A CABEÇA DE UM HEROI
César Garcia – maio 2011
Manuel Amaro foi à guerra disposto a dar a vida pelo Brasil e pela democracia no mundo. Chorava, ao pensar na mulher e nos dois filhos. Sabia do risco de não voltar, morto nos campos de batalha. Que seria da família, perguntava-se. Encontrava consolo na crença de que não seriam abandonados pelo governo e teriam orgulho de descenderem de um herói. Imaginava-se vítima de uma grande bomba que despedaçasse seu corpo. Apenas a cabeça seria repatriada e entregue solenemente aos familiares. Antes, porém, daria cabo de pelo menos uma dúzia de inimigos. Não ficaria na retaguarda, faria questão de avançar com a infantaria, ganhando terreno a cada passo, arrastando-se como cobra no solo italiano. Em julho de 1944 estava em Nápoles e tomou parte na ocupação de Massarosa. Ferido, baixou hospital, onde teve uma perna amputada. Contra a vontade, foi repatriado e apesar de ter ganho uma medalha aí começaram suas desilusões com os poderosos do mundo. De volta ao Brasil, esperava ser recebido por alguma autoridade, talvez o próprio prefeito do Recife, Dr. Antônio de Novais Filho de quem era admirador. No cais do porto, estava, sim, a família e mais ninguém que ele conhecesse. Mais do que a medalha, ostentava a muleta que fez chorar a mulher e os filhos.
Já em casa, teve a sensação de estar apenas em visita à família, que voltaria logo à Itália. Seu lugar não era mais ali, na segurança e no conforto. Desejava voltar à luta para terminar um serviço interrompido, matar inimigos e morrer. A expressão triste e silenciosa foi atribuída pela mulher à perda do membro inferior, “questão de tempo” – pensou Imaculada. Os vizinhos chegavam alegres, querendo homenagear o herói e tentavam consolá-lo pela amputação. Nada nem ninguém, no entanto, conseguia um sorriso, muito menos uma descrição das cenas de guerra. Para livrar-se das perguntas, Manuel dizia que mais tarde, quando se sentisse melhor, contaria o que vira.
Imaculada e os dois filhos faziam tudo para animar o ambiente. Ligavam o rádio, arranjavam flores em jarros, e a cozinheira caprichava nas receitas, tudoem vão. Umdia, um médico entrevistado na emissora de rádio usou a expressão “neurose de guerra”. Imaculada pensou: “é isto que ele tem”. Falou primeiro com sua ginecologista, parenta em segundo grau. A médica disse que seria melhor conversar com um psiquiatra. Manuel foi, a contragosto, dizendo que não tinha nada de maluco.
O médico começou perguntando como ele se sentia. Respondeu: bem.
– Então, por que veio procurar-me?
– Minha mulher insistiu até me vencer pelo cansaço. Diz que estou com neurose de guerra.
– Já deu o diagnóstico?
– Já.
– E o senhor, que acha?
– Estive pouco tempo no campo de batalha, o suficiente para mudar de idéia a respeito da vida. No navio, queria morrer defendendo o Brasil e a democracia. Achava que morreria numa explosão e a família receberia apenas minha cabeça e uma gorda pensão. Alguma rua teria meu nome, seria lembrado como herói. Na verdade, perdi uma perna e hoje ando com auxílio desta muleta. Tive esperança de mesmo assim ter algum reconhecimento, mas o tempo passou e tudo se tornou normal. Parece até que nasci com uma perna só. Há algo errado. Não fui à guerra para voltar. Quem sou eu na minha casa? Um ex-combatente, um deficiente. Penso naquela multidão de jovens brasileiros, americanos, italianos, alemães, todos se matando para não morrer. Ali no campo ninguém pensava em política, país, nada. Eu pensava em matar o inimigo antes que ele me acertasse. Minha vontade de morrer pela pátria desaparecia da cabeça e eu tratava de acertar o tiro em um homem que só existia para me eliminar. Não o conhecia, não sabia se ainda era solteiro, filho único, um bruto qualquer ou um poeta. Só me interessava a certeza de que estava de posse de um fuzil talvez melhor do que o meu e apontava sua mira para mim. Uma bala de fuzil atravessa qualquer capacete e perfura o crânio ou quebra uma costela e abre o coração em pedaços. É o melhor que acontece a um soldado. Pior é ter o fêmur fraturado e não poder levantar-se. Sangrar até morrer ou ser levado em maca contorcendo-se de dores insuportáveis. No meu caso, o terreno era coberto de lama e todos nós estávamos irreconhecíveis, pretos, porcamente sujos. Fui levado pelos companheiros com a metade da perna pendurada logo acima do joelho. Não sei quantos matei, sei que tive a intenção de matar todos que estavam à minha frente, ao meu alcance. Na viagem de ida, tinha consciência de que estava em guerra contra o nazismo, o fascismo, mas não os matei por serem nazistas ou fascistas – talvez nem o fossem – e sim porque estavam ali tentando matar-me. E por que queriam fazê-lo, se não tinham a menor idéia de quem era eu? Porque sabiam que eu apontava uma arma contra eles, mais nada. Compreendi então que o soldado morto que matou apenas para não morrer é transformado em herói da pátria e o que volta mutilado é um deficiente que não serve mais para a guerra.
– Desculpe interrompê-lo, mas o senhor precisa valorizar o fato de estar vivo, ter uma família, poder acompanhar o crescimento das crianças. Com a ajuda de um medicamento, seu ânimo poderá voltar e outros interesses surgirão. Esqueça a guerra e volte a uma vida produtiva, há muito o que fazer.
– É verdade, doutor. Há muito o que fazer, para quem não foi à guerra e voltou mutilado. O senhor está me propondo tomar um comprimido e esquecer o inesquecível. Como já lhe disse, vim por insistência de minha mulher, não para perguntar-lhe o que fazer. Tentei resumir o que ocorreu comigo, para lhe dar uma pálida idéia de uma cena de guerra, mas é indescritível. Quanto a mim, não vejo saída, a não ser, se fosse possível, voltar à Itália. Nada mais faz sentido. Com as idéias que tenho hoje, não aceitaria nenhuma convocação, mesmo diante da ameaça de condenação como desertor. Só existe uma guerra justa: a defesa contra uma invasão, da mesma forma que só é lícito matar em legítima defesa.
– Mas se o senhor é contra a guerra, por que esta fantasia de voltar à Itália?
– Porque o Manuel Amaro que se dedicava aqui ao trabalho e à família não mais existe – a guerra transformou-me em soldado matador de outros soldados também matadores. Se tampouco sirvo para isto, nada me resta. Morto, serei melhor exemplo para meus filhos do que vivo. Guardarão a lembrança de que fui à guerra e voltei sem uma perna. Não vão se lembrar de um pai que não queria mais viver, ou melhor, que não devia mais viver.
Manuel despediu-se do médico e nem sequer comprou o remédio receitado.