De volta ao começo

Outra vez,de volta à terra firme, de volta ao começo, ao  fundo do fim, de volta ao começo como diz a música de Roupa Nova. Puído, amarelecido, amarrotado  o tecido do roteiro encontrado no camarim de Navegação na hora do embarque traz as marcas do uso intenso e dos traços dos mares navegados. Plano ambicioso, bem à altura dos seus viageiros.

Antes de lançarmo-nos ao mar, havíamos recebido a benção e os bons augúrios da nossa madrinha Clarice Lispector, com a leitura do conto Viagem a Petrópolis. Sinal de alerta para lembrarmos da implacável linha do tempo quando em  busca de outros horizontes, marujos crestados pelo  sol em mares estranhos que já somos. Narrado na terceira pessoa, Viagem a Petrópolis conta a história de uma velhinha simpática que nasceu e viveu quase toda a sua vida no Maranhão e encontra-se morando no Rio de Janeiro, de caridade, numa casa em Botafogo, com pessoas que não são da sua família e que, cansadas da sua presença, resolvem levá-la para Petrópolis, onde pretendem deixá-la na casa de outro membro da família, sem sequer consultá-lo. É um conto que fala de solidão, desamparo, abandono, derrelição, como dizia Hilda Hilst, do sentir-se só no mundo, da vaziez da alma. Comovente no dizer e no não dito, merecendo muitas releituras para se tentar garimpar as riquezas submersas que escaparam à nossa percepção num primeiro momento. Um verdadeiro iceberg, aliás, como tudo que Clarice Lispector fez: o que está visível é apenas uma pequena parte do que está ali. O conto e a análise literária  foram  publicados nesse Blog, em Clariceando.

Devidamente abençoados e alertas, iniciamos  viagem  seguindo roteiro para aportamento em águas francesas: Calais. Depois, Paris. Paris é uma festa!, dois séculos antes de Hemingway dizer essa frase, o escritor  Laurence Sterne, enfermo, parecia buscar em Viagem Sentimental, alegria para os seus pulmões doentes ao visitar aquela cidade enquanto ainda lhe era possível faze-lo, embora tivesse a intenção de chegar à Itália, se Tânatos não tivesse tido outros planos para ele.

Viagem Sentimental

Seguindo Sterne na sua Viagem Sentimental , constatamos felizes que a  expectativa de encontrar algo diferente de um roteiro de viagem havia se realizado. O tão referenciado estilo, razão maior da nossa escolha,  revelou a maestria do autor com as  palavras, mas,  sobretudo, a sua profunda compreensão da dimensão do humano.  As extravagâncias sintáticas, tão inovadoras, eram apenas uma parte de sua extraordinária engenhosidade, ainda mais se lembrarmos da sua origem, educação e formação religiosa. Afinal, Sterne era um pároco.

Na categoria de viajantes curiosos, acompanhamos Sterne em suas fantasias viageiras … e num Désobligeant. Leitura instigante que nos obrigou a ler e reler várias vezes o mesmo parágrafo para tentar esclarecer melhor o que estava sendo dito. Próximo ao encerramento da leitura, começamos a fazer a tradução da análise literária que  Virgínia Woolf havia feito sobre a Viagem Sentimental – a tradução encontra-se no Blog. Naquela análise, a escritora questiona se Sterne teria controle sobre o que estaria escrevendo e afirma que essa seria uma resposta que  nós leitores dificimente conseguiríamos ter. Vejamos um pequeno trecho da análise:

 Os solavancos, as sentenças desconectadas são tão rápidas e pareciam sob tão pouco controle como as frases que caem dos lábios de um brilhante orador. A própria pontuação é aquela da fala, não da escrita e traz  com ela o som e as  associações da voz falante. A ordem das ideias, a subtaneidade e impropriedade delas, é mais fiel à  vida do que à literatura. Há uma intimidade nessa conversa que permite que as coisas escapem sem censura, e que teriam sido de gosto duvidoso se faladas em público. Sob a influência desse estilo extraordinário o livro se torna semitransparente. As cerimônias costumeiras e convenções que mantêm o leitor e o escritor numa distância cordial desaparecem. Estamos tão perto da vida quanto podemos.

Se Laurence Sterne fosse retirado do livro, diz Virgínia Woolf, pouco ou nada restaria dele, pois  nada acrescenta em termos de informação, ou jamais serviria como um roteiro turístico, porque sequer se preocupa em dizer algo sobre a arte ou a arquitetura da catedral ou fala do sofrimento ou bem-estar da população rural. A sua viagem pela França seguiu o roteiro de sua própria mente e as suas principais aventuras não foram com bandidos ou precipícios, mas com as emoções do seu próprio coração.

Esta mudança radical de abordagem já representava uma ousada inovação. Para Sterne uma garota com uma bolsa de cetim verde era mais importante do que a Catedral de Notre Dame, ansioso que ele estava para captar a essencia das coisas, assim como deveria fazer um viajante sentimental. Enquadrados como viajantes curiosos, na sua classificação, aprendemos que os encontros e desencontros que ocorrem numa viagem dizem mais do lugar do que séculos de tradição arquitetônica.

Ainda em Paris, mas bem longe de uma Viagem Sentimental, encontramos Véra, de Villiers de Lisle-Adam,a quem dedicamos tempo suficiente para surgir a pergunta:  existe fronteira separando o fantástico, a loucura, o estranhamento? De olhos nessa trilha visitamos ETA Hoffmann, O Homem de Areia,  celeiro onde Freud extraiu elementos  para a sua teoria sobre o estranho familiar.Obra fantástica, complexa, tanto em termos literários, a incrível qualidade da escrita, dos recursos técnicos utilizados, do relato especular.  quanto no que se refere aos distúrbios de personalidade, a ambivalência, o estranhamento, a insanidade. Fisgados pelo tema, consultamos, ainda, Erasmo de Roterdã,  Elogio da Loucura, num parágrafo imenso sobre os escritores, mas extraímos, apenas, o trecho em que  a loucura, falando na primeira pessoa, de forma presunçosa, fala da dívida que o escritor tem com ela, não todos os escritores, mas aquele  que escreve sob os seus auspícios, pois  deixa fluir  tudo o que lhe passa pela cabeça, imprime todos os sonhos  de sua imaginação exaltada.Os surrealistas bem que se encaixariam nessa classificação, pois acreditavam que  mentes alteradas liberavam do inconsciente o jorro furioso da criatividade.

Antes de atracarmos em outro grande porto, e ainda com a cabeça cheia de perguntas sem respostas, fizemos  outros pequenos percursos, pequenos em tamanho, mas de grande beleza e importância. Participamos de um velório na casa de Os irmãos Dagobé e de um pequeno percurso de avião em As margens da Alegria com Guimarães Rosa. Assistimos ao duelo entre um negro cantor e um personagem de poema épico argentino, em O Fim,  e ao encontro de difícil diálogo entre um homem maduro e outro  jovem, cujo inevitável destino do jovem era ser o velho no futuro longínquo, os dois ao mesmo tempo muito parecidos e diferentes demais,  em O Outro, ambos de Jorge Luiz Borges. E a disputa entre um casal jovem em Os Sexos, de Dorothy Parker,  todos trazendo profundas revelações sobre as emoções humanas. Mas foi em Nero, de Miguel Torga, que a nossa sensibilidade foi mais atingida com o relato de um cão sobre as suas relações com as pessoas, outros animais e os mistérios da vida e da morte.Resenha sobre Nero, um pequeno glossário com as palavras desconhecidas  e  texto extraordinário de um grande leitor de Torga, Ramires, também estão no blog. Espaço foi reservado, também, para um grande clássico da nossa literatura: A teoria do Medalhão, de Machado de Assis; e um conto de Jean Paul Sartre: O Muro. Sendo o ano de homenagens a Nelson Rodrigues, tempo especial foi dedicado às suas peças: Delicado, A dama da lotação e Os noivos. 

Animados ainda pelas peças de Nelson Rodrigues, rumamos à Argentina para conhecer praias menos sóbrias do que as hoffmanneanas e Borgeanas e encontramos as delícias do tango rasgado de Alfredo Le Pera e Carlos Gardel (Deliciosas criaturas perfumadas,/quiero el beso de sus boquitas pintadas…)  no romance folhetim de Manuel Puig: Boquinhas Pintadas.Que viagem pela alma feminina dos anos cinquenta na província de Coronel Vallejos! Três mulheres circulam todo o livro: Nélida, Mabel e Raba, amigas/inimigas/rivais, tão próximas e tão distintas, heroínas de uma trama que envolve inveja, fofoca, mal-caratice, sexualidade, boa fé, tudo expresso de forma  particular, seja através de cartas, conversas ou  boletins de ocorrência policial.  Se Sterne foi um transgressor da sintaxe, Manuel Puig foi além.  Conhecido como um escritor experimental, nesse livro ele reúne recursos kitsch como fotonovelas, músicas de tango, tudo numa verdadeira polifonia feminina expressa ainda em cartas, anúncios, diários, diálogos, monólogos interiores. Os recursos técnicos são vastos. O autor confessou que buscava criar uma nova forma de literatura popular baseada no velho folhetim. O resultado foi uma leitura fascinante pelos recônditos da alma feminina.

Antes de voltarmos para casa, o timoneiro decidiu fazer manobra arriscada, fora da rota programada, para descobrir os mistérios da Caixa Preta de Jennifer Egan. Os viageiros ficaram tensos com a travessia, quase em clima de amotinação pelo tempo perdido em águas turvas, pouco interessantes. A embarcação arroteou, cortou ondas imensas em mar bravio e navegou a todo pano para atravessar a tempestade e sair para mares mais calmos. Na opinião do timoneiro, valeu a pena, apesar dos riscos, viagem que poderá ser refeita por algum dos viageiros que mesmo em face das tormentas tenha vislumbrado algo interessante naquela paisagem.

Mas, o  melhor da viagem ainda é voltar para casa, principalmente depois da turbulência enfrentada. Essa Terra do escritor baiano Antonio Torres, premiado aqui e na França, permitiu-nos navegar em mares mansos, trouxe-nos o cheiro da cozinha da nossa casa,  ao falar das paisagens e do povo que tanto conhecemos, do sertão do nordeste. Nélo, impulsionado pelos técnicos da Ancar saiu de Junco em direção a São Paulo para voltar muitos anos depois, sifilítico, miserável e se suicidar. O filho querido que havia partido, motivo de orgulho da família e do próprio lugar, retorna para morrer. Muitas histórias de Nelo vamos saber através da narração de Totonhim, o seu irmão. Na verdade, não vai ser possível concluir essa viagem ainda em 2012, sob pena da pressa comprometer a leitura e apreensão da beleza. Foi o terceiro romance escrito por Antonio Torres, o que o consagrou definitivamente como um dos melhores escritores brasileiros contemporâneos.Apesar do estilo regionalista, Essa Terra não se encerra nessa visão. A escrita fragmentada cheia de idas e vindas, como diz Ítalo Moriconi, remete ao grande mestre William Faulkner, a quem Torres prestou tributo já na epígrafe do seu primeiro livro, orgulhoso do seu pai referência.Melhor padrinho, impossível. Os viajantes bem o conhecem desde O Som e a Fúria e Enquanto Agonizo. Será o primeiro porto de 2013 que iremos atracar, com certeza.

Tão importantes quanto as viagens que fizemos por portos estrangeiros foram as que fizemos com as escritas dos nossos viageiros, algumas estimuladas por faíscas criativas, contrangimentos,  outras bem livres e espontâneas. O tema da velhice trazido por Clarice Lispector com Viagem à Petrópolis, levou Teresa Sales a escrever um excelente conto O velho, que empolgou e trouxe muita discussão e lembranças. Mais adiante,  ainda empolgados com  o fator tempo, voltou-se à juventude e Paulo Tadeu iniciou um triálogo com Desencontros de brotos, usando o foco narrativo de três jovens rapazes conta a história de um baile conhecido como encontro de brotos; Edwiges C.C.Rocha, conta uma história do mesmo baile, dessa vez usando o foco narrativo da mãe das moças Nos tempos em que se chamavam brotos;  e por fimTeresa, conta Os bailes da vida, na ótica dos mesmos rapazes muitos anos depois. Todos os contos estimularam as recordações dos próprios viageiros na juventude, ocasionando  muitos risos.

 Estimulados pelo primeiro parágrafo retirado do livro da Laura Restrepo, Delírio, lançado pelo timoneiro como faísca criativa, vários contos foram escritos. O parágrafo era mais ou menos o que segue: Soube  que tinha acontecido algo irreparável no momento em que um homem me abriu a porta daquele quarto de hotel e vi minha mulher sentada ao fundo, olhando pela janela de um modo muito estranho. Foi na minha volta de uma viagem curta, de negócios, só quatro dias. No conto de César Garcia, o marido leva a mulher para a casa e tenta todos os recursos médicos para fazer com que a mulher volte ao normal, até que ele resolve apelar para a homeopatia e então… O final é surpreendente, pega o leitor completamente desarmado. Muito criativo e inteligente. Na versão de Everaldo Júnior, o conto segue cheio de mistério, levando o leitor a ficar cada vez mais interessado em juntar as pedrinhas para construir a história. Não há traição, mas um drama muito pesado que o leitor termina sem saber se realmente aconteceu ou se é fruto da imaginação daquela mulher de olhar fixo por aquela janela. Muito bem constrúido, diálogos tensos, dramáticos. Paulo Tadeu é o nosso nelson rodrigues pela extrema riqueza na construção dos dramas familiares. O marido traz de volta a mulher para a casa, também tenta todos os recursos para salvá-la daquele mutismo, até que um dia … Todos gargalharam, não havia como deixar de escancarar a risada com o final que ele deu ao seu conto. Outros contos escritos por Paulo Tadeu já revelavam esse lado cômico-trágico e a compreensão rodrigueana dos laços de família. Em outro conto escrito por ele, um homem, taxista, sentia-se muito feliz com a sua família, filho prestes a se formar doutor, filha generosa, séria, compenetrada, mulher zelosa, enfim um lar perfeito, tanto que o títtulo do conto é Lar Doce Lar. Um dia, ele descobre no carro um pacote deixado por um cliente e leva para casa e aí começa o desmoronamento do castelo de areia que ele havia construído. Econômico nas palavras, rico no conteúdo, o conto encantou a todos. Mais um conto de Paulo lido na oficina Covardias, traz para reflexão o medo do ser humano, o medo de enfrentar situações que ele pensa não ser capaz de dar conta. Esse conto traz muita tensão para o leitor que só consegue respirar no final dele. Muito bom.

As produções dos viageiros são muito esperadas e motivo de grandes festejos quando chegam. O blog recebeu boas colaborações dos viageiros, ora sob a forma de resenha literária, às vezes com as poesias, notícias, críticas de filme, entre outras. Que em 2013, tanto as produções de contos como as contribuições ao blog venham cada vez mais e mais e mais…

De volta para casa, juntamos os retalhos da carta de navegação para resgatar o brilho do sol na menina dos olhos ao relembrar a viagem maravilhosa de 2012 e assim poder dividir lembranças com todos os velejadores.

                                     Ribeira dos Arrecifes, 22 de dezembro de 2012

                                                        Lourdes Rodrigues

 

 

 

 

 

A Mosca, William Blake

Segunda-feira é dia de poesia, diz Adelaide, parafraseando Lúcia Elena F. Neto, poetisa, com livros escritos e poemas premiados, autora da frase e da idéia:  toda segunda-feira merece um poema.

E hoje, Adelaide, seguindo Lùcia Elena, nos oferece um grandioso poema de William Blake, A Mosca.

Assim, ela nos apresenta William Blake e o poema (traduzido e em inglês):

As visões e os poemas de William Blake [1757-1827], poeta, pintor, gravador, etc.,não pertencem apenas a um tempo de outrora, projetam-se no futuro, mergulham na mitologia pessoal de cada um de nós e buscam uma resposta para nosso existir. Não foi por acaso que o cientista Carl Sagan escolheu as 3 primeiras estrofes do poema A Mosca como epígrafe, mote mesmo, de seu romance de ficção científica Contato. Preferi, entretanto, enviar-lhe o poema completo.

Mas, voltando a Blake e, talvez, a uma pequena dose de anacronismo: que fazemos aqui nesse planetinha de um pequeno sistema solar, num recanto de galáxia quase imperceptível no universo em confronto permanente com a brevidade da vida, o efêmero, com a fragilidade de existência humana? A resposta, queria Blake,estaria dentro de nós mesmos.

O poema A Mosca (The fly) foi escrito e publicado no ano de 1795. Faz parte da coleção de poesias Cantos da experiência [Songs of experience]

Maria Adelaide

                                  A Mosca

Pequena mosca,
com minha mão
bruta, cortei
teu jogo vão.

Não serei, mosca,
um igual teu?
Ou não és tu
homem, como eu?

Pois amo a dança,
canções, bebida,
até que a mão cega
me corta a vida.

Porque danço
e bebo, e canto
até que alguma mão cega
me arranque a asa.

Se o pensamento é vida,
fortaleza e alento;
e a ausência
de pensamento é morte;

então eu sou
uma mosca feliz,
se vivo,ou se morro.

 The Fly

Little fly,
Thy summer’s play
My thoughtless hand
Has brushed away.

Am not I
A fly like thee?
Or art not thou
A man like me?

For I dance
And drink and sing,
Till some blind hand
Shall brush my wing.

If thought is life
And strength and breath,
And the want
Of thought is death,

Then am I
A happy fly,
If I live,
Or if I die.

William Blake :Songs of Experience “The Fly” (1795)

William Blake , nasceu em Londres, em novembro de 1757, e morreu em agosto de 1827, pertinho de completar 70 anos. Além de poeta, foi tipógrafo e pintor, sendo a sua pintura definida como pintura fantástica. Apesar de sua exuberante obra, mais de vinte livros escritos e ilustrados, morreu pobre, o seu funeral, muito humilde, foi pago pela pessoa que o contratou para ilustrar a Divina Comédia, de Dante Alighieri, trabalho que ele fazia já bastante debilitado quando faleceu (algumas dessas ilustrações estão no blog, no post com as notas sobre o Inferno). Outra grande obra que ele ilustrou foi O Livro de Jó, da Bíblia. Causava estranhamento às pessoas o seu trabalho, daí ele não ter sido reconhecido ainda em vida como o grande poeta e pintor que ele era.

Algumas de suas obras:

A Consciência de Zeno, Ítalo Svevo

DESCOBERTA DE FIM DE ANO

Dos livros que li este ano, A CONSCIÊNCIA DE ZENO, de Ítalo Svevo, merece um comentário especial neste blog. Não me lembro de como tive notícia dele. Comprei-o sabendo apenas que era um livro importante e que tinha a ver com psicanálise. Com a leitura – que ainda não concluí – pude ver que se trata de um exame psicológico minucioso da vida do personagem; dos seus sentimentos; e da permanente tentativa de fazer o que devia e acabar sucumbindo ao desejo, aos sentidos, vivendo entre um propósito e um remorso.

Traduzido por Ivo Barroso, cujo site – Gaveta do Ivo – contém magníficos comentários sobre o livro e o autor, faz parte da coleção Saraiva de bolso, com 461 páginas e letra pequena.

Ao longo da leitura fui me lembrando do livro de Sterne, UMA VIAGEM SENTIMENTAL e no blog citado encontrei observação semelhante – o que comprovou minha impressão. Por alguns de seus admiradores, Svevo é chamado de Proust de Trieste, cidade onde ele nasceu, em 19 de dezembro de 1861. Seu verdadeiro nome é Ettore Schmitz, filho de mãe italiana e pai judeu de origem húngara. Teve morte prematura aos 67 anos em consequência de acidente de automóvel.

O livro foi publicado em 1923 e não recebeu aprovação dos críticos. Só obteve sucesso quando James Joyce, que era amigo do autor, afirmou que se tratava de uma obra-prima. Há mesmo quem diga que o personagem Leopold Bloom foi inspirado em Svevo.

Aldeia, 10 de dezembro de 2012

César Garcia

Segunda-Feira, dia de Poesia

Para Adelaide, sempre.

De Mário Quintana:

POEMINHA DO CONTRA
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

 

[Quem Sabe um Dia]

Quem Sabe um Dia
Quem sabe um dia
Quem sabe um seremos
Quem sabe um viveremos
Quem sabe um morreremos!

Quem é que
Quem é macho
Quem é fêmea
Quem é humano, apenas!

Sabe amar
Sabe de mim e de si
Sabe de nós
Sabe ser um!

Um dia
Um mês
Um ano
Um(a) vida!

Sentir primeiro, pensar depois Perdoar primeiro, julgar depois
Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois

Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois
Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois

Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois

 

Canção do dia de sempre

Tão bom viver dia a dia…
A vida assim, jamais cansa…

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu…

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência… esperança…

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…

 

 

Amor

Quando duas pessoas fazem amor
Não estão apenas fazendo amor
Estão dando corda ao relógio do mundo

 

Essa Terra, Antonio Torres

RESENHA  – Antônio Torres, Essa Terra, São Paulo, Editora Ática, 1997 (12ª. Edição), publicada www.revistasera.info

A dimensão continental do Brasil, as diferenças regionais e as rodovias para transporte de mercadorias, possibilitando também a mobilidade de pessoas, foram fatores decisivos para o fenômeno das migrações internas em nosso país. São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, o Centro-Oeste, a Amazônia… aonde as estradas cortavam as matas e cidades, iam atrás os migrantes em busca de melhores oportunidades de vida ou para se juntar aos familiares.

A demografia, a sociologia e a economia são fartas em estudos na área das migrações internas brasileiras. Eu própria entrei nessa seara tanto na dissertação de mestrado (Cassacos e Corumbas, Ática, 1977) como na tese de doutorado (Agreste, Agrestes, Paz e Terra, 1982) e no meu livro mais recente (Cortez, a saga de um sonhador, Cortez, 2010). Nos Estados Unidos, país também de dimensões continentais, além dos estudos científicos, o tema originou um Vinhas da Ira, o magnífico romance de John Steinbeck. Faltava um romance brasileiro sobre essa saga. Guardadas as proporções, esse romance surgiu com Essa Terra, de Antônio Torres, publicado originalmente em 1976 com tiragem inicial de 30 mil exemplares e, daí em diante, com uma edição atrás da outra.

O que explica o sucesso do livro, para além da temática (o êxodo mais característico das migrações brasileiras – do Nordeste para São Paulo), é a qualidade literária do romance.

A saga da migração para São Paulo é contada através do personagem Nelo, filho primogênito de uma família camponesa de Junco, pequeno município do Sertão baiano onde, não por acaso, nasceu Antônio Torres. Essa saga, que ocupou em teses, livros e artigos acadêmicos, centenas de volumes de tabelas, gráficos e escritos, aqui, pela magia da obra de arte, em apenas 100 páginas, torna-se atemporal para narrar um drama pessoal e familiar que salta de Junco para a universalidade do gênero humano.

O valor da obra literária é quando capta e transmite um instante de humanidade. “Era meio-dia e eu sabia que era meio-dia simplesmente porque ia pisando numa sombra do tamanho do meu chapéu. (…) A alpercata esmaga minha sombra, enquanto avanço num tempo parado e calado, como se não existisse mais vento no mundo. (…) – Nelo – gritei da calçada. – Vem me ensinar como se flutua em cima de um tronco de mulungu. (…) Nossa sombra ao meio-dia, nossa árvore de todo dia. (…) – Menino, venha mais para peeeeeeeerto – agora a sua voz ia encurtando o caminho, trazendo a distância para cá, para junto dela, para dentro do seu coração. (…) É na venda que todos nós nos abençoamos, como se estivéssemos num convento sagrado, o quarto dos santos de todos os velórios de todos os dias. E Deus que nos livre das palavras: cada suspiro já é uma doce e cariciosa aragem, embargada, bafejada, recendendo a dendê, fumo de corda, creolina e cachaça. (…) Nelo continua engravatado na corda, sob o olhar mudo do patriarca. Mamãe dizia que foi ele quem deu o nó na gravata, no dia em que seu pai tirou esse retrato.”

Através da bem elaborada construção do personagem Nelo, desenvolve-se o drama pessoal e familiar da saga migratória. Em um lugar perdido nesse imenso Brasil, onde, finalmente, com a volta trágica do filho pródigo, “tinha uma noite com assunto”. O mote da tragédia se anuncia já no primeiro capítulo da primeira e mais longa parte do livro, “Essa Terra me chama”.

Pela narração em primeira pessoa de Totonhim, irmão de Nelo, vai se compondo a vida do lugar e de seus personagens típicos: o doido Alcino; Zé da Botica; o sargento-delegado, Pedro Infante, o dono da Venda. O narrador muda no correr do livro, como no capítulo 10 dessa primeira parte, quando Nelo assume a narração para dar força a uma cena quase teatral ou cinematográfica, em que se mistura a violência policial da metrópole paulistana contra pobres, negros, migrantes nordestinos (pejorativamente, baianos), com reminiscências  de seu passado rural. Mais tarde Ronaldo Brito usaria recurso literário muito semelhante em seu conto “Retrato em Branco e Preto”.

Fluxos de consciência e muitos diálogos são recursos de escrita que dão especial sabor e expectativa ao leitor. As mudanças de narrador às vezes são imperceptíveis, mas uma releitura mostra como são harmoniosas na narrativa. Toda segunda parte do livro, “Essa Terra me enxota”, é narrada em terceira pessoa, para se construir o personagem do pai, na sua expulsão da terra pela expansão do capitalismo no campo (palavras agora da socióloga), que, nesse romance de Antônio Torres é o drama que foi o cenário de “Vinhas da Ira” na Califórnia.

Totonhim retoma sua narração na terceira parte do livro, “Essa Terra me enlouquece”, quando a personagem mãe, ao confundir Totonhim com Nélio, na sua loucura pela impossibilidade de aceitar a morte do filho, retrata seu desespero na perdição de cada uma das muitas filhas, sua brabeza de animal para protegê-las.

Dois momentos memoráveis do livro: o encantamento e a ilusão com o migrante que venceu na vida versus a decepção com o que aconteceu, expresso pelo velho que nunca saiu do local, com a frase lacônica “custa a crer” (capítulo 4 da primeira parte); e a alucinação de Alcino no seu encontro com o morto na noite do enforcamento, quando tudo aconteceu nas conversas da venda  (capítulo 3 da terceira parte).

Preferi escrever essa resenha antes de ler os outros dois livros de Antônio Torres que formam a trilogia sobre a saga migratória Nordeste-S.Paulo (O cachorro e o lobo, 1997 e Pelo fundo da agulha, 2007). Melhor não arriscar. Sei lá… Depois que li do mesmo autor Meu querido canibal, tão aquém de Essa Terra, os dois outros livros podem ficar também aquém e repetir o que têm sido as continuidades nos grandes sucessos de cinema.***

Teresa SalesTeresa Sales, participa, também, da nossa Oficina, que neste momento está lendo Essa Terra, de Antonio Torres.
Este texto é de responsabilidade do autor.

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Segunda-feira, dia de poesia

Poesias para  Adelaide, amiga querida, que diz ser segunda-feira  o dia de poesia.                     

A BONITA RUIVA

(Guillaume Apollinaire)

 
Eis-me aqui diante de todos um homem cheio de sentido
Conhecendo da vida e da morte o que um vivo pode conhecer
Tendo provado as mágoas e as alegrias do amor
Algumas vezes tendo sabido impor suas idéias
Conhecendo diversas línguas
Tendo viajado um pouco
Visto a guerra na Artilharia e na Infantaria
Ferido na cabeça trepanado sob clorofórmio
Tendo perdido seus melhores amigos na pavorosa luta
Sei do antigo e do novo tanto quanto um homem só poderia saber.

E sem preocupar-me no dia de hoje com esta guerra
Entre nós e para nós meus amigos
Julgo essa longa querela entre tradição e a invenção
Entre a Ordem e a Aventura.

Você cuja boca foi feita à imagem da boca de Deus
Boca que é a própria ordem
Seja indulgente ao comparar-nos
Aos que foram a perfeição da ordem
Nós que por toda parte buscamos a aventura
Não somos inimigos
Queremos obter vastos e estranhos domínios
Onde o mistério se oferece a quem deseja colhê-lo
Aí existem chamas novas e cores jamais vistas
Mil fantasmas imponderáveis
Aos quais é preciso dar realidade
Queremos explorar a bondade enorme país onde tudo se cala
Existe ainda o tempo que se pode expulsar ou trazer de volta
Piedade para nós que sempre combatemos nas fronteiras
Do ilimitado e do futuro
Piedade para os nossos erros piedade para os nossos pecados
Eis de volta o verão a estação violenta
E a minha juventude está morta como a primavera
Ó sol eis o tempo da Razão ardente.

E espero
Para segui-la sempre a forma nobre e doce
Que ela assume a fim de que eu a ame exclusivamente
E tem a aparência encantadora
De uma ruiva adorável.

Seus cabelos são de ouro dir-se-ia
Um bonito relâmpago que pendurasse
Ou a pavana destas chamas
Na rosa-chá que se fana.

Mas riam riam de mim
Homens de todos os lugares gente daqui sobretudo
Porque há tantas coisas que não ouso dizer-lhes
Tantas coisa que vocês não me deixariam dizer
Piedade de mim.

O POVO CONTINUARÁ

(Carl Sandburg)

                        O povo continuará
Aprendendo ou fazendo loucuras o povo continuará.
Será logrado, vendido e revendido
e voltará à mãe-terra para nutrir suas raízes.
O povo é tão bizarro ao progredir e regredir,
que não podemos rir de sua capacidade de topar a parada.
O mamute descansa entre os seus dramas ciclônicos.

O povo tantas vezes indolente, cansado, enigmático,
é um vasto amontoado de indivíduos a falar:
“Vou ganhando a vida.
Faço o que é preciso pra ir levando
e isso me come o tempo todo.
Se eu tivesse mais tempo
podia fazer mais pra mim mesmo
e talvez pros outros.
Podia ler e estudar,
discutir as coisas,
descobrir certas coisas.
Mas isso toma tempo.
Ah, se eu tivesse tempo!”

O povo tem duas caras, uma trágica, a outra cômica:
herói e desordeiro: espectro e gorila,
geme com sua boca torta de gárgula:
“Eles me compram e me vendem… não passo dum jogo…
um dia eu me solto…”

Depois de haver ultrapassado
as margens da necessidade animal,
a linha feroz da mera subsistência,
o homem chegou afinal
aos ritos mais profundos de seus ossos,
às luzes mais leves que os ossos,
chegou ao tempo de repensar as coisas,
à dança, à canção, ao conto,
chegou às horas doadas ao devaneio,
depois de ter ultrapassado a linha.

Entre as numeráveis limitações dos cinco sentidos
e os anseios infindos do homem pelo eterno,
o povo se agarra ao chato imperativo
de trabalhar e comer, enquanto faz um gesto,
quando se apresenta a ocasião
para as luzes além da prisão dos cinco sentidos,
para dádivas mais duradouras que a fome
ou a morte.
Esse gesto mantém-se vivo.
Proxenetas e mentirosos o violaram e enxovalharam.
Mas continua vivo esse gesto
estendido às luzes e às dádivas.

O povo conhece o sol do mar
e a força dos ventos
que chicoteiam as esquinas da terra.
O povo vê a terra
como a cova do descanso e o berço da esperança.
Quem mais fala em nome da Família Humana?
O povo anda afinado
com as costelações da lei universal.
O povo é policromia,
espectro e prisma,
apresado num monólito que se move,
um órgão a soar temas cambiantes,
clavilux de poemas coloridos
nos quais o mar oferece névoa
e a névoa se dissipa em chuva
e o poente do Labrador se reduz
a um noturno de estrelas limpas,
sereno, acima do jorro em chuveiro
das luzes boreais.

O céu das usinas de aço está vivo.
O fogo irrompe em branco ziguezague
detonado dum crepúsculo metálico.
O homem está vindo atrasado.
O homem contudo vencerá.
Irmão pode ainda marchar ao lado de irmão:
esta velha bigorna se ri de muito martelo partido.
Há homens que não se vendem.
Quem nasce no fogo, vive bem no fogo.
Estrelas não fazem barulho.
Ninguém pode segurar o vento.
O tempo tudo ensina.
Quem vai viver sem esperança?

Na escuridão, com um grande fardo de aflições,
o povo marcha.
Na noite, com uma pazada de estrelas no alto,
para sempre o povo marcha.

“Pra onde? Mais o quê ainda?”