Mais fragmentos do baú

Das viagens marianas tirei do baú Austro Costa, apresentado por Salomé Barros, viageira que gosta muito dos versos dos poetas da terrinha, assim como todos nós.

Austro Costa, além de poeta, jornalista, compositor nascido Austriclínio Ferreira Quirino, que ele assim que se descobriu homem das letras tratou de modificar, adotando aquele pseudônimo. Ao longo do tempo usou outros, entre eles, João da Rua Nova, Alcedo Tryste, Chrispim Fialho, Fra-Diávolo, João Queremista, João-do-Moka sem abandonar, jamais, o primeiro. Nasceu em Limoeiro, em 1899, órfão de pai, abandonado pela mãe, criado por um tio comerciante que o colocou para trabalhar no balcão de sua loja de tecidos. Mas parece que não era muito dado aos negócios, preferindo trabalhar na biblioteca como zelador, mais próximo dos seus amores. A sua carreira poética iniciou em LImoeiro, ali publicou seu primeiro poema, no jornal “O Empata”.

Vindo para a cidade do Recife, trabalhou numa empresa distribuidora de livros em fascículos (1918) e atuou na imprensa ocupando funções de repórter, cronista, copydesk em vários jornais A Luta, Jornal do Recife, Jornal do Comercio, A Notícia, Diário da Tarde e no Diário de Pernambuco, onde escreveu regularmente de 1922 a 1929. No Diário da Tarde, manteve a seção de sonetos humorísticos De Monóculo, de 1933 a 1935, da qual nasceu o livro póstumo organizado pelo escritor Luiz Delgado em 1967. A sua faceta humorística e satírica, que explorava bem o coloquial e a circunstância, são constatadas na longa série de sonetos De monóculo. Ele fazia um tipo dândi sempre presente nos círculos sociais, nas revistas e jornais com muito sucesso pela seu humor e sociabilidade.

O primeiro livro de poesias Mulheres e rosas foi publicado em 1922, recebendo boa crítica. Integrou em 1924, o Movimento Modernista em Pernambuco, aderindo ao verso livre, versando sobre o cotidiano. Seu segundo e último  livro De Vida e Sonho recebeu o prêmio Academia Pernambucana de Letras, Othon Bezerra de Melo. O poeta também compôs vários hinos. Ele dizia que tinha três “cachaças”: imprensa, política e poesia.

Segundo Gilberto Freyre, ele foi “um dos melhores poetas românticos de Pernambuco. Entre seus poemas mais famosos estão Capibaribe, meu rio; Salomé Toda de Verde;  O Recife da Madrugada é um Poema Futurista; Tartufo-mor; e O Último Porto, considerado pelo crítico Fausto Cunha como um dos vinte maiores sonetos da literatura brasileira.Em 1994, a FUNDARPE publicou uma antologia poética de Austro Costa, organizada pelo escritor Paulo Gustavo e com prefácio de Mauro Mota. Poemas que só foram publicados em revistas e jornais e que permaneciam inéditos em livro. Em 1949, ele havia tomado posse na cadeira nº. 5 da Academia Pernambucana de Letras.

Casou-se aos quarenta e oito anos de idade com Helena Lins de Oliveira.

Faleceu em Recife, outubro de 1953, em decorrência do acidente com o ônibus no qual ele viajava. Dizem que ele havia cedido o seu lugar para uma senhora e viajava, na ocasião, em pé, lendo um livro.

Austro Costa privilegiou o seu tempo, as paisagens, os lugares, costumes, eventos através de crônicas e versos.

O Último Porto
A Nehemias Gueiros

Porto do Desencanto. Cais do tédio.
Calmaria. Abandono. Solidão.
(A quem dizer meu último epicédio
A quem fazer minha última canção)

Depois de tanto malogrado assédio
a naus esquivas que bem longe vão,
– eate ancorar soturno, e sem remédio,
do velho brigue que é meu coração…

meu navio-pirata doutros dias,
velas colhidas – que de nostalgias
nessa langue modorra junto aos cais!

Ontem Mar alto… expedições bizarras…
Hoje (é inútil que tremas nas amarras)
a solidão… a bruma… o nunca-mais!…

Salomé toda de verde…

O teu vestido verde, esse vestido
com que te vi domingo, na novena,
não condiz bem com tua tez morena..
Não o uses mais! Atende a este pedido

Tu, que és somente Malvadez e Olvido
e tens no peito um coração de hiena,
olha que esse vestido te condena
e é, no teu corpo, um símbolo traído!

Guarda o vestido verde… ou não te zangue
o que te imploro aqui, flor das ingratas:
muda-lhe a cor… embebe-o no meu sangue!

Sou teu São João, ó Salomé sem dança!
mas, se – morena e má – rindo me matas,
não me mates vestida de esperança!…

Poema do Frevo

A Cidade, cedo, vira camarada,
vem toda para rua, […]
toda alvoroçada,
toda colorida,
sem pensar na crise,
sem pensar na vida,
sem pensar em nada…
vem toda para a rua vibrante, enfustecida
saracoteante”.
vibrar,
delirar…
E a farsa burguesa dos vãos preconceitos
Visíveis e estreitos
– Olé !-
de logo é esquecida, anulada, vaiada em tumulto […]
isto é,
o estalido orgulho, a vã fatuidade,
toda a austeridade
da burguesia
de pronto se desfazem em louca alegria
– EVOHE! EVOHE! –
e haja liberdade,
e haja intimidade,
a larga, a vontade…
Que promiscuidade!
Que democracia!
Carnavalesca Cidade!
Paraíso da Folia!…
FOLIA!

Depois de Austro Costa, continuamos a nossa viagem literária  dessa feita com o cordel de Salomé Barros Maturidade Rima com Sexualidade:

MATURIDADE RIMA COM SEXUALIDADE

Salomé Barros

A vida nesse planeta
Tem constante evolução
Já nascemos programados
Pra cumprir uma missão
E tudo correndo bem
Ganhamos prorrogação

Acrescentar vida aos anos
Riqueza à maturidade
Incluindo com certeza
A sexualidade
Cuidando pra não perder
O prazo de validade

Cada um é diferente
Ninguém vai poder negar
Uns abertos para o mundo
Outros mais de observar
Mas todos sem exceção
Gostam de se aconchegar

Não é só na juventude
Que o desejo aparece
Só muda a qualidade
O afeto fortalece
E viver sem emoções
Afinal ninguém merece

Experiência de vida
Vem junto com a idade
Muitos anos de convívio
Provocam cumplicidade
Companheirismo e afeto
Num clima de liberdade

Quem disse que os idosos
Se aposentam da vida
Só são avôs e avós
E tem vida aborrecida
Precisa nos seus neurônios
Dar uma boa mexida

Por incrível que pareça
Ainda há preconceito
Resquício da educação
Carregada de conceito
De que sexo é pecado
Falar era desrespeito

Talvez só com a idade
Auge do conhecimento
Onde a personalidade
Atinge o melhor momento
As formas de amor e sexo
Alcancem seu crescimento

A mídia traz o enfoque
Na imagem corporal
Distorcer essa visão
Faz um diferencial
Valorizando equilíbrio
E saúde emocional

Afetividade inclui
Sentimentos e emoções
Auto-estima também conta
Pra apimentar as paixões
É um pacote completo
Que alimenta as pulsões

As mudanças acontecem
Nem toda fase é igual
Há que se redescobrir
O que pra nós é legal
O desejo é que não muda
É impulso natural

Descobertas científicas
Vem pra desmistificar
E trazem as soluções
Para o sexo ajudar
Farmácias estão aí
É só ir lá e comprar

Importante envelhecer
Com qualidade de vida
E se nada acontecer
Dê uma boa sacudida
Se enfeite e saia pra o mundo
Com a alma abastecida

Ficamos encantados com o texto de Salomé, nossa cordelista de primeira linha. É sempre com prazer que ouvimos um cordel, essa riqueza cultural da nossa Região. Há pouco li no livro Lá Sou Amigo do Rei, de Carlos Marques, que um decano da Sorbonne um dos maiores especialistas em cordel de todos os tempos, Raymond Cantel, segundo o autor, havia deixado em testamento o seu acervo de milhares de livretos de cordel adquiridos em vários estados do Nordeste para a Universidade de Poitiers, em Paris, onde hoje se encontra digitalizado e conservado em salas cuidadosamente refrigeradas, para serem estudados por pesquisadores do mundo inteiro. Informação que muito nos alegra não só pela valorização dessa produção genuinamente popular em suas origens, como pela sua preservação senão aqui pelo menos no exterior. .

Em seguida,  Anita trouxe a sua releitura do conto – Hoje de Madrugada – de Raduan Nassar, onde ela conta a história a partir do personagem feminino, entregando-lhe a voz para falar dos seus sentimentos naquele encontro que ela mesma provocou durante a madrugada. O texto foi muito elogiado pelos viageiros que o acharam muito bem escrito, muito bem tecido, trazendo aspectos novos para a história .Apesar de muito bom, a ponto de alguns viageiros terem dificuldade de apresentar alguma sugestão de mudança, por sugestão de Júnior, foi proposto que ela desse mais espaço à histeria que uma rejeição daquela poderia provocar em uma mulher, afastando-se mais do autor Raduan Nassar, recriando as cenas ao estilo da escritora Anita. Ela concordou, ficando de apresentar posteriormente a sua reescrita.

O encontro terminou com a continuação da leitura do capítulos III de O Riso de Bergson.

                                         Lourdes Rodrigues

Viagem Segunda pelo Riso

 

*Anita Dubeux

Esta postagem refere-se à nossa segunda viagem , a que foi realizada no dia 08 de fevereiro de 2017, após zarparmos do cais de nossa maruja Adelaide Câmara, onde fomos recebidos com muitas guirlandas e delicioso banquete.

Ancoramos no Traço Freudiano para mais um encontro de confraternização literária que iniciou com a leitura do cordel de autoria da viageira Salomé, escrito num momento muito especial de sua vida, em 2009,  e que ela dedicou ao marido. Trata-se de um belo e pungente cordel, porque fala do resgate do sorriso  que se perdeu em consequência de uma grande perda.

O RISO PEDE PASSAGEM

**Salomé Barros

Sessenta e três bem vividos
Trinta e sete para cem
Na caminhada da vida
Não sobra para ninguém
E mantendo o alto astral
Vai virar Matusalém

Com esse humor escrachado
Palhaçadas a granel
São tantas as trapalhadas
Que não cabem num cordel
Já conquistou doutorado
E até virou coronel

A manutenção do riso
Faz bem, é fundamental
Existir o ano todo
E não só no carnaval
No seu caso, sobretudo
É energia vital

Não permita que a tristeza
Invada o seu coração
Ela entra atravessada
Errada e na contra mão
Se você não der guarida
Some feito um furacão

Você escolhe na vida
De que lado quer ficar
Altos e baixos existem
Pra gente se equilibrar
Na corda bamba dançando
O riso a contagiar

Em seguida eu li dois poemas de Esman Dias, bem como uma breve biografia desse grande poeta que nos deixou em 2015. Foram eles:

 

FUSÃO

Santo Anjo do Senhor
Tyger! Tyger! burning bright
Meu zeloso guardador
In the forests of the night
Se a Ti me confiou
What immortal hand or eye
A piedade divina
A divina piedade
A mão, o olho imortal
Que deu forma e simetria
Terrível, meu Anjo, Tigre
A Ti, labareda clara
Dá-me teu fogo claro e me incendeia!
Dá-me tua espada à noite e me defende!
Meu santo Anjo do Senhor, meu Tigre!
E minha espada, espada, espada, espada!

 

ALUVIÃO 

Com as mesmas palavras
Girando ao redor do sol
Que as limpa do que não é faca.
João Cabral de Melo Neto

 

Parto in time aspre, et di dolcezza ignudo.
Petrarca

 

Falo do que não falo quando falo:
falo do meu silêncio,
bem mais claro
que as vozes incessantes dos que falam.
Falo do que não falo: do que sou:
bicho da terra — surdo — e mau cantor.
Falo do que não falo: tão pequeno
a destilar a noite o seu veneno.
Falo, não para o mundo dos sentidos:
falo somente para o inteligível.
Falo do que percebo: coisas claras
aéreas superfícies, copos d’água.
Falo na muda fala da batuta,
clara e precisa, do maestro à música.
Falo da pedra dura, da aspereza
de pedra sobre a pedra desta mesa.
Falo de mim em tudo de que falo.
Falo dos meus espelhos, quando calo,
Falo como quem vai a julgamento
sem esperar o indulto do seu tempo.
Falo com a voz alheia que me toca.
Falo e regresso — ileso — à minha toca.

 

Breve biografia do poeta:

ESMAN DIAS nasceu no Cariri – sertão da Paraíba. Ainda criança veio com os pais para Pernambuco. Morou em Olinda até a adolescência e desde então mora no Recife. Seus primeiros poemas foram publicados no Diário de Pernambuco e no Jornal do Commercio, em 1963. Em 1964, publicou “Os Retratos Marinhos”; em 1965, com Everardo Norões e Orley Mesquita, participa da coletânea “Clave”, ilustrada pelos artistas plásticos Anchises Azevedo, João Câmara, José Cláudio e Reynaldo Fonseca. Também em 1965, em parceria com Orley Mesquita, assina a coluna “Poesia e Tempo”, no Jornal do Commercio. Com Alberto da Cunha Melo colabora na realização do documentário “Simetria Terrível”, dirigido por Fernando Monteiro. Vários de seus poemas foram traduzidos para o francês e publicados na coletânea Recife/Nantes. Participa da antologia “46 Poetas Sempre”, organizada por Almir de Castro Barros. É professor de Literatura Anglo-americana no Departamento de Letras da UFPE e foi professor visitante da Universidade de Birmingham, no Alabama e na Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign.

Muito riso provocaram as tirinhas humorísticas selecionadas para o encontro: As Rebordosas, Garfild, Ferrato Pessoa.

O conto AMOR, do autor persa SAADI, poeta e contista “divino” que viveu no período de 1184 – 1291 — em tradução primorosa de Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda — ensejou intensa polêmica e interpretações as mais diversas. Promete ser objeto de muitos escritos dos viageiros.

Trata-se da história de amor de uma ratinha por um gato, que vivia em uma mesquita abandonada, e  que quase havia sido dizimada todos os ratos que por ali viviam. Aparentemente a ratinha é porta-voz dos ratos sobreviventes para tentar convencer o gato a se mudar do local. Mantendo certa distância, para não tornar-se o seu alvo, a ratinha tenta conversar  e acaba se apaixonando seriamente por ele. Vamos aguardar as resenhas que advirão.

Continuando o encontro, foi lido o segundo capítulo do conto de Bergson, O RISO, abordando o tema do humor do ponto de vista psicanalítico.

O navio permanece ancorado, à espera do próximo encontro.

* Anita Dubeux é economista, poeta, ensaísta, contista. Brevemente terá um livro de poemas, Círculo de Seda, publicado pela Chiado Editora, de Lisboa.

** Salomé é psicóloga, cordelista, cronista.

 

 

 

 

 

 

 

O Patinho Feio em Cordel

DIFERENTE

*Salomé Barros

Eu já nasci estressado
Assustado e carente
Não queria abrir os olhos
Pra não ver o ambiente
Aos poucos fui descobrindo
Que eu era diferente

Minha mãe me acolheu
Mas me disse paciente
Demorou tanto a nascer
Que o ovo ficou quente
Os outros patos nasceram
Comigo foi diferente

Meu pai nem olhou pra mim
Deixando-me reticente
Tentei aproximação
Me tornando obediente
Mesmo assim me rejeitou
Só porque sou diferente

Meus irmãos eram bonitos
Tinham fama condizente
Formavam com os amigos
Um bando muito contente
E eu vivia sozinho
Só porque sou diferente

Um pensamento me vinha
De forma intermitente
Me deixava inquieto
Anuviava a mente
Seria eu o culpado
Por ser feio e diferente?

No íntimo eu buscava
A resposta coerente
Tudo era nebuloso
Deve estar no inconsciente
Fica ainda mais difícil
Só porque sou diferente

Aí divaguei de mais
Parece que estou demente
No meu reino não existe
Nem ego, nem consciente
E muito menos divã
Pra tratar o diferente

Um dia criei coragem
Fugi dali simplesmente
Perguntava a mim mesmo
E à estrela cadente
Qual era a explicação
Por eu ser tão diferente

Depois de caminhar muito
De manhã ao sol nascente
Vi um bando lá num lago
Brincando alegremente
Me aproximei com receio
Pensando: sou diferente

Qual não foi minha surpresa
E não mais que de repente
Percebi que me olhavam
Com um jeito atraente
Até que enfim me encontrei
Aqui não sou diferente

*Psicóloga, cronista, cordelista.