O Vermelho e o Negro, de Stendhal

vermelho e o negro, o_mJulien Sorel: Sua Consciência Moral

*Cacilda Portela

 

Escrevo sobre Julien Sorel para entender porque muitas de suas ações, principalmente as referentes ao crime e à punição, são realizadas por dever. O dever entendido como razão, afetividade, sociedade e intercâmbio cultural. Entender também seu desejo de fazer uma grande fortuna e ser um homem brilhante. Dever e ambição permeiam toda sua vida e o levou a traçar um plano de ação só interrompido depois do crime e autopunição.
O texto não tem a intenção da verdade, do novo, do não dito; mas de ressaltar o caráter de acontecimento e suspender a soberania do significante. (M. Foucault)

Julien aceita a sua punição como um dever moral. Julga e age segundo princípio interior ideal de respeito à dignidade humana. Tem a liberdade de fazer valer a sua vontade e fixar os seus próprios objetivos ou fins. No mundo do dever ser ou dos fins valem os julgamentos morais. Sua ação é julgada segundo os critérios do bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto.

Sua consciência moral foi sendo construída e reconstruída na infância em sua interação com o grupo. Existiu entre Julien, o cirurgião-mor e o abade Chélan uma relação de afeto e de cooperação, na qual se tinha presente o livre intercâmbio de pontos de vista; havia uma relação de igualdade de poder de ação onde prosperou o respeito mútuo e o amor. O respeito às regras ou o modo como a consciência se obriga a respeitá-las. O pai avarento e os irmãos o desprezavam porque ele tinha um porte fraco para o trabalho na marcenaria, e porque preferia as histórias sobre Napoleão contadas pelo cirurgião-mor, como também a Bíblia, cujo conhecimento lhe permitiria entrada para o seminário.

Na casa do Senhor de Rênal e depois no seminário, Julien via hipocrisia e desprezo. O lucro, o luxo, as condecorações, o orgulho e as carreiras de barão, marquês e duque, ou de cura, monsenhor e bispo. Julien desejava construir uma grande fortuna e ser uma pessoa brilhante, mas não a qualquer preço.

Sua paixão eram os livros. Até ser preceptor dos filhos do Senhor de Rênal, Julien só tinha três livros: A Bíblia, em latim, que sabia de cor e podia recitar de trás para frente (era importante para a sua ascensão social), o Memorial de Santa Helena e As Confissões de Rousseau, e precisava escondê-los de todos com quem convivia. Como preceptor, utilizava como artifício para compra de livros que interessavam a ele, a necessidade de aprimorar a educação das crianças que os pais percebiam apresentando grandes progressos depois de sua chegada. No seminário, recebe do bispo de Besançon (que tinha setenta e cinco anos e preocupava-se muito pouco com o que aconteceria em dez anos…) seis volumes de Tácito e as palavras elogiosas: não esperava encontrar um doutor em um aluno do meu seminário. Embora o presente não seja muito canônico, quero dar-lhe um Tácito. No palacete do marquês de La Mole fica deslumbrado com a biblioteca e pôde se imaginar lendo todos os livros.

Em Paris, e como secretário do marquês, ia vencendo etapas para a construção de uma grande fortuna e tornar-se uma pessoa brilhante. No primeiro jantar com a família do marquês e convidados, Julien se saiu muito bem. Submetido a uma espécie de exame, não se deixou intimidar e respondeu apresentando ideias e um latim perfeito. Desde o seminário ele fazia pouco caso dos homens e dificilmente se deixava intimidar por eles. Assim que percebeu que Julien tinha ideias e um caráter firme, o marquês o encarregava de novos negócios e foi possível empreender novas especulações. O trabalho de Julien era realizado com o ardor de uma grande ambição. O marquês se afeiçoa ao seu secretário.

Julien se acostumara aos salões de Paris e outros da Europa. Suas ideias e sentimentos expressavam uma conduta e princípios morais que não exprimiam meramente a intuição moral de uma cultura ou época específica.

Na prisão, declara ao juiz: mereço a morte e a espero. Não via nada mais claro do que o seu caso: eu quis matar, devo ser morto. Considerava todas as coisas sobre um novo prisma. Não tinha mais a ambição de uma fortuna colossal. Quando interrogado pelo seu confessor para aceitar o indulto, Julien se revolta e exclama fui ambiciosoagi segundo as conveniências do meu tempo. Não pensava em seus êxitos em Paris. E não triunfar era sua única vergonha.

Julien é punido pela transgressão da lei ou direito positivo. Por não integrar-se no contexto societário, subordinando-se ao interesse geral. Não há margem para a liberdade do sujeito, não há conflitos morais, não há princípios que orientam a ação individual. Para a sociedade a objetividade do social (das leis) prevalece sobre a subjetividade do indivíduo. A lei que se impõe com autoridade implacável ao indivíduo, que sofre punições, não para repor o dano causado pela transgressão da norma, mas para reafirmar diante da sociedade a validade da norma que foi transgredida. Julien não considera essa lei uma justiça superior.

Pode ser importante mencionar a existência de um descompasso entre as estruturas autoritárias repressivas da sociedade e as estruturas de consciência moral atingidas.
Quando soube pelo carcereiro que a Senhora de Rênal não morreu, cessou o estado de irritação física e de desatino desde que saíra de Paris para Verrières onde cometeu o crime. E foi possível pensar:

Como seria feliz em dizer-lhe todo o horror que sinto do meu crime! Apenas estas palavras: considero-me justamente condenado; e que bastariam apenas duas ou três mil libras de renda para viver feliz em Vergy com ela…

Julie é condenado à morte por burgueses provincianos indignados que, aspirando às benesses da realeza burguesa, visavam desencorajar os jovens nascidos de uma classe inferior e oprimidos pela pobreza que tiveram, como ele, a felicidade de dispor de uma boa educação e a audácia de introduzir-se na sociedade dos ricos e poderosos.Comprou o revolver, pediu que a arma fosse carregada e deflagrou dois tiros contra a Senhora de Rênal que o perdoou pelo atentado. Revê a Senhora de Rênal antes de sua morte e por um bom tempo choraram juntos. Ela esclarece o motivo da carta que fez Julien cometer o crime.

Seu confessor comparece à prisão e pede que Julien solicite o indulto. A resposta é que nada mais lhe restará caso se despreze a si mesmo. Fui ambicioso e não quero absolutamente censurar-me por isso; agi, então, segundo as conveniências do tempo. Agora vivo só do dia de hoje.

Na prisão, ele filosofa: não existe absolutamente direito natural; esse termo não passa de uma tolice obsoleta… Julien não nega o direito natural. Acredita no direito natural como a lei que elabora a moral através da razão. Refere-se ao Código de Napoleão que inverte as relações tradicionais entre direito natural e a lei (direito positivo), não negando o primeiro, mas desvalorizando sua importância e significado prático. É a concepção rigidamente estatal do direito, que tem na lei a única e verdadeira.

Estou isolado aqui nesta prisão; mas não vivi isolado na terra; tinha a poderosa ideia do dever. O dever que me impus com ou sem razão… foi como o tronco de uma árvore sólida, na qual eu me apoiava durante a tempestade; eu vacilava, era agitado, mas não era levado…

Nem sempre agiu por dever porque nem sempre agiu com a razão, mas também por interesse, inclinação ou paixão. Julien tem uma máxima:   quis matar, devo morrer, e age de acordo com a lei da sua consciência. Julien tinha ainda muito a percorrer e saberia encontrar o caminho.

Era muito jovem quando foi decapitado. A idade lhe daria o exato valor da riqueza, porque ele tinha um caráter firme e um coração bom.

Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim. Kant (primeiro filósofo a desenvolver uma teoria sobre moral).

* Cacilda Portela é advogada, pesquisadora social, ensaísta.

O Vermelho e o Negro – A França de Stendhal

StehdhalA França de Stendhal

* Luzia Ferrão e **Lourdes Rodrigues

 

É impossível dar conta da história. Pessoas interagem no tempo e no espaço, construindo e desconstruindo fatos, acontecimentos e narrativas. Efeitos do processo coletivo travado entre os homens e a realidade, singularizados apenas pelos nomes. Mas Stendhal consegue em O Vermelho e o Negro, obra de ficção, dar conta dos últimos cinquenta anos da história da França quando escreveu esse livro em 1830.
No primeiro capítulo já encontramos os primórdios da revolução industrial. Ao situar o cenário da sua narrativa em uma das mais belas cidadezinhas do Franco-Condado, Verriéres, criada ficcionalmente, o narrador ao falar da sua geografia, diz:

Uma torrente, que se precipita da montanha, atravessa Verrières antes de se lançar no Doubs e põe em movimento um grande número de serrarias, uma indústria muito simples que proporciona certo bem-estar à maior parte dos habitantes, mais camponeses do que burgueses. Contudo, não foram as serrarias que fizeram a cidadezinha enriquecer. É à fábrica de tecidos estampados, conhecidos como Mulhouse, que se deve a tranquila situação geral de Verriéres que, após a queda de Napoleão, fez reconstruir as fachadas de quase todas suas casas.
Basta entrar em Verriéres para que se fique atordoado pelo barulho de uma máquina ruidosa e de aparência horrível. Vinte martelos pesados, recaindo com um ruído que faz tremer o chão, são erguidos por uma roda movida pela água da torrente. Cada um desses martelos produz, por dia, não sei quantos milhares de pregos.

No contexto da Revolução Industrial, (1760 a 1820/1840), acontecimento considerado divisor de água na história humana, surge um novo modo de pensar e de agir. O fazer humano, seu trabalho, a condição que o distingue dos outros seres e principal instrumento de transformação, desloca-se da esfera do indivíduo e passa a ser produto de máquinas que, embora suas origens e criações sejam devidas a algumas poucas cabeças, dependem de muitos homens para serem operadas. O modo de produção não se baseia mais no trabalho servil dos tempos feudais. O desenvolvimento das forças produtivas promoveu o rompimento das relações sociais daquela época e novas relações surgiram no cenário: capital e trabalho agora se encontram no mercado.

O Vermelho e o Negro fotografa a sociedade francesa durante essa transição, referindo-se, constantemente, aos burgueses, aos liberais, à luta de classes. Há passagens no livro em que Julien Sorel negocia a sua força de trabalho, no caso, trabalho intelectual, devido à sua inaptidão para trabalhar na cadeia produtiva. O autor de forma irônica revela como a sociedade está imbuída da lógica capitalista, do lucro, do maior ganho. O personagem que ele criou encara seus patrões como opressores, para ele, ricos e pobres estão em permanente luta de classe. Julien Sorel carrega forte revolta contra os ricos, os poderosos: Gente rica é assim mesmo! (…) O ódio extremo que animava Julien contra os ricos ia explodir. (…) Quando está sendo julgado pelo crime de ter atirado, com premeditação, na Madame Rénal faz um discurso de caráter essencialmente ideológico:

Ainda, porém, que eu fosse menos culpado, vejo homens que, sem se deterem no que minha juventude possa merecer de piedade, irão querer punir em mim, e desencorajar para sempre, esses moços que, nascidos em uma classe inferior e de certa forma oprimidos pela pobreza, tiveram a felicidade de dispor de uma boa educação, e a audácia de introduzir-se naquilo que o orgulho das pessoas ricas chama de sociedade. Este é o meu crime, senhores, e será punido com severidade ainda mais que, na verdade, não sou julgado por meus semelhantes. Não vejo no banco dos jurados nenhum camponês enriquecido, mas unicamente burgueses indignados.

O livro retrata ainda a aristocracia marcada pelos efeitos da efervescência do clima de terror revolucionário dos anos de 1789 a 1799, data da Revolução Francesa, cujo principal legado para a humanidade foi sintetizar no ideário guia dos revolucionários valores norteadores das sociedades democráticas: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. –
O autor, apoiado no tripé Estado, Religião e Cultura conecta fatos e detalhes do passado recente que estão nas origens da nova sociedade, fatos transformadores das relações econômicas, políticas e sociais. Entretanto, o romance ao incorporar o momento histórico do seu autor não se atém, totalmente, à realidade dos fatos. O processo de criação do romancista está muito mais comprometido com a sua visão de mundo, seus anseios, suas paixões do que mesmo com a realidade.

Através dos discursos, dos símbolos e de tantos outros objetos próprios da cultura o romancista vai tornar inteligível e ao mesmo tempo agradável e bela a leitura deste romance histórico e psicológico. A começar pelo título controverso: O Vermelho e o Negro. Alguns dizem que representa o vermelho da França revolucionária, do sangue derramado; e o preto, do período de terror, chamado de trevas. Outros creditam às duas cores à divisão do personagem entre o uniforme vermelho do exército francês e a batina preta da Igreja. Stendhal não esclareceu e as especulações correm livres.

A passagem do ancien regime para uma nova sociedade se fez através de acontecimentos aterradores e sanguinários. A história do herói deste romance é, neste sentido, uma história revolucionária, captada através das rememorações das guerras napoleônicas, e do endeusamento de Napoleão, muito amado e odiado, pelas críticas aos valores conservadores da monarquia e da igreja e pelo fortalecimento da burguesia, em outras palavras.

A consciência crítica particular de Stendhal, revelada através do personagem Julien Sorel representa, num certo sentido, a consciência histórica da época. Escrito durante o período da Restauração, antes da Revolução de 1830, o romance traz a fermentação política que vivia a França, em especial, Paris, cenário de todos os movimentos sociais. O país era rico, mais o seu povo, principalmente o camponês era pobre. As crises econômicas, originadas por diversos fatores, geravam novos impostos para manter os padrões da monarquia, em detrimento das outras classes sociais.

O Iluminismo foi o movimento que buscou, através da razão, retirar o poder do divino, (representado na França pela Igreja Católica) e da monarquia, deslocando-o para as ideias, tornando o saber, a base do crescimento humano e cientifico, inspirou a Revolução Francesa e as guerras que se seguiram.

Os iluministas brilhavam nos salões de Paris, intelectuais burgueses que representavam o afastamento das trevas, principalmente da escuridão produzida pelas crenças religiosas, sobretudo as da igreja católica, secularmente contrária ao progresso de uma forma geral. O livre pensar era proibido pela igreja, isso ficou bem claro no livro Em nome da Rosa, de Umberto Eco. Ter coragem para fazer uso da tua própria razão! Este é o lema do iluminismo, afirmava Kant um dos filósofos deste movimento.

O personagem Julien Sorel sabe que a história não nasce espontaneamente, existem causas, relações que transformam o saber e o pensar dos homens, representadas na fala, na escrita, nas artes. No romance, o filosofo Voltaire é citado, respaldando a existência de novos pensamentos filosóficos, descobertas científicas, de ciências em erupção como a sociologia e a psicologia, compondo um novo cenário mundial. O estudo da alma humana presente no romance de Stendhal são representações dessas noções cientificas que começavam a serem desenhadas utilizando este novo olhar. Os sentimentos humanos e a racionalidade do personagem são constantemente evidenciados; o amor e a missão de vencer sua condição de filho de serralheiro são sustentados por um conhecimento e reconhecidamente erudito. Julien é aparentemente servil devido a sua condição social e econômica, mas é consciente do seu saber e faz questão de exibi-lo nos salões, fazendo críticas à realidade que o rodeia, encantando Mathilde com a sua ousadia. O acesso permitido pelo saber constitui a chave para penetrar nas engrenagens do poder e neste sentido ele o utiliza muito bem. Parece que nada escapa ao personagem; que usa linguagem crítica, ácida sobre a Igreja, os nobres, a burguesia. Ora num discurso direto, ora através de um narrador que usa o diálogo indireto livre os nobres, os padres, especialmente, os jesuítas, os burgueses, os políticos, os liberais são apresentados nos seus baixos patamares morais: mesquinhos, cruéis, mentirosos, falsos, gananciosos, avarentos, repulsivos, ciumentos, invejosos. Afora Chelán, o abade Pirard e o Marquês de La Mole ninguém escapa às suas críticas. O novo modo de produção trouxe novas formas de trabalho, novas relações sociais, e principalmente, outra forma de ver o mundo.

Em termos literários pode-se dizer também que o autor revolucionou, ao trazer para personagem principal o anti-herói, o arrivista Julien Sorel. As inovações não param por aí, ele inova também quando traz duas heroínas: Madame de Rènal e Mathilde. Dividido em duas partes, o romance na primeira traz o conflito da relação de Julien Sorel com a Senhora Rènal, mulher casada, mais velha, mãe das duas crianças das quais ele é o preceptor. Na segunda parte, o conflito gerado pelo envolvimento com a filha do seu nobre patrão, muito jovem, bonita, impulsiva, rodeada de pretendentes aristocratas.

O Vermelho e o Negro traz a modernidade no fazer literário ao privilegiar a cena em detrimento do sumário narrativo tão comum naquela época. A história ora é contada por um narrador onisciente intruso que emite opiniões sobre as pessoas, o cenário, a política, ora é entregue aos personagens invadindo os seus pensamentos, desejos e sentimentos, numa demonstração de onisciência múltipla e seletiva. O foco narrativo desliza de Julien Sorel para Madame Rènal, ou ainda para o marido dela, o Senhor de Rènal que, através de monólogos diretos ou de discursos indiretos livres assumem a narrativa, num predomínio absoluto da cena. A mudança de perspectiva ocorre, às vezes, dentro do mesmo parágrafo, para dois ou mais personagens. A impressão que se tem é de uma câmara deslocando-se de um personagem para outro. Personagens e narrador transitam tão juntos, quase sempre, que se confundem, não sendo possível identificar com clareza, a fala de um e de outro. O narrador invade a mente do personagem para falar dos seus sentimentos mais profundos, nada lhe escapa nem a mais torpe vilania deixa de ser revelada. Trata-se de um narrador que se imiscui de tal forma na narrativa que às vezes se transforma em personagem, colocando-se totalmente dentro da cena, falando de si próprio. Há várias passagens assim, uma delas, na qual ele está falando do paredão que o prefeito de Verriéres construiu, onde se descortina uma bela visão do Doubs ele diz:

Quantas vezes, rememorando os bailes de Paris abandonados na véspera, e com o peito apoiado contra aqueles blocos de pedra de um belo cinza caindo para o azul, meus olhares não mergulharam no vale do Doubs!

Mais adiante, diz ainda, De minha parte, apenas uma coisa tenho a censurar na ALAMEDA DA FIDELIDADE; lê-se esse nome oficial em quinze ou vinte locais. Em outra passagem diz: …mesmo eu sendo um liberal e ele conservador, louvo-o por essa medida.

A ironia usada durante a narração é outra das suas facetas. Sem dúvida, Stendhal pretendia explodir com as convenções que até então regiam a literatura. E conseguiu. Ao usar um fato da crônica policial para fazer o seu romance, ele demonstrou que os acontecimentos mais extraordinários são os mais comuns. É do dia-a-dia, de fatos extraídos da vida como ela é, como bem dizia Nelson Rodrigues, que se podem criar grandes obras, depende da ousadia do seu criador. E isso não lhe faltou.

A vida pessoal de Stendhal e a sua obra literária se entrelaçam de forma escancarada. Dele diz Dóris Lessing, conforme se pode ler na tradução feita por Adelaide Câmara e já postado nesse blog: Seu trabalho está cheio de pais monstruosos e figuras de autoridade. Ninguém fiou mais grato do que ele quando finalmente cresceu e foi capaz de deixar o lar.

Na análise que Otto Maria Carpeaux faz de Stendhal na História da Literatura Ocidental, ele diz que:

Stendhal é muito mais moderno do que Balzac, romancista da burguesia em ascensão. Veio diretamente do romance gótico e parece, por isso, mais romântico do que Balzac; na verdade é, no gênero burguês do romance, um sobrevivente de época pré-burguesa. Stendhal é o único clássico do gênero moderno romance. (…).

O Vermelho e o Negro é ainda quase pioneiro no gênero de romance psicológico, antes dele, apenas Choderlos de Laclos, autor de Ligações Perigosas. Depois, veio Dostoievski com Crime e Castigo. Apesar do cenário histórico, a viagem mais longa que o romance traz é pela alma humana. Personagens controversos, movidos pelo desejo, por motivações interiores trazem elementos ricos e reveladores do ser humano. Merecem um capítulo à parte de estudos.

                                                             Jaboatão dos Guararapes, agosto de 2014.

* Luzia Ferrão – professora universitária, assistente social, contista, ensaísta, começou a participar da Oficina em 2014..

 **  Lourdes Rodrigues – economista, contista, ensaísta, coordenadora da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector desde 2006.

Tradução de Sofrimento e Paixão, análise de Memórias de um Egotista, de Stendhal, por Dóris Lessing

Acabamos de ler na Oficina, O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Obra grandiosa, no tamanho, quase 500 páginas e, principalmente, no valor literário. Esnesto Sábato dizia que um grande livro se reconhecia quando ao terminarmos a sua leitura sentíamos que já não éramos mais os mesmos. Quando eu pensava num modelo de romance, jamais imaginava que pudesse existir algo assim.  A obra é tão completa, cada página abre um mundo de outras páginas de leituras para você. Penso que só ao ler o Inferno, de a Divina Comédia, de Dante, eu senti o mesmo impacto. São inúmeras as análises que se podem fazer a partir desse livro, seja em termos históricos, sociológicos, ideológicos, de economia política, psicológicos e sobretudo, no campo da análise literária. São infindáveis os caminhos que se abrem. E vejam que a história foi baseada em fatos reais. Como alguém pôde, a partir de um caso policial fazer uma obra dessa envergadura? Não é por acaso que ela vem constando da lista dos clássicos quase dois séculos depois de ter sido elaborada.

Quero parabenizar a todos que participaram dessa viagem pela persistência, pelos vários olhares que recaíram sobre ela contribuindo para uma discussão rica e alegre. Observei que sempre perdíamos o horário como se fosse difícil fechar o livro. Esses marujos estão acostumados a grandes navegações, como a do Som e a Fúria, de Faulkner, que igualmente a de Stendhal, em termos literários, exigiu também muito fôlego.

A nossa maruja Maria Adelaide Câmara realizou uma tradução do inglês, do prefácio que a escritora Dóris Lessing fez de Memórias de um Egotista, no qual fala do autor Stendhal e de suas obras, entre elas, O Vermelho e o Negro. Essa tradução, Sofrimento e Paixão,  foi lida na Oficina e agora está postada nesse blog.

*Sofrimento e paixão

 

Ele venerava as mulheres, embora achasse o amor enganoso (ilusório). Ele suportou a Retirada de Moscou, mas adorava Napoleão. Stendhal era um poço de contradições – e sabia disso, escreve Doris Lessing.
• Doris Lessing
• The Guardian, sábado, 24 de maio de 2003.

Abrir um Stendhal depois de – você tem que pensar – um intervalo demasiado longo, é, pelo menos para mim, uma torrente de alegria, como se você tivesse virado uma esquina, e olhe só! – um velho amigo que você não tem visto há tempo e que você havia esquecido o ser extraordinário que ele é.

Stendhal disse que não esperava leitores que o compreendessem até 1890, mas esse seria um rendez-vous movediço com o futuro. De qualquer forma, eles ainda eram crianças ou nem haviam nascido. Esse grupo seleto está agora espalhado por toda parte, mas a natureza do nosso vício apaixonado talvez não seja tão simples, nem mesmo inteiramente livre de culpa. Uma pista está na sua observação de que, quando escreveu essas memórias ele não tinha 38, porém uns 20 anos. E é verdade que nós podemos facilmente reconhecer a nós mesmos adolescentes em sua espinhosa autoestima. Eu tinha uns 20 anos quando encontrei O Vermelho e o Negro – e um amigo.

O amante ideal de Stendhal vem, como ele, de uma família convencional numa cidade provinciana – no seu caso Grenoble –, que é agradável, complacente e reacionária, tanto política como socialmente. Sua família levou a obstinação social ao extremo. Sua amada mãe morreu quando ele tinha sete anos, e ele foi criado por três pessoas a quem odiava. Uma foi a tia solteirona que o atormentava; outra foi um jesuíta despótico que o tutelava e lhe ensinou a detestar a igreja e seus trabalhos; e então havia seu pai, um advogado, que tinha “todos os preconceitos da religião e da aristocracia, [e] veementemente me proibiu de estudar música. ”

Sem as intervenções do pai de sua mãe, um homem bondoso e inteligente, não teria havido influências mais agradáveis em sua juventude. Não lhe era permitido brincar com crianças consideradas socialmente inferiores a ele, era tratado mais como um animal recalcitrante do que como uma criança, era afligido por injunções e proibições de que ele nunca pôde alcançar o sentido. Eu não acho irrelevante que no fim de O Vermelho e o Negro, quando Julien Sorel está para ser levado à morte, o pai o visite e lamente que Julien não lhe tenha reembolsado o dinheiro que ele havia gasto com ele, alimentando-o e cuidando dele quando criança.

Seu trabalho está cheio de pais monstruosos e figuras de autoridade. Ninguém fiou mais grato do que ele quando finalmente cresceu e foi capaz de deixar o lar. Ele não conservou o esnobismo que tentaram ensinar-lhe, porém, permaneceu igualmente suscetível a uma rudeza diferente: as grosserias que odiava não eram sociais, mas os equívocos insultuosos do coração cruel.

“Eu tinha um medo quase furioso de qualquer pessoa grosseira. A conversa de algum comerciante provinciano gordo e grosseiro me deixava estupefato e infeliz pelo resto do dia.” Oh sim, as províncias – ou, em meu caso, a sociedade colonial das pequenas cidades – o despotismo mais tedioso. É o que está por trás dessa palavra desagradável que faz morada em cidades pequenas, impossível para aqueles que têm vivido nesta grande república, Paris” (O Vermelho e o Negro).

Seu Memórias de um Egotista descreve uma estada em Paris de 1821 a 1830. Ele escreveu imaginando que seria lido por alguém que lhe fosse caro, “uma pessoa como Mme. Roland ou M. Gros, o geômetra”. Aqui, em umas poucas palavras, estão sua paixão pela Matemática e sua necessidade de uma mulher compassiva, mas nesse caso ela estava morta, pela guilhotina, cuja sombra tinha de permanecer atravessada em sua vida e em sua mente e na de seus contemporâneos, para o bem ou para o mal: é duro compartilhar de seu entusiasmo por algumas de suas manobras militares. Inevitável, suponho, que, criado por tiranos, ele aplaudisse o instrumento que havia feito cair de posição alguns tiranos.  O homem era uma massa de contradições – e ele sabia disso.

Ele escreve para descobrir que tipo de ser ele é. “Que tipo de homem sou eu? Tenho senso comum, tenho senso comum e profundidade também? Sou notavelmente arguto? A verdade seja dita, não tenho a mais leve ideia.”

A lente de sua inteligência está focada nele próprio com uma concentração que atinge a ferocidade. Arrola tanto suas características absurdas quanto as boas, e nunca se poupa da descrição de um momento de humilhação ou estupidez. Tinha Rousseau como um modelo admirado, mas eu penso que esse autoconfessor não chega perto de Stendhal no que toca à honesta perspicácia, cuja qualidade é um dom compensatório para uma criança que passou anos observando, com olhos implacáveis e satíricos, as hipocrisias e injustiças dos adultos; que teve, a fim de sobreviver, de aprender que a atenção é a primeira qualificação para um escritor. A observação exata dos inimigos delas – mãe, pai, figuras de autoridade – ensina essas crianças infelizes como dissimular ou guardar silêncio… e ver tudo

Stendhal deixou Milão, deixou sua amada Itália, porque a polícia milanesa pensava que ele era um espião. Deixou para trás um caso de amor – não, uma grande paixão – que o fez muito infeliz e não foi consumada, apesar de haver pistas de que pode ter sido por sua culpa. Mas, se ele tivesse sido feliz, nós não teríamos tido seu livro “Sobre o amor” que ele terminaria e publicaria em Paris: uma dissecação exata dos estágios e processos do amor, quer dizer, do amor romântico.

É um livrinho mais útil para as loucuras do coração do que qualquer um que eu conheça. Ele tem a finura que resulta de uma veracidade absoluta e não sentimental. Mas esse homem que tinha tal talento para as emoções ternas relatava tantos fracassos quanto vitórias, e talvez nós devêssemos lembrar que seu herói, Fabrizio del Dongo (A Cartuxa de Parma), compartilhava com outras almas eleitas sua crença de que a condição de estar apaixonado era superior aos prazeres mais grosseiros da consumação.

Que extremos esse homem manteve em equilíbrio. A mais extremada era a sua paixão por Napoleão, cuja característica ele conferiu a seus audazes jovens heróis Julien Sorel e Fabrizio del Dongo. A ideia de Napoleão significava a nobreza de alma, a coragem de desafiar as circunstâncias depreciativas (como o infortúnio de Julien Sorel de nascer um camponês), repugnância do lugar-comum – como a vida provinciana; significava galanteria, beleza, a visão de uma águia, em vez dos horizontes de um chapim (canário da terra).

Nós todos temos amigos que precisamos esquecer devido a fraquezas incompreensíveis, tais como uma admiração acrítica e insensata por, digamos, magnatas da mídia, sedentos de poder. Interessante essa procura por uma comparação contemporânea com esse Napoleão rompe-horizonte, são financistas que vêm à mente, não líderes de nações. Que rei do presente, general ou líder tem o glamour de Napoleão?

Talvez nós nos tenhamos tornado demasiadamente sábios para fazer qualquer coisa, a não ser gemer com a notícia de mais um Grande Timoneiro?

O que o torna mais inexplicável é que Stendhal estava na Retirada de Moscou. Ele viveu no tempo dessa ignominiosa carnificina, em meio à doença e às intempéries. Ele ainda amava Napoleão, que não devia ser culpado pela debacle, insistia. Mas se não ele, quem então? Mas estamos diante de uma paixão sem crítica. O Napoleão de Stendhal tinha pouco a ver com o real Napoleão, era mais uma ideia de glória e magnificência a se contrapor à pequenez. Stendhal é uma dessas figuras que provoca questões aparentemente distantes da causa. Estou pensando em um relato de um soldado alemão – como acontece no exército de Hitler, a Grande Alemanha – que descreve crueldades imperdoáveis ​​na sua própria formação e na de seus companheiros, o que causa mutilações e algumas mortes. “Mas nós o adorávamos”, gritou o soldado desse general sádico. “Gostaríamos de ter morrido por ele.” Aqueles soldados, que ainda não tinham morrido nos exércitos de Napoleão, adoravam-no, embora ele tivesse arruinado suas vidas.

Estamos aqui diante de algo escuro e torcido: algo, é certo, muito antigo. Mas também ambíguo. Julien Sorel, adorando Napoleão, ou melhor, essa cristalização de uma centena de qualidades maiores do que a vida que levavam o nome de Napoleão, sobreviveu à destrutiva mediocridade de uma cidade provinciana, a um pai brutal, a perseguições. Como muito rapaz, visto que, preso em algum lugar atrasado e abandonado por Deus
sobreviveu, repetindo alguns comentários ferinos por meio da personagem de Stendhal dirigidos à estupidez local. “O Diretório em Paris, dando-se ares de um soberano bem estabelecido, revelou um ódio total a qualquer coisa não medíocre.” (Insira o seu próprio governo, município, timoneiro.).

Foi quando as mulheres em seus salões puderam fazer as fortunas de homens jovens, fossem eles seus amantes ou não. “É possível fazer progressos no mundo somente por meio das mulheres”, aconselharam mentores amigáveis ​​de Stendhal. Os heróis de Stendhal deviam toda a graça e charme de suas vidas às mulheres, e assim fez ele. Ele não só adorou o amor, ele amou a amizade, ambos sem limites, cálculo, interesse próprio. Só generosidade de espírito era permitida.

Chegando a Paris, ele desenvolveu uma amizade com um barão de Lussinge, que compartilhou suas frugalidades. Mas, ao mesmo tempo que ficava rico, tornava-se miserável e apadrinhava a pobreza de Stendhal. Stendhal fez uma coisa muito francesa: mudou de café, de modo a não sofrer com a companhia desse homem que viu como arruinado pelo dinheiro. Um sacrifício doloroso, ele o chamou. Mas nunca facilitou as coisas para si mesmo. Memórias de um Egotista está cheio de oportunidades para amizade, ou para salões vantajosos, desperdiçadas. Sua sensibilidade excessiva, seu orgulho, os elevados padrões de suas exigências relativas às pessoas o fizeram solitário. Ele já era conhecido como um escritor, tendo obras sobre música e arte publicadas, mas ele não era bem conhecido. Sofreu algumas críticas ferozes, que abrandou ao ruminar que “um ou outro de nós deve estar errado”.

Perdeu possíveis casos de amor, mesmo quando a memória de sua Métilde havia se tornado “um fantasma, profundamente triste, terno, que, por suas aparições, me tornavam poderosamente predisposto para ideias de ternura, bondade, justiça e indulgência.”

Esse fantasma nem sempre era beneficente. Sua história de fracasso em fazer sexo com uma garota alcovitada para ele é muito engraçada, porém, principalmente, porque ele não via que era. Ele não estava preocupado, a garota desguiava, já que ela era jovem e não tinha experimentado isso antes. Seus amigos eram desdenhosos e malevolentes. Por um curto período, ele adquiriu uma reputação de impotência, mas como sabemos a partir da literatura e da vida, isso podia – se usado por ele – ter atraído as mulheres para sua cama, por causa de seu instinto para remendar a situação.

Mas ele nunca jogou direito suas cartas. Não estava nele.Era doloroso para ele estar em Paris, que ele havia conhecido “como parte da Corte de Napoleão”. Ele tinha feito inimigos, também. Tendo-lhe sido oferecido, em 1814, o cargo de controlador de comida de Paris, pelo Chefe de Polícia, ele recusou. O homem que aceitou ficou rico em quatro ou cinco anos “sem roubar”. Aqui, em duas palavras, ele dá parte da moral financeira da época. Essa concisão é uma característica imediatamente reconhecível de Stendhal, como escritor.

“… um oficial aposentado com meio soldo, condecorado em Waterloo, absolutamente destituído de inteligência, e se tal coisa é possível, ainda mais de imaginação, tolo, mas com maneiras perfeitas, e tendo tido tantas mulheres que se tornara sincero em seu assunto. ” (Itálico meu).

Ou isto, que poderia ser a sinopse para um romance: ‘Esta Mme. Lavenelle é tão seca como um pedaço de pergaminho e, seja como for, não tem inteligência e, acima de tudo, paixão, e é quase impossível para ela ser afetada por outra coisa que as coxas robustas de uma companhia de granadeiros desfilando pelo jardim das Tuileries em calções folgados de casimira brancos. “

Dessa vez, os grifos são dele. Para ser sem paixão: Stendhal não podia dizer nada pior. Ele poderia elogiar Paris como um antídoto para Grenoble, mas ele não gostava do francês, a quem ele via como cheio de artifício, insinceridade e carente de paixão. “Eles amam o dinheiro acima de todas as coisas e nunca pecam por amor ou ódio.” Ao contrário dos italianos, que são francos, naturais e honestos, com quem ele se sentiu em casa:

 “Este governo é bom, e aquele governo que por si só garante a segurança do cidadão nas estradas, sua igualdade perante os juízes, e juízes bastante esclarecidos, bem como uma moeda não desvalorizada, estradas transitáveis/decentes e proteção adequada quando no exterior. “

Podemos imaginar como esse mote caiu nas salas de visita, sob o governo dos Bourbons, que ele desprezava, e sob o qual florescia todo tipo de agiotagem, desonestidade, corrupção, assim como acontece hoje. Essa definição alcança alturas de insolente sorriso em relação a seus pares e ao regime. Na Itália, ele tinha sido suspeito de ser um espião; eu não vejo como ele poderia ter evitado estar nos arquivos da polícia de Paris.

Sua viagem para a Inglaterra era para acabar com sua depressão, e ver as peças de Shakespeare, que ele lera muitas vezes, e sobre as quais havia escrito, juntamente com Racine. O contraste absoluto deve tê-lo agradado. Ele viu Kean em Otelo, e ficou surpreso de que na França e na Inglaterra eles usassem gestos diferentes para expressar as mesmas emoções; ele também ficou impressionado porque Kean dizia suas falas como se estivesse pensando nelas pela primeira vez.

Ele ficou encantado com Richmond. Não gostava de descrições da natureza, tentou manter sua prosa sem adornos, como um despacho militar, mas foi tentado por Richmond a esquecer suas austeridades. Lá estava ele, andando por Londres, indo ao teatro, mas ele omitiu cortejar essa hospedeira que lhe teria feito o maior bem. Em vez disso, foi levado para uma pequena casa onde três meninas tímidas, pobres, com cabelos castanhos – prostitutas – foram gentis, e tinham bom coração.

Stendhal amava as mulheres, para usar essa palavra, não como fez em Por Amor, mas como um sentimento de empatia geral. Ele tinha aprendido a compreensão das mulheres com a sua bem-amada irmã Pauline, que era uma espécie de doidivanas e rebelde (talvez inspirada pelo desdém de seu irmão pelos costumes da sociedade?) Ela escreveu-lhe sobre uma escapada na qual, vestida de homem, saiu para ver a vista, uma noite. Ele ficou horrorizado. Sua carta a ela diz tudo sobre a situação das mulheres naquele tempo. Implorou-lhe para nunca mais fazer uma coisa dessas de novo. Se ela fosse pega, ou mesmo se houvesse rumores, então ninguém iria se casar com ela, e ela estaria condenada a um convento ou a ficar solteirona. Arranje um marido a qualquer custo, disse a ela, e então, uma vez casada, você pode fazer como quiser. As mulheres casadas são livres; solteiras são escravas.

Ele não tinha ilusões sobre o “custo”. O marido, em O Vermelho e o Negro, o prefeito da cidade Monsieur de Renal – já houve em algum tempo uma tal descrição de um marido parecido com um peão estúpido e grosseiro? No entanto, ele não é um homem mau, certamente desejável como marido. Sobre o desamparo das mulheres em face da convenção, nunca foi escrito mais ternamente, mas o que poderia ser mais friamente sensato do que aquela carta? Em A Cartuxa de Parma, ele apenas registrou, friamente, que uma certa dama da sociedade trouxe para seu marido, como dote, 800.000 francos, e por esse lhe foi concedido 80 por mês para as despesas.

Nenhuma mulher maravilha o adorava, posto que ele não era bonito.

Memórias de um Egotista é incompleto, porque ele não estava escrevendo sobre o que mais estava em sua mente, seu tempo com Métilde. Ele não queria macular as lembranças que tinha dela. Mas poderia servir como uma introdução aos grandes romances: aqui está o minério a partir do qual ele elaborou O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma. Há também sua autobiografia, La Vie de Henri Brulard – ele usou dúzias de pseudônimos: seu nome verdadeiro era Marie Henri Beyle. Esse livro é menos revelador do que Memórias, escrito quando ele estava em carne viva e sangrando. Ele confessa que achou difícil mantê-lo em ordem cronológica, mas isso é bom: mais parecido com o que nossas memórias são realmente, Napoleão e Métilde, Richmond e Racine e pobres meninas pálidas com cabelo castanho.

Lá se vão 200 anos desde que ele, em Paris, o escreveu. É como ouvir a sua voz, talvez falando em alguma sala de visitas em sua amada Itália, na companhia de mulheres encantadoras e de seus amantes, uma das quais sua amante, ou que tenha sido, ou que venha a ser. Maridos estão curiosamente ausentes, mas se houver alguns, são os seus bons amigos. O céu de Stendhal, ele sonhava com ele; infelizmente seu destino o levou para lugares menos amenos.

© Doris Lessing, 2003. Este é um prefácio para Memórias de um Egotista de Stendhal, publicado pela Hesperus Press.

* Tradução do inglês realizada por Maria Adelaide do Rego Maciel Câmara, psicóloga clínica, membro do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise, participante da Oficina desde 2006.

O Vermelho e o Negro

O Vermelho e o Negro

*Luzia Ferrão

Que nossa visão está assentada em nossas experiências, na herança genética e no mundo que nos rodeia, todo mundo sabe, mas sempre que nos deparamos com o novo, aflora  o sentimento de que ainda existe universos paralelos e desconhecidos aos nossos.

Participando de um  exercício de leitura do livro O Vermelho e o Preto, de Stendhal, na Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, achei incrível os relatos dos colegas que recorriam, nas suas interpretações, às formas de leitura para explicar o conteúdo. Quem estava narrando era o próprio autor ou ele estava utilizando o recurso de um narrador? Este tipo de duvida não é comum ao simples leitor. O grupo caracteriza-se por pessoas que se dedicam ao  estudo profundo do pensamento literário através de  alguns dos seus maiores e melhores  representantes.

O interessante, muito interessante desta experiência foi que, à medida que  o texto ia  escoando, ficava claro que algumas de minhas referências não estavam presentes nas do  grupo ( ainda bem!). As referencias acadêmicas, via de regra, são construídas com um foco determinado pelo saber que está sendo  estudado. Nesta perspectiva, no estudo  voltado para a análise de textos literários, parece que o movimento privilegia  a obra do autor; o entendimento se faz a partir dos diferentes modelos, existentes na literatura mundial, e a contribuição singular por ele construída. Em outras palavras; a análise literária é uma aventura através dos  diferentes estilos , apresentados pelos diferentes autores, com vista ao reconhecimento do valor e das grandezas de suas obras.

O texto começa falando de uma pequena vila no interior da França, que atravès do uso do motor movido a água, inicia um processo de desenvolvimento econômico. Esta é a historia dos primórdios da revolução industrial, que vai estabelecer um novo tipo de poder. O poder centralizado nos feudos, arrodeados de muros, simbolo dos limites do Senhor Feudal vai dar vez às cidades, cujo poder, como diz Foucault, é invisível. Os muros, em Stendhal, ainda existem, porém são proporcionais a uma provável ruptura: baixos, perigosos ( as crianças podem brincar em cima deles, mas, segundo a guardiã da família, correm o risco de cair).

O chefe politico e os proprietários dos meios de produção, bem ao gosto de Marx,- são os donos do poder (minha tradução), embora ainda invisível, cinzento; cinza é uma cor indefinida.

Ao longo da história o poder vai  assumindo diferentes configurações. Stendhal, provavelmente sofre os impactos da época  e a   retrata conforme sua visão de mundo.

A invisibilidade do poder neste autor, é provavelmente um golpe de mestre, considerando que a existência  do mercado como “o locus do poder moderno”  vai  carecer de alguns séculos para se tornar representação.

Outro ponto super interessante diz respeito à divisão do trabalho intelectual e braçal. O homem  só  criou o mundo da cultura muitos e muitos séculos depois do seu surgimento na terra, na verdade, o crucial para os nossos parentes era pegar, matar e comer para sobreviver. Nesta perspectiva, o que havia para ser mais valorizado? A força braçal e a coragem. Alguns homens, destaque para os gregos, aprimoraram formas de pensar, que embora presente em todos os homens, dispunham de condições diferenciadas. A liderança , um dos principais fatores para a organização dos homens em geral, parece ter sido um destes elementos necessários para impulsionar o pensar humano.Ora,tenho casa, comida e roupa lavada posso me dar ao luxo de me deliciar “vendo e ouvindo estrelas”!Pobre do meu irmão morto de cansado, muitas vezes indo dormir com fome,pensa e sonha com um bife de dinossauro! Quanta diferença!

Stendhal  trabalha esta dicotomia de forma tão clara a ponto de destinar ao intelectual, cacete! Julien Sorel que o diga. É a conduta do chefe de família para com aqueles considerados inúteis, que não prestavam para nada!

Traiçoeiramente, a história vai  privilegiar este tipo, que inicialmente em O Vermelho e o Negro, obra ora analisada, vai servir muito mais para entreter crianças bagunceiras a troco de um salário, mais casa comida e vestuário.

No desenvolvimento da historia, Stendhal vai aprofundando estes e outros conceitos e, vivificando personagens e realidade

  • Luzia Ferrão – professora universitária, amante da literatura, iniciou na Oficina em 2014.

Notas sobre O Vermelho e o Negro

Algumas notas sobre O Vermelho e o Negro, de Stendhal
(até a leitura do capítulo 5) 

*Teresa Sales

08 de março de 2014

 

            Don Gruffot Papera, já referido aqui no blog, avisa-nos que a cidadezinha de Verrières, uma das mais bonitas do Franco Condado, não existe de fato e, tal como o cenário reconstruído de uma novela, é inventada pelo autor. Pelo ensaio de Heinrich Mann, que aborda principalmente a vida pessoal do autor, também ficamos a saber o quanto a criação da natureza e da personagem principal, Julien, tem a ver com a sua própria trajetória de vida.

            Diferentemente do que ensinam os manuais, onde se deve capturar o leitor já no primeiro capítulo, apontando uma possível trama ou conflito, no capítulo inicial desse livro temos apenas uma belíssima descrição da cidadezinha, cenário da trama que virá a seguir. A personagem principal não aparece ainda. Os que aparecem, completando o cenário da cidadezinha com as serrarias, a fábrica de pregos e a de tecidos estampados, são o camponês e o nobre, ambos recém transformados em burgueses. O primeiro, carregando seu modo grosseiro de vida. O segundo, a sua aristocracia e, para não se envergonhar de ser industrial, fez-se prefeito.

            A negociação pelo espaço urbano entre o industrial aristocrata e o industrial camponês; assim como a promiscuidade entre o público e o privado incorporada na figura do primeiro; e ainda a tirania da opinião, ou despotismo característico da província; remete-nos aos dias de hoje, com outros personagens, em pleno século XXI.

            Seria isso então a capturar o leitor? A universalidade da arte de narrar, que nos leva, pela leitura, a co-autores da narrativa?

            É no capítulo II, que tem como personagem principal o prefeito, que começam a aparecer os conflitos: entre o poder civil local, representado pelo Senhor. Rênal (prefeito); e a Igreja, representado pelo Padre Célan; e o poder central em Paris, representado pelo Sr. Appert.

            Até o capítulo V a narrativa se parece com um jogo de quebra-cabeça em que cada peça nova vai se somando às anteriores, dentro de uma paisagem apresentada em grandes traços no primeiro capítulo.

          Ficou uma dúvida: é um narrador intruso ou discurso indireto livre que caracterizam alguns parágrafos desse segundo capítulo?

            O capítulo III é dos mais repletos de cenas. Aprofunda-se o conflito do capítulo II já referido, interrompido abruptamente pelo susto causado pelo filho dos de Rênal subindo em um muro perigoso, o que leva o Sr. de Rênal a consolidar sua decisão de aprofundar seu prestígio social, contratando um preceptor para os filhos. É nesse capítulo que sai do anonimato a Senhora de Rênal, não somente expressando uma opinião em relação ao conflito, mas sendo apresentada em algumas de suas características de personalidade: uma mãe fervorosa que não quer olhar o enfado de sua relação conjugal, na qual o amor está ausente e ela é desmerecida em suas opiniões e preocupações com os filhos e que, desde que lhe deixem com esses e seu jardim magnífico, nada questiona.

            Outra peça do quebra-cabeça aparece no capítulo IV, através de duas cenas: a proposta da contratação do Julien feita pelo aristocrata de Rênal ao seu pai, o camponês Sorel; e a rude relação entre o pai e o filho Sorel, que serve como título ao capítulo.

            O capítulo V, chamado “Uma negociação”, na qual “a astúcia do camponês venceu a astúcia do homem rico, que não precisa dela para viver”, dá continuidade à rudeza na relação pai-filho, apresentando algumas características de Julien: sua fantástica memória, suas preferências literárias e como se constituiu a sua alma hipócrita. Aqui outra intrusão: “A palavra (hipocrisia) surpreende os leitores? Até chegar a essa palavra horrível, a alma do jovem camponês teve de percorrer um bom caminho”.  Seguem-se nove parágrafos de flashback sobre Julien, interrompendo a narrativa quando ele deu a paradinha na igreja.

            A descrição de Julien na igreja deixa duas insinuações (suponho que isso há de ter alguma nomeação na arte da narrativa de ficção) que possivelmente serão retomadas mais adiante. Primeiro, o bilhete que ele encontra no genuflexório com o brasão do Senhor. de Rênal. E, “ao sair, acreditou ver sangue perto da pia; era água benta que se derramara: o reflexo das cortinas vermelhas que cobriam as janelas fazia que parecesse sangue” (a mim, lembrou uma cena emblemática carregada de símbolos do filme de Kleber Mendonça “O som ao redor”, quando a cor da água da cachoeira do engenho passa da cor normal à cor vermelha).

*Teresa Sales – Socióloga, ensaísta, cronista, ficcionista.

Romance para Domésticas e Salões

Romance para domésticas provincianas  e os salões de Paris
(Stendhal, O Vermelho e o Negro, por Don Gruffot Papera)

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*Lourdes Rodrigues

Quando coloquei na programação da Oficina, para 2014, O Vermelho e o Negro de Stendhal, a reação inicial foi de apreensão quanto ao tamanho da empreitada que iríamos enfrentar. Mais de 500 páginas, no mínimo, dependendo da publicação, deixavam-nos apreensivos. Passado o susto inicial, a decisão de seguir em frente encontrou os viageiros dispostos, destemidos e até mesmo ansiosos pela longa jornada.

Outro problema a ser enfrentado foi a escolha da publicação para a leitura. As livrarias não têm disponível nas prateleiras o livro, uma ou outra conta em seu acervo com um volume ou dois. Li um artigo de Gabriel Perissé Diferenças Mínimas na tradução de O vermelho e o Negro (www.perisse.com.br) que me ajudou a propor o acompanhamento por qualquer tradução disponível, vez que as diferenças são poucas entre uma e outra, e essa visão múltipla enriquece muito mais a discussão. Assim, iniciamos a leitura contando com as publicações da L&PM, tradução de Paulo Neves, da Cosac Naify, por Raquel Prado, Martin Claret, por Jean Melville (a despeito das acusações de plágio, é uma das publicações mais acessíveis no mercado) e da Editora Globo, com Casimiro Fernandes e Souza Júnior na tradução. Dúvidas que surgem, por conta das versões diferentes, são retiradas buscando o original pelo qual dois colegas acompanham a leitura.vermelho e o negro, o_m

A viagem por Verrières, sob os olhares desses tradutores e os nossos próprios olhares, tornou-se uma inesquecível jornada. Para começar lemos o Projeto de artigo sobre o Vermelho e o Negro, escrito pelo próprio Stendhal, sob pseudônimo de  Don Gruffot Papera (mais um entre centenas de outros que ele usou, cerca de 171 pseudônimos), para uma revista italiana que não chegou a publicar.Stehdhal, também um pseudônimo, talvez o mais usado pelo escritor Marie-Henry Beyle.

Interessante, nesse texto, como ele tenta promover o livro do Senhor Stendhal, escudado no pseudônimo. Primeiro, ele diz que enquanto os homens saem para caçar ou para trabalhar na agricultura, as suas pobres metades, não podendo fazer romances, se consolam em lê-los. (…) Não há nenhuma mulher de província que não leia cinco ou seis volumes “por mês, muitas lêem quinze ou vinte…”  Assim, ele situa o leitor de romances, na França, como sendo essencialmente feminino. E ademais, justifica que essa busca frenética pela leitura tem as suas raízes numa falta, num desejo insatisfeito que é o da impossibilidade de fazer romances com os seus próprios parceiros que estão mais interessados na caça ou no trabalho. Depois, ele diz que essas mulheres não têm o mesmo nível de educação, daí os livreiros fazerem distinção entre as leitoras de romances para domésticas (aqui ele pede desculpas pelo termo, dizendo que não é dele, mas dos livreiros, demonstrando claramente que a designação é preconceituosa), e a leitora de romances de salões. Passa então a descrever a forma e conteúdo desses romances.Stehdhal

No romance para domésticas, impresso no formato in-12, o herói é sempre perfeito e belo, as mulheres inocentes e perseguidas, pouco importando se os acontecimentos são absurdos, essas cenas extraordinárias existem para que os belos olhos das provincianas chorem.  As leitoras de romances de salões, em formato in 8º, por outro lado, detestam esses homens perfeitos, essas mulheres desgraçadas, exigem tramas muito mais apuradas. As leitoras de romances para domésticas, às vezes lêem os romances para salões, embora, em geral, não o entendam inteiramente. As leitoras de romances de salões, por sua vez, jamais leriam os romances para domésticas.

Esse era o grande desafio para qualquer escritor da época, como escrever uma obra que pudesse agradar a gostos tão diferentes, de forma a atingir todas as leitoras de romance da província ou de Paris. Segundo Don Gruffot Papera, este desafio foi o que o Senhor de Stendhal decidiu enfrentar com a escrita de O Vermelho e o Negro, mais do que isso, ele ousou descrever o caráter da mulher de Paris que não ama seu amante a não ser que julgue, todas as manhãs, estar na iminência de perdê-lo.

Outro aspecto importante destacado por ele foi que Stendhal escreveu um romance que não era bem um romance, pois partira de fatos reais, acontecidos alguns anos antes, em 1826, o romance foi escrito em 1830. Ele acompanhou pelos jornais o incidente acontecido com um jovem que atirou em uma ex-amante dentro da Igreja e foi executado por esse crime em 1828.

O fato,  pela tradução da Martin Claret:

No dia 23 de janeiro de 1828, foi fuzilado em Grenoble o ex-seminarista Antoine Berthet, que, em plena missa, disparara contra a senhora Michoud de La Tour, sua antiga amante. Durante algumas semanas, os jornais exploraram o estranho caso e Stendhal acompanhou apaixonadamente as narrativas. Tendo na memória os traços do condenado e os lances da história, começou a esboçar sua personagem mais famosa – Julien Sorel – protagonista de Le Rouge et Le Noir (O Vermelho e o Negro).

Depois de discorrer longamente sobre o romance que não devemos antecipar, agora, Don Gruffot Papera encerra  dizendo que o livro é vivo, colorido, cheio de interesse e de emoção. O autor soube pintar com simplicidade o amor terno e ingênuo.

E acrescenta outros dados sobre o livro, os mesmos dados que levaram muitos leitores no futuro a julgá-lo um romance de costumes, de crônicas da sociedade da época:

Ousou pintar o amor de Paris, ninguém o tentara, antes dele. Ninguém pintara com alguns cuidados os costumes dados aos franceses pelos diversos governos que pesaram sobre eles durante o primeiro quartel do século XIX. Um dia esse romance pintará os tempos antigos como os de Walter Scott.

 Na verdade, Walter Scott hoje quase não é mais lido ou mencionado e Stendhal continua a figurar em todas as listas dos melhores romances. Tornou-se um clássico da literatura ocidental.  Ele ultrapassou, assim, o seu Pai Poético, aquele que ele se propôs derrotar, encontrando a falha e realizando uma obra resposta que o corrigisse. É o que Haroldo Bloom chama de clinamen. Quando envolve dois poetas fortes, ela se concretiza por ações revisionistas, por desvios da identificação herdada.  Stendhal com o seu romance O Vermelho e o Negro revolucionou o fazer literário e despojou do trono Walter Scott, dessacralizando o mito, fazendo o contraponto com o seu jeito de escrever, desviando-se da tradição e criando o novo em termos literários.

Com certeza, a nossa viagem será inesquecível e dela iremos sempre dando conta aqui pelo blog.

Jaboatão dos Guararapes, 06 de março de 2014

 *Economista, ficcionista, ensaísta, cronista