Lançamento do livro de Sérgio Bivar O OUTRO LADO DO OUTRO LADO

 

 “Decidiu que tinha que lançar seu primeiro livro aos 33 anos e saiu em busca de sua morte e ressurreição simbólica. Isolou-se num apartamento em Paris e arrancou palavras de dentro de si. Com pequenas tiras, que se combinaram numa história, finalizou o primeiro conto deste livro. Os seguintes parecem ter se desdobrado desse primeiro. Há um traço que persiste, algo que resiste ao final de cada história e volta para manifestar-se na seguinte. São construções astuciosas como quebra-cabeças, trazem a certeza de nada é por acaso, requerem uma leitura profunda, elíptica, hermenêutica… Os contornos permitem esboçar o personagem principal: por trás do narrador, o autor apenas possível,”

Dia 16, às 14:30 horas, na Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, Sérgio Bivar estará, ao lado dos seus colegas de Oficina,  lançando O OUTRO LADO DO OUTRO LADO.

 

Sobre o livro, Lourdes Rodrigues escreveu:

O escritor tenta espremer as palavras e tirar delas algo ainda não revelado ou ainda recompor um significado original que fora esvaziado ou partido de algum modo, diz Sérgio Bivar a você que está aí, lendo a apresentação que ele faz do seu livro. Assim, o leitor fica avisado do que vai encontrar nas paginas que se seguem. E melhor preparação não poderia haver para a leitura deste livro, uma coletânea de contos e poesias que capturam você a cada parágrafo, a cada verso.

 Antes de iniciar, é preciso que o leitor se desvista de todos os pré-conceitos para ler além do que está visível, principalmente o que está nas sombras, o que está secreto, oculto e que exige para vir à luz muita paciência, reflexão, discernimento. É preciso, ainda, que ele se deixe surpreender, que liberte o seu imaginário para a percepção de novas realidades cujo compromisso com a verossimilhança restringe-se unicamente ao campo estético. É preciso mais do que isso, que no ato da leitura assuma com o autor o papel de criador e leve a bom termo o apelo que dele advém, pois é desse esforço conjugado de autor/leitor que a obra literária aparece em toda a sua supremacia.

A tarefa não é fácil, mas é instigante, desafiadora. E, parodiando Sartre, eu poderia dizer ainda ao leitor que ele é livre para deixar esse livro sobre a mesa. Mas uma vez que o abra, ele deve assumir a responsabilidade de fazer uma grande viagem e retirar dela tudo que a sua sensibilidade, visão de mundo e saber puderem lhe permitir. Os personagens, mesmo quando são testemunhas, jamais estão serenos. Angustiados, eles se debatem diante da perfeita consciência da clivagem do Eu, da busca incessante no espelho desse Eu (que) é um outro, como dizia Rimbaud, e que ao mesmo tempo lhe é estranho e familiar. Em sua maioria, personagens eruditos, artistas plásticos, escultores, escritores, poetas que travam luta incessante e de morte, reféns desse desejo criador e angustiante, dispondo-se a fazer pacto com diabo, bem no estilo faustiano, para a realização de sua obra.

O Outro Lado do Outro Lado é um livro de histórias e poemas que falam dos abismos da alma, como dizia Artaud. E Sérgio Bivar sabe muito bem do que está falando. É um livro inesquecível, com certeza.

                                                                                        

REFLEXOS SOBRE O OUTRO INVISÍVEL – COMENTÁRIO

 

COMENTÁRIO SOBRE O TEXTO REFLEXOS SOBRE O OUTRO INVISÍVEL  DE EVERALDO SOARES JÚNIOR REALIZADO PELA PSICANALISTA MARIA TEODORA DE BARROS OLIVEIRA ,  MEMBRO EFETIVO DO TRAÇO, ANALISTA MEMBRO DA ESCOLA.

 

Oi, Júnior.

Que bom já ter lido este texto. Lemos juntos, na oficina, no pouco tempo que passei por lá.

A literatura nos traz coisas fantásticas, grandes e penosas revelações do que se passa no íntimo de algumas pessoas.

 Mas vamos lá. O relato está na medida. O texto parece que tem algo a ver mesmo com o conto de Machado de Assis, quando escreveu sobre o Alferes.  É O Alienista? Pensei que fosse O Espelho. Mas o Espelho é de Guimarães Rosa, né? Bem, me fez pensar na ausência do outro constituindo o Alferes e seu desaparecimento.

 Há uma pergunta que faço no trecho abaixo:

 A frágil estrutura desenodada leva o imaginário solto da linguagem a ocupar o Real do sujeito. Palavra limite que configura o espaço Real da letra, passagem para a linguagem, sujeito falante, mas o nosso narrador personagem não teria tido essa sorte no seu caminho. Essa palavra tão preciosa diria: É você e não o outro! O reconhecimento seria feito.

No meu entendimento, seria o contrário, esse desenodamento levaria o Real a invadir o Imaginário, aí essa angústia da invasão do Outro, sem medida, avassalador. Você mostra a falha no estádio do espelho, então, uma falha na estruturação do eu, faltando mesmo um outro a dizer ” É você e não o outro”. Nesse corte do outro, ele se constituiria, penso, já que no momento do júbilo diante de sua imagem, não mais fragmentada, já se formaria um pré-simbólico. Será?

É um bom e bonito trabalho. Fiquei pensando agora no caso Roberto, do seminário I de Lacan, aquele do O lobo, e no movimento da constituição do seu eu. Lacan vai dizer, se estou lembrada, que ele não chegou a ser esquizofrênico, ficou aquém. A falta do outro em sua vida, a angústia que o tomava, e os primeiros momentos onde pode se nomear Roberto.

Bem, Júnior, parabéns pelo seu trabalho.

 Abraços

Teodora

 

REFLEXOS SOBRE O OUTRO INVISÍVEL

 

Reflexos sobre o Outro Invisível

 

A harmonia do invisível à do visível supera.

 Heráclito de Éfeso

 

A literatura é para a psicanálise, desde o começo de suas investigações, o Outro. O sujeito do inconsciente, seus amores e desejos são encontrados nos escritos literários, letras, significantes, pausas e frases. O não saber de si desse sujeito traz para ele o enigma buscado. A cultura, o mundo simbólico, as fantasias, as formações elementares são espaços em que ele se metamorfoseia, ora como objeto do gozo do Outro, ora como sujeito falante, ainda dividido entre a produção de novos sentidos e o inefável que não diz nada de si.

O que trazemos são observações iniciais sobre as releituras. A leitura primordial foi perdida e não volta mais, embora nos instigue a dizer alguma coisa com o reler o texto, acompanhá-lo em suas descrições, detalhes e, sem idéias preconcebidas, nos deixar surpreender na escuta do ato de ler e reler, só depois é que arriscamos uma construção particular, uma releitura entre outras.

O livro em questão é o incrível conto de Henry René Albert Guy de Maupassant, Le Horla, escrito alguns anos antes de sua trágica morte.

Há duas versões do conto. A primeira, escrita na terceira pessoa, que logo conta uma cena em um hospital psiquiátrico, quando a palavra é passada ao doente para que ele fale aos profissionais de sua doença, uma descrição próxima de uma apresentação clínica. A segunda versão, narrada em forma de diário na primeira pessoa, toma mais força e é a mais difundida e lida, assumindo o lugar de escrito último e oficializado pelos leitores.

 A história desse diário conta, em registros datados, os sofrimentos cruéis que transtornam a vida do narrador personagem até que ele assuma o propósito de matar-se para livrar-se de seu perseguidor invisível, o outro.

Logo constatamos que o narrador personagem é anônimo, mas o Outro Invisível tem um nome, o Horla, e até mesmo uma história nas palavras do narrador, que além de anônimo é um homem de mais de 40 anos, rico, mora na casa onde nasceu, às margens do Sena e desfruta de uma vida boa, mas é acometido de insistentes sofrimentos que o atormentam. Seu corpo é ocupado gradativamente pelo Outro Invisível, O Horla, como o chama Guy de Maupassant, que teria construído esse nome a partir do anagrama do nome de seu médico. Outra versão seria a conjunção do nome de um amigo de infância com o nome de sua mãe, que era culta, triste, mas que foi sua primeira professora com quem aprendeu as letras e o gosto pela leitura. No texto, o narrador faz uma aproximação na cena inicial quando está nos jardins de sua mansão olhando o rio Sena, apreciando os barcos, e vê um navio brasileiro, com três mastros, brancos e brilhosos e o saúda sem saber por que, mas acredita que aquela visão lhe deu grande prazer. Meses depois, quando o tormento de não conseguir livrar-se da invasão do ente invisível, narra que se lembra da leitura de um artigo da Revue du Monde Scientifique, sobre uma epidemia de loucura no Brasil, assim descobre que o Horla teria vindo da Vila São Paulo, onde aterrorizava moradores, e se instalara na sua propriedade. Sabemos que a novela “O Alienista”, de Machado de Assis, foi escrita dez anos antes de “O Horla” de Maupassant. Saberia ele do livro do brasileiro?

O conflito central do escrito é o que se passa na realidade em torno do personagem, o que também acontece no seu corpo, e as ações do imperceptível ser que modifica a realidade. O corpo e a realidade se constituem o campo da atenção e a guerra dos conflitantes.

O diário registrado pelo autor, datado de 8 de maio até 10 de setembro, descreve seus tormentos e suas tentativas de livrar-se deles. Os acontecimentos vividos em seu espírito são insidiosos, variam das dúvidas para as certezas insuportáveis. Solitário, observa o que faz o Invisível ao seu redor: bebe a água e o leite de suas garrafas, que cuidadosamente as deixa lacradas próximo ao quarto de dormir. Vai passear na floresta procurando o bem-estar que o ar perfumado das ervas lhe proporcionam, mas sente-se mal, tonto e as visões das árvores o deixam desnorteado. Intranquilo volta para casa. Outra vez no jardim vê as rosas sendo recolhidas e as hastes da roseira quebradas. Impressiona-se com o ar e os ventos que teriam forças e não são perceptíveis. Reflexos que mudam a realidade sem que o outro esteja visível.

O sofrimento maior é o adormecer. O medo e a apreensão tomam conta do narrador personagem e ele assim se refere: “Caminho de um lado para outro da sala, acabrunhado por uma sensação confusa de medo irresistível, medo do sono e medo da cama. Lá pelas dez horas subo ao quarto. Assim que entro dou duas voltas à chave e ponho a tranca na porta. Tenho medo… de quê? Até há pouco, não tinha medo de nada… Abro os armários e olho embaixo da cama. Escuto… o quê? Não é estranho que uma simples sensação de mal-estar, a má circulação, talvez a irritação de um filamento nervoso, uma ligeira congestão, um pequeno distúrbio no imperfeito e delicado funcionamento de nosso mecanismo vivo, possa transformar o mais despreocupado dos homens em melancólico e em covarde o mais valente? Vou para a cama e espero o sono como um homem que espera o carrasco. Com medo, espero sua chegada, o coração bate e as pernas tremem e todo o corpo tem calafrios debaixo do calor das cobertas, até que adormeço de repente, como alguém que mergulhasse em uma poça de água estagnada a fim de afogar-se. Não o sinto vir como antigamente, este traiçoeiro sono que está perto de mim, vigiando-me e que vai agarrar-me pela cabeça, fechar meus olhos e aniquilar-me. Durmo… bastante tempo… talvez duas ou três horas… Então um sonho… não… um pesadelo apossa-se de mim. Sinto que estou na cama, dormindo… Sinto e sei disso… e sinto também que alguém se aproxima, olha-me, toca-me, sobe em minha cama, ajoelha-se sobre meu peito, toma meu pescoço entre as mãos e o aperta… aperta com toda a força a fim de estrangular-me. Luto, dominado por aquela terrível sensação de impotência que nos paralisa durante os sonhos. Tento gritar… mas não consigo. Quero mover-me… não consigo. Faço os mais violentos esforços, respiro fundo, para tentar virar-me e derrubar essa criatura que está me esmagando, me sufocando… não consigo! E, então, acordo de repente, tremendo e banhado em suor”.

Atemorizado, continua a tentar organizar os pensamentos, mas as dúvidas vão se apagando e o imperceptível toma força. Inconformado se pergunta: “De onde vêm essas misteriosas influências que transformam a alegria em desânimo e a autoconfiança em acanhamento? Poder-se-ia quase dizer que o ar, o ar invisível, está cheio de forças incompreensíveis, cuja presença misteriosa temos de suportar”. O propósito de restabelecer o ânimo cede lugar ao desgosto, o passeio pelos jardins às margens do Sena, tudo tão amado não mais o conforta: “De repente, depois de andar um pouco, volto para casa infeliz, como se uma desgraça estivesse esperando por mim. Por quê? Seria um calafrio que me passou pela pele e abalou meus nervos, deixando-me desanimado? Seria a forma das nuvens, a cor do céu ou dos objetos ao redor de mim tão inconstante, que perturbou meus pensamentos, quando passaram diante de meus olhos? Quem sabe? Tudo o que nos cerca, tudo o que vemos sem olhar, tudo o que tocamos sem querer, tudo o que manejamos sem sentir, tudo o que encontramos sem ver claramente, tem rápida, surpreendente e inexplicável influência sobre nós e nossos sentidos e, através destes, em nossas ideias e até em nosso coração”.

O narrador personagem resolve consultar um médico. O diagnóstico é vago e a prescrição dos brometos de potássio e duchas diárias lhe fariam bem. Mas nada de melhoras significativas acontecem. Os sonhos, ou pior, os pesadelos se tornam mais frequentes, o horror fica muito presente: “Meu antigo pesadelo voltou. À noite passada, senti alguém se inclinando sobre mim e sugando minha vida por entre meus lábios. Sim, estava sugando-a de minha garganta, como uma sanguessuga”. A desconfiança aumenta, está atordoado, o Invisível o rodeia, mas o pior momento é nos sonhos, terrível, o corpo imóvel, despedaçado, uma carga de violência é sentida por ele, mas reage, decide viajar, o Mont-Saint-Michel o deslumbra com suas belezas naturais e a cidade próxima de sua mansão, Rouen, com suas belas torres góticas, recordações da infância, gosta das viagens. Está mais calmo, surpreendentemente o mal-estar volta ao mínimo estímulo, uma história contada por um abade ou a força do vento que faz grandes estragos e ninguém vê. Volta para casa, intraquilo, pensando no que se passa na sua alma e no seu corpo. Tenso, depois de novo pesadelo, procura arrumar as idéias: “Tendo recuperado os sentidos, senti sede novamente, por isso acendi uma vela e fui até a mesa onde estava a garrafa de água. Ergui-a e virei-a sobre o copo, mas nada saiu. Estava vazia! Completamente vazia! A princípio não consegui entender absolutamente nada. Mas, de repente, tive uma sensação tão horrível que precisei sentar-me, ou melhor, caí numa cadeira! Saltei da cadeira e olhei à volta, sentei-me de novo, tomado de espanto e medo, em frente à garrafa de cristal. Encarava-a, tentando adivinhar, e minhas mãos tremiam. Alguém bebera a água, mas quem? Eu? Eu, sem dúvida. Só poderia ter sido eu. Nesse caso era sonâmbulo. Vivia, sem saber, a misteriosa vida dupla que nos faz pensar que talvez existam duas criaturas dentro de nós ou que um ser estranho, incompreensível e invisível, anima nosso corpo cativo que o obedece como a nós e mais do que a nós, quando nossa alma está entorpecida. Quem entenderá minha terrível agonia? Quem entenderá a emoção de um homem, são de espírito, completamente acordado, cheio de bom senso, que procura através do cristal de uma jarra um pouco de água que desapareceu enquanto dormia? Fiquei nessa posição, até o dia surgir, sem me arriscar a voltar para a cama”.

Agora o personagem anônimo reflete perplexo se o Eu e o Outro fazem um duplo, a garrafa vazia foi ele ou o outro, o invisível está dentro dele, se confundido com seu Eu. Violência, desorganização.

Freud nos ensina que o Eu é antes de tudo um Eu corporal e não é senhor em sua própria casa. Falou também que o autoerotismo é o campo pulsional, desorganizado, corpo despedaçado. A releitura que Lacan faz de Freud, os aproxima dessa primordialidade. O artigo de 1936 de Lacan, “O Estádio do Espelho como formador da Função do Eu”, nos indica uma reformulação de uma primordialidade. O Eu não é a fortaleza que faz frente aos impulsos do Isso, mas uma configuração imagética diante do outro no espelho. A voz, o olhar e a palavra do grande Outro trazem uma ilusão e paradoxalmente o júbilo de um corpo totalizante que faz anteparo ao terrível horror do corpo despedaçado, atravessado pelas pulsões agressivas e insistentes de gozos dispersos. Desde os primeiros momentos, o campo dramático entre o sujeito e o Outro faz uma estrutura. O infans, que não fala e nem consegue esboçar o menor gesto de fazer sua própria existência, presentifica-se diante do Outro provedor que o atende.

Temos já nesse início as três instâncias entrelaçadas, o corpo totalizante que se vê na palavra do Outro e o espaço que não é imagem nem palavra, o que está fora, mas é íntimo da experiência, o Real.

O narrador personagem não parece fazer essa primordialidade entrelaçada. No horror dos pesadelos, seu corpo é invadido por uma estranha figura invisível, e as diversas partes do corpo são gozos pulsionais que invadem as tênues barreiras do Eu totalizante. O Outro é o perseguidor que tem conhecimentos dele e tem poderes que o surpreendem.

O anônimo personagem não desiste, viaja para Paris, quer repousar, recuperar sua saúde e fazer o que tanto gosta. Passeia pela cidade, vai ao teatro, assiste a uma peça de Alexandre Dumas Filho, fica contente. Sua alegria dura pouco.

Na noite seguinte vai à casa de sua prima e conhece um médico que enaltece o hipnotismo como o grande avanço da ciência na investigação da alma humana. O doutor orgulhosamente faz uma experiência de hipnose com sua prima, que muito o impressiona. Quando ela dorme, ele sugere enfaticamente que deveria procurar seu primo no hotel e pedir cinco mil francos emprestados para seu marido. No outro dia, às 8 horas, ela vai ao hotel e faz o pedido. Ele fica nervoso, tenta lembrar-lhe do que aconteceu na noite anterior, mas em vão. Telefona para o médico e esse ri satisfeito e diz que está indo para a casa dela e com nova hipnose desfazer a sugestão, o que acontece na sua presença. Atordoado, resolve voltar para sua casa no campo. A intranquilidade o deixa impaciente, sem coordenar o que está se passando. Há alguém que pode lhe dominar e o fazer sofrer intensamente. Faz uma comparação com um pensamento político social: “O populacho é um imbecil rebanho de carneiros, de uma paciência estúpida ou com uma revolta feroz. Digam-lhe: ‘Divirtam-se’, e o povo se diverte. Digam-lhe: ‘Vão lutar com o vizinho’, e o povo vai e luta. Digam-lhe: ‘Votem pelo imperador’, e o povo vota pelo imperador. Então digam-lhe:‘Votem pela República’. e o povo vota pela República. Os que dirigem o povo também são estúpidos, só que, ao invés de obedecer aos homens, obedecem aos princípios que só podem ser estúpidos, estéreis e falsos, pela simples razão de serem princípios, isto é, idéias consideradas como certas e imutáveis, neste mundo, onde não se tem certeza de nada, já que a luz é uma ilusão, já que o barulho é uma ilusão”.

A intensa tormenta, cada vez mais, toma conta do seu ser. O horror é torturante, o embate entre o outro e o que resta de sua alma é agonizante. Sensações e alucinações elementares de sua precária formação o levam do sofrimento à estupidez dos planos destrutivos.

Solitário, longe das pessoas, sem falar, vive cada vez mais envolvido com a tirania do outro invisível, que cola no seu mundo interior e mesmo fora em seu redor. Os reflexos na realidade que o deixam perplexo, revoltado. Entregue aos atrozes sofrimentos, ainda pensa na sua condição: “Quando somos atacados por certas doenças, todas as molas de nosso corpo parecem estar quebradas, todas as nossas energias, destruídas, todos os nossos músculos, relaxados. Nossos ossos amolecem como carne, e o sangue vira água. Estou tendo essas sensações em minha existência moral de modo estranho e angustioso. Não tenho mais força, coragem, autocontrole, nem mesmo o poder de exercer minha vontade. Não tenho mais vontade de nada, mas alguém a tem por mim e eu lhe obedeço

O invasor se concretiza, tem nome, o Horla, veio do Brasil, da província de São Paulo, onde uma epidemia de entes invisíveis aterroriza a população, que tenta fugir. O Horla desceu o Sena chegou às terras e à vida do sofrido personagem. O horror, o pânico se apodera dele, que não consegue separar-se do intrometido.

A frágil estrutura desenodada leva o imaginário solto da linguagem a ocupar o Real do sujeito. Palavra limite que configura o espaço Real da letra, passagem para a linguagem, sujeito falante, mas o nosso narrador personagem não teria tido essa sorte no seu caminho. Essa palavra tão preciosa diria: É você e não o outro! O reconhecimento seria feito.

Ele insiste: “Estava claro como se fosse o meio-dia, mas não conseguia ver meu reflexo no espelho! Estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Só que minha imagem não estava refletida nele… E eu, eu estava na frente do espelho! Examinei o grande e claro espelho, de cima a baixo, olhei-o com olhos vacilantes. Não ousei aproximar-me, não me arrisquei a fazer um movimento sequer, sentindo que ele estava ali, mas que novamente me escapara, ele cujo corpo imperceptível absorvera meu reflexo”.

O narrador personagem decide matar o outro, desesperado ato para livrar-se dele. Prepara a casa bem fechada, venezianas e porta com chapas de ferro, procura enganar o outro invisível e o deixa dentro de casa, saindo rápido e fechando tudo. Na sala, derrama querosene em todos os lugares e toca fogo. Depressa vai para o quintal e fica olhando as labaredas altas transformarem a mansão numa monstruosa pira funerária. Ouve um estrondo nas janelas, eram os empregados que não foram avisados procurando escapar das chamas.

Tudo terminado, o outro teria morrido? Venceria o Horla? Mas seu corpo transparente, imperceptível poderia ter escapado? Era mortal? Ficou pensativo depois de ver a casa como um vulcão, fez a última reflexão: “Não… não… sem dúvida… não está morto… Então… então… acho que terei de me matar!

O genial escritor naturalista e realista, Guy de Maupassant, era portador de sífilis terciária nervosa durante os últimos dez anos de sua vida, mal que o fez sofrer muito. “O Horla” foi um dos seus últimos escritos, tentou o suicídio e um ano depois, no hospício, morre aos 43 anos de idade.

Esse conto claramente não é um relatório neurológico de sua doença, mas uma expressiva ficção. Reinventa a realidade, mesmo usando traços de seu estado agonizante, constrói o espaço criativo e o tempo de um diário detalhando o naturalismo do corpo e do seu espírito, a realidade explorada em minúcias toma conta de nossa atenção e o imprevisível sujeito assume surpreendentemente a narração.

Agora vou ficar um breve tempo afastado do Horla, depois, em breve, reescrevo essas minhas palavras, mas no momento é o que eu preciso fazer.

 Everaldo Ferreira Soares Júnior

João Pessoa, setembro de 2011