Viagem Sentimental

Viagem Sentimental

A primeira leitura de romance na Oficina, agora em 2012, foi  Viagem Sentimental,  de Laurence Sterne. A escolha surgiu do interesse em conhecer o estilo daquele escritor, tão mencionado entre os grandes escritores por conta de sua obra literária mais famosa: A Vida e  as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy. Sabíamos que nessa obra ele, com seu humorismo simpático e sentimental e suas “extravagâncias” inovadoras,  havia quebrado todas as convenções, até então vigentes, no modo de fazer literatura. Livro grande, denso e esgotado. Três fatores nos impediram de seguir adiante com a ideia de sua leitura na Oficina:. Tristram Shandy é um livro muito grande para uma leitura coletiva com o objetivo de extrair contribuições para o jeito de escrever e de ler um livro;um livro tão cheio de digressões e enxertos nos levaria a todo momento a muitas discussões e paradas; por fim, o livro estava esgotado nas editoras que o lançaram. Restavam-nos os sebos e mais tentativas de busca. Desistimos.

Por acaso,  ao comprar dois livros de ensaios de Virgínia Woolf: The Common Reader Vol.I e II, da Vintage Classics,2003, na FENAC de Lisboa, nos defrontamos com uma excelente análise literária da autora sobre a Viagem Sentimental, também  de Laurence Sterne, na qual ela diz que nas primeiras palavras desse livrinho de 154 páginas, nós, de certa forma, também estávamos no mundo de Tristram Shandy. Na análise ela está sempre trazendo o autor e as suas duas obras, embora enfatize e detalhe mais Viagem Sentimental.

Optando pela leitura de Viagem Sentimental foi possível realizar o sonho de conhecer o pároco e o escritor Sterne,  o seu estilo revolucionário para a época, tanto em termos literários como em termos dos costumes da sociedade. A leitura, como já era esperado, foi muito instigante pelo estilo que  nos obrigou a ler e reler várias vezes o mesmo parágrafo para esclarecer melhor o que estava sendo dito, quem estava falando, se o narrador ou o personagem que, de tão colados, geravam confusão. Além disso, buscamos no inglês (Ângela Cysneiros conseguiu pela internet ) apoio para tirar as dúvidas geradas pelas quatro traduções que tínhamos na sala. Na categoria de viajantes curiosos, acompanhamos Sterne em suas fantasias viageiras … e num Désobligeant.

Próximo ao encerramento da leitura, começamos a fazer a tradução da análise literária de Virgínia Woolf sobre a Viagem Sentimental, para dividi-la com os participantes da Oficina e com os que acompanham esse Blog, por considerarmos que a escritora  havia feito um excelente trabalho sobre a obra de Sterne. Quando já estávamos quase no final, a nossa colega Adelaide Câmara, uma das responsáveis pela tradução, encontrou o livro de Virginia Woolf na Livraria Cultura, em Português, sob o título  O Leitor Comum, da Editora Graphia, tradução de Luciana Viégas. Assim, revisamos as nossas traduções e percebemos algumas discrepâncias. A principal delas está no início do primeiro parágrafo quando a tradutora diz que Tristram Shandy, embora seja o primeiro romance de Sterne, foi escrito em uma época em que muitos escreviam sobre seus vinte anos, isto é, quando tinham vinte e cinco. Pela nossa tradução, Virgínia dizia que Laurence Sterne escreveu seu primeiro livro numa época em que muitos já haviam escrito o seu vigésimo, ou seja, aos quarenta e cinco anos.

Diante disso, resolvemos considerar a nossa versão na maior parte do texto, recorrendo a Luciana Viégas, sempre que surgia dúvida. Foi um excelente exercício de leitura, releitura e interpretação, principalmente pelo belo texto que Virgínia Woolf nos legou.

A seguir, a tradução feita por Adelaide Câmara e Lourdes Rodrigues, com apoio de Monica Raposo e Supervisão de Tim Beech. E, claro, cotejada com a de Luciana Viégas.

 

*A VIAGEM SENTIMENTAL

Virgínia Woolf

 

Tristram Shandy, embora seja o primeiro romance de Sterne, foi escrito num tempo em que muitos já haviam escrito seu vigésimo, isto é, quando ele tinha quarenta e cinco anos. Mas exibe todo sinal de maturidade. Nenhum escritor jovem  poderia ter ousado tomar  tais liberdades com a gramática, a sintaxe, o sentido e a convenção, nem com a tradição longamente estabelecida de como um romance deve ser escrito. Era necessário  uma forte dose de confiança própria da meia idade e sua indiferença à censura para correr tais riscos de chocar os letrados pela não convencionalidade do próprio estilo e a reputação pela irregularidade da própria moralidade. Mas o risco foi corrido e o sucesso prodigioso. Todos os grandes, todos os exigentes ficaram encantados. Sterne tornou-se o ídolo da cidade. Apenas, no rugido do riso e  aplauso dos que saudaram o livro, a voz do público comum em geral era  largamente ouvida protestando que aquilo era um escândalo vindo de um clérigo, e que o Arcebispo de York deveria aplicar,   para dizer o mínimo, uma repreensão. O Arcebispo, parece, não fez nada. Mas Sterne, contudo, por menos que deixasse transparecer, sentiu a crítica como um golpe no coração. Aquele coração também já havia sido atingido desde a publicação de Tristram Shandy. Eliza Draper, objeto de sua paixão,  tomara um navio para juntar-se ao marido em Bombaim. Em seu próximo livro Sterne estava determinado a mostrar o efeito da mudança que o afetou, e não somente o brilho de sua inteligência, mas sua profunda sensibilidade. Em suas próprias palavras, “nisso, meu intento era ensinar-nos a amar o mundo e o nosso próximo melhor do que o fazemos. Foi com essa motivação a animá-lo que ele sentou-se para escrever a narrativa de um pequeno tour na França a que chamou Uma Viagem Sentimental.

Mas se era possível para Sterne corrigir suas maneiras, era impossível para ele corrigir o próprio estilo. Esse tinha se tornado como uma parte dele mesmo tanto quanto seu nariz grande e seus olhos brilhantes.  Com as primeiras palavras ― Eles lidam, digo eu,  melhor com essa questão na França ― nós estamos no mundo de Tristram Shandy. Um mundo em que qualquer coisa pode acontecer. Nós dificilmente sabemos que gracejo, que provocação, que lampejo de poesia não vai brilhar subitamente através da brecha que esta pena extraordinariamente ágil corta na bem fechada cerca viva da prosa inglesa. É o próprio Sterne responsável por isso?  Sabe o que está indo dizer em seguida a todos. De sua determinação de estar no seu melhor comportamento dessa vez? Os solavancos, as sentenças desconectadas são tão rápidas e pareciam sob tão pouco controle como as frases que caem dos lábios de um brilhante orador. A própria pontuação é aquela da fala, não da escrita e traz  com ela o som e as  associações da voz falante. A ordem das ideias, a subtaneidade e impropriedade delas, é mais fiel à  vida do que à literatura. Há uma intimidade nessa conversa que permite que as coisas escapem sem censura, e que teriam sido de gosto duvidoso se faladas em público. Sob a influência desse estilo extraordinário o livro se torna semitransparente. As cerimônias costumeiras e convenções que mantêm o leitor e o escritor numa distância cordial desaparecem. Estamos tão perto da vida quanto podemos.

Que Sterne alcançou essa ilusão apenas pelo uso de extrema arte e sofrimentos extraordinários é óbvio sem se precisar ir ao seu manuscrito para prová-lo. Se bem que o escritor está sempre capturado pela crença de que por algum meio deve ser possível deixar de lado as cerimônias e convenções para escrever e falar para o leitor tão diretamente como quando as palavras saem diretamente da boca, alguém que já tenha tentado a experiência foi emudecido pela dificuldade, ou se perdeu na desordem e numa dispersão indizível.Sterne de alguma forma conseguiu alcançar essa extraordinária combinação. Nenhuma escrita parece fluir mais diretamente nas várias dobras e rugas da mente do indivíduo, para expressar suas mudanças de humor, refletir suas ideias caprichosas e impulsos, e ainda o resultado ser perfeitamente preciso e sereno.  A mais extrema fluidez coexiste com a mais extrema permanência. É como se a maré subisse e agitasse o mar para lá e para cá e deixasse as marcas do ir e vir das ondas na areia como que em mármore..

Ninguém, naturalmente, precisava mais de liberdade para ser ele próprio do que Sterne. Embora existam escritores cujo dom é impessoal, assim como Tolstoi, por exemplo, que pode criar um personagem e nos deixar em paz com ele, Sterne precisa sempre estar lá em pessoa para nos ajudar em nosso percurso. Pouco ou nada de Uma Viagem Sentimental sobraria se tudo a que nós chamamos do próprio Sterne fosse eliminado. Ele não tem qualquer informação valiosa para dar, nenhuma razão filosófica para repartir. Ele deixou Londres, conta-nos, “com tanta precipitação que nunca entrou na minha mente que nós estivéssemos em guerra com a França”. Ele não tem nada para dizer das pinturas e igrejas ou do sofrimento ou bem-estar da população rural. Ele estava viajando pela França realmente, mas a rota era frequentemente através da sua própria mente, e suas principais aventuras não foram com bandidos ou precipícios, mas com as emoções de seu próprio coração.

Esta mudança no ângulo de visão era em si mesmo uma ousada inovação. Até então, o viajante tinha observado certas leis de proporção e perspectivas. A Catedral tinha sempre sido um vasto edifício em qualquer livro de viagens e o homem uma pequena figura, propriamente diminuta, pelo seu lado. Mas Sterne foi realmente capaz de omitir a Catedral completamente. Uma garota com uma bolsa de cetim verde pode ser muito mais importante do que a Notre-Dame. Pois não há, ele aparentemente insinua, nenhuma escala universal de valores. Uma garota pode ser mais interessante que uma catedral; a morte de um macaco mais instrutiva que um filósofo vivo. É tudo uma questão de seu próprio ponto de vista. Aos olhos de Sterne as coisas pequenas muitas vezes pareciam maiores do que as grandes.  A conversa de um barbeiro acerca da presilha de sua peruca diz a ele mais acerca do caráter  da França do que a grandiloquência dos estadistas dela.

Eu penso que eu posso ver os sinais precisos e distintos do caráter nacional mais nestes absurdos detalhes, do que nos mais importantes assuntos de estado; onde os grandes homens de todas as nações conversam e andam tão parecidos uns com os outros, que eu não daria  nove pences  para eleger um  dentre eles.

Assim, também se alguém deseja agarrar a essência das coisas como deve fazer um viajante sentimental, deve procurar por isso, não sob o claro meio-dia em ruas largas e abertas, mas em uma esquina despercebida de entrada escura. Deve-se cultivar um tipo de taquigrafia que consiga traduzir os vários jeitos de olhar, dos braços e pernas em palavras claras e simples. Era uma arte que Sterne tinha treinado longamente a si próprio para praticar.

De minha parte,  por longo hábito, eu faço isso tão mecanicamente que quando eu caminho pelas  ruas de Londres, eu vou interpretando todo o caminho; e por mais de uma vez eu permaneci parado atrás de uma roda de pessoas, onde não mais de três palavras haviam sido ditas, e levei comigo vinte diálogos diferentes, os quais eu poderia ter transcrito e assinado embaixo.

É assim que Sterne transfere nosso interesse do exterior para o interior. Não adianta usar um  guia de viagem; nós devemos consultar nossas próprias mentes; somente elas podem dizer-nos  qual é a importância comparativa de uma catedral, de um burro e de uma garota com uma bolsa de cetim verde. Preferindo as sinuosidades de sua própria mente ao guia de viagens e suas castigadas estradas, Sterne é singularmente de nossa própria época. Neste interesse em silenciar em vez falar, Sterne é o precursor dos modernos. E por estas razões ele é hoje, de longe, muito mais íntimo de nós do que seus grandes contemporâneos os Richardsons e os Fieldings.

Ainda existe uma diferença. Apesar de seu interesse em psicologia, Sterne foi muito mais ágil e menos profundo do que os mestres desta escola um tanto sedentária se tornaram desde então. Ele está afinal, contando uma história, seguindo uma viagem, conquanto seu método seja  arbitrário e em zigue-zague. A despeito de nossas divagações, nós percorremos a distância entre Calais e Modena no espaço de muito poucas páginas. Interessado como ele era na forma como ele via as coisas, as coisas em si também interessavam extremamente a ele. Sua escolha é caprichosa e individual, mas nenhum realista seria mais brilhantemente bem sucedido em traduzir a impressão do momento. A Viagem Sentimental é uma sucessão de retratos — o Monge, a dama, o Cavalheiro vendendo patês, a garota na livraria, La Fleur em seus novos culotes, —uma sucessão de cenas. E embora o voo desta mente errante seja tão ziguezagueante como o de uma libélula, não se pode negar que esta libélula tem algum método no seu voo, e escolhe as flores não aleatoriamente, mas por alguma primorosa harmonia ou por alguma brilhante discordância. Nós sorrimos, choramos, zombamos, simpatizamos por momentos. Nós mudamos de uma emoção para o seu oposto no piscar de um olho. Esta frágil ligação com a realidade aceita, esta negligência com a organização da narrativa permite a Sterne quase uma licença poética. Ele pode expressar ideias em linguagem que os romancistas comuns  deixariam de lado, mesmo que os romancistas comuns pudessem dominá-la, iria parecer-lhe intoleravelmente estranho em suas páginas.

Caminhei solenemente para a janela em meu casaco preto empoeirado e olhei através da vidraça vi todo o mundo em amarelo, azul e verde, correndo na arena do prazer. – O velho com suas lanças quebradas, e elmos que tinham perdido suas viseiras – o jovem em armadura esplendorosa que brilhava como ouro, emplumado com vistosas penas orientais – todos – todos lutando como se empunhassem espadas fascinantes em torneios de outrora por fama e amor.

Há muitas passagens como esta de pura poesia em Sterne. Algumas podem ser retiradas e lidas à parte do texto, e ainda assim – Sterne era o mestre da arte do contraste – elas assentariam harmoniosamente lado a lado na página impressa. Seu frescor, sua leveza,seu perpétuo poder de surpreender e de assustar são o resultado destes contrastes. Ele nos leva às verdadeiras margens de algum profundo precipício da alma; lançamos um breve olhar em suas profundezas; no momento seguinte, somos empurrados de volta para olhar os prados verdes brilhando do outro lado.  Se Sterne nos inquieta, é por outra razão. E aqui a responsabilidade repousa, ao menos em parte, sobre o público. – o público que ficou chocado, que reclamou após a publicação de Tristram Shandy que o escritor era um cínico que merecia ser destituído da batina. Sterne, lastimavelmente, considerou necessário replicar.

O mundo imagina (disse a Lord Shelburne) porque eu escrevi Tristram Shandy que eu era mais Shandeano que eu realmente fui. Se ele (Uma viagem Sentimental) não é considerado um livro casto, tende piedade daqueles que o leram, pois devem ter uma imaginação ardente, sem dúvida.

Assim sendo em Uma Viagem Sentimental  nunca nos é permitido esquecer que Sterne é acima de todas as coisas sensível, simpático, humano; que acima de todas as coisas preza a decência, a simplicidade do coração humano. E sem rodeios um escritor se ergue para provar a si mesmo que esta ou aquela de nossas suspeitas são incitadas. Pois a pequena tensão excedente depositada na qualidade que deseja que vejamos nele, torna-a grosseira e de um colorido borrado, de forma que em vez de humor, temos farsa, e em vez de sentimento, sentimentalismo. Ai, em vez de sermos convencidos da ternura do coração de Sterne,— que em Tristram Shandy  jamais esteve em questão  –começamos a duvidar.. Pois sentimos que Sterne está pensando não na coisa em si, mas na sua repercussão sobre o que achamos dele. Os mendigos se juntam ao seu redor e ele dá ao pauvre honteux (pobre envergonhado) mais do que pretendia. Sua mente, porém, não está apenas e tão simplesmente nos mendigos; sua mente está particularmente em nós. Para verificar se apreciamos sua bondade. De modo que sua conclusão “e acreditei que ele me agradeceu mais do que todos os outros”, colocado, para maior ênfase, ao fim do capítulo, nos enjoa com sua doçura como um torrão de açúcar puro no fundo de uma xícara. Na realidade, a principal falha de Uma Viagem Sentimental vem do interesse de Sterne por nossa boa opinião sobre seu coração. Há uma monotonia acerca disso, apesar de seu brilhantismo, como se o autor tivesse refreado a variedade natural e a vivacidade de seus gostos, com receio de que pudessem ser ofensivos. A jocosidade se reduz a um humor invariavelmente muito bondoso, terno e compadecido demais para ser completamente natural. Perde-se a variedade, o vigor, a libertinagem de Tristram Shandy. O interesse pela sua sensibilidade cegou sua agudeza natural, e somos obrigados a fitar por longo tempo a modéstia, a simplicidade e a virtude numa postura imóvel demais para que aguentemos olhá-las.

Contudo é significativo da mudança de gosto que nos atinge que seja o sentimentalismo de Sterne que nos ofende e não sua imoralidade. Aos olhos do século dezenove tudo o que Sterne escreveu ficou enevoado por sua conduta como marido e amante. Thackeray chicoteou-o com sua justa indignação, e exclamou que “Não há uma página dos textos de Sterne que não tenha alguma coisa que seria melhor tirar, uma perversão latente – uma insinuação de uma impura presença.” Para nós, nos dias atuais, a arrogância do romancista vitoriano parece pelo menos tão censurável quanto as infidelidades do pároco do século dezoito. No lugar de suas mentiras e frivolidades, deploradas pelos vitorianos, são muito mais evidentes agora a coragem com que devolveu todas as aflições da vida ao riso e o brilhantismo da expressão.

De fato, Uma Viagem Sentimental, apesar de toda sua leveza e espirituosidade é baseada em alguma coisa fundamentalmente filosófica. É verdade que é uma filosofia que estava bem fora de moda na era vitoriana – a filosofia do prazer; a filosofia que defende que é necessário se comportar bem tanto com as pequenas coisas quanto com as grandes, que faz a alegria, mesmo a de outras pessoas, parecer mais desejável que seus sofrimentos. O homem descarado teve a ousadia de confessar “ter tido um caso amoroso com uma princesa ou outra por quase toda a minha vida”, e de acrescentar, “e espero poder continuar assim até morrer, firmemente convencido de que se alguma vez realizei uma ação maldosa, deve ter sido em algum intervalo entre uma paixão e outra”. O desgraçado teve a audácia de gritar através dos lábios de um de seus personagens. “Mais vive la joie…Vive  l’amour! Et vive la bagatelle!” Embora fosse clérigo, teve a irreverência de refletir, enquanto assistia aos lavradores franceses dançando, que poderia distinguir uma elevação de espírito, diferente da que é causa ou cosequência de simples alegria. – “Numa palavra, creio que vejo Religion misturada à dança”.

Era um atrevimento para um clérigo perceber a relação entre religião e prazer. Porém, o que pode, talvez, desculpá-lo é que, em seu caso, a religião da felicidade teve grandes dificuldades para enfrentar. Se você não é mais jovem, se está profundamente endividado, se sua esposa é desagradável, se, ao sacolejar pela França em uma carruagem, você está morrendo de tuberculose, então, afinal, a procura da felicidade não é tão fácil. Mesmo assim, persegui-la é uma obrigação. É preciso piruetar pelo mundo, olhando e perscrutando, deleitando-se com um flerte aqui, entregando uns cobres ali, e sentando-se em qualquer pedaço de terra ensolarado que se possa achar. É preciso contar uma piada, mesmo que a piada não seja muito decente. Mesmo na vida diária é preciso não se esquecer de gritar “Ave, minúsculas, doces cortesias da vida, pois tornais a estrada da vida mais fácil!” É preciso – basta de tanto precisar; este não seria um termo que Sterne gostava de usar. Somente quando se põe o livro de lado e se invoca seu equilíbrio, sua graça, sua sincera alegria em todos os diferentes aspectos da vida, e a tranquilidade e a beleza brilhantes com que nos são transmitidas, credita-se ao escritor a espinha dorsal/caráter moral da convicção para sustentá-lo. Não foi o covarde de Thackeray – o homem que desperdiçou seu tempo de forma tão imoral com tantas mulheres e escrevia cartas de amor em papéis ornados de ouro quando deveria estar deitado em uma cama doente ou redigindo sermões – não foi ele um estoico à sua maneira e um moralista, e um professor? A maioria dos grandes escritores o são, afinal. E de que Sterne foi um grande escritor não podemos duvidar.

*Tradução de Adelaide Câmara e Lourdes Rodrigues, com apoio de Monica Raposo. Supervisão: Tim Beech. Cotejada com a de Luciana Viégas.

 

*O GRÃO

O GRÃO

Lourdes Rodrigues

 

A literatura é uma fatia do espírito do tempo em busca de quem lhe dê relevância simbólica.Os escritores, seres mais propensos ao contágio, não escrevem para se curar e sim para afirmar sua própria anormalidade. [1]

Em qualquer entrevista a um escritor de romances está a célebre pergunta sobre o seu processo de criação. Ao tentar saber o segredo que envolve tal processo, o entrevistador, representando o leitor que ele é e os outros que o lêem, busca nas pegadas que o entrevistado deixa cair, muito mais do que traçar o percurso por ele percorrido para a construção da sua obra. Na verdade, é a expressão do seu estilo, entendido este como marcas do sujeito no discurso, a essência do sujeito que escreve, seus pensamentos, a forma de ver o mundo. que numa atitude de certa forma voyeurista ele tenta espreitar.

 Saramago diz que o leitor é movido pela secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir dentro do próprio livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que é o autor. E acrescenta, o romance é uma máscara que oculta e ao mesmo tempo revela os traços do romancista [2]. Na defesa do seu pensamento cita a famosa frase de Flaubert: Madame Bovary, c’est moi, que ele não acredita ter sido motivada pelo desejo de chocar a sociedade do seu tempo, mas de arrombar uma porta desde sempre aberta.

 Lacan, ao comentar Hamlet, segundo Sérgio Scotti,  diz que a obra de arte, no caso, a arte escrita, não é uma transposição ou sublimação da realidade. A arte não é paralela à ordem simbólica que estrutura a realidade humana: ela é transversa, pois tem a natureza de um corte. E o que aparece, o que se constitui nesse corte, é o sujeito. E é nesse corte que o Real do sujeito se manifesta. Scotti diz que o sujeito do desejo inconsciente é o sujeito dessa fala, e mais uma vez procura apoio em Lacan quando este se refere ao fantasma, no qual o sujeito tem acesso a seu desejo embora este lhe esteja interdito na dimensão do próprio corte, pois aí está seu inconsciente[3].

 Não pretendemos analisar o desejo de um autor no processo de criação por puro fetichismo literário. Neste momento, o farol está direcionado para as possíveis suposições teóricas que poderemos fazer, a partir dos rastros deixados por ele nessa construção, na tentativa de decifrar alguns significantes da criação literária.

 Poucos escritores deixaram marcas tão nítidas das suas caminhadas quanto Gustave Flaubert. Mario Vargas Llosa confessa ter comprado, com seus parcos recursos de jovem escritor, treze volumes contendo as cartas do autor francês, denominada Correspondance. Tesouro imensurável, junto com a sua obra, para escritores, geneticista da escritura, ou simples leitores capturados pela armadilha das suas palavras.

 Para efeito deste trabalho recorremos a Madame Bovary, uma das obras mais perfeitas da ficção poética no dizer de Nabokov,[4] e algumas cartas do autor para a sua amante Louise Colet. O objetivo é buscar paralelo entre o processo de criação de Flaubert e o trabalho do sonho apresentado por Freud, usando uma analogia comparativa da estrutura dos pensamentos do sonho com as metáforas e metonímias presentes no romance, tão bem utilizadas por Flaubert, para dar tratamento elíptico e delicado ao tema do erotismo.

 O sonho e a obra de arte são cortes transversos da realidade. O sonho é a busca de realização de um desejo; a arte constitui-se ela própria causa de desejo. Tal como o objeto a  de Lacan, no dizer de Scotti, contem ela mesma a falta, a castração, nem que seja pelo que nela contém, a negação da castração quando o herói realiza aquilo que o autor apenas sonha ou fantasia[5].

 Na Interpretação dos Sonhos Freud diz que as tentativas de solucionar o enigma dos sonhos fracassaram porque partiram do seu conteúdo manifesto, tal como o lembrava o sonhador. O diferencial da sua análise fora a inclusão de uma nova classe de material psíquico, o conteúdo ‘latente´, os chamados ‘pensamentos do sonho[6], pois é do pensamento do sonho, e não do seu conteúdo manifesto, que se depreende o seu sentido. E mais, o conteúdo do sonho é como uma transcrição dos pensamentos oníricos em outro modo de expressão cujos caracteres e leis sintáticas é nossa tarefa descobrir, comparando o original e a tradução[7]

 Continuando a sua análise Freud diz que a primeira coisa que se torna clara para quem quer que compare o   conteúdo de um sonho com os pensamento oníricos é que ali se efetuou um trabalho de ‘condensação´ em larga escala. Os sonhos são curtos, insuficientes e lacônicos em comparação com a gama e riqueza dos pensamentos oníricos[8].  Outra constatação dele foi: no trabalho do sonho está em ação uma força psíquica que, por um lado, despoja os elementos com alto valor psíquico de sua intensidade, e, por outro, ‘por meio da sobredeterminação,´ cria, a partir de elementos de baixo valor psíquico, novos valores, que depois penetram no conteúdo do sonho. Assim sendo, ocorrem ‘uma transferência e deslocamento de intensidade psíquicas no processo de formação do sonho, e é como resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do conteúdo do sonho e o dos pensamentos do sonho[9].A condensação e o deslocamento são fatores dominantes na formação do sonho. Sob o efeito do deslocamento, o conteúdo perde a semelhança com o núcleo dos pensamentos do sonho, distorcendo, assim, o desejo que existe no inconsciente, pelo efeito da censura exercida por uma instância psíquica sobre outra.

 Na criação literária talvez devamos chamar de formações substitutivas às deformações ou desvios do conteúdo latente. Pela censura, a castração se expressa continuamente na impossibilidade do desejo de vir à tona, manifestando-se por vias indiretas, por seus substitutos metafórico e metonímicos. Nessas variantes o autor encontra formas de expressão, ou  segundo o dizer de  Scotti, de realizar mesmo, como diz Lacan, o seu Real, ou, enfim, seu desejo que expressa, por sua vez, tanto a falta-em-ser quanto a falta cometida contra a lei[10].

 Nenhum tema foi tratado com tanta beleza, tanto primor e numa dose e distribuição tão perfeitas como o erotismo em Madame Bovary, o sexo está na base do que acontece, diz Mario Vargas Llosa.[11] Entretanto, o puritanismo da época e o receio de irrealidade levaram Flaubert a usar de grande maestria para trazer o sexo à narrativa e ao mesmo tempo deixá-lo oculto aos censores de plantão. Gesto inútil, Flaubert foi levado aos tribunais pela imoralidade do seu romance.

No episódio do primeiro encontro amoroso entre Ema e Rodolfo, o bosque de outono deixa de ser simples cenário da narrativa para transformar-se na metáfora de um ato sexual total, pela combinação de cores, sons e dos personagens.  A cena[12]:

          Caíam as sombras da tarde. O sol poente, atravessando os ramos, ofuscava os olhos da moça. Aqui e ali, à sua volta, nas folhas ou pelo solo, tremiam manchas luminosas, como se colibris tivessem espalhado suas penas, ao voar.

         O silêncio era geral. Alguma coisa de doce parecia emanar das árvores. Ema ouvia o coração, cujo palpitar recomeçava, e o sangue circular pelo corpo como um rio de leite.

         Então, ela ouviu, muito longe, para lá do bosque, sobre as outras colinas, um grito vago e prolongado, uma voz que se arrastava; e ouviu em silêncio, a confundir-se, como uma música, as derradeiras vibrações de seus nervos abalados.

 Ao escrever a cena, Flaubert trabalhou doze horas seguidas, fazendo pausa de vinte e cinco minutos para comer alguma coisa. Ele confessou para Louise Colet que estava sentindo tão profundamente o que minha heroína estava experimentando…[13] que quase teve um ataque de nervos, com a cabeça aturdida, levantou-se e saiu cambaleando até a janela e permaneceu assim, respirando a brisa do rio, até se acalmar.[14]. O esforço o exauriu completamente.

 Na linguagem, a metáfora consiste, por princípio, na designação de alguma coisa por meio do nome de uma outra coisa, por similaridade semântica ou homofônica. Assim, toda metáfora traz em sua essência uma comparação, embora os elementos gramaticais comparativos estejam ausentes. Nos processos inconscientes, todavia, as similaridades são encontradas em possíveis associações, como no caso do sonho em que o seu conteúdo manifesto é curto, insuficiente e lacônico, se comparado com as várias possibilidades do seu conteúdo latente. O processo de condensação no sonho desenvolve-se de maneira análoga aos processos metafóricos da linguagem. Joel Dor trazendo formulação de Lacan sobre a matéria: diz que a metáfora é uma substituição significante. Na medida em que a metáfora mostra que os significados extraem sua coerência unicamente da rede dos significantes, o caráter desta substituição significante demonstra a autonomia do significante em relação ao significado e, por conseguinte, a supremacia do significante[15]

 Na cena do bosque, a metáfora enseja a idéia do ato sexual, mas para escapar à descrição explícita, Flaubert por meio de um processo de deslocamento metonímico da linguagem, no qual presentifica a analogia que permite  a transferência de denominação, descreve a cena sem se referir a ela, permitindo que o leitor saiba o que aconteceu, sem jamais ter lido a narração dos fatos.. Toda metonímia é efeito de uma operação metafórica interrompida por ação de recalque, assim como toda metáfora é efeito de uma operação metonímica[16].

 Mas o clímax erótico de Madame Bovary não está na cena do bosque, e sim no episódio da carruagem, no interminável trajeto realizado pelas ruas de Rouen, quando Ema se entrega pela primeira vez ao seu segundo amante, Léon, um hiato genial, no dizer de Mario Vargas Llosa, um escamoteio que consegue dar extremo relevo ao material ocultado ao leitor[17]. Vejamos a cena[18]:

            — Ah! Léon!… Realmente… não sei… se deva!…

               Fez um trejeito. Depois, com ar sério:

              — Isto é uma grande inconveniência, sabe?

              — Por quê? — replicou o escrevente. — Isto se faz em Paris!

             E estas palavras, como argumento irresistível, decidiram-na imediatamente.

             Mas o fiacre não aparecia. Léon temia que ela tornasse a entrar na igreja. Enfim, apareceu o fiacre.

            — Saiam ao menos pelo portal do norte; gritou-lhes o Suíço, que ficara no limiar — para ver a Ressurreição, o Juízo Final, o Paraíso, o Rei Davi e os Condenados nas labaredas do inferno.

               — Aonde quer ir o senhor? — perguntou o cocheiro.

               — Onde você quiser! — respondeu Léon empurrando Ema para dentro do carro.

               E, ato contínuo, pôs-se a caminho a carruagem.

               Desceu a rua da Ponte-Grande, atravessou a praça das Artes, o cais Napoleão, a Ponte Nova, e parou de repente diante da estátua de Pedro Corneille.

               — Continue!— ordenou uma voz de dentro do carro.

               O fiacre saiu da grade e, alcançando logo a Alameda La-Fayette, desceu rapidamente a rampa, e entrou a galope na gare da estrada de ferro.

               — Não, não; continue direito!—gritou a mesma voz.

               O fiacre saiu da grade e, alcançando logo a Alameda, foi trotando suavemente, por entre os grandes olmeiros. O cocheiro limpou a cara, entalou entre as pernas o chapéu de oleado, e guiou o fiacre fora das contra-aléias levando-o para a beira da água, próximo da relva.

               Foi indo pela margem da ribeira, seguindo o caminho de sirga cheio de calhaus soltos, e por muito tempo do lado d’ Oyssyel, para além das ilhas.

               De repente, porém, lançou-se numa corrida através de Quatremares, Sottevile, a rua Larga, a rua d’Elbeuf, e fez sua terceira parada em frente do Jardim das plantas.

               – Vá andando! — exclamou a voz com ainda maior fúria.

               E continuando logo a corrida, passou por Saint Sever, pelo cais dos Curtidores, pelo cais das Medas, outra vez ainda pela ponte, pela praça do Campo de Marte e por detrás dos jardins do hospital, nos quais uns velhos de roupas pretas andavam passeando ao sol, num terraço todo verdejante de heras. Subiu depois o bulevar Bouvreuil, percorreu o bulevar Cauchoise, em seguida todo o Monte Riboudet até a encosta de Deville.

               Retrocedeu em seguida; e então, sem destino nem direção, ao acaso, foi vagabundeando. Viram-no sucessivamente em Saint-Pol, em Lescure, no monte Gargan, na Rouge-Mare e na praça do Guillardbois; na rua Maladrerie, na rua Dinanderie, em frente a Saint-Romain, Saint-Vivien, Saint-Maclou, Saint-Nicaise, em frente da Alfândega, – na atarracada Torre-Velha, nos três Cachimbos e no Cemitério Monumental. De vez em quando, o cocheiro lançava da almofada olhares desesperados às tabernas. Não podia compreender que furor de locomoção era aquele que levava os seus fregueses a não quererem parar. Tentou por várias vezes; mas logo ouvia atrás de si exclamações de cólera. Fustigava então o mais que podia os pobres animais, que escorriam suor, sem se importar com os solavancos, esbarrando ora aqui, ora ali, desorientado, quase chorando de sede, de fadiga e de tristeza.

               E no cais, entre fardos e barricas, nas ruas, parados às portas, os burgueses abriam muito os olhos, ante aquela coisa tão extraordinária na província: uma carruagem, com as cortinas descidas, e que reaparecia continuamente, mais fechada que um túmulo e balouçando como se fosse um navio.

A certa altura, no meio do dia, em pleno campo, quando o sol dardejava com maior intensidade contra as velhas lanternas prateadas, uma mão nua saiu por entre as cortinas de pano amarelo e jogou pedacinhos de papel, que se dispersaram ao vento e foram cair mais longe, como borboletas brancas, num campo de trevos vermelhos, todos em flor.

Afinal, lá pelas seis horas, a carruagem parou numa viela do bairro Beauvoisine e desceu dela uma mulher, que se foi, com o véu baixo, sem olhar para trás.

O mais surpreendente nesta cena, segundo Llosa, o mais imaginativo episódio erótico da literatura francesa, é que, em nenhum momento há qualquer alusão ao corpo feminino, nem uma palavra de amor, e seja unicamente uma enumeração de ruas e lugares, a descrição das idas e voltas de um velho carro de aluguel.[19]

Esse procedimento, tão comum em Flaubert, marca o seu estilo. Ao se fazer o paralelo com o trabalho do sonho, vê-se  que por um efeito de deslocamento de sentido, através de linguagem metonímica, a significação do ato sexual é transferida para a descrição de uma carruagem mais fechada que um túmulo e balouçando como se fosse um navio a percorrer com frenesi as ruas de Rouen, comandada por uma voz que sai do seu interior numa fúria assustadoramente crescente e a impede de parar.

Para Scotti, a razão do deslocamento, do desvio de sentido nos fala dos fantasmas de Flaubert e remete à cena primária em que os pais copulam diante do espectador que a descreve para nós, copulam diante de nós, para nosso deleite, seduzidos pela bela forma em que a cena nos é apresentada e que, ao mesmo tempo, nos protege de nos reconhecermos nesta cena da qual fazemos parte, nem que seja como excluídos e, por isso mesmo, desejando dela participar[20]. Com essa cena, Flaubert nos dá a oportunidade de satisfazermos esse desejo, de gozarmos, na fantasia, assim como ele próprio o fez, identificando-nos, ainda, com os amantes nesse passeio lúbrico. E acrescenta, No corte da realidade a que se referia Lacan quando falava do Real do sujeito, o que aparece aí, na obra de arte, nesse corte, é o fantasma e a pulsão, disfarçados, ocultos, mitigados pela ‘ars poética[21]´.

 E por falar em fantasmas flaubertianos, não podemos esquecer as botinhas pretas de Ema Bovary, presentes em várias cenas como objeto de desejo, de sedução. Mário Vargas Llosa considera estranho ainda não se ter produzido estudo sobre Flaubert e o fetichismo do botim, pela quantidade de matéria presente em sua obra e em suas cartas. Sartre em seu famoso estudo sobre o autor francês chegou a apontar a primeira vez em que aparece na sua obra o motivo do calçado, num romance escrito quando ele era ainda muito jovem Memoires d’un fou, onde descreve com finura um belo pé de mulher: seu pezinho mimoso calçando uma elegantinha botinha de salto alto, enfeitada com uma roseta preta[22]. Flaubert guardava em sua escrivaninha, entre cartas e certos objetos de sua amante, os chinelos que Louise Colet havia usado em sua primeira noite de amor e que, amiúde, como conta a ela em suas cartas, tirava-os para acariciá-los e beijá-los[23].

 Em Madame Bovary são muitos os episódios em que esse fetiche está presente. Na magia que ele opera no criado Justin, quando pede à criada que lhe deixe engraxar os botins de Ema e toca-os com amor tão reverente que mais parece objeto sagrado. Quando Ema ao chegar a Yonville, entra na estalagem, levanta a saia para aproximar à chama da lareira seu pé calçando uma botinha preta. É assim que Léon a vê pela primeira vez, completamente fascinado. Na cena do bosque, quando Ema caminha à frente de Rodolfo, erguendo o vestido pela cauda, ele contempla, entre o tecido negro e a botinha preta, a delicadeza da meia branca que lhe parecia algo de sua nudez. Em outro episódio, Ema Bovary está no auge de sua paixão por Rodolfo, e o narrador ao tecer loas sobre a sua beleza, diz que alguma coisa de sutil exalava-se mesmo de sua veste e da curva de seu pé.  Léon tenta se livrar do domínio que Ema exerce sobre ele, mas ao ranger das botinhas, sentia-se covarde, como os beberrões à vista de licores forte. São os tamancos calçados por Ema, alvo da primeira emoção de Charles.  E há muito mais cenas em que os pés de Ema ou as suas botinhas provocavam frisson nos cavalheiros.

 Freud ao falar de fetiche diz que ele é um substituto para o pênis, e esclarece, não se trata de um substituto para qualquer pênis, e sim para um pênis específico e muito especial, que foi extremamente importante na primeira infância, mas posteriormente perdido. Isso equivale a dizer que normalmente deveria ter sido abandonado; o fetiche, porém, se destina exatamente a preservá-lo da extinção. Para expressá-lo de modo mais simples: o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o menininho outrora acreditou e que – por razões que não são familiares – não deseja abandonar[24]

 Sem dúvida a escrita desvela as cercanias do escritor, a tradição, a vida, os fantasmas, o pensamento, a ideologia, os preconceitos e, principalmente, a luta agonista para romper com tudo isso, romper com o passado, romper com o seu tempo, transcendo-o pela criação de um novo estilo poético que lhe dará nova identidade, uma identidade móvel, porque ele, sujeito atravessado pela linguagem, vai querer seguir adiante, em busca de outros escritos inéditos, sempre, sempre, conduzido por esse gozo por esse grão. Este grão ou pedaço do real, segundo Willemart citando Lacan, poderia ser identificado ao Outro, que conduz o jogo, levando o escritor a se dizer, a se dessubjetivar ou a se perder:

 Como o inconsciente aparece e desaparece, dá um sentido a um significante e some, até reaparecer em outro momento do discurso, dançando de lapso em lapso, de sonho em sonho ou, mais intensamente, no discurso associativo no divã, assim a escritura literária se constitui no decorrer das idas e vindas da mente do escritor ao manuscrito, por sua mão[25]

 Gustave Flaubert foi um dos escritores mais lúcidos a respeito deste processo de conversão do real em fictício, da canibalização de sua vida pela literatura Eu sou um homem pena. Sinto através dela, por causa dela, em relação a ela e muito mais com ela. […] Há no entanto, no fundo, algo que me atormenta, é o não-conhecimento de minha medida. Ele não se limitou a pilhar em vidas alheias, sua própria existência alarga-se como uma mancha na realidade fictícia, manifestando-se nas situações e personagens mais diversos e, às vezes, da maneira mais insuspeitada[26]·. O seu estilo revela aquilo que ele é, o seu Real, assim ele confessa a Louise Colet:

 É por isso que amo a Arte. É que aí, pelo menos, tudo é liberdade num mundo de ficções. Aí podemos nos satisfazer com tudo, podemos fazer tudo, podemos ao mesmo tempo ser rei e povo, ativo e passivo, vítima e sacerdote. Não há limites; a humanidade se torna um boneco com guizos que se pode fazer soar ao fim  da frase que compomos como um acrobata que gira e cai sobre seus pés (foi assim que, frequentemente, eu me vinguei da existência; que revivi tantas doçuras com minha pena; que me dei mulheres, dinheiro, viagens), é assim que a alma encurvada se lança para um azul que só se detém nas fronteiras do Verdadeiro. Onde a Forma, efetivamente, falta, a idéia não mais existe.Procurar um é procurar o outro.[27]

* Texto apresentado na Jornada do Traço em 2010

[1]KEHL,Maria Rita. A mínima diferença:masculino e feminino na cultura.Rio de Janeiro:Imago.1996,p.88

[2]SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzerote I. São Paulo: Cia. das Letras, 1992,, p.234

[3] SCOTTI, Sérgio.Psicanálise, desejo e estilo. Texto Eletrônico, p.2..

[4] NABOKOV, Vladimir. Aulas de Literatura..Lisboa:Relógio D’Água,2004,p.182:

[5] SCOTTI, Sérgio – Obra citada, p.3

[6] FREUD, Sigmundo (1900). A Interpretação dos Sonhos I.ESB.Rio de Janeiro:Imago.2006, p.303

[7] Idem, ibidem

[8] Idem, p.305

[9] Idem, p.333

[10] SCOTTI, Sérgio. texto citado ,p.5

[11] LLOSA, Mario Vargas. A Orgia Perpétua.Rio de Janeiro:Francisco Alves,1979, P.23

[12] FLAUBERT, Gustave – Madame Bovary.Belo Horizonte:Editora Itatiaia,2009, p.123/124

[13] LLOSA, Mário Vargas. Obra citada, p.59

[14] Idem, ibidem.

[15] DOR, Joel. Introdução à Leitura de Lacan. Porto Alegre: ARTMED, 1989, p.43

[16] FERREIRA, Nádia Paulo. Jacques Lacan: apropriação e subversão da lingüística  – texto eletrônico – Revista Agora

[17] LLOSA, Mario Vargas – Obra citada, p.25/26

[18] FLAUBERT, Gustave .Obra citada, p.184/185

[19] LLOSA, Mario Vargas – obra citada, p.26.

[20] SCOTTI, Sérgio – Obra citada, p.9

[21] Idem, ibidem.

[22] LLOSA, Mario Vargas,. Obra citada. p.26

[23] Ibid.ibidem.

[24] FREUD, Sigmund – Fetichismo (1927), ESB, vol. Xxi, p. 155,

[25] WILLEMART, Philippe. Os Processos de Criação.São Paulo. Perspectiva:, 2009, p.103

[26] FLAUBERT, Gustave . Cartas Exemplares. P.62,

[27] FLAUBERT, Gustave . Ibidem, p.71