Lourdes Rodrigues

 

 

 

Poemas às Quartas-Feiras e mais…


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Testamento do Homem  Sensato
Por Carlos Pena Filho

Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: Ele era assim…
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.

A nossa viageira Eleta Ladosky repetiu o poeta Carlos Pena Filho nessa última quarta-feira, dessa feita com o forte e belo soneto Testamento do Homem Sensato. Ele foi retirado do Livro Geral que conta com depoimentos de Jorge Amado, Manuel Bandeira e Gilberto Freyre. Assisti ao lançamento desse livro em setembro de 2000, com a presença da viúva do poeta, de quem recebi um autógrafo carinhoso.

Após a leitura de Carlos Pena Filho, Salete comentou sobre o lançamento do livro de Miró de quem ela leu alguns poemas interessantes e disse que o autor prefere que os chamem de crônicas. Ela ficou de trazer outras informações sobre o poeta/cronista, assim como ler mais alguns dos seus escritos.

 Mas o que estamos fazendo às quartas-feiras, além de ler poesia? No momento, lemos Os Moedeiros Falsos, de André Gide, que não estava na nossa programação para 2015, mas acabou sendo inserido após a leitura de um escrito desse autor sobre Ensaio, o que nos levou a incluir Montaigne em nossa programação, também não incluído inicialmente.

Sempre quando traçamos a nossa carta de navegação fazemos questão de deixar claro que ela não deverá nos imobilizar. Se no meio da viagem outras paisagens nos seduzirem, traçaremos novos rumos e seguiremos para eles ao gosto dos ventos e das velas. Estavam programados Os Mortos, de James Joyce, A Lição do Mestre, de Henry James e Nadja, de André Breton. Os dois primeiros foram lidos e sobre eles Cacilda Portela escreveu nesse blog. Ambas literaturas instigantes que arrancam o leitor do lugar  confortável que estão e o leva para grandes e profundas viagens quer pelo sentimento controverso do ser humano, quer pela riqueza literária do texto. Com James Joyce, inevitavelmente, falamos no famoso Monólogo de MOlly Bloom, que foi publicado separado do Ulisses, e gastamos algumas tardes nos divertindo e encantando com a sua leitura. Um pequeno desvio de rota para homenagear o autor de Os Mortos que acabáramos de ler.

Nadja, de André Breton, um dos pais do surrealismo,  devia ser a leitura seguinteporém, não conseguimos encontrar o livro em nossas prateleiras ou do mercado. Um desvio de rota se fazia necessário. Antes que o desvio de rota se configurasse algumas discussões sobre Dostoievski, se Os Irmãos Kamarazóv (imenso!, dizíamos, mas traz a questão da morte do pai, vale a pena enfrentar!), se Crime e Castigo (excelente!) acabaram perdendo a parada quando sob o pretexto de trabalharmos como fazer um bom ensaio, encontramos texto de André Gide e de outros autores, todos falando do pai desse gênero de escrita: Montaigne.

Com as primeiras leituras de Montaigne descobrimos quão agradáveis e ricos eram os seus ensaios, livrando-nos do peso que a palavra parecia carregar nos ombros, advindos, com certeza, do seu viés acadêmico.Espero que exercitemos o aprendizado fazendo os nossos próprios ensaios. A edição Penguin, com tradução e comentários de Rosa Freire D”Aguiar, viúva de Celso Furtado, está muito boa e vale a pena ser comprada para ficar à cabeceira e aqui e acolá recorrer a ela para desfrutar bons momentos. .Posteriormente alguns comentários surgirão nesse blog de alguns ensaios lidos; Adotamos Montaigne como nosso padrinho e voltaremos a ele em todas as oportunidades que surgirem.

O desvio de rota com Montaigne levado por André Gide trouxe-nos de volta para ele, quem sabe em agradecimento por Montaigne;  quem sabe atraídos pelo fundador da célebre Editora Gallimard e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1947, editora dos escritores que fizeram a cabeça de muita gente da nosso geração, a minha, por exemplo, como Simone de Beauvoir, Albert Camus, Sartre, entre outros. Sempre soubera que André Gide fora apaixonado pelas técnicas literárias e curioso dos processos de criação, o que representava uma garantia de que a escrita dos seus livros traria esse diferencial.

Deixamos a Russia para depois, aportamos outra vez na França. Os  Moedeiros Falsos é uma leitura muito instigante. Estamos ainda nas apresentações dos personagens e  vários conflitos estão sendo delineados, levando-nos  adiante com muito entusiasmo. Já se percebe a técnica batizada por ele de mise en abyme que consiste na narrativa que contém outras narrativas.Uma caixa que contém várias outras caixas. Mas, falaremos sobre  Os Moedeiros Falsos  numa outra postagem.

Ainda sobre a questão levantada no início desse texto, o que estamos fazendo às quartas-feiras além de ler poesia, respondo que ao lado da leitura de uma obra importante como Os Moedeiros Falsos está a elaboração de um romance coletivo. Para discutirmos roteiro e o andamento da escrita combinamos que as 1ªs quartas-feiras do mês seriam adequadas e assim estamos fazendo. Sobre a escrita dedicaremos uma postagem, posteriormente.

                                          Jaboatão dos Guararapes, 18 de agosto de 2015

                                              Lourdes Rodrigues

 

Leitura de Poesia às Quartas-Feiras

A poesia da última quarta-feira foi levada por Paulo Tadeu, grande viageiro nas artes plásticas e na literatura. Ele trouxe Manoel de Barros, o grande poeta já apresentado neste blog em novembro de 2014 com a postagem Aonde eu não estou as palavras me acham. O poema trazido por Paulo veio de O livro das ignorãças:

Os deslimites da palavra

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas

Após a leitura falamos sobre a grandeza dos poemas de Manoel Barros, cada palavra remete a um significante, levando-nos a fazer uma longa e particular viagem. São palavras deslizantes que nunca são o que dizem ser, quando se pensa tê-las dominado, elas nos escapam, tornam-se aladas e obrigam-nos a voar para novamente tentarmos capturá-las. Se o significante de Saussure é a representação psíquica do som tal como nossos sentidos o percebem, como poderemos alcançar o seu sentido se nunca vamos estar no mesmo lugar ao ouvi-las, se jamais seremos os mesmos ao lê-las e novos sentidos se constroem a todo instante?

Encontrei na tese de Cristiane Sampaio de Azevedo, publicada na Revista doc.Ano VIII, nº 03, A “desutilidade poética” de Manoel de Barros questão de poesia ou filosofia? , reflexões sobre a relação entre poesia e filosofia na obra do poeta.  Que fronteira poderia haver em seus poemas, ela pergunta.A autora relaciona a “desutilidade” , o “dessaber”, todos os inúmeros des que existem em seus poemas com a busca do originário, do que subverte radicalmente a linguagem para apresentar o “real”, pois é construída a partir da negação. Diz ela: Desconstruir as coisas” do seu significado mais habitual, desconstruir para construir, fazer “delirar”, como afirma o próprio poeta, o verbo, descoisificar a realidade. E quando ele descoisifica o real ele constrói uma gama de significados inexistentes.Mais adiante ela arremata essa desconstrução, essa virada pelo avesso do avesso, deslocando da realidade para a construção de novos sentidos, na busca do sentido originário com a busca filosófica que

precisa partir sempre de um não lugar, de uma realidade que ignora qualquer tipo de “pré-conceito, a fim de se chegar(?) a um conhecimento, pois a filosofia é sempre um perguntar pelas mesmas coisas, como se as coisas estivessem sempre se desfazendo de significados, como se os significados fossem sempre inatingíveis,como ”as águas de um rio que não podem ser banhadas mais de um vez, porque não podemos deter o curso de suas águas., como nos diz o famoso fragmento de Heráclito.

Sobre  O Livro das Ignorãças  Cristiane diz que a partir do próprio título ele nos remete à realidade desconhecida, ao desconhecimento prévio dos conceitos, dos significados dos sentidos. Esse desconhecimento representa, portanto,  a negação de tudo que já está estabelecido, abrindo caminho para novas construções.

Tanto quanto ou mais do que com a filosofia é a relação dos poemas de Manoel de Barros com a psicanálise. Para a psicanálise, o desejo, tal como é desdobrado pela articulação significante, se inscreve pela negatividade.  Ou seja, pelo  des, deslimites, dessaber, desfazer, desutilizar do nosso grande poeta.

Jaboatão dos Guararapes, 10 de agosto de 2015

Lourdes Rodrigues

 

 

 A LIÇÃO DO MESTRE: ARTE E VIDA


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 A LIÇÃO DO MESTRE: ARTE E VIDA

*Cacilda Portela

A novela gira em torno das disposições contrárias entre a arte e a vida. Do conflito interior de um escritor  de meia idade, cuja obra não tem mais a força dos seus primeiros livros. A Lição do Mestre cria um clima de  mistério e expectativa que organiza os fatos do enredo, que nem sempre são ações concretas, mas movimentos internos dos personagens.

Tem início em uma mansão senhorial do séc. XIX, em Londres, onde estão presentes alguns convidados, entre eles o sr. Henry St. George, sua esposa, Paul Overt e a srta. Marian. As afinidades intelectuais fazem a aproximação entre St. George, o jovem escritor e a srta.Marian.

O sr. Henry St. George, escritor de renome, passa por sentimentos de fuga e incertezas com relação a sua arte, acusada por críticos de um certo artificialismo e uma ambiguidade insondável no tratamento dos temas. Sua esposa, autoritária, administra e disciplina os negócios e a vida particular do marido. Ligada a convenções sociais, cobra do marido a realização de outras obras. Não se interessa pela perfeição na arte. O casal é amigo da jovem Marian, natural e  independente, adora a vida e é uma grande apreciadora das artes. St.George dedica carinhos excessivos à jovem com a complacência da esposa.

Na mansão, St. George conhece, pessoalmente, o jovem e promissor escritor Paul Overt, que passou grande parte de sua vida no estrangeiro, tendo voltado recentemente à Inglaterra. E o  jovem escritor conhece Marian. Juntos eles visitam galerias de arte e exposições privadas;  discutem o elevado tema da obra de arte válida e exemplar, e o escritor se apaixona por ela.

Depois de ter lido uma pequena parte da obra do jovem escritor, St. George vai até ele e afirma que o jovem é mesmo surpreendentemente bom; e que precisa realmente manter o nível como escritor. Confessa ao jovem seus sentimentos, medos e anseios e lhe apresenta sua Lição de Mestre: “…Não se transforme  no que me transformei na velhice: o exemplo de quem cultuou os deuses do mercado, dinheiro, luxo, a sociedade, a mulher, os filhos… A!h! as coisas mesquinhas que nos obrigam a fazer. Uma perdição do ponto de vista da arte. O artista nada tem a ver com o relativo, deve ter afinidade apenas com o absoluto. Não poderá fazer alguma coisa realmente boa sem sacrifício.  Fazer algo, e algo que seja divino é a única coisa em que o artista tem que pensar”. Ou desistir da ideia de perfeição. Paul responde “não; eu sou um artista – não há como evitar”.

Uma semana depois da Lição do Mestre, Paul Overt parte da Inglaterra. Antes, faz uma visita a srta. Marian para se despedir; e mais de três meses depois escreve e observa que lhe devia uma explicação por não lhe haver revelado o que pretendia fazer. A srta. Marian responde com uma carta curta, mas que veio sem tardar, e dava conhecimento da morte da sra. St. George. Tuberculosa, ela veio a falecer poucos meses depois daquele encontro na mansão. Dois anos depois, quando termina de escrever o livro, Paul Overt retorna a Londres e procura a srta. Marian. Ela e  o St George estão de casamento marcado.

Qual teria sido a real intenção da Lição do Mestre?  O objetivo de proteger o jovem romancista para construção de uma arte perfeita, absoluta, infinita; um padrão a ser seguido? A arte como algo de si mesmo que o velho mestre valoriza de forma constante e intensa. Sua real identidade. Sua face reflete a ideia e o sentimento da arte. Ou seria um plano oculto para afastar o romancista e ficar livre para casar com a  Srta. Marian? Sua face revela uma identidade mascarada, contrária aos seus traços, que apenas deixa aparecer o eu idealizado socialmente. Uma imagem do sucesso, das recompensas materiais e da credibilidade social da literatura. Valorização da identidade mascarada em relação ao eu.

Estaria o Mestre realmente livre quando deu sua Lição ao jovem romancista?  Não saberemos ao certo. Não estariam em conflito o eu e o ser social? A própria subjetividade, “experiências de vida sintetizadas: emoções, sentimentos, memória inconsciente de todo o vivido relacional”, que ele demonstra na Lição é controlada pelo social.  O sentimento e a ideia da arte perfeita são controlados por forças sociais e, em seguida, se mascaram. Não estão livres do controle social. O sentido que ele atribui à arte perfeita é formado por uma concepção individual e coletiva de difícil percepção que necessita de minuciosa análise, nem sempre possível, para ser entendida.

* Cacilda Portela é advogada, pesquisadora social, ensaísta.