Do Riso ao Siso, Contos à Beira do Cais

Lourdes Rodrigues

Era uma vez um jovem rapaz, deitado numa relva, sentindo-se entediado em pastorear ovelhas num bosque imenso e silencioso, onde nada parecia acontecer, imaginou-se sendo atacado por um lobo. A fantasia o empolgou. E ele continuou a deixá-la fluir. E se os aldeões soubessem que eles estavam sendo atacados pela fera? Aquela ideia o atiçou ainda mais. Então, ele começou a gritar Lobo, Lobo, Socorro, Lobo. Os seus gritos de terror foram ouvidos pela aldeia inteira que saiu às carreiras, armada como podia, para socorrer as ovelhas e ao pobre rapaz. Indignada, a aldeia descobriu que havia sido ludibriada, ao encontrar o rapaz rolando pelo chão às gargalhadas. E isto se repetiu, até que certo dia, o rapaz gritou por socorro e os aldeões silenciaram, do canto não se mexeram, e o lobo fez a festa.

Nabokov usa a fábula de Esopo[1] para dizer que a Literatura não nasceu quando o rapaz começou a gritar Lobo, Lobo, e saiu a correr com um grande lobo às suas costas, mas quando ele gritou Lobo, Lobo e não havia nenhum lobo a persegui-lo. É inteiramente acidental se o pequeno pastor de ovelhas acabou sendo comido pelo lobo, quando desacreditado pelos alarmes mentirosos, seu grito ecoou em ouvidos moucos na aldeia.

Para a Literatura, diz ele, o que tem importância é a invenção, a capacidade inventiva do pastor. A literatura é, acima de tudo, invenção, ficção, fantasia. A magia dessa fábula está na sombra do lobo que o pastor de ovelhas deliberadamente criou, no fantasma que ele trouxe e que percorreu de ponta a ponta a aldeia. Mas, ao pastor, não lhe bastava a criação fantasmática.  Ela carecia de valor social, valor cuja autenticidade somente o outro poderia conferir. Então, ele gritou.

Se as mentiras, por um lado, levaram o pastor e as ovelhas a morrerem devorados pelo lobo, rendendo lição de que a mentira não compensa, para ser contada ao redor da fogueira; por outro, propiciou ao personagem-pastor o seu reconhecimento como o pequeno mago, o criador, o inventor, aquele que transfigurou a realidade com seu espírito criativo e deu-lhe novo formato,  o de uma realidade imaginária, ficcional.

É neste ponto, na transfiguração da realidade, que Marília Morais, em seu texto sobre Poesia, Psicanálise e Ato Criativo diz que o fazer psicanalítico guarda similaridade com o fazer poético: na capacidade criadora que ambos têm de instaurar novas realidades: (…) o poema não reproduz o dizível, ele cria o dizível. A psicanálise, no seu fazer, cria para o analisando a possibilidade de realidades diferentes, de novas invenções de si mesmo.[2]

Freud chama a atenção em Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen para a importância da parceria que a psicanálise poderia ter com a literatura:

os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência.[3]

Marília Morais, inspirada em Freud, arremata que o poeta fala, sem saber, aquilo que o psicanalista concluirá após muito estudo e reflexão.

Em um evento como este deu-se o meu encontro com o Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise, em 2003. Chamada por um cartaz exposto na UBE (União Brasileira dos Escritores), eu tentava acompanhar as falas e me perdia no meio delas. Leitora voraz, desde criança, julgava-me, pretensiosamente, conhecedora de um pouco de Literatura, embora aquele autor me fosse desconhecido: James Joyce. Estaria no evento certo, eu me perguntava. Sim, estava. No intervalo vieram as apresentações e o convite para participar de um grupo de estudos de Clarice Lispector, de quem eu já lera algumas obras e admirava.

Iniciava o meu percurso rumo à literatura interfaceada com a psicanálise, esta, até então, eu só conhecera de alguns consultórios pelos quais eu havia passado ao longo da minha vida, e de algumas leituras curiosas.

O estranhamento inicial das falas da tribo psicanalista freud-lacaniana cedeu lugar ao sentimento de quem havia encontrado a sua aldeia, pelo acolhimento, e, sobretudo, pelo caminhar juntos da Literatura com a Psicanálise. Um caminhar, como diz Tania Rivera, uma diante da outra, reabrindo possibilidades de ligação, sem se deixarem reduzir uma a outra.

As palavras deslizantes de Clarice, a sua sintaxe mutante, aprisionaram a mim e aos outros participantes, engravidando-nos de desejo de criarmos um espaço em que a leitura e a escrita pudessem estar acasaladas e fossem a sua base de sustentação e procriação.

Nascia assim a Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, em 2006. Os participantes, chamados de viageiros pelos mares das palavras, encontram-se uma vez por semana, realizando longas viagens, de duração em torno de dez meses, todos os anos. Aos navegantes é estimulado lançarem-se ao mar dispostos a sentir a viagem de todas as maneiras, parafraseando Fernando Pessoa:

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.[4]

Toda realidade é um excesso, diz o poeta. Sabato complementa, só na arte se revela a realidade, toda a realidade. E assim como na Viagem Sentimental, de Laurence Sterne, com quem aprendemos, prazerosamente, que ao viajante cabe procurar a essência das coisas, não sob o claro meio-dia em ruas largas e abertas, mas em uma esquina despercebida de entrada escura, os viageiros da Oficina, sempre, dirigiram sua atenção às sinuosidades, silêncio, sombras e deslizes das palavras, realizando o que Francine Prose chama de close reading, Umberto Eco de leitura empírica, e nós chamamos de leitura por fora das palavras, pelos não-ditos, pelas elipses.

As Cartas Náuticas que desenhamos antes da partida são meras referências, não impedem de a rota ser alterada sempre que algo chamar a nossa atenção. Se as condições atmosféricas são atraentes, se os navegadores estão movidos pelo desejo do sentir, a carta de navegação não tem a rigidez dos icebergs, mas a flexibilidade das velas sob o humor dos ventos. Assim, se preciso for, outra rota será traçada e a nau seguirá em frente em busca de novos sentimentos.

Essa aparente negligência com a programação estabelecida reflete o espírito de aventura daqueles que singram mares em busca das águas profundas, aquelas que nos levam aos precipícios da alma, mesmo que, em seguida, busquemos águas mais rasas que nos permitam, aliviados, ver praias à distância. É a viagem ziguezagueante da mente errante, no dizer de Sterne, a mesma viagem da libélula que não escolhe as flores aleatoriamente, mas por uma primorosa harmonia ou alguma brilhante discordância.

Muito há para se falar dessas viagens que não cabe em sua totalidade num texto como esse. Todavia, há espaço suficiente para registrar algumas liturgias e um pouco das milhas percorridas.

Há que se dizer que antes de lançarmo-nos ao mar, seguimos sempre um ritual: receber bons augúrios da nossa madrinha Clarice Lispector, batizando-nos com a leitura dos seus escritos. A sua arte inspiradora, marcada pelas metáforas, frases anômalas, associações, epifanias são o mergulho intimista que precisamos para dar início à viagem.[5]

Há que se dizer, ainda, que o riso de Bergson nos ensinou que,  além de ser do humano o riso, ele é sempre de um grupo, porque carece de eco para existir. É com disposição de espírito para o humor que zarpamos rumo às nossas viagens, e o ribombar do riso se faz sempre ecoar. Esteve muito presente quando lidos trechos que beiravam o escatológico em Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, e pelos rubores e desconcertos diante da beleza e irreverência de passagens eróticas de alguns clássicos como Metamorfose, de Lucio Apuleio, A Poética do Sexo, de Ovídio, Cântico dos Cânticos, de Salomão, entre muitos outros.[6] Risos mais contidos ou desconcertados, quando lemos o Marquês de Sade, por percebermos exigência de maior sobriedade, não tanto em O Marido que Recebeu a Lição, muito mais em Monges e Virgens. A perversão explícita, em sua forma de relação com a fantasia, trouxe algum desconforto aos viageiros, talvez pela leitura coletiva. Pela mesma razão, em O Olho do Gato, de Bataille, o riso deu lugar ao espanto e ao silêncio de quem se sente inseguro quanto à fronteira entre a obra essencialmente literária e a pornográfica, exigindo releituras para melhor discernimento.

Nem só de riso, entretanto, se faz o balanço das nossas viagens. Do riso ao siso, sempre uma travessia difícil. Alguns ensaios de Montaigne[7] são como uma ponte prazerosa e rica entre momentos tão próximos e tão distantes. E assim içamos as velas rumo ao teatro, primeiro ao grego clássico, de Sofócles, um grande artista da palavra. Duas obras fundamentais foram lidas: Édipo Rei e Édipo em Colono. Para Nietzsche, o grego conhecia e sentia os pavores e sustos da existência: simplesmente para poder viver, tinha de estender à frente deles a resplandecente miragem dos habitantes do Olimpo.  Ainda na rota do teatro, seguimos para o período de ouro do teatro inglês com Shakespeare, para podermos, enfim, ancorarmos na dramaturgia moderna de Ibsen, com A Casa de Bonecas, entre  outros.

Os mares das palavras são muitos e diversos, como a metáfora dos bosques, citada por Umberto Eco para definir um jardim em que vários caminhos se bifurcam. Saindo da tragédia, enveredamos por outros caminhos, entre eles, o do fantástico, na temática do duplo, desde a raiz mitológica, do Doppelganger[8], à interpretação psicanalítica do Unheimliche, de Freud, em que o familiar e ao mesmo tempo estranho, trazem profundo desconforto. A técnica da duplicação estimula o interesse do leitor que tenta desvendar esse sujeito que é uno e duplo, ao mesmo tempo, com inúmeras possibilidades interpretativas. Umberto Eco diz que não há lei que delimite a forma de ler do leitor empírico, ela é resultado das suas paixões que podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo próprio texto. Assim foi em Aura, de Carlos Fuentes; no O Horla de Guy de Maupassant, em William Wilson, de Edgard Allan Poe, O Homem de Areia, de Hoffmann. Grandes escritores usaram e continuam a usar o duplo em suas narrativas, muitas delas foram objeto de nossas leituras e análises.[9]

Há de se mencionar, ainda, que dos escombros da alma, pinçamos a loucura, amparados pelo poeta Fernando Pessoa quando diz, Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia/Cadáver adiado que procria?  A atração que o tema exerce, levou Foucault a afirmar que a loucura é um saber. Eu diria que para os escritores, em particular, a loucura, enquanto abismo da alma, no dizer de Artaud, é um vasto e profundo campo de criação poética e ficcional. Fascinantes o Diário de um Louco, de Gogol, as Memórias do Subsolo, de Dostoievski, os Signos e Símbolos, de Nabokov, só para falar de algumas.[10]

Muitas tardes da Flor de Santana e da Alfredo Fernandes foram dedicadas às veredas fantásticas das vozes e murmúrios saídos das pedras e de debaixo da terra em Comala, de Pedro Páramo;   aos queridos anti-heróis de O Vermelho e o Negro, de O Estrangeiro,  de Madame Bovary;  à compaixão pela solidão, desamparo e servidão humana dos personagens em A morte de Ivan  Ilitich,  na Obscena Senhora D,  e em Marido; aos comoventes ritos de passagem em Menina a Caminho e A festa no Jardim.

Que dizer das muitas leituras labirínticas, polifônicas, caleidoscópicas, dos monólogos e fluxos de consciência, entre elas, O Som e a Fúria, de Faulkner, trazendo o cheiro das madressilvas e a lembrança de Benjy, o idiota, que não fala, mas narra a história no primeiro capítulo, através dos seus choramingos, olhos e pensamentos fragmentados; do barulho do martelo para fazer o caixão da mãe e da longa agonia para enterrá-la em Enquanto Agonizo, do mesmo autor; da festa de Clarissa em Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, de O Monólogo de Molly Bloom, de James Joyce. [11]

E da grandeza de obras como A Praça do Diamante, Ana-Não, Bartleby, o Escrivão.[12]

Foram tantas viagens em prosa ao longo de treze anos, impossível citá-las todas. Nos livros que publicamos estão mencionadas boa parte delas. O Escrituras IV foi publicado, eletronicamente, pela Amazon.com, e a intenção é publicar os outros ainda neste semestre. No blog da Oficina há registro delas, das resenhas que foram feitas, de vários escritos sobre os nossos trabalhos.

Mas não só de prosa se fizeram as nossas viagens. Carentes de poesia, os navegantes pediram para criar um Momento Poético para leitura de um poema, no início de cada percurso. De benção necessária à iniciação, se transformou em momento especial de mergulho dos viageiros para uma travessia muito particular.  Grandes poetas por ali passaram.[13]

Rolando Barthes, em A Preparação do Romance, defende a tese de que só se escreve, porque se lê. Não qualquer leitura, tantos leem e tão poucos escrevem, diz ele. A sua tese é de que só a leitura particular, a leitura tópica do desejo do leitor, aquela que o aprisiona no armadilha das palavras e lhe semeia a esperança de ele próprio escrever, pois cada palavra é um caminho de transcendência, leva o sujeito à criação literária. Leitura transformadora, consumida pelo suplício de uma falta.

Como pode uma leitura ser particular, tópica, se realizada por um grupo, como no caso da Oficina, lugar onde o amor a si mesmo narcisista está sujeito à limitações? Segundo Freud, são os laços libidinais que se constituem entre os participante do grupo que desvanecem a intolerância às diferenças internas, às peculiaridades de cada um, reduzindo as possíveis aversões que poderiam surgir. O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos, diz ele. E mais, que esses laços nascem da identificação a um traço comum, colocado no lugar do Ideal do Eu, o mecanismo que responderia pela consistência do grupo ao oferecer um poderoso meio de satisfação substitutiva para seus membros.

Um grupo assim constituído é mais do que uma soma de pessoas, cada sujeito nele envolvido traz sua grupalidade anterior, suas tradições e costumes, as suas funções e posições particulares, as suas paixões, sua visão de mundo, inclusive, suas contradições, e uma vez do grupo participando, a partir da sua interação com ele, gera uma nova totalidade. Quanto mais forte for esse laço, mais o grupo se consolida, inclusive nas suas diferenças. E o resultado será sempre a exaltação ou intensificação da emoção

A Literatura tem sido esse traço na Oficina. A magia da fabulação, da fantasia é o traço que nos une. É nele que encontramos a satisfação substitutiva que nos compensa das renúncias que fazemos ao nosso amor narcísico, que dá consistência imaginária ao grupo promovendo uma ilusão de completude.

O grupo não é o mesmo de quando começou. Alguns viageiros aportaram chamados pela vida ou por razões que estiveram além da sua vontade, deixando saudades e registros das suas pegadas nas Escrituras. Outros amantes da aventura literária sempre nos esperam nos portos em que atracamos e são recebidos com guirlandas de flores. Sempre uma grande festa a chegada de outro companheiro.

E é desse encontro amoroso com a Literatura, desse intenso exercício de sensibilidade, que as armadilhas contidas nas palavras nos fazem sentir o seu efeito germinador e ouvir a trombeta do pai a soar e ressoar … toda palavra, sim, é uma semente. Passar da leitura para a escrita, no rastro do desejo, acontece pela mediação de uma prática de imitação, diz Haroldo Bloom. Não a imitação pobre do plágio, mas a imitação transformadora, aquela em que o leitor versus escritor realiza o clinamen, situação típica de apropriação sob a forma de releitura ou interpretação desviante, no ponto em que o escritor influenciado acredita ser necessário corrigir o poema do seu antecessor. Fortes fatores emocionais envolvem esse processo e Haroldo Bloom os chama de Angústia da Influência.

Para Roland Barthes, o eu do sujeito é falado a partir do lugar do Outro, da identificação ao outro que permite situar com certa precisão a sua relação imaginária e libidinal com o mundo e ver o seu lugar, e estruturar, em função desse lugar e do seu mundo, seu ser.

Do riso ao siso, da comédia ao trágico, muitas leituras que por ali passaram gestaram centenas de escritas, boa parte delas registradas nos quatro livros chamados de Escrituras, já publicados pela Oficina. O êxito de uma oficina é medido pela escrita dos seus participantes. Muitas releituras foram realizadas de obras que impactaram os viageiros, com total licença poética, desde o enredo, ao ponto de vista usado pelo narrador, entre elas A Missa do Galo, A Pomba Enamorada, Delírio, Viagem à Petrópolis, Hoje de Madrugada, As babas do Diabo, O Patinho Feio. Muitas resenhas são escritas sobre as obras lidas. No início da Oficina, havia os exercícios para quebra de bloqueio criativo, desde os jogos para composição de texto usados pelos surrealistas, tipo cadavre-exquis, ao uso dos constrangimentos oulipianos, tipo tautogramas,por exemplo. Ás vezes basta uma palavra, uma cena, uma música, um tema para estimular a criatividade.

Quando perguntado sobre o que era Literatura, Borges disse, certa vez, irritado, Ninguém indaga qual é a utilidade do canto de um canário ou do avermelhado do crepúsculo.

Na verdade, são muitos os caminhos das letras. Quanto mais elas andam, mais o círculo brilhante que as circunda deixa sombras de mistério e de silêncio em seus rastros. A bússola dos viageiros são essas pegadas que elas largam. Segui-las é mais do que uma escolha, torna-se a própria razão de ser da viagem. Pouco importam os mares revoltos, os ventos açoitadores, os cantos das sereias, os icebergs enganadores. É preciso segui-las, desvendar-lhes os mistérios, reconhecê-las em suas incompletudes e mesmo assim continuar a persegui-las. É preciso viver a utopia de que vai alcançá-las, de que até vai dominá-las para aquietar essa ansiedade que norteia um navegante viageiro das palavras.

Jaboatão dos Guararapes, fevereiro de 2018

NOTAS:

 [1] NABOKOV, Vlademir – Aulas de Literatura – Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2004

[2] MORAES, Marília – Poesia, Psicanálise e Ato Criativo – texto eletrônico

[3] FREUD, Sigmund – O Delírio e os Sonhos na Gradiva de Jensen e outros textos – V. VIII – Imago.

[4] PESSOA, Fernando – Poemas – heterônimo, Álvaro de Campos.

[5] Vários contos de Clarice Lispector foram lidos ao longo desses anos:  Laços de Família, Amor, Feliz Aniversário, A menor mulher do mundo, Começos de uma fortuna, Viagem à Petrópolis, Felicidade Clandestina, A Via Crucis do Corpo, O Primeiro Beijo, O Búfalo, A Galinha.  Foi lido também Água Viva, e várias das suas crônicas de A Descoberta do Mundo

[6] Entre os clássicos lidos, ainda, no tema do erotismo estão: Eros Místico, de Juan de La Cruz, Sonetos, de Bocage, O Amor e o Belo, no Banquete, de Platão, A Sedução Criativa,  de Casanova, o Canto V, do Inferno de Dante. Alguns anos antes havíamos lido todo o Inferno, da Divina Comédia, de Dante

[7] MONTAIGNE, Ensaios.

[8] Palavra germânica que significa duplo frequentador.

[9] O Outro Eu, de Mario Benedetti, e em tantas outras obras de autores que passaram por lá, como Dostoievski, Virgínia Woolf, Saramago, Borges, Cortázar, Robert Stevenson, entre outros.

[10] O Sistema de Alcatrão e do Professor Pena, O Coração Delator, de Egard Allan Poe, , A Galinha Degolada, de Horácio Quiroga, Erostrato, de Jean Paul-Sartre, O Túnel, de Ernesto Sábato, Sutulin, do escritor russo, As Babas do Diabo, de Cortázar Elogio da Loucura, de Erasmo Roterdã, este último não concluído. E outras mais.

[11] Água Viva, de Clarice Lispector, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, Essa Terra, de  Antonio Torres, Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, dos contos vários de Guimarães Rosa que ao longo desses anos foram lidos.

[12]   A Varanda de Frangipanni, de Mia Couto, Os Mortos, de James Joyce, Os Moedeiros Falsos, de André Gide.

[13] Charles Baudelaire, Shakespeare, Camões, Emily Dickinson, Lautréamont, Paul Valéry, Wislawa Szymborska, Sylvia Plath, Li Po, Yeats, Elizabeth Browning, Elizabeth Bishop, Cesare Pavese, Paul Verlaine, Paul Éluard, , Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa, , Sophia de Mello Breyner Andresen, Federico Garcia Lorca, T.S Eliot,  Florbela Espanca, Joseph Brodoski,  Auden, Elizabeth Frye, Walt Whitman, Ezra Pound,  Charles Bukowski,   José Régio, entre outros. Entre os brasileiros, Cora, Coralina, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Manuel de Barros, Vinicius de Moraes, Carlos Pena Filho, Augusto dos Anjos, Mario Quintana, Ferreira Gular, Cecília Meirelles, Affonso Romano Sant’Anna, Daniel Lima, Paulo Leminski, entre muitos outros.

 

 

Votos Partidos (Broken wows or Donal Og)

Na última quarta-feira, Anita Dubeaux nos trouxe um belíssimo poema Gaélico, anônimo, da Irlanda, do século VIII, traduzido para o Inglês por Lady Gregory, irlandesa. Ele recebeu o título em Inglês de Broken Wows, mais também é conhecido pelo seu título original Donal Og.

Ela o ouviu pela primeira vez no filme de John Huston, Os Vivos e Os Mortos, 1987, baseado no conto de James Joyce, Os Mortos. Durante muito tempo ela procurou o poema e somente muitos anos depois conseguiu, enfim, achá-lo, na tradução de Lady Gregory (a mesma utilizada no filme, de forma incompleta). Este foi o último filme de John Huston que ele já o fez amparado pelos assistentes, com uma máscara de oxigênio ao lado, pronta para ser utilizada, tão grave era o seu estado. O cineasta morreu antes do seu lançamento em Cannes, pouco depois de concluído. Em entrevista, ele havia dito que James Joyce havia sido o escritor que ele mais “sentira” na vida. Com o filme ele presta sua homenagem ao escritor.

A tradutora do poema, Lady Gregory, também, irlandesa, manteve a estrutura gramatical do poema original, porém, com o que os críticos chamam de lírica econômica: reduziu o poema de 14 estrofes para 9. O poema em Inglês ganhou ainda mais força e beleza. A contribuição de Lady Gregory para o renascimento literário irlandês foi considerado inestimável tanto pela tradução das lendas, contos populares e baladas do gaélico original, como, e principalmente, pela forma como o fez tornando a língua disponível para qualquer pessoa não irlandesa. Com Yeats e outros ela fundou o Teatro Literário Irlandês e o Teatro Abbey e escreveu inúmeras peças de teatro.Lady-Augusta-Gregory-001

Anita nos trouxe a tradução de Lady Gregory, a tradução para o Português, e o link para assistirmos o trecho do filme em que ele é recitado pelo personagem Sr. Grace. Foram momentos encantadores vividos na última quarta-feira que trouxemos para compartilhar nesse blog.

Broken Wows

It is late last night the dog was speaking of you;
the snipe was speaking of you in her deep marsh.
It is you are the lonely bird through the woods;
and that you may be without a mate until you find me.

You promised me, and you said a lie to me,
that you would be before me where the sheep are flocked;
I gave a whistle and three hundred cries to you,
and I found nothing there but a bleating lamb.

You promised me a thing that was hard for you,
a ship of gold under a silver mast;
twelve towns with a market in all of them,
and a fine white court by the side of the sea.

You promised me a thing that is not possible,
that you would give me gloves of the skin of a fish;
that you would give me shoes of the skin of a bird;
and a suit of the dearest silk in Ireland.

When I go by myself to the Well of Loneliness,
I sit down and I go through my trouble;
when I see the world and do not see my boy,
he that has an amber shade in his hair.

It was on that Sunday I gave my love to you;
the Sunday that is last before Easter Sunday
and myself on my knees reading the Passion;
and my two eyes giving love to you for ever.

My mother has said to me not to be talking with you today,
or tomorrow, or on the Sunday;
it was a bad time she took for telling me that;
it was shutting the door after the house was robbed.

My heart is as black as the blackness of the sloe,
or as the black coal that is on the smith’s forge;
or as the sole of a shoe left in white halls;
it was you put that darkness over my life.

You have taken the east from me, you have taken the west from me;
you have taken what is before me and what is behind me;
you have taken the moon, you have taken the sun from me;
and my fear is great that you have taken God from me!

Votos Partidos*

Era  tarde a noite passada.
O cão falava de você.
O pássaro cantava no pântano.
Falava de você.
Você é o pássaro solitário das florestas.

Que você fique sem companhia,
Até achar-me.
Você prometeu e me traiu.
Disse que estaria junto a mim
Quando os carneiros fossem arrebanhados.

Eu assobiei e gritei cem vezes.
E não achei nada lá,
A não ser uma ovelha balindo.
Você prometeu uma coisa difícil.

Um navio de ouro sob um mastro prateado.
Doze cidades e um mercado alegre em todas elas.
E uma branca e bela praça à beira-mar.
Você prometeu algo impossível.

Que me daria luvas de pele de peixe.
E sapatos de asas de ave.
E roupa da melhor seda da Irlanda.
Minha mãe disse para eu não falar com você.
Nem hoje, nem amanhã. Nem Domingo.

Foi um mau momento para dizer-me isso.
Como trancar a porta após ter a casa arrombada.
Você tirou o leste de mim.
Tirou o oeste de mim.
Tirou o que existe à minha frente.
Tirou o que há atrás.
Tirou a lua.
Tirou o sol de mim,
E meu medo é grande.
Você tirou Deus de mim.

Cena do filme Os Vivos e os Mortos, John Huston:

Os céus estão escuros, mas as estrelas permanecerão.

Tudo passa – sofrimento, dor, sangue, fome, peste. A espada também passará, mas as estrelas ainda permanecerão quando as sombras de nossa presença e nossos feitos se tiverem desvanecido da Terra. Não há homem que não saiba disso. Por que então não voltamos nossos olhos para as estrelas? Por que?

            *MIKHAIL BULGAKOV, O exercito branco

Navegantes,

é chegada a hora de aportarmos após mais uma longa viagem pelo vasto e misterioso mundo das letras.

Longa e difícil travessia…

Cheguei a temer que não chegaríamos ao seu término, tantos mares revoltos, tantas tempestades. Manteve-nos na rota o fato de não sermos apenas marujos de navegação de cabotagem. A audácia da navegação por mares estrangeiros deu-nos a couraça para seguir em frente sem largar o leme, movidos pela certeza de que as estrelas continuavam lá encobertas pelas sombras da noite que atravessávamos, e se fechássemos ouvidos para os cantos das sereias e erguêssemos olhos para os céus, os nossos marujos-estrelas Júnior e Adelaide certamente continuariam ali para nos iluminar.Como foi difícil essa jornada sem vocês, minhas estrelas guias!

Outros viageiros atracaram para dar à luz vida nova, como a nossa viageira Diva Helena, ou para ajudar a sua cria a fazer isso, feito Luzia. Não guerreamos para ter Diva de volta, o seu Páris a merece bem mais do que nós, mas guardamos o seu lugar com muito carinho, para quando ele lhe permitir voltar. Luzia está chegando ao fim da sua linda missão, outras viagens quem sabe já contaremos com ela. A maruja Teresa partiu num foguete para curtir novo amor nas serras das Minas Gerais, e cá ficamos a tocar as nossas cítaras para alegrar Eros e assim ele manter para sempre a sua felicidade. A navegante Monica está voltada para parir seu filho-livro e nós reverenciamos muito esse momento, enquanto aguardamos seu retorno.

Alguns viageiros não fizeram boa viagem pela saúde abalada, o coração triste e nós ficamos mal por isso, mas concentraremos sempre as nossas energias, os nossos pensamentos para eles, para que voltem aos seus melhores dias com a força do motor de popa do nosso amor.Salve, Teresinha! Salve, César!

Alguns partiram silenciosamente, quem sabe cansados do cheiro de maresia, quem sabe ansiosos pelo cheiro de casa, mesmo respeitando tais decisões, guardamos a esperança de um dia eles voltarem à nossa embarcação.

Apesar do peso esmagador das ausências, seguimos em frente porque os marujos que ficaram são muito bons navegantes, salve Salete, Salomé, Eleta, Paulo Tadeu, Cacilda, Teresinha,Cesar e eu, não arrefecemos o amor e a vibração pela viagem.
E foi uma longa e profícua jornada.

42691740A carta de navegação amarrotada tantas vezes pelo seu traçado incerto levou-nos à Irlanda com Os Mortos, de James Joyce. O cenário da narrativa é uma ceia de Natal, o personagem principal, Gabriel Conroy deixa transparecer em todos os seus diálogos e fluxos de pensamentos grande desencanto com a sociedade, total estranhamento diante das pessoas e dele próprio. O conflito maior da trama acontece quando ele e a esposa já se encontram no hotel e Gabriel vê fracassada a sua expectativa de uma noite de amor, diante da revelação de Gretta de que a música que ela ouvira no final da festa trouxera-lhe lembranças de um jovem que amou na adolescência e que morrera por sua causa ao se deixar ficar ao relento numa noite de chuva porque ela iria partir no outro dia e ele já não queria mais viver sem ela. Uma semana depois da sua partida, chega a notícia de que ele morrera. Gabriel atordoado com a força dessa revelação e com a dureza do desencontro para uma noite tão esperada, dirige-se à janela em silêncio. A magia da neve caindo intensamente, as rememorações de momentos excitantes do casal o haviam feito antecipar noite luxuriante, sequer a luz das velas ele permitira que o empregado do hotel trouxesse, deixando apenas as luzes dos lampiões da rua quebrarem a escuridão da madrugada. Todo o seu desejo ardente se fora com a presença da lembrança daquele jovem morto.

Mais tarde, enquanto a esposa dorme, ele continua a refletir, e as lágrimas começam a se acumular mais densamente em seus olhos e ele pensa estar vendo a silhueta do jovem embaixo de uma árvore, numa das cenas mais belas do conto:

Outras silhuetas estavam próximas. Sua alma havia se aproximado daquela região por onde vagam os vastos anfitriões dos mortos. (…) A neve caía, também, sobre todas as partes do cemitério solitário na montanha onde Michel Furey estava enterrado. Ela espalhava-se densamente sobre as cruzes tortas e os túmulos, as pontas do pequeno portão, os espinhos estéreis, A alma de Gabriel desmaiou devagar enquanto ele ouvia a neve caindo levemente sobre todo o universo e levemente caindo, como a descida ao seu fim derradeiro, sobre todos os vivos e os mortos.

Os Mortos, embora faça parte da coletânea de contos do livro Dublinenses, é um conto que devido a sua grandeza tem sido publicado de forma isolada por grandes editoras. Assistimos na Oficina o filme baseado na obra do cineasta John Huston, Os Vivos e os Mortos, uma espécie de homenagem a James Joyce feita por ele que era profundo admirador seu.

42235675Também fizemos a leitura de outra obra da língua inglesa, agora do norte americano naturalizado inglês, Henry James., A Lição do Mestre. Paul Over, escritor iniciante, cultiva profunda admiração por Henry St. George, escritor renomado, cujas obras recentes vêm revelando perda de qualidade literária. O triângulo se forma com Marian, jovem apaixonada por Literatura, que fala com muito entusiasmo do livro de Paul Over a St. James que, embora casado, parece estar apaixonado pela jovem, que parece estar começando a se envolver com Paul Over, tudo muito sugerido, nada muito explícito. St. James convida Paul Over à sua casa e após elogiar profundamente a sua escrita, vaticina futuro brilhante para ele na literatura desde que se dedique inteiramente à sua arte. Eis um trecho da excelente resenha postada no blog por Cacilda Portela, viageira e resenhista de primeira linha; que dá a dimensão da lição do mestre:

Depois de ter lido uma pequena parte da obra do jovem escritor, St. George vai até ele e afirma que o jovem é mesmo surpreendentemente bom; e que precisa realmente manter o nível como escritor. Confessa ao jovem seus sentimentos, medos e anseios e lhe apresenta sua Lição de Mestre: “…Não se transforme  no que me transformei na velhice: o exemplo de quem cultuou os deuses do mercado, dinheiro, luxo, a sociedade, a mulher, os filhos… A!h! as coisas mesquinhas que nos obrigam a fazer. Uma perdição do ponto de vista da arte. O artista nada tem a ver com o relativo, deve ter afinidade apenas com o absoluto. Não poderá fazer alguma coisa realmente boa sem sacrifício.  Fazer algo, e algo que seja divino é a única coisa em que o artista tem que pensar”. Ou desistir da ideia de perfeição. Paul responde “não; eu sou um artista – não há como evitar”.

Paul Over após ouvir o seu pai-poético não titubeia, determinado pela arte, assume a solidão e parte da Inglaterra, deixando Marian sem muitas explicações. Meses depois, toma conhecimento da morte da esposa de St. George, a quem conhecera no mesmo dia em que fora apresentado a Marian. Quando volta, toma conhecimento de que St. George e Marian estavam de casamento marcado. Ele começa a se dar conta de que foi alvo de um golpe de mestre do seu pai-poético..

Montaigne-Os-ensaiosEntre essas duas obras foram lidos Os Ensaios de Montaigne, motivados pelo interesse de conhecer o mestre desse modelo de escrita. Muito bons ensaios foram lidos, entre eles, A força de Imaginação, Solidão e Sobre os Canibais. A publicação da Penguin com tradução e notas de Rosa Freire D’Aguiar está muito boa e se baseia na edição póstuma de 1595, a mesma que serviu de base para a Gallimard publicar em 2007. Além de divertidos pela forma como Montaigne apresenta as suas teses “muito pessoais”, são textos reflexivos que permitem viajar pelo mundo das ideias e ideais com muito prazer. O mais importante, contudo, foi a desmistificação do ensaio enquanto modelo acadêmico. O ensaio de Montaigne não tem compromisso com a verdade, a cientificidade, o saber intelectual ou a historicidade. Para ele é apenas a oportunidade de expressar seus pensamento sobre o assunto que lhe interessa e estimula.

download (1)A terceira obra que foi lida este ano, Os Moedeiros Falsos, de André Gide, datada dos anos 20, época da efervescência nas artes, na literatura, na cultura em geral traz muitas inovações tanto em termos de técnicas como de forma. Mais uma vez eu recorro a Cacilda Portela que a resenhou para dizer que o romance traz o contraponto entre o mundo real e a representação que é feita dele, cria o falso como impossibilidade de compreensão de si mesmo e do outro. “E o drama da vida consiste na maneira pela qual o mundo real se impõe a nós e a maneira pela qual tentamos impor ao mundo exterior a nossa interpretação particular”.
Parece um romance experimental onde o novo e o velho convivem harmoniosamente. Fazendo uso de recursos modernistas, o mise–en-abyme, termo utilizado pela primeira vez por André Gide para explicar a narrativa dentro da narrativa (narrativas encaixadas). O leitor se perde algumas vezes, não sabe qual dos romances está lendo, se o de Édouard ou se a narrativa que o envolve, duas histórias totalmente ligadas entre si, uma contendo a outra. São cartas, diários, ensaios, monólogos e diálogos diretos e indiretos que tornam a leitura senão excitante porque os personagens não criam cenas fortes, à exceção da cena da morte de Bóris, mas certamente rica em termos do aprendizado do fazer literário. Verdadeiro caleidoscópio ou quebra cabeça com uma quantidade enorme de personagens que dão voltas às nossas cabeças para construirmos suas árvores genealógicas, tarefa que nos foi facilitada por Adelaide que as encontrou na web e foram redesenhadas por Mônica.

O narrador de Os Moedeiros Falsos ora posa de onisciente, invadindo os pensamentos e sentimentos mais profundos dos personagens, ora é apenas um observador inocente, dizendo não saber sequer se o personagem jantou ou não. Esse primeiro narrador, sempre na terceira pessoa, quebra o pacto de confiança com o leitor, porque não lhe dá certeza de nada. O segundo, ora na primeira pessoa do singular, ora na primeira pessoa do plural tenta criar um relação com o leitor baseada na cumplicidade, como se ambos estivessem vendo aquela história juntos pela primeira vez e está tão surpreso quanto ele com o desenrolar da história. Ele não posa de senhor sabe tudo, pelo contrário, declara muito ousadamente que sequer sabe se o personagem jantou ou não aquela noite, entre muitas outras dúvidas. Aqui e ali ele toma partido, aparece, se compromete com algumas críticas, cria cumplicidades ao fazer afirmações usando com desenvoltura o nós.

André Gide escreveu um diário para ajudá-lo na escrita de Os Moedeiros, para ir amarrando e desamarrando as linhas e a tal ponto foi importante essa escrita que ele chegou a considerar que estava mais interessado no diário, nas ideias que ali apresentava para o romance do que mesmo em escrever a sua obra. E confessou que se debatia muito contra a tentação de colocar tudo que sabia em Os Moedeiros, daí os ensaios existentes na obra que muitas vezes chegávamos a dizer, aqui André Gide está exibindo os seus pontos de vista:

…seria uma loucura , sem dúvida, agrupar num só romance tudo o que a vida me ensina e me apresenta. Por mais denso que eu pretenda esse livro, não posso incluir tudo nele. E é no entanto esse desejo que ainda me embaraça.

Para conter o desejo de colocar tudo no romance, André Gide usou o diário para tentar identificar os elementos de tonalidades demasiados diferentes, discrepantes. Mesmo assim, como bem diz Cacilda Portela, o romance não tem um tema predominante que se concretize na ação, permitindo variações, desvio ensaístico que ele não quis ou não conseguiu evitar. Outro fator importante que se observou em Os Moedeiros Falsos é a relação estreita entre a ficção e a biografia do autor.São muito evidentes os traços biográficos. Em seu diário, André Gide diz que criaria um personagem que diria tudo que ele gostaria de dizer. No caso, o escritor Édouard.

Os Moedeiros Falsos é um livro grandioso não apenas pelo tamanho, mais de quatrocentos páginas, também pelas suas qualidades técnicas e literárias. Valeu a pena a jornada.

Além das leituras incríveis que foram feitas, trabalhamos também técnicas literárias relativas ao ensaio e à estrutura actancial das narrativas. Esta última foi fundamental para o desenvolvimento da outra pilastra da Oficina: a nossa escrita.

O nosso projeto de escrita desse ano foi ambicioso, mas não impossível. Decidimos elaborar um romance coletivo Se não conseguimos terminá-lo, não era o nosso propósito, quase encerramos a primeira parte. Desenvolvemos um roteiro baseado em três momentos fundamentais da narrativa,: Introdução ou Momento 1, Desenvolvimento ou Momento 2, Conclusão ou Momento 3, com as suas respectivas estruturas actanciais bem definidas. A discussão ajudou-nos a definir tempo narrativo diferentes, cenários rural e urbano e todos os actantes envolvidos no conflito como protagonistas ou auxiliares. Para que os estilos fossem respeitados adotamos modelo similar ao de William Faulkner em Enquanto Agonizo, em que cada capítulo é dedicado a um personagem, permitindo as mudanças de estilos sem dissonância do seu todo.

O primeiro Momento do romance está praticamente concluído. Ele foi desenvolvido por três oficineiros: Paulo Tadeu, Salete Oliveira e eu. A minha parte é a única ainda incompleta, mas ela estará sendo fechada logo, logo. No inicio da elaboração do personagem Jeremias, a nossa viageira Teresa ainda estava conosco e havia participado, mesmo com a sua total permissão para recriar o personagem Paulo Tadeu manteve alguns traços fundamentais do seu perfil.

Deu-me prazer imenso vê a qualidade da escrita realizada pelos meus parceiros, a riqueza dos detalhes contribuindo fundamentalmente para dar verossimilhança à história que estava sendo contada. Os fluxos de consciência, as características dos personagens, os cenários, os flashs backs , os tempos narrativos se alternando entre passado e presente foram escritos com o rigor próprio dos artesãos das palavras experientes e sensíveis.

O Momento 2 e o Momento 3 serão desenvolvidos no próximo ano por Luzia, Salomé, Paulo Tadeu, Eleta, Cacilda que já estão pensando em seus roteiros. Participantes do Momento 1 voltarão com os seus personagens, como Salete e eu,.

Em 2015 criamos o Momento Poético que inicia as oficinas a cada semana e o Carrossel de Livros para a nossa feira de troca de livros.

O Momento Poético aconteceu por uma sugestão de Paulo Tadeu, marujo experiente pelos mares das palavras, mas carente de poesia igual a todos nós. Tão importante foi a criação desse momento que ele passou a ocupar tanto tempo dos nossos trabalhos da Oficina que tivemos de interromper agora nos últimos dias sob pena de não concluirmos a nossa leitura de Os Moedeiros Falsos, de André Gide.

Vários poetas tiveram as suas poesias lidas: Charles Baudelaire, Luís Camões, Sylvia Plath, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Fernando Pessoa, Sophia Brayner, Murilo Mendes Campos ,Carlos Pena Filho, Vinicius de Moraes, Mario Quintana, Cecília Meireles, Affonso Romano de Sant’Anna, Paulo Leminsky, Calderon de La Barca, Manoel de Barros, Daniel Lima. Alguns voltaram mais vezes, como Fernanco Pessoa, Vinícius de Moraes e Carlos Pena Filho.

Estão no blog todos os poemas lidos nas quartas-feiras, além de dados biográficos dos poetas, vídeos com entrevistas e poemas. Como eles o enriqueceram! Este ano o blog foi revitalizado não apenas com os poemas ali postados, mas com a produção de poemas e ensaios dos nossos escritores: Eleta Ladoski, Salete Oliveira, Luzia Ferrão, Cacilda Portela, Salomé. Agradecimento especial a Adelaide que trouxe e leu muitos poesias para nós, além de endereços eletrônicos de poemas primorosos, como o do vídeo com poema lido por Sylvia Plath.

O Carrossel de Livros foi outra criação do final de 2015 que surgiu da leitura de um poema de Paulo Leminsky. Ao ler a sua biografia, descobri que ele havia traduzido Pergunte ao Pó, de John Fante e o título me interessou. Paulo Tadeu que era um leitor antigo de John Fante mo emprestou e eu gostei tanto que quis ler outro livro do autor: O Vinho da Juventude, de contos, muito interessante. Surgiu-me a ideia de iniciar na Oficina essa troca de livros, vez que os viageiros e viageiras têm boas bibliotecas. O nome Carrossel de Livros foi dado por Salete, a nossa oficineira- poeta, muito apropriado. Graças ao Carrossel de Livros conheci autores que há muito desejava conhecer e outros que sequer imaginara ler um dia. No primeiro caso Joyce Carol Oates e Roberto Bolaño; no segundo, Ivo Ándrítich e Modiano. Apesar do curto espaço de tempo, quase trinta livros já passaram pelo carrossel, demonstrando que a nossa iniciativa bem criativa e oportuna, diante da escassez do dinheiro, mais do que isso, tirou das bibliotecas livros importantes que estavam ameaçados pelo mofo e esquecimento. Agora eles circulam alegremente pelo carrossel e saem para passear e alegrar as nossas vidas.

É tempo de aportar, como eu disse no início. O balanço final traz de volta as emoções da viagem! Feliz Natal a todos. Que em 2016 os céus estejam limpos e os mares mansos, são os meus maiores desejos.

Jaboatão dos Guararapes, 15 de dezembro de 2015
Lourdes Rodrigues

  • Epígrafe retirada do livro O Demônio do Meio-Dia – Uma Anatomia da Depressão, de Andrew Solomon.,

Monólogo Interior

MI0002861493Na próxima quarta-feira, 18 de março, iremos ler o Monólogo de Molly Bloom, longo trecho extraído de Ulisses, obra de James Joyce, cuja relevância literária permitiu-lhe assumir identidade própria, sendo inclusive publicado, em separado, por algumas editoras.

O Monólogo de Molly Bloom ficou famoso porque tentou reproduzir os mecanismos do pensamento de forma literária. Tudo ocorre na mente  do personagem, como se o “eu” falasse a si próprio. Há certa dificuldade de algumas pessoas aceitarem que esse tipo de monólogo é um diálogo. Se é mono, dizem, subentende-se que é único, uno, e não duo, dois. Todavia, esse uno, esse um dirige-se a um outro, subentende a presença de um ouvinte, de um “tu” com quem ele ou ela fala. Há um duplo, aí, com certeza, a quem o “eu” se dirige,  troca ideias, conversa, briga, agride, xinga. . No monólogo interior são expressos os recônditos da alma do personagem, os seus desejos mais reprimidos surgem de forma escancarada, assim como as suas fantasias mais lúbricas.

Há duas formas de escreve-los. De forma indireta, quando a presença de um narrador é evidente, um narrador onisciente que relata todos os fluxos de pensamento dos seus personagens, não lhe escapando o menor e mais íntimo pensamento, muito comuns em Virgínia Wolf, em William Faulkner; e o monólogo interior direto que ficou celebrizado pelo Monólogo de Molly Bloom em Ulisses, escrito por James Joyce, em que  o narrador é o próprio personagem que se revela em sua fala, num tempo presente dominante, mesmo quando se refere ao passado, num fluxo de consciência que jorra sem parar. Toda pontuação é desconsiderada, abrindo espaço para o caos gramatical, numa tentativa de escamotear por completo a presença de um terceiro..

É preciso ter fôlego para esse tipo de leitura, é preciso se despojar de todo um arsenal de conhecimento gramatical e de recursos estilísticos para apreciar com prazer essa leitura. Com certeza os navegantes dos mares das palavras estão preparados para essa grande viagem. Usaremos as traduções de Houaiss e de Caetano Galindo.1022784-250x250ulisses_james_joyce

Segue um trecho do monólogo que iremos ler.

 

 

Os Mortos, James Joyce

42691740NOTAS SOBRE A NOVELA OS MORTOS DE JAMES JOYCE

*Cacilda Portela

A Oficina de Literatura Clarice Lispector está lendo e analisando a novela Os Mortos, de James Joyce. Na impossibilidade de acompanhar até o fim os trabalhos, terminei a leitura sozinha, e aventurei fazer algumas anotações sobre a novela, observando alguns princípios gerais da análise literária. Desde já me coloco à disposição dos leitores para sanar alguma interpretação duvidosa ou precária.

Tema – o assunto, argumento ou proposição central da narrativa é a Morte. A ideia predominante da novela que se concretiza na ação. A ideia global que sustenta o planejamento e a ação. Diferencia-se do motivo pelo grau de abstração.

Motivo ou enredo – relativo ao movimento, se refere à ação ou enredo, e tem o poder de encaminhar a ação porque aciona sua dinâmica. A ceia de Natal, o discurso de Gabriel, o vinho e a dança, as brincadeiras quando os convidados se despedem no hall, a caminhada ao longo do rio sob a neve, a canção que Gretta escuta transtornada no final da festa são fragmentações do todo narrativo, que emergem do desenvolvimento da narrativa para os episódios finais: a revelação de Gretta e as consequências para Gabriel.

Forças-motrizes – constituem a permanência de certos padrões de comportamento diante da realidade, certos valores, certas soluções para os problemas humanos, certas ideias fixas, certos moldes mentais. Gabriel vai elaborando essas forças que implicam em sua visão do mundo.

O medo de falhar é um padrão do comportamento de Gabriel Comroy, e indica necessidade de fuga da situação. Teme falhar com os convidados se o seu discurso, logo mais, na ceia de Natal, não for bem entendido. Pensa: todo o discurso era um erro, do princípio ao fim. Falhara com Lily quando lhe ofereceu uma moeda porque ela guardara sua capa de chuva. Falhara também com a Srta. Ivors. Acusado por ela de escrever resenhas para o jornal Daily Express e de ser um bretão ocidental, fica estarrecido e reticente, só conseguindo responder que não via nada de política em escrever resenhas, enquanto queria dizer que a literatura está acima da política. Quando indagado pela esposa sobre a conversa com a Srta. Ivors, Gabriel responde que ela apenas queria que ele fosse viajar nas férias para o oeste da Irlanda. Pouco ouvia o que a esposa falava. Os dedos trêmulos batiam no vídeo da janela. Pensa como deve ser muito agradável caminhar sozinho ao longo do rio. Muito mais agradável do que estar ali na mesa do jantar!

Um Gabriel inseguro e deslocado com relação à sociedade, às pessoas e a si próprio, olhando a neve pela janela, voltou a pensar no seu discurso e na citação que faria dirigida para a Srta. Ivors:

Senhoras e senhores, a geração que agora está em declínio entre nós teve suas falhas, mas, de minha parte, creio que ela teve certas qualidades de hospitalidade, de humor, de humanidade, de que a nova e muito séria geração educada, que cresce entre nós, me parece carecer.

É a resposta de Gabriel que ele gostaria de ter dado para a Srta. Yvors, que deixa a festa sorrindo e não parecia estar chateada. Gabriel olhou para o nada escada abaixo.

Pensou nos tópicos do seu discurso e repetia para si mesmo a frase que escrevera em sua resenha: É como se estivéssemos ouvindo uma música atormentada por pensamentos. Aqui, o autor da novela traz para o leitor a ideia de que a frase é dirigida para Gabriel, e que significa algo que está sendo preparado ou montado para o tema da novela, e que, revelado, significa a tomada de conhecimento da razão de ser da vida de Gabriel. Será por acaso que, logo em seguida, tia Jane, ao piano, executa a canção Vestida para o Matrimônio?

Quando começa o discurso, Gabriel lembra que a Srta. Yvors havia ido embora. Cheio de confiança em si mesmo começa dizendo:

… vivemos em uma era cética e atormentada pelo pensamento de jovens que poderão desprezar valores de humanidade, de hospitalidade, de humor de um gracioso estado de espírito que pertenciam a dias passados. (…) e se nós nos remoermos demais nessas memórias jamais encontraremos forças para seguir bravamente com nosso trabalho entre os vivos. Nós temos, todos nós, deveres vivos e afetos vivos com esses valores”. (54)

Os convidados estavam saindo. Gabriel vê sua esposa escutando uma canção, e sente-se atraído por ela. Observava a esposa que não se envolveu na conversa. Ela parecia tão frágil que ele teve vontade de defendê-la de algo e, então, ficar a sós com ela. Sentia-se orgulhoso, alegre, carinhoso, valoroso. Ela perguntou pelo nome da canção que estava tocando. A Garota de Aughrin foi a resposta. Neste ponto, a ação se encaminha para algo novo, fundamental, para o desfecho da novela.

Gretta revela para Gabriel a paixão de adolescência pelo garoto Michel Furey. Ele morreu aos dezessete anos porque, mesmo muito doente, fora despedir-se dela que voltava de férias para a casa dos pais. Ele costumava cantar a música A Garota de Aughrin. Eu consigo vê-lo claramente, ela diz para Gabriel. Não é terrível, morrer tão jovem assim? Gabriel sente-se humilhado pela evocação daquela figura do mundo dos mortos. Uma consciência vergonhosa de si mesmo o avassalou. Gretta diz acreditar que Michel morreu por causa dela. Quase não lhe doía mais pensar no pobre papel que ele, seu marido, havia tido na vida dela.

Epifania – Seção da obra literária que apresenta, simbolicamente, um momento de revelação. O texto costuma ser denso e profundo. Um terror vago se apoderou de Gabriel como se um ser intangível e vingativo estivesse vindo contra ele em seu mundo vago. Era chegada a hora de iniciar sua viagem para o oeste da Irlanda. Pensou ver a silhueta de Michel Furey apoiada em uma árvore na neve. O mundo real, em que os mortos tinham vivido, desagregava-se. A neve cobria todo o universo como se fosse uma manifestação divina. Como se lhes descesse para a hora final, sob todos os vivos e os mortos. Surge então uma súbita sensação de entendimento ou de compreensão da essência das coisas. Um pensamento único e inspirador. Passado e futuro não importam mais. Gabriel Conroy toma consciência da finitude humana.

Cosmovisão – Visão filosófica singular de ver o mundo. Crenças sobre a forma como as coisas são e deveriam ser. Gabriel apresenta na ceia de Natal, e de forma mais incisiva, suas ideias sobre o valor e o destino da pessoa humana. Os episódios remetem para o conhecimento de toda a obra, e se encaminham para uma visão do mundo. Um Gabriel moralista, temeroso, desencantado, que sucumbe pela revelação da esposa. Há de chorar para sempre porque nada mais tem razão de ser. Essa crença, de base filosófica, explica sua amargura, que procura na morte apagar uma existência linear e sem grande sentido. Tem na morte um sono sem sonhos.

Conteúdo da Obra- Novela de ideias, pela retratação filosófica e atemporal. Vale salientar que a novela Os Mortos não está estreitamente relacionada ao ambiente histórico. E que nenhuma obra se desliga totalmente do seu ambiente externo.

* Cacilda Portela é advogada, pesquisadora social, ensaísta.

 

A Nova Tradução de Ulysses, de James Joyce

A volta, em nova versão, de um monumento literário

O Estado de São Paulo

 Domingo, 28 de Abril de 2012 (www.estadao.com.br)

Antonio Gonçalves Filho

A nova tradução do romance Ulysses (1922), do irlandês James Joyce, que chega às livrarias no dia 14, consumiu dez anos de trabalho árduo do professor da Universidade Federal do Paraná, Caetano W. Galindo, curitibano de 39 anos que verteu para o português obras de outros autores importantes como Thomas Pynchon, Tom Stoppard e David Foster Wallace. É a terceira tradução brasileira do moderno épico de Joyce (1882-1941), passado num único dia, 16 de junho de 1904, em Dublin. A pioneira, de 1966, levou quase um ano para ser feita e foi assinada pelo filólogo Antonio Houaiss (1915-1999), permanecendo como a única disponível no mercado nacional até 2005. Nesse ano foi lançada a segunda tradução, de Bernardina da Silveira Pinheiro, que dedicou sete anos à tarefa (mais detalhes na página ao lado, em que estão reunidas as três versões brasileiras para o início do romance). Galindo fez a primeira versão de sua tradução antes de ler a de Bernardina Pinheiro. “E, no caso de Houaiss, percebi muito rápido que um processo de constante cotejo e revisão ia me deixar louco e travado”.

Primeiro tradutor da obra, Houaiss previu que seu trabalho teria desdobramentos. “Creio que o texto poderá ser melhorado por um futuro tradutor, porque Ulysses é dessas obras que fatalmente terão duas ou três traduções”, dizia, quando alguém criticava a sua. É mesmo difícil agradar a todos. Afinal, são 265 mil palavras reunidas em mais de 800 páginas escritas por um autor que, insatisfeito com os estilos literários de sua época, oferece em Ulysses pastiches de muitos deles. Não foi apenas um sarcástico ataque contra a literatura convencional que moveu Joyce. Seu objetivo, segundo o inglês Declan Kiberd, doutorado pela Universidade de Oxford e autor da introdução da nova edição nacional, era mostrar que “mesmo a mais refinada literatura não deixa de ser uma imitação paródica da experiência real da vida”. O romance não poupou nem mesmo a modernidade literária, provocando reações de vanguardistas como D.H. Lawrence e Virginia Woolf.

“Pode-se dizer que todo Ulysses, como releitura da Odisseia, é pastiche, mas é fundamental lembrar que o pastiche de Joyce nunca é simplesmente ridicularizador”, observa o tradutor. “Ele escrevia melhor quando estava rindo do estilo que empregava, fazendo com que a ‘paródia’ nunca fosse uma simples questão de negação”.

Antes de fazer uma elegia ou um pastiche do épico Odisseia, de Homero, com o qual estabelece uma relação analógica, Joyce abre sobretudo um caminho para o retorno à tradição oral, seu verdadeiro alvo, segundo Kiberd. Seu herói, Leopold Bloom, um pobre agente publicitário, seria o correspondente nada heroico do mítico Ulisses homerístico nessa história. Sua voluptuosa mulher, Molly Bloom, tomaria o papel de uma nada fiel Penélope. Já o jovem escritor Stephen Dedalus seria o correspondente moderno e laico do virtuoso Telêmaco, filho de Ulisses. Dedalus, o alter ego literário de Joyce, diz que Deus não passa de um grito no meio da rua e que a história é, no máximo, um terrível pesadelo. A atração quase incestuosa do andrógino Bloom por esse filho que não teve, representado por Dedalus, é expressa no penúltimo episódio de Ulysses, o preferido de Joyce – em que Leopold volta para casa acompanhado pelo jovem e os dois urinam no quintal, em meio a devaneios sobre os astros e a trajetória do xixi.

Molly, a mulher de Bloom, tem a “palavra final” no romance. E essa palavra é simplesmente um “sim”, analisado como uma resposta ao autoritário “eu quero” masculino por outro tradutor de Joyce, Sérgio Medeiros (leia na página ao lado). É de Molly o solilóquio do 18.º e último episódio de Ulysses. Nele, a técnica literária de Joyce conhecida como “stream of consciousness” (fluxo de consciência), introduzida no terceiro episódio – dedicado às reminiscências de Dedalus – é levada ao paroxismo. O leitor tenta acompanhar a corrente enlouquecida do monólogo interior de Molly, que suspeita da infidelidade do marido e sonha com possíveis novos parceiros (ela fantasia um encontro sexual com Dedalus, que conheceu quando criança), imaginando ainda um emprego melhor para o marido, capaz de garantir a ela roupas mais elegantes e um estilo de vida menos ordinário.

Uma história como essa, escrita entre 1914 e 1921 e inicialmente publicada em capítulos no jornal norte-americano The Little Review, estava mesmo destinada a provocar barulho. Acusado de obscenidade pela Sociedade para a Supressão do Vício, de Nova York, por causa de um episódio em que Leopold Bloom se masturba, o livro foi levado a julgamento, declarado obsceno e banido nos EUA, sendo apenas publicado em 1922, em Paris (e em 1934, na América). A edição francesa é considerada a oficial, embora com mais de 2 mil erros e ainda assim diferente daquela que o professor alemão de literatura Hans Walter Gabler apresentaria em 1984, supostamente baseada nos originais do autor – ela foi muito criticada como um patchwork de manuscritos, um tanto infiel a Joyce, por trocar nomes de personagens e desrespeitar a sintaxe do autor.

Certo é que Joyce não gostava muito de vírgulas e detestava hifens, como lembra o novo tradutor de Ulysses, Caetano Galindo, mas Gabler teria exagerado em sua edição crítica e sinóptica do romance. Essa recusa ao hífen, diz o brasileiro, “acaba gerando a criação de várias palavras aparentemente novas mas que são apenas uma representação gráfica de um composto conhecido ou mesmo uma junção de substantivo e adjetivo totalmente normal”. Galindo garante que não inventou palavras. “O que pode ser que eu tenha feito, assim como outros tradutores, foi forçar limites possíveis da língua portuguesa e da literatura brasileira, para criar novas combinações e novas fusões.” Assim, no terceiro episódio, o personagem Kevin Egan é descrito como alguém “senhamor” e “senterra”. No episódio 12, em que um narrador não nomeado tenta descrever o personagem “Cidadão”, o preconceituoso senhor sardento é chamado de “sardasmuitas”, “boquimensa” e “ventasgrandes”. Em tempo: o “Cidadão” é um antissemita a quem Bloom, descendente de judeus húngaros e convertido ao cristianismo (para casar com Molly), repreende num pub, lembrando que Cristo era da mesma etnia de seus antepassados.

Essa fixação de Joyce pelo aspecto físico dos personagens é estudada por Kiberd na introdução do livro. Ele alude particularmente à redução estereotípica que T.S. Eliot não conseguiu suportar no irlandês. Joyce suspeitava que a maioria das pessoas estaria mais para tipos do que para indivíduos. Isso não excluía seus contemporâneos companheiros de letras. “Houve um pouco de inveja entre os escritores experimentais e muita recusa ao lado irlandês-beberrão-tosco de Joyce, como se ele não fosse um membro daquela elite de que eles acreditavam fazer parte e, mais ainda, houve muita negação moral, pois Joyce era indecente, inadequado, grosso, e ainda insistia em misturar personagens e fatos reais no texto”, analisa Galindo.

A obsessão de Joyce em descrever detalhes físicos e escatológicos levou o irlandês a fazer de Ulysses, segundo o professor Declan Kiberd, o “épico do corpo”. Não foi outro irlandês, Oscar Wilde, o pioneiro a apresentar o “homem feminil” na literatura, anota Kiberd, mas Joyce, que, segundo ele, “mudou para sempre o modo como os escritores tratavam a sexualidade”.

Nem todos os leitores de Ulysses, escreve Kiberd, viram a androginia de Bloom pelo que era. Ela não seria sinônimo de bissexualidade (interpessoal), mas um fenômeno intrafísico, na medida em que, no caso de Leopold, a androginia representaria muito mais um estado da mente que do corpo. Buck Mulligan, o estudante de medicina que abre o livro, convidando Stephen Dedalus a subir ao altar de Deus (a torre onde Mulligan, no topo da escada, faz a barba), pensa o contrário. Desdenha de Bloom (por ciúmes), achando que ele teria uma atração homossexual pelo amigo Dedalus, quando este busca no garoto um camarada com o qual poderia estabelecer uma relação paternal, serena, impossível num casamento como o dele e Molly.

“Ela é a personagem feminina mais exuberante do século 20, construída a partir de um dos truques literários mais triunfantes da história do romance, quando ele decide compensar as 800 páginas androcêntricas do livro com um único episódio dedicado a Molly”, analisa Galindo. “Ele percebeu que a única maneira de fazer isso é com a total concentração e densidade que o monólogo direto poderia lhe dar.” Já Leopold, para o tradutor, “é simplesmente o personagem mais completo da literatura desde Hamlet, como disse Harold Bloom”. Para quem ainda considera Ulysses criptográfico, como o personagem de Shakespeare, uma última e boa notícia: a Companhia das Letras publica em breve um guia de leitura da obra-prima de Joyce.

(Texto encaminhado por César Garcia para postagem)

Um trabalho de dez anos

Caetano W. Galindo, terceiro tradutor de ‘Ulysses’ no Brasil, diz que teve que manter distância das traduções anteriores pois percebeu que um processo de constante revisão o iria deixar ‘louco e travado’

27 de abril de 2012 | 22h 00 – Estado de São Paulo – www.estadao.com.br

Antonio Gonçalves Filho

Lançado em 1922, em Paris, após ser acusado de obsceno e banido nos EUA, Ulysses, o épico moderno do irlandês James Joyce, ganha sua terceira tradução no Brasil, trabalho de dez anos do professor de literatura e tradutor Caetano W. Galindo. Evitando o cotejo com as traduções anteriores, do filólogo Antonio Houaiss (de 1966) e de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005), Galindo diz que teve que manter distância delas porque percebeu muito rápido que um processo de constante revisão o iria deixar “louco e travado”. Sua tradução chega às livrarias pela Companhia das Letras no dia 14. A mesma editora vai lançar brevemente um guia de leitura do livro.

ENTREVISTA:

Caetano W. Galindo: ‘O que me levou a traduzir foi a necessidade de entender o livro’

E – Nas passagens mais experimentais de Ulysses, você diz que se deu o direito de inventar palavras. Não seria essa uma estratégia capaz de tornar o livro ainda mais caótico para leitores não familiarizados com a leitura de Joyce, considerando que você evitou notas explicativas?

C – Não lembro onde eu disse isso. Mas, veja bem. Inventar palavras não é uma opção, assim ex nihilo, e nem é uma coisa que o Joyce tenha feito, ao menos não no Ulysses. O que pode ser que eu tenha feito, assim como outros tradutores, é forçar os limites possíveis da língua portuguesa e da tradição literária brasileira para criar, a partir de possibilidades reconhecidas como tais pelos leitores, novas combinações e novas fusões, por exemplo. E, um, o livro não é nada caótico e, dois, o meu não terá ficado mais caótico!: trata-se de um livro com dificuldades, e a tradução terá dificuldades, trata-se de um livro que força o leitor nativo a ir a ao dicionário e a tradução fará o mesmo. Trata-se de um livro que, às vezes, força o leitor a compreender algo “novo” a partir dos recursos de formação da língua, e a tradução também.

E – Alguns escritores contemporâneos de Joyce, como D.H. Lawrence e Virginia Woolf, não aceitaram a linguagem inovadora do escritor. Ao que você atribui essa incompreensão de autores que foram igualmente renovadores da literatura de língua inglesa: a uma reação moral contra a ironia de Joyce e ao seu desmonte da tradição épica?

C – Houve um pouco de “inveja” entre os escritores “experimentais” britânicos que viram o sujeito lhes passar a perna num grau difícil de imaginar. Houve muita recusa ao lado irlandês-beberrão-tosco de Joyce, como se ele não fosse um membro daquela elite de que eles acreditavam fazer parte e, mais ainda, houve muita negação moral. Joyce era indecente, era inadequado, era grosso. E ele ainda insistia em misturar personagens e fatos reais no texto, dando a tudo um ar ainda mais “deselegante” na opinião da época e, claro, do nosso ponto de vista, muito mais moderno.

E – Na introdução do livro, Declan Kiberd define Ulysses como um épico do corpo com certa fixação na metempsicose. Após anos estudando e traduzindo o livro, como você o definiria?

C – São 10 anos!.. até eu me surpreendo. Como eu o definiria? O maior romance, a maior celebração do que é ser uma pessoa entre as pessoas.

E – A renovação literária de Ulysses liga-se a uma correspondência analógica com a linguagem musical, mais abstrata que a escrita. Como você lidou com a musicalidade das palavras na tradução?

C – Eu tenho formação de músico. E, mais do que isso, acho ainda que penso mais como músico do que como qualquer outra coisa. Essa “musicalidade” pra mim é sempre um elemento, e encontrar um autor que é tão obcecado por ela quanto Joyce é na verdade um prazer, uma oportunidade, uma chance de dar plena vazão a uma perversão particular minha. Como fazer isso? Respeitando as musicalidades específicas de cada idioma, sem violentar o inglês e o português, mas buscando sempre o efeito mais marcado, mais bonito, mais adequado… mesmo que isso por vezes te force a “criar” mais.

E – A imitação de antigos estilos literários faz de Ulysses um antecessor de paródias pós-modernas que zombam das boas construções literárias e das tramas bem construídas. Como você vê esse mecanismo de Joyce em relação a outros livros dele?

C – Pode-se dizer que todo o Ulysses, como releitura da Odisseia, é pastiche. Mas é fundamental lembrar que o pastiche de Joyce nunca é simplesmente ridicularizador. Ele, como já se disse, escrevia melhor quando estava rindo do estilo que empregava. Ele encarnava os seus alvos plenamente, fazendo com que a “paródia” nunca fosse uma simples questão de negação (como aliás talvez nunca seja mesmo). Ele fazia disso uma extensão da tarefa mais básica do romancista, incorporar vozes, tons, estilos, personalidades. O Ulysses é o apogeu desse processo. Em Um Retrato do Artista Quando Jovem, ele ainda não adotava a distância necessária para esse efeito, e em Finnegans Wake ele conseguiu atingir uma espécie de fusão final em que todos os efeitos e vozes se misturam em um todo inconfundível e, digamos, personalíssimo, exatamente como toda e qualquer voz pessoal, formada sempre de cacos de tudo que de “outro” se pode encontrar na vida.,

E – O começo de Ulysses é uma prova violenta para qualquer tradutor, revelando, de alguma maneira, como ele se aproxima de Joyce. Numa primeira leitura, você parece menos reverente que Antonio Houaiss ou Bernardina Pinheiro. O que o levou a traduzir Ulysses?

C – A reverência nunca seria uma postura produtiva. Nem para mim nem para os outros tradutores. Entender Joyce é entender isso. Ele não inspira reverência. Admiração, sim. Inveja, como já pôde gerar em outros escritores.. mas reverência implica um grau de solenidade que é acima de tudo anti-joyciano. O que me levou a traduzir foi a necessidade de entender o livro. Ele me intrigava, me seduzia, mas eu não achava que fosse capaz de entender dele tudo que queria ou podia entender numa mera leitura. Eu cobicei o livro. Quis que ele fosse meu.

E – Com relação às atitudes antibélicas e à aludida androginia de Leopold Bloom, destacadas por Declan, qual a sua posição a respeito? Ele diz que Joyce apresenta Bloom como o homem andrógino do futuro. Você concorda?

C – Bom.. o Joyce disse isso. Logo, difícil discordar. Sim, Joyce é antibélico. E o Ulysses. E Bloom declama todo um discurso antibelicista num momento em que, vale ressaltar, isso era tudo menos “chique” e “moderno”. E ele é definitivamente andrógino.

E – As traduções anteriores de Ulysses o ajudaram, de alguma forma, ou você preferiu manter distância delas?

C – Eu tive que manter distância. Primeiro, porque eu fiz a primeira versão da minha tradução antes de poder ler a da Bernardina. E, no caso do Houaiss, eu percebi muito rápido que um processo de constante cotejo e revisão ia me deixar louco e travado. Assim, decidi dar as costas e seguir contando apenas com o meu contato com Joyce.

E – Você é também tradutor de Pynchon. Como compara a sua ambição literária diante do legado de Joyce?

C – Ele é menos dedicado à reforma da “forma” romance. Mas a grande empresa joyciana, que era a busca de novas formas de representar com a maior profundidade e a maior abrangência a experiência humana no que ela tenha de mais vário e mais profundo, continua a dar frutos no mundo pynchoniano (como no mundo de David Foster Wallace, por exemplo). As soluções podem ser outras, podem estar em outros campos, outros procedimentos, mas eles são “irmãos” em algo mais central. Nesse aspecto humano, humanista profundo.

E – Gostaria que você definisse em poucas palavras como vê os personagens criados por Joyce, especialmente Leopold e Molly Bloom.

C – Molly Bloom é a personagem feminina mais exuberante do século 20, construída a partir de um dos truques literários mais triunfantes da história do romance. Quando ele decide compensar as 800 páginas androcêntricas do livro com um único episódio dedicado a ela, e percebe que a única maneira de fazer isso é com a total concentração e densidade que o monólogo direto podia lhe dar, ele fez o que de mais brilhante os gênios conseguem fazer: transformar um “problema”, uma “dificuldade”, num trunfo. Leopold Bloom é meu irmão. É teu irmão. Como disse Harold Bloom, ele é simplesmente o personagem mais completo da literatura desde Hamlet. E isso se dá inclusive por força bruta. Nós acompanhamos Bloom por horas a fio, com acesso a quase tudo que ele pensa, vê, lembra, diz ou sente. Nós sabemos dele tudo que ele sabe e, graças, por exemplo, às cenas de alucinações, que encenam recalques e perversões, sabemos até o que ele nem acha que sabe de si próprio…

 

Um difícil começo: a tradução de ‘Ulysse

27 de abril de 2012 – Estado de São Paulo

Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante

A frase inicial de Ulysses (1922) parece simples em inglês: “Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead, bearing a bowl of lather on wich a mirror and arazor lay crossed”. Sua tradução para o português, no entanto, revela, se considerarmos as três versões completas do romance existentes no Brasil, posições cruciais dos tradutores quanto à maneira de verter o romance de James Joyce.

Na pioneira tradução de Antônio Houaiss, publicada em 1966, o uso de duas palavras aparentemente pomposas, raras, conferem à abertura do romance uma solenidade que visa a acentuar talvez o caráter paródico da cena: “Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha.”

Como se sabe, a ação de Ulysses começa às 8 horas do dia 16 de junho e termina no alvorecer do dia 17, um pouco antes das 4 horas da manhã. O vaso de barbear de Buck Mulligan representaria o cálice sagrado e o alto da escada, os degraus do altar. Dizem os estudiosos que a navalha indicaria a matança, o massacre, associando o “padre” ao açougueiro. Publicada em 2005, a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro opta por uma solução mais literal, que acentua de imediato o vínculo entre o sagrado e o profano: “Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba.” Essa segunda versão de Ulysses em português explicita o que Houaiss deixou implícito, a espuma no vaso de barbear, que Joyce, no entanto, menciona.

Isso não significa que a tradução em questão seja sempre mais “acertada” do que a outra. Na sequência do primeiro parágrafo, Bernardina propôs: “Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã”. A tradução de “yellow dressinggown” é literal, mas é difícil visualizar o viril Buck Mulligan usando um penhoar. Houaiss optou por “um roupão amarelo”, que parece combinar mais com o personagem. Vejamos as soluções que Caetano Galindo, o terceiro tradutor de Ulysses, adotou na sua versão do referido parágrafo: “Solene, o roliço Buck Mulligan surgiu no alto da escada, portando uma vasilha de espuma em que cruzados repousavam espelho e navalha. Um roupão amarelo, com cíngulo solto, era delicadamente sustentado atrás dele pelo doce ar da manhã.”

Aparentemente, Galindo estaria mais próximo de Bernardina do que de Houaiss, mas evita usar “penhoar”, que em português cria um estranhamento talvez não previsto por Joyce. Contudo, sua versão tem características próprias, visíveis nesse trecho, que a distinguem da tradução de Bernardina. Joyce não gostava de vírgulas e as dispensava tanto quanto podia. A primeira frase de Galindo parece maisjoyceana do que a de Bernardini. Mas, na sequência, Galindo emprega uma palavra não usual, “cíngulo”, cordão que integra a vestimenta dos sacerdotes, termo “técnico”, não empregado pelos tradutores anteriores. Joyce usa a palavra “urgirdled”, que não é apenas “desamarrado”, mas refere-se a “girdle”, uma cinta sacerdotal, o cíngulo. Foi assim que Galindo entendeu o termo.

Lemos no Ulysses Annotated, de Don Gifford, que o termo “ungirdled” sugere a violação do voto de castidade por parte do sacerdote. Esse aspecto da paródia joyceana é realçada na nova tradução do romance pelo emprego, em português, de “cíngulo”. Assim, quando confrontamos as três versões do parágrafo inicial de Ulysses, podemos identificar claramente, em germe, os caminhos que cada tradutor adotará ao longo do trabalho, hercúleo, de verter na íntegra a complexa obra-prima de Joyce, que ao mesmo tempo é legível e ilegível, séria e cômica, épica e dramática, unificando talvez os contrários, daí o seu sabor especial, o seu fascínio.

 

Os primeiros parágrafos de ‘Ulysses’, segundo os três tradutores brasileiros

27 de abril de 2012  – Estado de São Paulo

ANTÔNIO HOUAISS

Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha. Seu roupão amarelo, desatado, se enfunava por trás à doce brisa da manhã. Elevou o vaso e entoou:

– Introibo ad altare Dei.

Parando, perscrutou a escura escada espiral e chamou asperamente:

– Suba, Kinch. Suba, jesuíta execrável.

Prosseguiu solenemente e galgou a plataforma de tiro. Encarando-os, abençoou grave três vezes a torre, o campo circunjacente e as montanhas no despertar.”

Lançada em 1966, a tradução do filólogo carioca Antônio Houaiss (1915-1999) foi feita por encomenda do editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, entre novembro de 1964 e outubro de 1965 – ou seja, em menos de um ano. Chegou à 17ª edição em dezembro último (960 págs., R$ 80).

BERNARDINA DA SILVEIRA PINHEIRO

“Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba. Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã. Ele ergueu a tigela e entoou:

– Introibo ad altare Dei.

Parado, ele perscrutou a escada sombria de caracol e gritou asperamente:

– Suba, Kinch! Suba, seu temível jesuíta!

Solenemente ele avançou para a plataforma de tiro. Olhou à volta e seriamente abençoou três vezes a torre, o terreno à volta e as montanhas que despertavam.”

A professora carioca Bernardina da Silveira Pinheiro dedicou sete anos à tradução do romance, editada em 2005 pela Objetiva. A obra literária de Joyce – especialmente o épico de Bloom – a levou a pesquisas de pós-doutorado na Irlanda e na Inglaterra. Sua versão ganhou nova edição, da Alfaguara, em 2008 (912 págs., R$ 92,90).

CAETANO W. GALINDO

“Solene, o roliço Buck Mulligan surgiu no alto da escada, portando uma vasilha de espuma em que cruzados repousavam espelho e navalha. Um roupão amarelo, com cíngulo solto, era delicadamente sustentado atrás dele pelo doce ar da manhã. Elevou a vasilha e entoou:

– Introibo ad altare Dei.

Detido, examinou o escuro recurvo da escada e invocou ríspido:

– Sobe, Kinch. Sobe, seu jesuíta medonho.

Altivo, ele se adiantou e subiu na plataforma de tiro redonda. Olhou à volta e abençoou sério e por três vezes a torre, o campo em torno e as montanhas que acordavam.”

O curitibano Caetano Waldrigues Galindo se ocupou da tradução de Ulysses por dez anos. A origem do trabalho foi sua tese de doutorado. A edição que sai agora com o selo Penguin Companhia (1.112 págs., R$ 47) chegou a ter alguns trechos lidos em público, nas festas do Bloomsday.

 

A sra. Molly e o seu inesgotável ‘sim’

27 de abril de 2012

SÉRGIO MEDEIROS

Segundo Edmund Wilson, à medida que avançamos pelo Ulysses, vemos o cenário realista deformar-se e desfazer-se, e ficamos atônitos diante de vozes que não parecem pertencer nem às personagens nem ao autor. Esse intrincado pulular de narradores (o romance tem vários, independentes entre si, como apontou Richard Ellmann, biógrafo de Joyce) confere a Ulysses uma multiplicidade que só acentua algo que lhe é intrínseco: sua heterogeneidade.

De fato, do começo ao fim o texto é lúdico e imprevisto, transgredindo a “tirania” de uma só voz ou um só estilo. Na obra de Joyce nenhum episódio (não convém usar a palavra capítulo, não empregada pelo autor) é igual a outro. Essa sucessão de estilos díspares é um procedimento inédito na história do romance moderno. Depois de Joyce, o procedimento se popularizou entre os autores mais “ousados”, e continua sendo usado no século 21, elevado (ou rebaixado) à condição de linguagem “pós-moderna”.

T.S. Eliot, um ano após a publicação de Ulysses, afirmou que o romance terminara com Gustave Flaubert e Henry James. Insatisfeito com essa forma narrativa, que parecia esgotada, o irlandês James Joyce teria buscado um novo método de composição, um método no qual o paralelo entre a modernidade e a antiguidade teria grande importância. Sabe-se, porém, que Joyce extrapolou o “método mítico”, indo muito além da estrutura homérica que pretendia seguir, a qual visava, segundo Eliot, a “dar Forma e significado ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea”.

O episódio 18, denominado Penélope, se desenrola na cama que Leopold Bloom e Marion, ou Molly, sua mulher, compartilham em Dublin, pouco antes do amanhecer. Eles têm uma filha adolescente, chamada Milly. O episódio corresponde à cena da Odisseia em que Penélope é informada ao despertar que Odisseus (Ulisses) retornou e derrotou os estrangeiros que almejavam ocupar o lugar dele no leito do casal. Sentenças sem pontuação constituem o longo monólogo da sra. Marion Bloom, talvez um dos textos mais sumarentos, mais repletos de líquidos vitais de toda a literatura.

Molly é uma mulher de 30 e poucos anos, preocupada com a barriga, que lhe parece estar ficando um pouco grande. Suas formas são generosas, e ela se tranquiliza afirmando que as magrinhas não estão mais na moda.

Talvez a palavra mais célebre pronunciada por Molly na madrugada do dia 17 de junho, ao nascer do sol, seja “Yes”. É a primeira palavra que ela diz, e também a última, mas, neste caso, as noções de começo e fim se confundem e se anulam. Curiosamente, numa primeira versão desse monólogo, que circulou antes da publicação do livro, não havia o “Yes” final, o qual Jacques Derrida denominou de inesgotável “sim” da fala feminina. O fecho original dizia: “e sim eu disse sim eu quero”. Porém, o tradutor francês, Jacques Benoist-Méchin, em conversa com Joyce, considerou o “I Will” difícil de passar para o seu idioma e acrescentou um “oui” final. Joyce, depois de discutir com ele acrescentou definitivamente um “Yes” ao seu próprio texto. Molly, desde então, abandonou o autoritário “eu quero” e nos endereça o “sim”.

SÉRGIO MEDEIROS É TRADUTOR E POETA, AUTOR DE VEGETAL SEX (UNO PRESS/UNIVERSITY OF NEW ORLEANS PRESS) E TOTENS (ILUMINURAS, NO PRELO). COORGANZIOU E COTRADUZIU DE SANTOS E SÁBIOS (ILUMINURAS), DE JAMES JOYCE