LANÇAMENTO CARTAS MARIANAS

Dez anos após o lançamento do primeiro Cartas Marianas, as escritoras Eugenia Menezes e Maria Pereira lançam o segundo, no dia 04 de novembro de 2011, ambos pela Editora Bagaço. O lançamento será às18 horas, no Canto de Cumê, Rua Luiz Guimarães, 597 – Poço da Panela – Recife-Pe (Por trás do Museu do Homem do Nordeste).

Eugenia Menezes coordena a Oficina desse blog com Lourdes Rodrigues

COMEMORAR O MEDO – PALESTRA DE MIA COUTO – ESTORIL 2011

ESTORIL 2011 – MIA COUTO

Para ver a intervenção de Mia Couto na conferência do Estoril2011 consultar:http://ma-schamba.com/mundo/mia-couto-sobre-a-producao-de-inimigos/

Bom, Nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior edição… preciso de um abrigo, preciso de um refúgio… é um texto que vou ler… o presidente tinha dito que eu devia falar espontaneamente… não sou capaz em sete minutos. Eu escrevi este texto que vou ler e chama-se Comemorar o Medo.

Comemorar o Medo

O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos actuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entresentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando meensinaram a recear os desconhecidos. Na realidade a maior parte daviolência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos,mas por parentes e conhecidos.Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam essevelho engano de que estamos mais seguros em ambiente quereconhecemos.Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditarque eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar paraalém da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meuterritório.O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender.Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizontevislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura algo mesugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más doque coisas más propriamente ditas.No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa domedo tinha um invejável casting internacional. Os chineses quecomiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pelaindependência e um ateu barbudo com um nome alemão.Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas:morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantesà nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis eCarl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixoudescendência.O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico parao continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história e, a mais grave dessa longa herança de intervenção externa, é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha nãodesarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo a oriente e a ocidente e, por que se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação, precisamos de intervenção com legitimidade divina.O que era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião. O que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas.A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem:Para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade.Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos,mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, ademografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível.Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo estas:

Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria doarmamento?

Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilião e meio de dólares em armamento militar?

Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exactamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi?

Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça? Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição maciça que está sendo usada todos os dias,em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra, essa arma chama-se fome!Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome.O custo para superar a fome mundial seria uma fracção muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, amaior causa de insegurança do nosso tempo.Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo uma em cada três mulheres, foi ou será, vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo facto simples de serem mulheres. A nossa indignação porém é bem menor que o medo!Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade.É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha, a Grande Muralha, que foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra, são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos mas não há hoje no mundo um muro que separe os que têm medo dos que não têm medo.Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul edo norte, do ocidente e do oriente.Citarei Eduardo Galiano acerca disto, que é o medo global, edizer: Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares;os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da alta de guerras e, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.Muito obrigado!

RESENHA

BOA MISTURA

Em seu livro LENDO LOLITA EM TEERÃ, com subtítulo Memórias de uma resistência literária, a escritora e professora de literatura iraniana Azar Nafisi narra a difícil vida das mulheres na república muçulmana e, falando de seu trabalho nas universidades, comenta com viva paixão as obras de Vladimir Nabokov, Francis Scott Fitzgerald, Henry James e Jane Austen, além de fazer referências a muitos outros escritores famosos. Uma boa mistura, portanto, de política e literatura. Refere-se à forma como cada um de seus alunos reage contra a opressão, alguns pagando com a morte o desafio ao regime. Em 1997, ela o marido e os dois filhos emigram para os Estados Unidos. O livro tem 417 páginas com tradução de Fernando Esteves e foi editado pela BestBolso, Rio, 2009.

CONTO

A CABEÇA DE UM HEROI

 

                                                                                                                                                                                                     César Garcia – maio 2011

         Manuel Amaro foi à guerra disposto a dar a vida pelo Brasil e pela democracia no mundo. Chorava, ao pensar na mulher e nos dois filhos. Sabia do risco de não voltar, morto nos campos de batalha. Que seria da família, perguntava-se. Encontrava consolo na crença de que não seriam abandonados pelo governo e teriam orgulho de descenderem de um herói. Imaginava-se vítima de uma grande bomba que despedaçasse seu corpo. Apenas a cabeça seria repatriada e entregue solenemente aos familiares. Antes, porém, daria cabo de pelo menos uma dúzia de inimigos. Não ficaria na retaguarda, faria questão de avançar com a infantaria, ganhando terreno a cada passo, arrastando-se como cobra no solo italiano. Em julho de 1944 estava em Nápoles e tomou parte na ocupação de Massarosa. Ferido, baixou hospital, onde teve uma perna amputada. Contra a vontade, foi repatriado e apesar de ter ganho uma medalha aí começaram suas desilusões com os poderosos do mundo. De volta ao Brasil, esperava ser recebido por alguma autoridade, talvez o próprio prefeito do Recife, Dr. Antônio de Novais Filho de quem era admirador. No cais do porto, estava, sim, a família e mais ninguém que ele conhecesse. Mais do que a medalha, ostentava a muleta que fez chorar a mulher e os filhos.

         Já em casa, teve a sensação de estar apenas em visita à família, que voltaria logo à Itália. Seu lugar não era mais ali, na segurança e no conforto. Desejava voltar à luta para terminar um serviço interrompido, matar inimigos e morrer. A expressão triste e silenciosa foi atribuída pela mulher à perda do membro inferior, “questão de tempo” – pensou Imaculada. Os vizinhos chegavam alegres, querendo homenagear o herói e tentavam consolá-lo pela amputação. Nada nem ninguém, no entanto, conseguia um sorriso, muito menos uma descrição das cenas de guerra. Para livrar-se das perguntas, Manuel dizia que mais tarde, quando se sentisse melhor, contaria o que vira.

         Imaculada e os dois filhos faziam tudo para animar o ambiente. Ligavam o rádio, arranjavam flores em jarros, e a cozinheira caprichava nas receitas, tudoem vão. Umdia, um médico entrevistado na emissora de rádio usou a expressão “neurose de guerra”. Imaculada pensou: “é isto que ele tem”. Falou primeiro com sua ginecologista, parenta em segundo grau. A médica disse que seria melhor conversar com um psiquiatra. Manuel foi, a contragosto, dizendo que não tinha nada de maluco.

         O médico começou perguntando como ele se sentia. Respondeu: bem.

         – Então, por que veio procurar-me?

         – Minha mulher insistiu até me vencer pelo cansaço. Diz que estou com neurose de guerra.

         – Já deu o diagnóstico?

         – Já.

         – E o senhor, que acha?

         – Estive pouco tempo no campo de batalha, o suficiente para mudar de idéia a respeito da vida. No navio, queria morrer defendendo o Brasil e a democracia. Achava que morreria numa explosão e a família receberia apenas minha cabeça e uma gorda pensão. Alguma rua teria meu nome, seria lembrado como herói. Na verdade, perdi uma perna e hoje ando com auxílio desta muleta. Tive esperança de mesmo assim ter algum reconhecimento, mas o tempo passou e tudo se tornou normal. Parece até que nasci com uma perna só. Há algo errado. Não fui à guerra para voltar. Quem sou eu na minha casa? Um ex-combatente, um deficiente. Penso naquela multidão de jovens brasileiros, americanos, italianos, alemães, todos se matando para não morrer. Ali no campo ninguém pensava em política, país, nada. Eu pensava em matar o inimigo antes que ele me acertasse. Minha vontade de morrer pela pátria desaparecia da cabeça e eu tratava de acertar o tiro em um homem que só existia para me eliminar. Não o conhecia, não sabia se ainda era solteiro, filho único, um bruto qualquer ou um poeta. Só me interessava a certeza de que estava de posse de um fuzil talvez melhor do que o meu e apontava sua mira para mim. Uma bala de fuzil atravessa qualquer capacete e perfura o crânio ou quebra uma costela e abre o coração em pedaços. É o melhor que acontece a um soldado. Pior é ter o fêmur fraturado e não poder levantar-se. Sangrar até morrer ou ser levado em maca contorcendo-se de dores insuportáveis. No meu caso, o terreno era coberto de lama e todos nós estávamos irreconhecíveis, pretos, porcamente sujos. Fui levado pelos companheiros com a metade da perna pendurada logo acima do joelho. Não sei quantos matei, sei que tive a intenção de matar todos que estavam à minha frente, ao meu alcance. Na viagem de ida, tinha consciência de que estava em guerra contra o nazismo, o fascismo, mas não os matei por serem nazistas ou fascistas – talvez nem o fossem – e sim porque estavam ali tentando matar-me. E por que queriam fazê-lo, se não tinham a menor idéia de quem era eu? Porque sabiam que eu apontava uma arma contra eles, mais nada. Compreendi então que o soldado morto que matou apenas para não morrer é transformado em herói da pátria e o que volta mutilado é um deficiente que não serve mais para a guerra.

         – Desculpe interrompê-lo, mas o senhor precisa valorizar o fato de estar vivo, ter uma família, poder acompanhar o crescimento das crianças. Com a ajuda de um medicamento, seu ânimo poderá voltar e outros interesses surgirão. Esqueça a guerra e volte a uma vida produtiva, há muito o que fazer.

         – É verdade, doutor. Há muito o que fazer, para quem não foi à guerra e voltou mutilado. O senhor está me propondo tomar um comprimido e esquecer o inesquecível. Como já lhe disse, vim por insistência de minha mulher, não para perguntar-lhe o que fazer. Tentei resumir o que ocorreu comigo, para lhe dar uma pálida idéia de uma cena de guerra, mas é indescritível. Quanto a mim, não vejo saída, a não ser, se fosse possível, voltar à Itália. Nada mais faz sentido. Com as idéias que tenho hoje, não aceitaria nenhuma convocação, mesmo diante da ameaça de condenação como desertor. Só existe uma guerra justa: a defesa contra uma invasão, da mesma forma que só é lícito matar em legítima defesa.

         – Mas se o senhor é contra a guerra, por que esta fantasia de voltar à Itália?

         – Porque o Manuel Amaro que se dedicava aqui ao trabalho e à família não mais existe – a guerra transformou-me em soldado matador de outros soldados também matadores. Se tampouco sirvo para isto, nada me resta. Morto, serei melhor exemplo para meus filhos do que vivo. Guardarão a lembrança de que fui à guerra e voltei sem uma perna. Não vão se lembrar de um pai que não queria mais viver, ou melhor, que não devia mais viver.

         Manuel despediu-se do médico e nem sequer comprou o remédio receitado.

PARA GLAUCE

GLAUCE ERA ASSIM

Ela mesma…
Vezes sorrindo
Outras brincando
Algumas brigando
Muitas chorando,
Se fechando…
Sofrendo…
Mas, sempre amando!

Sim, o quanto ela amava…
E amando vivia, odiava, perdoava,
Escrevia, pintava e bordava
Bordava a vida, a morte
A alma sem norte à cata da sorte
Na escrita com arte e fantasia
Dizia muito do que lhe doía e
O real que abstraía nos pincéis refletia…

GLAUCE, minha cara GLAUCE,
Não sei por onde andas agora
Mas sei que nesta hora
Que o teu corpo mais não anda
Os que por aqui andam e
Te souberam conhecer e amar
Choram a tua brusca partida
Vivem doída saudade nesse não mais estar…

OBS: Poema feito em 27/09/2011 por Edwiges C. Caraciolo Rocha, em homenagem a sua amiga Glauce, falecida em 26/09/2011