Encontro de Rios

No Momento Poético da última quarta-feira, o nosso companheiro de muitas viagens Paulo Tadeu, pintor e escritor, trouxe um poema sobre dois rios que cruzam Recife, o Beberibe e o Capibaribe, de autoria de sua esposa que, também,  é muito prendada nas artes literárias, tanto na prosa como na poesia, além de ser passista de frevo de primeira linha e compositora. Se não fosse o bastante, ainda é, como bem afirma o nosso colega Sarmento, uma guerreira permanente por justiça social para os menos favorecidos, em todos os aspectos.

O  poema une beleza  lírica, tanto na subjetividade, no simbolismo, quanto na musicalidade,  além de refazer os caminhos das águas dos rios e o momento do seu encontro, resgatando memórias históricas realmente comovedoras.  Grande poema!

ENCONTRO DE RIOS

*Lilia Gondim

Tão doce quanto suas águas

que num antigo Varadouro

abrigaram a Galeota[1],

se espraia o rio Beberibe.

Tem memórias de prisão,

sua rota limitada por pedra de cantaria[2]

disfarçada por dez arcos

(que obra de engenharia!!!)

donde sua água escorria

por dezoito lindas bicas

e fugia em muitos barcos.

Se espraia o Beberibe

e corre, foge, liberto

em direção ao Recife;

Seu roteiro não se inibe,

vai em busca de um encontro,

pois há muito marcou ponto ,

com o rio Capibaribe.

Vai seguindo seu destino,

rente ao Forte do Buraco

mas estanca em desatino.

Apesar de tanto mato,

de tanta falta de trato,

se banhando em suas águas

revê Madame Bruyne[3]

curtindo flamengas mágoas.

Atrás de si deixa morros,

beleza que nunca finda,

eterna Villa d’Olinda …

Alcança em breve as areias

das terras Fora de Portas[4].

Com tristeza repentina

pressente o sangue no chão,

vermelho, no pelourinho

chamado Cruz do Patrão[5].

Agita-se! Em desalinho

malassombros vagam, choram,

gritam ais, estendem a mão!

E o rio, que nem menino,

se assusta e molha o chão

onde foram espancadas,

torturadas e enterradas

as vítimas da escravidão!

Ferve a vergonha em seu peito,

e sonha ver branca vela

de barcaças noutro rio,

lá no Poço da Panela.

É o moço Mariano[6]

defendendo os homens negros,

dando fuga, proteção,

pondo fim à humilhação .

Mas surge o Capibaribe,

serpenteando, barrento,

se arrastando pelo mangue,

se torcendo, quase exangue,

apesar de ter bebido

todo aquele mar de sangue

que num passado perdido

jorrou de heroicas batalhas:

invasor ou insurreto

do seu leito fez mortalha!

Trombando em febril abraço

celebram aquele encontro,

há muito tempo agendado,

em toda sua grandeza,

bem no local que o Friburgo[7]

virou Campo das Princesas.

Misturando as suas forças,

vem doçura, vem tristeza,

revivem tudo o que um dia

mergulhou na correnteza.

Unidos seguem seu rumo,

como manda a natureza,

e por viverem embalados

em doce e suave cântico

geram em seus ventres molhados

um mar, o oceano Atlântico.

( abril/2002)

  • Lília Gondim é poeta, contista e compositora.

NOTAS EXPLICATIVAS DA AUTORA

[1] Galeota – Pequena galé movida a remos e vela. Saindo de Igarassu em 1535 em direção ao sul, Duarte Coelho teve sua galeota avariada e entrou pelos “mangues do Beberibe onde ora se faz o Varadouro em que corrigiu a Galeota” – Anais pernambucanos, 1935 – Costa, Pereira da

[2] Refere-se à antiga Ponte do Varadouro sobre o Beberibe, toda erguida em pedra de cantaria, com dez arcadas e 18 bicas, por onde escorria a limpíssima agua do Beberibe e era coletada pelos aguadeiros que vinham do Recife em barcas em busca dessa água limpa para consumo humano. Dessa ponte existe hoje uma única imagem, na pinacoteca da Igreja de Santo Antônio em Igarassu. (NA)

[3] Forte Madame Bruyine ou Forte do Buraco – Estrutura erguida ao norte do Porto do Recife, pelos flamengos,  entre 1630/32, no istmo em direção à Olinda. Recebeu este nome em homenagem a esposa de Johan Bruyne, integrante do Conselho de Comissários que governou o Brasil Holandês. (NA)

[4] Terras “Fora de Portas” – Para além das portas de entrada na antiga cidade protegida por muralhas e portas, existiu a localidade “Fora de Portas”, localizada na área que hoje se chama Pilar, estendendo-se pelo istmo em direção a Olinda. (NA)

[5] Cruz do Patrão – Construída no istmo que liga Recife a Olinda, está localizada ao norte do Forte do Brum, na área aonde existiu a tancagem de combustíveis das distribuidoras de petróleo. Trata-se se de uma pesada e alta (6m) coluna de alvenaria que teria servido de baliza às embarcações que entravam no Porto do Recife, Segundo a tradição trata-se de um local “mal assombrado” por que era onde se enterravam escravos que morriam ao chegar da África. E por ser um local ermo, nesse local ocorriam fuzilamentos e assassinatos. Maria Graham, uma inglesa que visitou o Recife, conta no seu livro de viagens sobre o Brasil do sec XIX, que viu no local cadáveres mal enterrados, com pés e pernas sobre a terra.  (Fundaj. Ver basilio.fundaj.gov.br) Alguns autores citam o local como antigo pelourinho onde eram espancados os escravos fugidos e malfeitores. (NA)

[6] José Mariano Carneiro da Cunha – Abolicionista pernambucano. Um busto em sua homenagem pode ser vista no Poço da Panela, em frente à Igreja de N.S. dos Remédios. (NA)

[7] Palácio de Friburgo – Também conhecido como Palácio da Torres ou das Duas Torres, construído em 1640 /42 pelo Conde João Maurício de Nassau para sua residência oficial, na Ilha de Antônio Vaz, hoje bairro de Santo Antônio, no Recife, na área onde hoje está o Palácio do Governo, o Teatro Santa Izabel e a Praça da República. Atrás dessa área se encontram os rios Beberibe, vindo de Olinda e o Capibaribe, vindo das regiões interioranas do Estado. (NA)E