Rumo ao Teatro Grego

Enfim, rumo ao teatro! Mais: rumo à Grecia Antiga, ao teatro grego clássico, à cultura helênica, à Sófocles. Para Otto Maria Carpeaux – e inumeráveis outros, acredito -, Sófocles é (olhem o tempo do verbo!) grandíssimo artista. Artista da Palavra, dono de extraordinário lirísmo musical, sobretudo nos coros. Mas também foi artista da cena, sábio calculador dos efeitos, mestre incomparável da arquitetura dramática, da exposição analítica do enredo. (…) Em Sófocles, tudo é harmonia, sem que fosse esquecido uma só vez, o fundo escuro da nossa existência (o grifo é meu).

Melhor apresentação do autor que vamos ler impossível, não? Foram mais de 120 peças escritas por ele, apenas 7 chegaram até nós, entre elas, as duas peças que vamos ler: Édipo Rei e Édipo em Colono. As duas peças mais Antígona, formam a chamada Trilogia Tebana, amplamente representadas e estudadas. Para Aristóteles, Édipo Rei é o modelo de peça ideal, aquela que melhor representa a imitação de acções de caráter elevado. Para Freud, a descoberta da mina de ouro sob a qual edificaria e enriqueceria a sua teoria: O Complexo de Édipo.

Para entendermos um pouco da estrutura das peças do teatro grego antigo, vamos nos guiar por Aristóteles, em sua Poética, Nesse primeiro momento, estaremos vendo a peça sob o ponto de vista literário, mais adiante, o mitológico e o psicanalítico, este último, no rastro de Freud para a construção da sua teoria.

ESTRUTURA  DA TRAGÉDIA

Gostaria de trazer para reflexão dos viageiros e das viageiras  que ora iniciam ou refazem  o percurso da tragédia,  o sentimento e a visão de arte que Nietzsche descreveu em seu Prólogo de A Arte em “O Nascimento da Tragédia” (1888):

A arte e nada mais que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida.

A arte como única força superior contraposta a toda vontade de negação da vida, como o anticristão, antibudista, antiniilista par excelence.

A arte como a redenção do que conhece – daquele que vê o caráter terrível e problemático da existência, que quer vê-lo, do conhecedor trágico.

A arte como a redenção do que age – daquele que não somente vê o caráter terrível e problemático da existência, mas o vive, quer vive-lo, do guerreiro trágico, do herói.

A arte como a redenção do que sofre – como via de acesso a estados onde o sofrimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia.     

Mas para fazermos a travessia até o teatro grego, deixemo-nos guiar por Aristóteles em sua Poética, onde ele fala das artes imitativas, obra largamente referenciada nos escritos literários. Sobre a tragédia ele diz:imagesCA7AR4Q9

A tragédia é a imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da ação e não da narração (o grifo é meu) e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões.

 E esclarece que entende por linguagem embelezada aquela que tem ritmo, harmonia e canto.  Assim, faz parte da tragédia:

  • A organização do espetáculo – Como a ação é executada por pessoas que atuam, isso torna o aspecto cênico, necessariamente, e em primeiro lugar, parte da tragédia.
  • Os elementos seguintes são a músicaea elocução.  A elocução, as falas são a combinação dos metros; e música tem um sentido absolutamente claro.

Para que se defina como tragédia é indispensável que reúna seis partes: enredo (fábula), personagens, falas, ideias, espetáculo e canto.

O enredo é a alma da tragédia, diz Aristóteles. Em seguida, os personagens, os caracteres, pois a tragédia é a imitação de uma ação pelos homens que atuam. Em terceiro lugar, vem o pensamento, ou seja, as ideias, que representam a capacidade de exprimir o que é conveniente, inerente. Em quarto lugar, a elocução. É através da fala que a ideia é expressa, seja em verso ou em prosa. Quanto aos dois restantes, o espetáculo e o canto, Aristóteles considerava o canto como o maior dos adornos, do embelezamento, e a parte cênica, embora emocionante, dizia ser menos artística e menos afeita à poesia. Diz ele: O efeito da tragédia se manifesta mesmo sem representação e sem atores; ademais, para a encenação de um espetáculo agradável, contribui mais o cenógrafo do que o poeta.  Sobre isso ele diz, ainda, que foi Ésquilo quem trouxe para a tragédia a presença de dois atores; e Sófocles lhe acrescentou mais um e o cenário.

ESTRUTURAÇÃO DA TRAGÉDIA QUANTO AOS SEUS ELEMENTOS ESSENCIAIS

  • A tragédia é a imitação de uma ação completa que forma um todo… Ser um todo significa ter inicio, meio e fim.
  • Enredos bem elaborados. Há enredos simples e enredos complexos. No enredo simples a mudança da fortuna ocorre sem peripécia nem reconhecimento. No enredo complexo, essa mudança se dá por peripécia ou reconhecimento, ou ambos. Na peripécia, a mudança da ação, o seu reverso terá de obedecer princípios de necessidade e verossimilhança. Assim, no Édipo, quando, o mensageiro que chega com a intenção de alegrar Édipo e de libertá-lo dos seus receios em relação à mãe, depois de revelar quem ele era, produziu o efeito contrário. No reconhecimento, é a passagem da ignorância para o conhecimento, para a amizade ou para ódio entre aqueles que estão destinados à felicidade ou infelicidade. O reconhecimento mais belo é aquele que se opera juntamente com peripécia, como acontece no Édipo.
  • A catástrofe – o Sofrimento – Ato destruidor ou doloroso, tal como a morte em cena, dores e sofrimentos. Exemplo: a cegueira de Édipo..

ESTRUTURAÇÃO  DA TRAGÉDIA QUANTO À SUA EXTENSÃO

·         PRÓLOGO

·         PÁRODO (PARTE CANTADA)

·         EPISÓDIO

·         ESTÁSIMO

·         ÊXODO

PRÓLOGO – A parte introdutória, aquela que antecede a entrada do Coro.  O objetivo é informar ao público a AÇÃO ANTERIOR ao início da peça, criando as condições necessárias para o entendimento da cena que virá a seguir.

PÁRODO – Corresponde à entrada do Coro, a primeira intervenção do coro em conjunto. O nome veio das rampas de acesso à ORKÉSTRA,  dos PARODOI, lugar por onde o CORO transitava

EPISÓDIO – Uma parte completa da ação que acontece entre dois ESTÁSIMOS.

ESTÁSIMO – Cada uma das entradas do CORO. O primeiro ESTÁSIMO ocorre logo após o PÁRODO. Os demais ESTÁSIMOS ocorrem após cada episódio. A divisão entre EPISÓDIO e ESTÁSIMO não é sempre fácil de estabelecer, diz Pascal Thiercy, Às vezes a tragédia começa pelo párodo, às vezes o êxodo se encadeia diretamente a um episódio; encontramos mesmo um prólogo cantado por um ator e seguido de um párodo falado.

ÊXODO – Saída do CORO.

O QUE BUSCAR E O QUE EVITAR NA TRAGÉDIA

  • A tragédia perfeita não deve ser simples e sim complexa;
  • Deve suscitar o temor e a compaixão. Modelo de tragédia perfeita, complexa, em que a peripécia e o reconhecimento estão presentes, e que inspira temor e compaixão: Édipo.

Aristóteles: É necessário que o enredo seja estruturado de tal maneira que quem ouvir a sequência dos acontecimentos, mesmo sem os ver, se arrepie de temor e sinta compaixão pelo que aconteceu; isto precisamente sentirá quem ouvir o enredo de Edipo.

  • A compaixão tem por objeto quem não merece a desdita, e ela acontece sem que possa ser evitada. Ele cai no infortúnio por um erro, não por vileza ou perversidade. Esse homem pode estar entre os que gozam de grande prestígio e prosperidade, assim como Édipo, Tiestes.

O que evitar:

  • Representar homens bons que passam da felicidade para a infelicidade, porque tal mudança provoca repulsa e não temor e compaixão.
  • Não representar os homens maus passarem da infelicidade para a felicidade, porque é a forma mais contrária ao trágico, não contem os requesitos devidos, não provocam a benevolência, compaixão ou temor; nem os muitos perversos a resvalar da fortuna para a desgraça, pois poderia despertar simpatia, mas não compaixão nem temor.

Com relação aos caracteres:

  • Bons caracteres;
  • Que eles sejam apropriados. Por exemplo, um caractere corajoso, não é uma característica da mulher a virilidade,  a esperteza (sic).
  • Que haja semelhança dos caracteres com o humano.
  • Que haja coerência do caractere. Se imitar alguém incoerente e se tradicionalmente lhe for atribuído esse tipo de caractere, também será necessário que seja coerentemente incoerente.

Os mesmos princípios que regem a ação devem reger os personagens, o de necessidade e de verossimilhança.

Com relação aos episódios:

  • Toda tragédia tem um nó e um desenlace. Todos os fatos exteriores à ação e alguns dos que a constituem formam o nó. O restante é o desenlace. Nó é o que vai desde o princípio até ao momento imediatamente anterior à mudança de fortuna; e desenlace, o que segue à mudança até o final da peça.

Tipos de Tragédias:

  • A tragédia complexa, em que tudo é peripécia e reconhecimento;
  • A tragédia de catástrofe ou sofrimento (Ajax e Íxion);
  • As tragédias de caracteres ou personagens;
  • A tragédia episódica.

Acontece de, em algumas peças, os nós serem bem estruturados e os desenlaces muito mal estruturados.

À pergunta qual a melhor imitação, a épica ou a trágica, Aristóteles responde:

A Tragédia é superior porque, além de todos os méritos da epopeia (chega a valer-se do metro épico), conta também com a música e o espetáculo cênico, partes que lhe aumentam o prazer peculiar.De mais a mais, apresenta qualidades tanto quando lida como quando encenada. Revela, ainda, o mérito de imitar plenamente numa extensão menor (o condensado agrada mais do que o diluído em longo período; suponha-se que o Édipo de Sófocles, por exemplo, tivesse a mesma quantidade de versos Ilíada).

Jaboatão dos Guararapes, 08/04/2013

Lourdes Rodrigues

Cronicas para lembrar

images[1]*Declaração de males

Paulo Mendes Campos

Ilmo. Sr. Diretor do Imposto de Renda.

Antes de tudo devo declarar que já estou, parceladamente, à venda.
Não sou rico nem pobre, como o Brasil, que também precisa de boa parte do meu dinheirinho.
Pago imposto de renda na fonte e no pelourinho.
Marchei em colégio interno durante seis anos mas nunca cheguei ao fim de nada, a não ser dos meus enganos.
Fui caixeiro. Fui redator. Fui bibliotecário.
Fui roteirista e vilão de cinema. Fui pegador de operário.
Já estive, sem diagnóstico, bem doente.
Fui acabando confuso e autocomplacente.
Deixei o futebol por causa do joelho.
Viver foi virando dever e entrei aos poucos no vermelho.
No Rio, que eu amava, o saldo devedor já há algum tempo que supera o saldo do meu amor.
Não posso beber tanto quanto mereço, pela fadiga do fígado e a contusão do preço.
Sou órfão de mãe excelente.
Outras doces amigas morreram de repente.
Não sei cantar. Não sei dançar.
A morte há de me dar o que fazer até chegar.
Uma vez quis viver em Paris até o fim, mas não sei grego nem latim.
Acho que devia ter estudado anatomia patológica ou pelo menos anatomia filológica.
Escrevo aos trancos e sem querer e há contudo orgulhos humilhantes no meu ser.
Será do avesso dos meus traços que faço o meu retrato?
Sou um insensato a buscar o concreto no abstrato.
Minha cosmovisão é míope, baça, impura, mas nada odiei, a não ser a injustiça e a impostura.
Não bebi os vinhos crespos que desejara, não me deitei sobre os sossegos verdes que acalentara.
Sou um narciso malcontente da minha imagem e jamais deixei de saber que vou de torna-viagem.
Não acredito nos relógios… the pule cast of throught… sou o que não sou (all that I am I am not).
Podia ter sido talvez um bom corredor de distância: correr até morrer era a euforia da minha infância.
O medo do inferno torceu as raízes gregas do meu psiquismo e só vi que as mãos prolongam a cabeça quando me perdera no egotismo.
Não creio contudo em myself.
Nem creio mais que possa revelar-me em other self
.
Não soube buscar (em que céu?) o peso leve dos anjos e da divina medida.
Sou o próprio síndico de minha massa falida.
Não amei com suficiência o espaço e a cor.
Comi muita terra antes de abrir-me à flor.
Gosto dos peixes da Noruega, do caviar russo, das uvas de outra terra; meus amores pela minha são legião, mas vivem em guerra.
Fatigante é o ofício para quem oscila entre ferir e remir.
A onça montou em mim sem dizer aonde queria ir.
A burocracia e o barulho do mercado me exasperam num instante.
Decerto sou crucificado por ter amado mal meu semelhante.
Algum deus em mim persiste
mas não soube decidir entre a lua que vemos e a lua que existe.
Lobisomem, sou arrogante às sextas-feiras, menos quando é lua cheia.
Persistirá talvez também, ao rumor da tormenta, algum canto da sereia.
Deixei de subir ao que me faz falta, mas não por virtude: meu ouvido é fino e dói à menor mudança de altitude.
Não sei muito dos modernos e tenho receios da caverna de Platão: vivo num mundo de mentiras captadas pela minha televisão.
Jamais compreendi os estatutos da mente.
O mundo não é divertido, afortunadamente.
E mesmo o desengano talvez seja um engano.

* Texto extraído do livro O amor Acaba, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1999


 

 

Cronicas para lembrar

cropped-clarice_sepia5_frase.jpg*Pertencer

Clarice Lispector

Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de “solidão de não pertencer” começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.
Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!

 

  • De A Descoberta do Mundo.

Grandes Poemas

A Folha de São Paulo, em 2000, escolheu os 100 melhores poemas internacionais do século xx. Na medida do possível, tentaremos postar alguns desses poemas aqui no blog. A idéia surgiu quando recebi de nossa colega Vania Campelo um poema de Konstantinos  Kaváfis, À Espera dos Bárbaros, e encantada com a qualidade do poema fui pesquisar um pouco sobre o seu autor e descobri no blog Mar Ocidental que o poema foi escolhido em 8º lugar, entre os 100 melhores da Folha. Sobre Kostantinos Kaváfis, o mais importante poeta grego deste século, nasceu em Alexandria, no Egito, e morou na Inglaterra. Em A Espera dos Bárbaros”, poema ao mesmo tempo político e ontológico, aparece a duração de um espaço em que nada se faz porque os bárbaros atacarão.”Poemas”, trad. de José Paulo Paes, Nova Fronteira.

A lista traz grandes nomes. Em primeiro lugar, T.S. Eliot, com A Terra Desolada (The Wast Land),  e em segundo, Fernando Pessoa com Tabacaria . Os dois poetas tiveram outros poemas escolhidos.

 

images[1]À ESPERA DOS BÁRBAROS

Konstantinos Kaváfis

 

O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?

Os senadores não legislam mais?

 

É que os bárbaros chegam hoje.

Que leis hão de fazer os senadores?

Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo

e de coroa solene se assentou

em seu trono, à porta magna da cidade?

 

É que os bárbaros chegam hoje.

O nosso imperador conta saudar

o chefe deles.Tem pronto para dar-lhe

um pergaminho no qual estão escritos

muitos nomes e títulos.

 

Por que hoje os dois cônsules e os pretores

usam togas de púrpura, bordadas,

e pulseiras com grandes ametistas

e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?

Por que hoje empunham bastões tão preciosos

de ouro e prata finamente cravejados?

 

É que os bárbaros chegam hoje,

tais coisas os deslumbram.

 

Por que não vêm os dignos oradores

derramar o seu verbo como sempre?

 

É que os bárbaros chegam hoje

e aborrecem arengas, eloqüências.

 

Por que subitamente esta inquietude?

(Que seriedade nas fisionomias!)

Por que tão rápido as ruas se esvaziam

e todos voltam para casa preocupados?

 

Porque é já noite, os bárbaros não vêm

e gente recém-chegada das fronteiras

diz que não há mais bárbaros.

 

Sem bárbaros o que será de nós?

Ah! eles eram uma solução.

 

Cronicas para lembrar

imagesCAH2WAX1Vista cansada

Otto Lara Resende

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.
Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992.