Cartas de Navegação

VIAGEM PELOS MARES DAS PALAVRAS

 

A oficina literária é um espaço para se discutir formas de criação literária e exercitar a criatividade, especialmente depois que a musa inspiradora começou a ceder lugar à transpiração. Alguns autores chegam a afirmar que a transpiração, o trabalho artesanal propriamente dito, responde por 90% da obra bem elaborada. Na verdade, a chamada vocação literária que tornava o escritor o “eleito dos deuses”, tão presente no Romantismo, já não se mantém em nossos dias, embora ainda seja bastante fugidia a razão pela qual alguns indivíduos se tornam essencialmente escritores. Mario Vargas Llosa diz não crer em destino carimbado na genética. Também não mais acredita como antes, devido à influência dos existencialistas franceses, que tudo é uma questão de escolha decorrente da vontade da pessoa. Ele entende que há uma predisposição à fantasia, desde a infância ou começo da adolescência, como ponto de partida para a vocação literária que se revelará no futuro. E classifica tal predisposição como um ato de rebeldia, de rejeição e crítica à vida como ela é, ao mundo real, embora a maioria dos escritores jamais tenha consciência dela. E ele pergunta, porque alguém se interessaria em criar um mundo ficcional se estivesse plenamente satisfeito com o mundo real? Apesar disso, ele admite existir um abismo “entre essa propensão para se afastar, nas asas da imaginação, do mundo real e da vida de verdade, e o exercício da literatura, abismo este que a maioria dos seres humanos não chega a cruzar. Os que o fazem e se tornam criadores de mundos por meio da palavra escrita – os escritores – são uma minoria que, àquela predisposição ou tendência, somaram essa expressão da vontade que Sartre chamava de escolha. Em dado momento decidiram ser escritores. Elegeram-se como tal”. E daí em diante organizaram a vida para acolher tal decisão. Mas ele acrescenta que ninguém se torna escritor num abrir e fechar de olhos. São necessários anos de disciplina e perseverança. Todos os que se tornaram bons escritores foram um dia escritores aprendizes, cujo talento se gestou no trabalho árduo e contínuo. E cita Flaubert que assumiu o seu interesse pela literatura como uma cruzada, entregando-se a ela com “uma convicção fanática”, o que o fez vencer limitações, bastante visíveis em seus primeiros livros, e mais tarde escrever os primeiros romances modernos Madame Bovary e Educação Sentimental.

É desse trabalho árduo, dessa transpiração extraída da aprendizagem e manuseio de técnicas literárias, tão presentes na vida literária frenética de Flaubert e de tantos outros escritores geniais como William Faulkner, Ernest Hemingway, Virgínia Woolf, Gabriel Garcia Marques e do próprio Mario Vargas Llosa, que cuidam as Oficinas de Literatura. Aprendendo com eles, com a estrutura e técnicas existentes em suas obras.

Assis Brasil, escritor gaúcho, autor de vários livros premiados, ministrante de oficinas de criação literária do curso de pós-graduação em Letras da PUCRS desde 1985, ao ser perguntado em entrevista se achava importante a técnica literária respondeu:

Técnica literária eis um sintagma diabolizado em certos meios cultos: é como se a literatura derivasse apenas da inspiração (sabe-se lá o que é isso), ou que a técnica fosse algo menor, própria dos obreiros manuais, dos carpinteiros e alfaiates. A verdade é outra: qualquer arte possui sua técnica. Tinham razão os arquitetos das catedrais góticas: ars sine scientia nihil est. Entendo a técnica literária como a soma das condições necessárias à escrita. É o senso de medida na frase, sua musicalidade, a perfeita construção do diálogo, a eficiência descritiva e narrativa e, em especial, a idéia de proporção da peça inteira, de modo que suas partes dialoguem com a necessária harmonia compositiva. Técnica também é não se atrapalhar com as palavras; ao contrário, é fazer com que trabalhem a nosso favor. Técnica é entender o axioma: o que se corta, ganha-se – os leitores, aliviados, agradecerão essa higiênica providência. Técnica é saber que não se escreve para desabafar, mas para construir uma realidade estética autônoma, a ser fruída pelos leitores. Dominar a técnica é escrever de tal maneira que o leitor queira saber o que virá no capítulo seguinte. É, por isso, dizer algo novo a cada frase.

Também assim entendemos a técnica literária, ferramenta que presta rigoroso e valioso serviço a todos os que querem escrever ou aprender a fazer uma análise de texto. E foi com a visão de que ela é a soma das condições necessárias à escrita que desenvolvemos os trabalhos da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, em seu primeiro ano.

Iniciamos com a leitura resumida do Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell, para apreender o modelo de estrutura narrativa ali exposto. Modelo bastante difundido, inclusive, objeto de um guia escrito por Christopher Vogler, denominado de o Guia Prático de O Herói de Mil Faces, elaborado para atender os estúdios da Disney e depois disseminado por toda a indústria cinematográfica de Hollywood. Ele também escreveu A Jornada do Escritor – Estruturas Míticas para Contadores de Histórias e Roteiristas (esgotado) —, no qual apresenta o padrão geral das histórias referidas em O Herói de Mil Faces, que serve de base para análise tanto de obras clássicas do nível da Odisséia, como de best seller tipo Harry Porter e O Senhor dos Anéis.

JOSEPH CAMPBELL

Trata-se de boa referência para escritores iniciantes e os que gostam de ler livros, de assistir filmes e de pensar sobre eles, pessoas assim como nós que participamos dessa Oficina. Daí a importância de conhecer a estrutura desenhada por Joseph Campbell, criada após pesquisar milhares de histórias míticas, lendas, epopéias e fábulas na tentativa de entender a razão de algumas histórias difundirem-se, imortalizarem-se na cultura do povo, e outras serem absolutamente transitórias. Ao descobrir uma estrutura comum a todas elas, que passava pela figura de um herói que tanto poderia ser uma pessoa, um grupo de pessoas, animais, ou mesmo uma idéia, debruçou-se sobre ela, conseguindo identificar doze etapas para a composição do seu núcleo de funcionamento. A estrutura descoberta foi denominada de A jornada do Herói. Reproduzimos o diagrama dessa jornada e acompanhamos a partir dele todas as etapas descritas pelo autor. A título de exemplificação lemos o roteiro utilizado para o filme Guerra nas Estrelas, de George Lucas, identificando, inclusive, os arquétipos representados pelos personagens.

De posse do modelo-padrão, qualquer pessoa com habilidade na escrita poderá escrever a história do herói que lhe povoa os pensamentos. Entretanto, não é suficiente uma técnica de estruturação da narrativa para se sentir escritor. Na tentativa de delinear o caminho a ser seguido por todo aquele que se propõe a ser escritor, buscamos apoio em Roland Barthes, A Preparação do Romance – V.II, que trata da história interior de alguém que vai empreender longa jornada (igual a do herói de Campbell) para realizar uma obra ou simplesmente escrever.

Por se tratar de material extenso, ao invés de fazer a leitura integral do texto, ele foi dividido em partes e distribuído entre os integrantes da Oficina, para resumo e posterior exposição ao grupo. A maioria dos trabalhos consta da coletânea ora apresentada. Alguns não foram apresentados por escrito. Diagramas foram construídos para melhor apreensão do conteúdo exposto.

O resultado foi bem satisfatório. Permitiu visão da jornada que o escritor terá de empreender, das provas árduas a serem enfrentadas, desde o momento da escolha da obra a ser feita, se álbum ou livro, passando pelo exercício da paciência para organização da vida em função do trabalho de escritor, até a última prova, essa de caráter moral, em conseqüência do acordo ou não-acordo que fará com a sociedade objetivando a sua obra. O autor reconhece que os escritores atuais não se dispõem a tantos sacrifícios e mais existem fazedores de livros, atualmente, do que escritores de grandes obras. Acompanhar a suposta trajetória desse herói, apesar da linguagem nem sempre fluída de Barthes, foi uma rica experiência, até mesmo pelos balizamentos que ele usou de escritores como Mallarmé, Proust, Kafka, Chateaubriand e muitos outros de igual grandeza.

Como contraponto ao caminho traçado por Roland Barthes para o escritor fazer a sua obra, fizemos leituras de entrevistas realizadas pela revista The Paris Review com William Faulkner, Ernest Hemingway, Gabriel Garcia Marques e Georges Simenon. Verdadeiras discussões sobre a arte da ficção, com relatos minuciosos sobre o processo criativo de cada um, e mais do que isso, as singularidades e excentricidades desses escritores ao exercerem o seu ofício. Essas entrevistas foram reforçadas com textos adicionais sobre os autores e suas obras, valendo a pena ressaltar os artigos de Vargas Llosa sobre O velho e o Mar e Paris é uma Festa, ambos de Hemingway.

Ainda no caminho do fazer de um escritor vimos ainda, conselhos sob a forma de decálogos, para os jovens escritores, de Hemingway; e para os escritores de relatos breves, de Horácio Quiroga; Sobre Flaubert e a Frase, de Roland Barthes, A Literatura e a Vida de Mario Vargas Llosa; e a análise que Marcel Proust faz de Flaubert em Nas Trilhas da Crítica.

Dedicamos várias quartas-feiras à leitura de duas obras grandiosas e instigantes: Lavoura Arcaica, do autor brasileiro Raduan Nassar; e Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, autora inglesa.

Da leitura de Lavoura Arcaica, além do desafio que a própria história impõe ao se acompanhar a trajetória do anti-herói na volta a casa, a narrativa nos fez dar tratos à bola pela estruturação complexa, com muito flash-back, permeado de diálogos em que os fluxos de pensamento predominam. Mas acima de tudo um livro denso, forte, belo. Foram vistos, a titulo de leitura complementar, textos relativos ao autor e à sua obra. E após finalizar a leitura, tivemos o prazer de receber Renata Lima, durante uma tarde, cuja dissertação de mestrado versou sobre Lavoura Arcaica, contribuindo ainda muito para o nosso conhecimento, a sua visão inteligente da obra.

Com Mrs. Dalloway enveredamos por caminhos literários excepcionais em que a arte da escrita se sobrepõe à própria história que é contada. É um livro de grande rigor técnico e de rara beleza, o que encantou a todos. As técnicas adotadas nos surpreendiam a cada página, tornando a leitura celeiro de descobertas. Também lemos o diário da autora enquanto escrevia Mrs. Dalloway, acompanhando a sua busca por um método que permitisse a ela colocar tudo que continha o coração humano. Ainda acompanhamos o que se passou com a escritora enquanto escrevia o livro através de John Lehmann, gerente da Hogarth Press, que escreveu a respeito de Virgínia Woolf. E para complementar, artigo de Mario Vargas Llosa sobre Mrs. Dalloway.

E muitas técnicas literárias tivemos a oportunidade de ver durante o ano. Algumas surgiram como resultado da leitura que fazíamos, outras como essenciais para o exercício da escrita. E assim vimos textos de Massaud Moisés sobre a Linguagem e o Conto, o que permitiu elaborar um esquema gráfico do Conto para facilitar o entendimento. De Raimundo Carrero, a Voz Narrativa; de Osman Lins, fragmentos do seu ensaio sobre Lima Barreto e o espaço. Para estudar o espaço na narrativa, a construção de personagens; os processos de composição e o foco narrativo, outros autores foram utilizados.

Mas o grande salto de qualidade da oficina não esteve na teoria, nem nos livros que se leu, e sim nos exercícios da escrita. Começamos quebrando o bloqueio com o uso de alguns jogos de criação literária. No primeiro deles, cortamos vários papéis, escrevemos uma palavra em cada um, sorteamos cinco e pedimos que construíssem frases com as palavras sorteadas: mulher — beleza — madrugada — solidão — piadas. Escritos baseados nesse jogo estão na coletânea.

No segundo dia de desbloqueio pedimos que descrevessem o Traço, para exercitar o espaço na narrativa. Duas escritas falavam do espaço físico; outras traziam lembranças afetivas. Excelentes trabalhos.

Em outro dia de desbloqueio escrevemos uma frase no quadro: Chovia e a tarde já estava caindo. Uma pessoa estava dirigindo numa estrada deserta e de repente o carro começa a falhar, até parar completamente. A pessoa tinha um compromisso com o (a) companheiro (a) poucas horas depois. Vários contos foram elaborados: Valsa da Saudade, história elíptica, o que não se conta é o mais forte, mais importante. Bela história. O título bem compatível com o personagem conservador. Previdente, Imprevidentemente, um conto em que se juntam narração e diálogo direto, com um final surpreendente e muita sensualidade.

Exercitamos a escrita coletiva. Dividimos os participantes em três grupos de quatro pessoas e pedimos que contassem a história que eles quisessem. Histórias criadas em grupo são muito interessantes, trazem as singularidades dos participantes, sem prejuízo da harmonia. Um dos jogos foi oral, alguém começou a contar a história e o vizinho deu continuidade e mais outro seguiu em frente e assim por diante. Além do caráter brincalhão que assumia com as irreverências que costumam acontecer nesses momentos, o incrível é que no final existia uma história sendo contada por várias pessoas. Fizemos, no mesmo dia, duas rodadas de histórias, sempre hilárias e criativas. A experiência dos grupos, à exceção de um, está na coletânea (A Outra Cena e Diálogo das Meninas), assim como a história oral contada por todos, as duas histórias, na verdade: Monólogo do Bêbado, o outro não tem título.

Ainda perseguindo a noção de espaço, trouxemos uma fotografia de um casarão com um beco ao lado, para que escrevessem uma história a partir das imagens ali apresentadas. Nem todos conseguiram escrever em casa, deixando evidente que os jogos na Oficina são mais estimuladores da criação literária. Os que escreveram criaram histórias muito interessantes. A Escada revelou uma personagem complexa (redonda) que de dia e até certa hora da noite era temente a Deus, dona da casa compenetrada e mais tarde transformava-se, tudo por causa daquele beco ali ao lado. Hilária, fantástica. Muito bem construída. O Tempo da Casa, diálogo direto, sem dar nomes aos personagens e sequer identificar o gênero, mas deixando claramente as diferenças de cada um, dentro do próprio diálogo. A história de um casarão localizado em frente ao restaurante que o personagem tagarela estava, acompanhada de uma outra pessoa, cujas observações irônicas, monossilábicas, pareciam se identificar com o sexo masculino. Outro conto trazia recordações de um casarão cor-de-rosa da infância do personagem, do qual ele se despedia para vender. A história além de lírica está narrada de uma forma muito enxuta. Cada palavra ali está bem colocada. Sem título. Outra narrativa, também uma casa da infância do personagem, embora a unidade dramática predominante esteja na ação resultante do conflito do pai embriagado entrando na casa. Dramático, denso, instigante. História muito bem contada sobre o casarão de um velho barba-azul Vida Cinza. Predominando a descrição. Em mais um conto, o tema é o nascer do dia, com muita criatividade, surpreendente, no final. Mantém o leitor atento, o tempo inteiro. Na Escuta de Uma Mãe, conto baseado na escuta de uma analista. Aquele Jogo, um jogo decisivo de copa do mundo, mas com um final trágico-cômico. Uma Cena Anunciada, história dramática de uma mulher que não conseguia fazer o marido dormir com ela, contada de forma hilária. Final surpresa.

Finalmente, construímos, em conjunto, o perfil de um personagem, baseado no modelo de Samir Meserani, completamente incoerente, com gostos e preferências que não tinham a ver com a sua profissão, a sua família. Baseada nesse perfil, foi escrito um conto, sem título. O personagem volta para a sua cidade após alguns anos. Em O Vôo da Tiara, história fantástica de uma personagem chamada Analice, que além de atender aos requesitos de conto de personagem, atendeu ao de narrador onisciente intruso. Belíssimo e impactante conto de personagem, muito bem trabalhado: A Mulher Obesa. Rei do Fuxico, conto muito bem construído, personagem bem descrito.

Participar dessa jornada foi um privilégio do qual muito nos orgulhamos.

Recife 11 de dezembro de 2006

Lourdes Rodrigues e Carlos E. Carvalheira

 

 

 

O CHEIRO DAS MADRESSILVAS DO MISSISSIPE

Ainda inebriados com o aroma das madressilvas de Yoknapatawpha, no Mississipi, encerramos o segundo ano de viagem. Na partida havia um roteiro, roteiro trabalhado por mãos receosas de a fúria de Posseidon nos lançar mar adentro, desviando-nos para uma odisseia que só a solércia de Ulisses evitaria o naufrágio. Mas sabíamos que o guerreiro argivo já não se ausentava de Ítaca para novas aventuras preocupado em manter afastados os pretendentes da sua amada e perseverante Penélope. Urgia, portanto, nos precaver, levando precioso mapa do itinerário desejado.

Tal itinerário, contudo, não deveria nos aprisionar a ponto de impedir um desvio de rota quando outras paisagens atraíssem nossos corações e mentes. E disso cuidamos com apuro. Se algo surgisse na luneta que nos capturasse, ele permitiria direcionar o leme para lá, sem sequer nos perguntar se por ali haveria risco de nos perder seduzidos pelo canto das sereias. E só depois incluiríamos a geografia desconhecida no nosso roteiro.

A viagem seria difícil, sabíamos bem disso. Alguns de nós já a empreendera algumas vezes, sempre com a sensação de ser a primeira. Até porque elas jamais se repetem, tantas as descobertas mesmo mantidos os trajetos. De comum teríamos a viagem do ano anterior. Mas agora seria diferente. Já não nos contentaria a visão ligeira e superficial dos lugares visitados, queríamos adentrar pelos caminhos, percorrer veredas, descobrir suas entranhas.

E com tal espírito desbravador atracamos no primeiro porto, o do polígono de três lados, o do trilátero literatura, escritor, leitor. Dessa trindade se pretendia extrair o mistério e a grandeza da arte literária.

Iniciamos com Terry Eagleton, O que é Literatura, retrospectiva histórica de diversas concepções sobre o tema, detendo-se um pouco nos formalistas russos. Para melhor apreensão do conteúdo exposto, resumimos as principais teorias apresentadas.Depois, seguimos Marisa Lajolo, O que é Literatura, que inicia o texto perguntando se era errado dizer que literatura era tudo o que cada um de nós considerava literatura. E após rever conceitos e movimentos literários, finalmente, admite que tudo é, não é e pode ser literatura, dependendo da visão de cada um, do sentido que a palavra tem para esse cada um, da situação na qual se discute o que é literatura. Mais adiante encontramos no ABC da Literatura de Ezra Pound as seguintes respostas às perguntas o que é literatura e o que é linguagem: literatura é linguagem carregada de significado, e a grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível. Recorremos ao Dicionário Amoroso da América Latina de Mário Vargas Llosa onde ele tenta pôr abaixo a ideia de que literatura é passatempo de luxo e defender a tese de que literatura é um dos mais estimulantes e enriquecedores afazeres do espírito. Nesse texto ele menciona a resposta irritada de Borges quando perguntavam a ele o que era literatura: “Ninguém indaga qual é a utilidade do canto de um canário ou do avermelhado do crepúsculo”!

Ainda bastante confusos pulamos para o outro vértice do triângulo: o escritor, esse artesão da escrita. Sobre essa figura recorremos a Kafka, Rilke, Saramago, Barthes, Sartre, Mário Vargas Llosa. A explicação dada à pergunta por que alguém se tornava escritor, variava desde uma solução divina, vocação literária, desejo de mistificar, fingir, enganar, ou contentar um desejo no sentido forte, ou ainda, para se tomar essencial ou mesmo como forma de fugir de uma realidade que já não suportava.

Para fechar o tripé restava-nos buscar a Sua Majestade, o leitor. A opinião de Schopenhauer, Arte de Escrever, é no mínimo controversa. Entre outras coisas ele diz que ler é pensar com uma cabeça alheia e que só se devia recorrer a isso quando os próprios pensamentos tivessem se esvaziado. Saramago, do seu pedestal narcíseo, entende que o leitor procura o romancista e não o romance quando está lendo. Sartre, no texto O que é literatura, ao responder à pergunta Por que escrever, afirma que a criação só se realiza na leitura, porque é preciso considerar a própria obra com os olhos do outro, somente através da consciência desse outro (o leitor) ele vai poder se perceber como essencial à sua obra. Em Ricardo Piglia, no seu livro O Ultimo Leitor, mais precisamente nos capítulos em que define O que é um leitor tivemos oportunidade de sair da reflexão teórica para conhecer um leitor especial chamado Ernesto Che Guevara, leitor apaixonado, que durante as pausas da guerrilha subia nas árvores para ler em paz. Em seus últimos momentos, não suportando sequer carregar o peso dos sapatos (andava descalço), trazia amarrado em seu cinto um livro.

Fechado o triângulo, desviamos a embarcação para outras paragens.

Em busca das técnicas literárias, agora sob o comando maior de Mário Vargas Llosa, Cartas a um Jovem Escritor, através das quais ele se propõe a orientar o escritor iniciante. Uma das cartas refere-se a Estilo, segundo ele, o ingrediente essencial, embora não o único, da forma do romance. E ele acrescenta que Os romances são feitos de palavras, o que significa que a maneira como o autor escolhe e ordena a sua linguagem é fator decisivo para que suas histórias tenham ou não poder de persuasão. E ele faz várias citações de escritores que ao encontrar o seu estilo, realizaram grandes obras como Flaubert, James Joyce, Faulkner, Gabriel Garcia Marquez, só para citar alguns. O monólogo interior de Molly Bloom, apoteose de Ulisses, escrito por James Joyce, foi revisto, além de trechos de Os Loureiros são cortados, de Edouard Dujardin, em face de declaração de James Joyce de que a sua inspiração havia partido dali. Também recorremos às definições de monólogo interior, fluxo de consciência e solilóquio. Algumas cartas de Flaubert foram lidas, quando ele falava da sua preocupação com o Estilo.

Ainda para aprofundar esse aspecto da escrita, o Estilo, fomos buscar ajuda nos oulipianos. Movimento pretensamente lúdico, humorístico que se contrapôs ao movimento surrealista e à escrita espontânea defendida por eles, por acreditar que nem a linguagem nem o inconsciente funcionavam de forma aleatória. No centro do método oulipiano estavam as chamadas restrições ou constrangimentos, motores da criação. Raymond Queneau, ex-surrealista, criou o movimento em 1960, juntamente com François Lê Lionnais, o Ouvroir de Litterature Potentielle (OULIPO) e escreveu Exercícios de Estilo contendo 99 formas diferentes de contar um episódio banal. Baseado nesse método, vários exercícios foram realizados na oficina, inclusive, utilizando o episódio do livro de Queneau, e outros constrangimentos criados por nós para atender essa finalidade.

Conforme previsto no início da jornada, desviamos da rota anteriormente traçada para visitar os surrealistas, dos quais os oulipianos eram o contraponto. O Manifesto escrito por André Breton, inclusive, circulou por meio eletrônico. E a técnica do cadavre exquis tão utilizada por eles foi aplicada na oficina com resultados interessantes e hilários.

Exaustos de tanto estilo retornamos às aulas epistolares de Vargas Llosa, dessa vez sobre as categorias de narrador, o personagem mais importante de qualquer romance. Antes de iniciar qualquer narrativa, o escritor sempre se pergunta quem contará a história, de que lugar ele vai contá-la. Nesse mesmo texto ele fala sobre espaço narrativo. Resumo dos seus argumentos sobre a figura do narrador foi preparado e distribuído para facilitar a compreensão. Voltamos também á tipologia de O foco Narrativo de Norman Friedman vista no ano anterior, agora analisada mais profundamente, inclusive com o apoio de resumos de Lígia Chiappini Moraes Leite. Também se viu o ensaio de Roland Barthes intitulado A Morte do Autor. E de Tzvetan Todorov, na Poética da Prosa, a classificação de visões, de focos narrativos.

Ainda através das cartas de Vargas Llosa vimos a diferença entre tempo real e o tempo da ficção, exemplificada nas leituras de contos clássicos como O Milagre Secreto de Luiz Borges e Um Incidente na Ponte de Owl Creek de Ambrose Bierce. E sobre o mesmo tema vimos de Paul Ricouer um brilhante ensaio: Entre o tempo mortal e o tempo monumental: Mrs. Dalloway.

Finalmente encerramos as aulas do escritor peruano com o assunto Níveis de Realidade, ou seja, o ponto de vista segundo o qual se situa o narrador para narrar o romance e o nível de realidade em que se desenrola o que é narrado. Inevitavelmente ao se falar em níveis de realidade, uma primeira divisão nos vem à cabeça, realidade objetiva e realidade fantástica, e com ela, os escritores sul americanos. Alguns contos de Cortázar foram trabalhados sob esse prisma.

Mais uma vez tentamos deixar evidente a importância das técnicas literárias como ferramenta para a construção das narrativas, artifícios utilizados pelo escritor para transformar em arte a história que ele deseja contar.

Durante todo o trajeto da viagem rumo às ferramentas literárias, cuidamos de dedicar um tempo especial às leituras. No roteiro já se previa a combinação dos estudos de técnicas literárias com as leituras de textos que espelhassem a teoria abordada. A escolha das leituras sempre contemplaria alguma narrativa da literatura brasileira.

As leituras longas, os romances, além da apreensão da técnica ou das técnicas adotadas pelo autor deveriam permitir, principalmente, analisar a estrutura sob a qual a obra foi construída. Dessas falaremos agora.

Iniciamos com um clássico da literatura fantástica. Dizem até que inspirou os escritores do gênero. Gabriel Garcia Marquez declarou certa vez que ao ler essa obra pela primeira vez não conseguiu dormir naquela noite enquanto não a releu. Alguns críticos sugerem que a criação de Macondo em Cem Anos de Solidão teve a sua origem em Comala, cenário do livro Pedro Páramo, o primeiro lido nessa viagem.

Pedro Páramo nos levou a Comala, lugar inesquecível e aterrorizador criado pelo genial escritor mexicano Juan Rulfo. Ali encontramos Juan Apreciado que, a pedido de sua mãe, chegara ao lugar para procurar um tal de Pedro Páramo que ela dizia ser o seu pai. E seguimos o rapaz naquela procura, caminhando por uma cidade labiríntica, onde as vozes e os murmúrios gravados nas pedras, nas paredes, nos quartos e nas ruas, revelavam conflitos, desejos, estruturas de poder baseadas na posse da terra. Por diversas vezes nos perdemos no tempo e no espaço da escrita fragmentária para nos encontrar lá na frente, ainda assustados por aquelas vozes vindas das entranhas da terra, cujos donos jamais se revelavam totalmente. Desconfiamos estar a cidade povoada por fantasmas e mesmo o narrador protagonista, Juan Preciado, parecia um ser do outro mundo. Pensamos zarpar dali tão logo soubéssemos o que havia acontecido com Pedro Páramo, dono da cidade e pai do jovem. Não poderíamos partir sem desvendar o mistério que o envolvia e à sua Suzana. Para dizermos a verdade, deixamos Comala ainda cheios de dúvidas, armando as peças do quebra-cabeça em vão, mas com a sensação de ter vivido momento único, especial através da leitura de Pedro Páramo.

O segundo porto em que fomos ancorar foi o vão de uma escada, onde a senhora D, A Obscena Senhora D, instalou-se e de lá fazia caretas aos meninos da rua, conversava com Ehud, o marido que já morrera, discutia severamente com Deus, e enchia-se de perguntas, um fogo de perguntas, numa busca frenética de sentido para a sua existência. Enfim, uma transgressora que fazia da transgressão a sua bandeira, o seu grito contra o desamparo, o abandono, o estado de derrelição em que se encontrava. Atormentada pela velhice, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo, a obscena senhora D, “d” de derrelição, trazia a alma em total vaziez. Vaziez plena e obscurecida pelo muito que sabia: Sim Ehud,el alma se oscurece por lo mucho que sabe. Como um grande buraco transbordante de águas, ah, não fizeram valetas? Vê como a água se espraia em direção a nada, vai avançando, engolindo tudo no caminho. Ah, Hillé, Hillé, por que nos atirasse na cara a obscenidade da velhice, o estupor do nunca compreender? Ter sido. E não poder esquecer. Ter sido. E não mais lembrar. Ser. E perder-se. Deixamos a senhora D não mais em seu vão, na escada, mas rodeada de cães, e essa imagem será mantida na retina, assim como as suas palavras desesperadas ecoarão para sempre dentro de cada um de nós. Oh, Hillé, Hillé, incrível Senhora D, um susto que adquiriu compreensão, salve! Obrigada, Hilda Hilst, por nos permitir acompanhá-la nessa viagem, nesse mergulho num grosso emaranhado de solidões e misérias.

A decisão de incluir O som e a fúria de Faulkner no roteiro ocorreu durante a jornada. Relutávamos por saber do desafio que seria: leitura complexa, densa, caleidoscópica, carregada de violência. O tamanho da empreitada representada pelas mais de trezentas milhas do romance, também pesava. Seria uma longa e árdua viagem. Enfim, decidimos por não nos intimidar. A história trágica dos Compson começa a ser contada através dos olhos de Benjy, o idiota, cujo fluxo desordenado, descontínuo, labiríntico, encheu-nos mais de perguntas do que de respostas. E de dor e piedade. Os choramingos de Benjy, muitas vezes tornados gritos alucinantes, permearam todos os capítulos, assim como o seu amor por Caddy, a irmã que ele dizia ter cheiro de árvore e cujo chinelo amarelado permaneceu guardando de encontro ao peito, mesmo depois de ela não mais ser vista por décadas. A história a seguir recontada por Quentin, universitário de Harvard às custas das terras de Benjy e de renúncias da família, que amava Caddy, não o corpo da irmã nem a ideia de incesto que não cometeria, mas algum conceito de castigo eterno: ele e não Deus, desse modo lograva lançar-se a si próprio e a irmã no inferno, onde poderia protegê-la para sempre e mantê-la intacta para todo o sempre em meio ao fogo eterno. Quentin preenche algumas lacunas e deixa outras abertas, inclusive a de seu próprio destino. No terceiro capítulo, Jason conta a tragédia da família com o coração ressentido pelos prejuízos aos seus planos causados pelos irmãos, esclarecendo alguns silêncios anteriores. Mas é um narrador onisciente colado principalmente a Dilsey, a criada negra dos Compson, quem traz o fecho da história, embora ainda deixe muitas perguntas em aberto. Mas o escritor, 15 anos depois, escreve o Apêndice Compson para concluir a história e conseguir paz. Ao dar voz aos pensamentos e às emoções, Faulkner, sem dúvida um dos maiores escritores do século XX, trata com inventividade e ousadia a linguagem, tornando-a a sua principal protagonista. O som e a fúria, uma leitura inesquecível, a pedir muitas releituras. A forma como a história foi contada surpreende e comove até aos menos sensíveis emocional e intelectualmente.

Alguns contos, leituras curtas, foram selecionados ora por sugestão do tema, ora por citação do mestre Vargas Llosa, ou ainda pelo interesse demonstrado pelos oficineiros. Impossível seria comentar cada um para os fins dessa coletânea, levaríamos dezenas de páginas, o que foge ao objetivo desse texto. Daí porque resolvemos apenas listar o título e o autor. Todos, no entanto, estiveram de alguma forma atrelados às técnicas narrativas que estavam sendo estudadas.

Feliz Aniversário – Clarice Lispector

Uma Galinha – Clarice Lispector

Uma Vela para Dario – Dalton Trevisan

Bar – Ivan Angelo

Erostrato – Jean Paul Sartre

O conto da Ilha Desconhecida – José Saramago

Missa do Galo – Machado de Assis

Missa do Galo (Mote alheio e voltas) – Autran Dourado

História Banal- Gustave Flaubert

Sem Enfeite Nenhum – Adélia Prado

Um Incidente na Ponte de Owl Creek – Ambrose Bierce

O milagre Secreto – Jorge Luíz Borges

A Terceira Margem do Rio – João Guimarães Rosas

Felicidade (Bliss) – Katherine Mansfield

Casa Tomada- Júlio Cortázar

Continuidade dos Parques – Júlio Cortázar

A Casa, O Tigre – Pedro Leonardo de Lucena Rodrigues

Trechos do Romance A Caverna – José Saramago

Enfim, chegamos ao porto do nosso próprio fazer literário. A produção escrita foi bem mais intensa na primeira etapa da viagem (o primeiro semestre). Talvez as obras selecionadas à leitura tenham pouco a pouco consumido o espaço previsto para essa atividade. Apesar de não extensa, foi bem rica em criatividade, domínio da técnica de elaboração do conto, clareza do texto.

Os exercícios de criatividade baseados no modelo Cadavre-Exquis iniciaram as atividades de desbloqueio. Jogo para composição de texto, ou desenho, muito utilizado pelos surrealistas, no qual se desconhece o que o parceiro faz até o seu final. Seguindo tal modelo, circulou um papel onde cada um escreveu uma frase, dobrou e passou adiante, sem ver o que já havia sido escrito. Ao colocarmos na lousa o texto resultante dessa criação livre de qualquer associação lógica, ficamos surpresos por não conter absurdos e incoerência como era de se esperar. Repetimos a brincadeira e o resultado do trabalho coletivo continuou surpreendendo.

No estilo OULIPIANO realizou-se outras atividades de desbloqueio. Primeiro, vieram os tautogramas para a escrita de uma narrativa curta utilizando as palavras fogacho, fogo, fogo-fátuo, fogo-selvagem, foice, foiteza, fole, fôlego e folgado. Algumas narrativas receberam até título: Fogacho Fuleiro (Ângela), O que é isso? (Júnior) e Apagando Fogo (Glauce). Todas elas, principalmente por causa de fogacho, fogo e folgado são hilárias e bem criativas. Depois, veio o jogo das suposições. Cada um devia começar uma história com a frase suponha que você se chama…, seguida de um nome inventado e finalizando com um trocadilho. Até um pequeno diálogo foi criado para explicar o nome EU+ZÉ+BIO, parabéns Angelapelo personagem muito folgado. EU-LETÉRIO, na verdade, deletério, e o narrador gostaria que ele se escafedesse ( Júnior). FAZEMUNDO, de tanto andar com a roupa suja ela lhe FAZ- I-MUNDO ( Glauce). E o outro surpreso com as suas qualidades intelectuais EU? GÉNIO? (Mônica). ROSA, não queria ter nome de flor e xingava de beroso quem mexesse com ela (Eugênia).

Exercícios de recriação da Missa do Galo de Machado de Assis e de Autran Dourado, cada um escolhendo o foco narrativo que lhe interessasse. Todas as recriações mantiveram o clima criado por Machado de Assis em seu famoso conto.

Outra fase dos exercícios foi a dos triálogos. A partir da palavra SOLIDÃO vários contos foram elaborados a três mãos. Alguém começava, outro prosseguia e um terceiro finalizava, tornando o jogo bem interessante. Todas as produções foram especialmente gratificantes pela evolução apresentada na criatividade, domínio das técnicas e fluidez do texto.

Mais importante, ainda, do que todas as aventuras literárias vividas nesse cruzeiro de 2007 foi o convívio alegre e afetivo com os viajeiros, grandes companheiros. Com eles seríamos capazes de ir Em busca do Tempo Perdido, de Proust, sem sentir o peso dos sete volumes de caminhada que ele exigiria. Re

Recife, 12 de dezembro de 2007.

Lourdes Rodrigues e Eugenia Menezes

NA TRILHA DO DESEJO

Há quatro anos iniciamos uma viagem pelos meandros da Literatura na tentativa de decifrar alguns significantes da criação literária. Praticamente somos os mesmos, em termos quantitativos, de quando ela começou: dezessete, na partida; dezoito, agora. Poucos desembarcaram, deixando saudade, e a esperança de reencontrá-los em cada porto tem guiado o nosso olhar. Marcas vivas de algumas dessas presenças estão neste livro. Outros companheiros aderiram ao nosso projeto e subiram no barco, trazendo alegria nova, novos saberes e muitas formas e criativas idéias a compartilhar.

Longa, difícil e prazerosa viagem.

Na Carta de Navegação alguns pressupostos guias, em certo grau teóricos, em outros, bem empíricos. E uma certeza delineante e unificadora: no cerne de qualquer criação literária reside o desejo do seu criador, o desejo de escrita. Desejo que resulta do encontro amoroso com leituras que o deixaram fascinado pela cor da Esperança de escrever ele próprio, diz Roland Barthes.

Escrevo, porque li.

Não se trata de uma leitura qualquer, tantos lêem e tão poucos escrevem. Na tese barthesiana, a grande maioria dos leitores esgota esse desejo no prazer da leitura, vivenciando a alegria plena da leitura pura, da leitura livre, completamente insensíveis ao desejo devastador de fazer algo igual. E complementa: a leitura em si não germina desejo ardente de escrever. É a leitura particular, a leitura tópica, a tópica do Desejo daquele leitor, aquela que o aprisiona na armadilha das palavras e lhe semeia a esperança de escrever, pois cada palavra é um caminho de transcendência. É a leitura do gozo, gozo feito de letra, gozo perturbador, fronteiriço da angústia. Não mais a leitura alegre, jubilosa, extasiadora, transformadora, mas consumida pela angústia, pelo suplício de uma falta, pelo Pothos. Gozo, gozo feito de letra, gozo pertubador, fronteiriço da angústia.

Ernesto Sábato faz distinção semelhante. A leitura que se esgota no próprio ato de ler ele a denomina de gratuita; e a que seqüestra os sentimentos do leitor e os reverte, de leitura problemática. E ao citar Maurice Naudeau que disse ser inútil o romance que não traz mudança para o autor e o leitor Ernesto Sábato busca exemplo: quando acabamos de ler O Processo já não éramos mais a pessoa de antes, e muito menos Kafka permaneceu o mesmo após escrevê-lo.

Assim, lançamo-nos ao mar, e a busca da identificação desse desejo criador e redentor fez-se a nossa bússola. Confiantes que as coordenadas geográficas da rosa-dos-ventos balizariam sempre o cais do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise como o nosso porto para as chegadas e saídas, os encontros e desencontros. Consultamos aventureiros que tempos antes fizeram viagem semelhante e encontramos suas cartas náuticas. Na de Joseph Campbell, O Herói de Mil Faces, todo o traçado da jornada do herói-criador-redentor em doze etapas. Na Carta de Navegação de Roland Barthes, menos poética e enigmática em sua titularidade, A Preparação do Romance, a advertência: para empreender tal viagem é indispensável, sobretudo, paciência e organização, além de desprendimento para abandonar a vida fora daquela aventura.

Mareados com a leitura de tantas cartas náuticas, decidimos aportar para ver com os nossos próprios olhos algumas criações, obras primas reverenciadas pelo leitor.

Na Literatura Brasileira fomos buscar algumas referencias inquestionáveis. Em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, encontramos a figura do anti-herói, do avesso do herói campbelliano, do avesso da família. Por caminhos tortuosos de uma narrativa na primeira pessoa, labiríntica, fragmentada, recheada de fluxos de pensamento e ácidos diálogos acompanhamos a paixão alucinante de uma irmão por sua irmã : …te exorto a reconhecer comigo o fio atávico desta paixão; se o pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu dela uma casa de perdição. Resistimos até o final, saindo extenuados pela cólera divina e assassina de um pai e o carpir de uma mãe, perdida em seu juízo, batendo a pedra do punho contra o peito: Iohána! Iohana! Iohana! Como corolário da experiência, a trombeta do pai soando, ressoando: …toda palavra, sim, é uma semente; entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a força do verbo em primeiro lugar; precede o uso das mãos, está no fundamento de toda prática, vinga, e se expande, e perpetua…

Depois, assistimos à peregrinação de Hillé em busca do sentido das coisas escondido por um esquivo e abscôndito Menino-Porco, em A Obscena Senhora D, de Hilda Hilst. Sentada no vão de uma escada, de onde fazia caretas para os meninos da rua, ela conversa com Ehud, seu marido: queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo, trouxe-nos o encantamento da fala poética, e delirante, em uma narrativa na primeira pessoa.

Em Água Viva, de Clarice Lispector, um belo poema em prosa, em que a personagem feminina parece se inquietar com o absurdo da vida ao buscar entender o significado da solidão e o de seu estar no mundo. Narrativa fragmentada, ausência quase completa de enredo, linguagem densa, metafórica.

Saindo das águas brasileiras, mas ainda na América Latina, o encontro com o realismo fantástico, marca dos seus escritores maiores. Pedro Páramo, de Juan Rulfo, nos apresentou Comala, e Juan Apreciado que, a pedido da mãe, chegara ao lugar para procurar o pai que não conhecera. Vozes, murmúrios gravados nas pedras, nas paredes, nos quartos e nas ruas revelavam conflitos, desejos, estruturas de poder baseadas na posse da terra. A escrita fragmentada exigia que tentássemos juntar as peças para construir o quebra-cabeça, único meio de desvendar o mistério que envolvia aquela cidade e os seus habitantes, mas por diversas vezes sentimo-nos perdidos no tempo e no espaço da narrativa, assustados com as vozes vindas das entranhas da terra, cujos donos jamais se revelavam totalmente. Bela, desafiante e tenebrosa novela.

Em Aura, de Carlos Fuentes, o tema da morte sob um prisma diferente, a do realismo fantástico. A narração na segunda pessoa e o processo de duplicação utilizados pelo autor estimulam o interesse do leitor para desvendamento do sujeito da fala, de quem é a voz que se esconde atrás daquele tu, levando a inúmeras possibilidades interpretativas.Alguns estudiosos da obra consideram que a narração na segunda pessoa é uma forma do sujeito do enunciado se confundir com o sujeito da enunciação. Na verdade, o livro é uma profunda reflexão sobre o efeito devastador do tempo, numa atmosfera obscura, resultante da carga simbólica, das elipses, da escuridão, do entrecruzamento do sonho com a realidade, com a magia, o encantamento. A adoção da voz narrativa na segunda pessoa muito contribuiu para criar o clima ambíguo, a alternância entre passado e futuro, parecendo deflagrar um efeito em cadeia na obra: a duplicação. Essa técnica tornou Aura uma\ obra particularmente criativa.

Ao desembarcar na Europa dos anos vinte, pareceu-nos continuar a ouvir a voz do pai Sim, toda palavra é uma semente que germina em meio às flores de Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, em Londres. Ali descobrimos que a arte da escrita se sobrepõe à própria história contada. Anos depois vimos em Aspectos do Romance, de E.M. Forster que a história tem por objetvo brincar com a curiosidade do leitor, mantendo-o em permanente suspense a perguntar e depois, e depois, e depois… Não muito mais do que isso. A geração de escritores dos anos vinte, James Joyce no ápice da pirâmide, Virgínia Woolf, logo a seguir, resolveu ousar na licença poética às suas escritas e trouxe o enredo simples para os seus romances, conduzindo o leitor pela densidade e amplitude de narrativasa comoventes e transformadores: Ulisses e Mrs. Dalloway. Neste último, Virgínia Woolf exibe a dualidade das coisas através dos personagens, do mundo ao redor deles, dos sentimentos que lhes invadem: Mrs. Dalloway expõe a permanente transição do eu ao outro, da paz à guerra, da sanidade à loucura, da vida à morte. Questões humanas fundamentais surgem em meio ao cotidiano mais corriqueiro: …sempre sentira que era muito, muito perigoso viver, por um dia que fosse. Apesar do narrador onisciente, na terceira pessoa, a fronteira com as vozes dos personagens é quase imperceptível, trazendo grandeza e beleza na polifonia, nos diálogos entrecruzados, nos monólogos e fluxos de pensamento.

Seguindo viagem, fomos encontrar, já no pós-guerra, O Estrangeiro, de Albert Camus, na França, o melhor livro depois do armistício, segundo Sartre.Os que já o haviam lido não recusaram o convite para a leitura coletiva, conscientes do quanto a releitura poderia ser impactante, problemática, no dizer de Ernesto Sábato. Recorremos a O Mito de Sísifo, do mesmo autor, para apreender o estado de absurdo assumido pelo personagem Meursault. Ensaio curto, denso, espécie de formulação teórica do absurdo, da tomada de consciência pelo indivíduo da falta de sentido da vida, já que o caminho leva à morte. Na análise de Sartre ele diz que para Camus o absurdo é ao mesmo tempo um estado de facto e a consciência lúcida que certas pessoas tomam desse estado. Leituras como O Estrangeiro e o Mito de Sisifo capturam a alma do leitor para sempre.

Na chegada à América do Norte descobrimos que as leituras faulknerianas não nos deixariam mais ficar surpresos com Clarice Lispector ou qualquer outro escritor e os seus labirintos lingüísticos. O Som e a Fúria, escrito com maestria por William Faulkner, descreve num ritmo alucinante a saga dos Compson, primeiro sob o olhar e choramingos de Benjy, o idiota, cujo fluxo de pensamento desordenado, descontínuo, labiríntico, encheu-nos mais de perguntas do que de respostas. Espaço, tempo, sintaxe, pontuação tudo foi ignorado poeticamente nessa obra, tornando a narrativa revolucionária e avassaladora. Cada capítulo tem um narrador, cada personagem um rico e complexo perfil psicológico, experiência que o autor exacerbaria depois em Enquanto Agonizo, outra leitura desse autor que fizemos, ainda extasiados com o cheiro das madressilvas de O Som e a Fúria, quando passamos a inalar a podridão do corpo putrefato de Addie Bundren insepulto há vários dias. Além da família, o marido e os filhos, apenas os urubus participaram da jornada até Jefferson, lugar em que ela seria, finalmente, enterrada. Cada personagem ocupou espaço de capítulo para contar a história. Leituras inesquecíveis a pedir que se volte outras vezes a elas.

Na mudança de roteiro no tempo, o Inferno, em A Divina Comédia de Dante Alighieri. Sabíamos dos riscos e da árdua tarefa que teríamos pela frente nessa primeira parte da viagem aos reinos do além-túmulo, pois o seu prefaciador, Carmelo, alertara-nos: o autor florentino é eclético, ele abraçou todas as correntes do pensamento, gnoseológicas, morais e religiosas que lhe antecederam e ainda estavam vivas no seu tempo.Vários outros percursos foram feitos pela mitologia grega, romana, celta, identificando veredas, descobrindo caminhos para a compreensão da obra. Navegar pelo Inferno exige coragem e determinação para as muitas descobertas que ele encerra, para os novos saberes que exige e cria.

E, finalmente, singramos para a Russia, com A morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi, verdadeira obra prima, em que cada página é um espelho com muitas reflexões para o leitor. Impossível ler sem se sentir completamente refletido nos questionamentos dolorosos de Ivan Ilitch. Narrativa simples, começa pela morte do personageme em flash-back conta a sua história, e assim, do último capítulo volta-se para o primeiro, fechando o ciclo. O narrador presente na maioria do tempo, nos momentos de maior angústia do personagem retira-se e entrega-lhe a voz para gritar a sua dor, a sua ira, o seu desespero.

As leituras foram intensos exercícios de sensibilidade. Todas, sem exceção. As armadilhas contidas nas palavras eram tantas que não havia como evitá-las. E a escolha delas não foi aleatória. Sabíamos o que estava à nossa frente, ou melhor, queríamos que elas fossem assim, problemáticas, ameaçadoras, fronteiriças da angústia. Gozo. Puro gozo. É bem verdade que havíamos nos protegidos um pouco com o arsenal de técnicas literárias vistas e revistas até a exaustão através de Mário Vargas Llosa, Ricardo Piglia, Francine Prose, Massaud Moisés, Norman Friedmann, Lígia Chiappini Moraes Leite, entre outros. Tais ferramentas eram respiradouros, os cortes na leitura para a identificação do tipo de narrador, do foco narrativo,da voz do personagem, do espaço e tempo narrativos, ou para relacionar fragmentos, discutir a frase, o parágrafo.

Muitas outras leituras aconteceram, em formas breves, ora por sugestão do tema, ora para reforço da técnica estudada, ou ainda por sugestão de alguém. Contos de Cortázar, James Joyce, Onetti, Borges, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Katherine Mansfield, José Saramago, Virgínia Woolf, Gustave Flaubert, Machado de Assis, William Faulkner, Nélida Pinon, Gógol, Puchkin, Nabokov, Tchekhov, Dalton Trevisan, Ivan Ângelo, Adélia Prado, Jean Paul Sartre, Autran Dourado e de Ambrose Bierce.

Apesar do encontro amoroso com as leituras e do conhecimento das várias técnicas, foi no próprio fazer literário do grupo, no exercício da escrita que a viagem se tornou ainda mais interessante. O sucesso de uma oficina literária é a escrita. Passar da leitura para a escrita, no rastro do desejo, só deve acontecer pela mediação de uma prática de imitação. Não a imitação pobre do plágio, mas a imitação transformadora, aquela em que o leitor/escritor realiza o clinamen, segundo Haroldo Bloom, situação típica de apropriação sob a forma de releitura ou interpretação desviante, no ponto em que o escritor influenciado acredita ser necessário corrigir o poema do seu antecessor. Fortes fatores emocionais envolvem esse processo que Bloom chama de Angústia da Influência. O eu do sujeito é falado a partir do lugar do Outro, da identificação ao outro que permite situar com uma certa precisão a sua relação imaginária e libidinal com o mundo e ver o seu lugar, e estruturar, em função desse lugar e do seu mundo, seu ser, diz Rolando Barthes.

Os textos que compõem esse livro surpreendem e nos deixam felizes pela qualidade da prosa, sejam quais forem os seus pais poéticos, talvez nem eles próprios o saibam. Pouco importa, também, a data da sua escrita, se do começo da viagem ou se bem mais recentes, quando a tripulação já estava mais preparada para enfrentar os mistérios do oceano, elas são as sementes dessa viagem incrível pela trilha da criação literária.

Intensa produção de textos, não tantos quanto o grupo gostaria, havia fôlego para muito mais, com certeza, mas o suficiente para sentir o efeito germinador das palavras lidas. Palavras que ficaram marcadas como cicatrizes na alma, palavras do pai: toda palavra, sim, é uma semente…

Todas as epigrafes são de Clarice Lispector, abrindo portas para os campos tecidos pelos significantes, a exceção da epígrafe das Paródias Machadianas que é do próprio Machado. Não mais falaremos desses escritores, nem dos seus textos, deixando passagem para você, leitor, fazer a sua própria viagem através de sua leitura particular.

Jaboatão dos Guararapes, novembro de 2009

Lourdes Rodrigues

* Prefácio do livro Escrituras, publicado em 2009, Edições Bagaço, com as produções dos participantes da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector

MARES REVOLTOS

Cinco anos de existência. Cinco anos de uma viagem extraordinária. A Carta de Navegação dos quatros primeiros anos, Escrituras, dispensa comentários. A de 2010 traz Madame Bovary, longa, desafiante e inesquecível trilha pelas águas flaubertianas. Outros traçados avançam ainda mais por mares revoltos, delírios, escombros, caprichos, loucura. Na mesma fronteira francesa, os dois Horla de Guy Maupassant. Depois, em portos de língua alemã: Os mortos Calam, Arthur Schnitzler, (Áustria); Tobias Mindernickel, Thomas Mann (Alemanha); O Veredicto, Franz Kafka, (Tchecoslováquia). E a bússola a voltear pelo O abismo da alma singra outros mares em A galinha degolada, Horácio Quiroga (Uruguai) até, finalmente, encontrar o Amor, Clarice Lispector, Um moço muito branco, Guimarães Rosa (Brasil) e Um país estranho, Ernest Hemingway (EUA). Enfim, chegamos ao fim da viagem com a certeza de que a loucura fascina. Michel Foucault disse que ela é uma fonte de saber. Talvez consista nisso o seu encantamento. E certamente a Literatura é o seu grande olho-de-água, lugar de jorro ininterrupto dos muitos saberes.

A produção dos viageiros foi intensa, começou sob o som dos tamborins, passou por estranhamentos e terminou carregado de luxúria: Nem sempre Lili toca a flauta, O jantar e Flores, senhor? (Ângela); No mercado da ribeira, O tempo no espelho, A confissão (César); A menina e o anjo (Eugênia); Você não é aquele Pierrô? (Glauce); que tal um whisky? (jorge); a triste Colombina, guizos e Chora, chorão (Everaldo Júnior); Sem título (Marcelo); Um último chope, Onde estão as meninas? e Lado esquerdo (José Raposo); Poema feito e O testemunho (Sérgio); Do amor demais (Sonia); Magia de carnaval (Teresinha).

Momento glorificante da viagem, o colóquio Psicanálise, Arte e Literatura, com uma convidada especial, Tânia Rivera, que embarcou com Sujeitos à deriva. Psicanálise e Literatura e Sobre o comum. Psicanálise e Cultura, deixando grandes reflexões.

Feliz Natal a todos os companheiros de viagem, aos que ficaram até o final e aos que precisaram aportar antes. Que em 2011 novas e fascinantes aventuras aconteçam.

Lourdes Rodrigues e Eugenia Menezes

De Volta ao Começo

Outra vez,de volta à terra firme, de volta ao começo, ao  fundo do fim, de volta ao começo como diz a música de Roupa Nova. Puído, amarelecido, amarrotado  o tecido do roteiro encontrado no camarim de Navegação na hora do embarque traz as marcas do uso intenso e dos traços dos mares navegados. Plano ambicioso, bem à altura dos seus viageiros.

Antes de lançarmo-nos ao mar, havíamos recebido a benção e os bons augúrios da nossa madrinha Clarice Lispector, com a leitura do conto Viagem a Petrópolis. Sinal de alerta para lembrarmos da implacável linha do tempo quando em  busca de outros horizontes, marujos crestados pelo  sol em mares estranhos que já somos. Narrado na terceira pessoa, Viagem a Petrópolis conta a história de uma velhinha simpática que nasceu e viveu quase toda a sua vida no Maranhão e encontra-se morando no Rio de Janeiro, de caridade, numa casa em Botafogo, com pessoas que não são da sua família e que, cansadas da sua presença, resolvem levá-la para Petrópolis, onde pretendem deixá-la na casa de outro membro da família, sem sequer consultá-lo. É um conto que fala de solidão, desamparo, abandono, derrelição, como dizia Hilda Hilst, do sentir-se só no mundo, da vaziez da alma. Comovente no dizer e no não dito, merecendo muitas releituras para se tentar garimpar as riquezas submersas que escaparam à nossa percepção num primeiro momento. Um verdadeiro iceberg, aliás, como tudo que Clarice Lispector fez: o que está visível é apenas uma pequena parte do que está ali. O conto e a análise literária  foram  publicados nesse Blog, em Clariceando.

Devidamente abençoados e alertas, iniciamos  viagem  seguindo roteiro para aportamento em águas francesas: Calais. Depois, Paris. Paris é uma festa!, dois séculos antes de Hemingway dizer essa frase, o escritor  Laurence Sterne, enfermo, parecia buscar em Viagem Sentimental, alegria para os seus pulmões doentes ao visitar aquela cidade enquanto ainda lhe era possível faze-lo, embora tivesse a intenção de chegar à Itália, se Tânatos não tivesse tido outros planos para ele.

Viagem Sentimental

Seguindo Sterne na sua Viagem Sentimental , constatamos felizes que a  expectativa de encontrar algo diferente de um roteiro de viagem havia se realizado. O tão referenciado estilo, razão maior da nossa escolha,  revelou a maestria do autor com as  palavras, mas,  sobretudo, a sua profunda compreensão da dimensão do humano.  As extravagâncias sintáticas, tão inovadoras, eram apenas uma parte de sua extraordinária engenhosidade, ainda mais se lembrarmos da sua origem, educação e formação religiosa. Afinal, Sterne era um pároco.

Na categoria de viajantes curiosos, acompanhamos Sterne em suas fantasias viageiras … e num Désobligeant. Leitura instigante que nos obrigou a ler e reler várias vezes o mesmo parágrafo para tentar esclarecer melhor o que estava sendo dito. Próximo ao encerramento da leitura, começamos a fazer a tradução da análise literária que  Virgínia Woolf havia feito sobre a Viagem Sentimental – a tradução encontra-se no Blog. Naquela análise, a escritora questiona se Sterne teria controle sobre o que estaria escrevendo e afirma que essa seria uma resposta que  nós leitores dificimente conseguiríamos ter. Vejamos um pequeno trecho da análise:

Os solavancos, as sentenças desconectadas são tão rápidas e pareciam sob tão pouco controle como as frases que caem dos lábios de um brilhante orador. A própria pontuação é aquela da fala, não da escrita e traz  com ela o som e as  associações da voz falante. A ordem das ideias, a subtaneidade e impropriedade delas, é mais fiel à  vida do que à literatura. Há uma intimidade nessa conversa que permite que as coisas escapem sem censura, e que teriam sido de gosto duvidoso se faladas em público. Sob a influência desse estilo extraordinário o livro se torna semitransparente. As cerimônias costumeiras e convenções que mantêm o leitor e o escritor numa distância cordial desaparecem. Estamos tão perto da vida quanto podemos.

Se Laurence Sterne fosse retirado do livro, diz Virgínia Woolf, pouco ou nada restaria dele, pois  nada acrescenta em termos de informação, ou jamais serviria como um roteiro turístico, porque sequer se preocupa em dizer algo sobre a arte ou a arquitetura da catedral ou fala do sofrimento ou bem-estar da população rural. A sua viagem pela França seguiu o roteiro de sua própria mente e as suas principais aventuras não foram com bandidos ou precipícios, mas com as emoções do seu próprio coração.

Esta mudança radical de abordagem já representava uma ousada inovação. Para Sterne uma garota com uma bolsa de cetim verde era mais importante do que a Catedral de Notre Dame, ansioso que ele estava para captar a essencia das coisas, assim como deveria fazer um viajante sentimental. Enquadrados como viajantes curiosos, na sua classificação, aprendemos que os encontros e desencontros que ocorrem numa viagem dizem mais do lugar do que séculos de tradição arquitetônica.

Ainda em Paris, mas bem longe de uma Viagem Sentimental, encontramos Véra, de Villiers de Lisle-Adam,a quem dedicamos tempo suficiente para surgir a pergunta:  existe fronteira separando o fantástico, a loucura, o estranhamento? De olhos nessa trilha visitamos ETA Hoffmann, O Homem de Areia,  celeiro onde Freud extraiu elementos  para a sua teoria sobre o estranho familiar.Obra fantástica, complexa, tanto em termos literários, a incrível qualidade da escrita, dos recursos técnicos utilizados, do relato especular.  quanto no que se refere aos distúrbios de personalidade, a ambivalência, o estranhamento, a insanidade. Fisgados pelo tema, consultamos, ainda, Erasmo de Roterdã,  Elogio da Loucura, num parágrafo imenso sobre os escritores, mas extraímos, apenas, o trecho em que  a loucura, falando na primeira pessoa, de forma presunçosa, fala da dívida que o escritor tem com ela, não todos os escritores, mas aquele  que escreve sob os seus auspícios, pois  deixa fluir tudo o que lhe passa pela cabeça, imprime todos os sonhos  de sua imaginação exaltada.Os surrealistas bem que se encaixariam nessa classificação, pois acreditavam que  mentes alteradas liberavam do inconsciente o jorro furioso da criatividade.

Antes de atracarmos em outro grande porto, e ainda com a cabeça cheia de perguntas sem respostas, fizemos  outros pequenos percursos, pequenos em tamanho, mas de grande beleza e importância. Participamos de um velório na casa de Os irmãos Dagobé e de um pequeno percurso de avião em As margens da Alegria com Guimarães Rosa. Assistimos ao duelo entre um negro cantor e um personagem de poema épico argentino, em O Fim, e ao encontro de difícil diálogo entre um homem maduro e outro  jovem, cujo inevitável destino do jovem era ser o velho no futuro longínquo, os dois ao mesmo tempo muito parecidos e diferentes demais,  em O Outro, ambos de Jorge Luiz Borges. E a disputa entre um casal jovem em Os Sexos, de Dorothy Parker, todos trazendo profundas revelações sobre as emoções humanas. Mas foi em Nero, de Miguel Torga, que a nossa sensibilidade foi mais atingida com o relato de um cão sobre as suas relações com as pessoas, outros animais e os mistérios da vida e da morte.Resenha sobre Nero, um pequeno glossário com as palavras desconhecidas  e  texto extraordinário de um grande leitor de Torga, Ramires, também estão no blog. Espaço foi reservado, também, para um grande clássico da nossa literatura: A teoria do Medalhão, de Machado de Assis; e um conto de Jean Paul Sartre: O Muro. Sendo o ano de homenagens a Nelson Rodrigues, tempo especial foi dedicado às suas peças: Delicado, A dama da lotação e Os noivos.

Animados ainda pelas peças de Nelson Rodrigues, rumamos à Argentina para conhecer praias menos sóbrias do que as hoffmanneanas e Borgeanas e encontramos as delícias do tango rasgado de Alfredo Le Pera e Carlos Gardel (Deliciosas criaturas perfumadas,/quiero el beso de sus boquitas pintadas…) no romance folhetim de Manuel Puig: Boquinhas Pintadas.Que viagem pela alma feminina dos anos cinquenta na província de Coronel Vallejos! Três mulheres circulam todo o livro: Nélida, Mabel e Raba, amigas/inimigas/rivais, tão próximas e tão distintas, heroínas de uma trama que envolve inveja, fofoca, mal-caratice, sexualidade, boa fé, tudo expresso de forma  particular, seja através de cartas, conversas ou  boletins de ocorrência policial.  Se Sterne foi um transgressor da sintaxe, Manuel Puig foi além.  Conhecido como um escritor experimental, nesse livro ele reúne recursos kitsch como fotonovelas, músicas de tango, tudo numa verdadeira polifonia feminina expressa ainda em cartas, anúncios, diários, diálogos, monólogos interiores. Os recursos técnicos são vastos. O autor confessou que buscava criar uma nova forma de literatura popular baseada no velho folhetim. O resultado foi uma leitura fascinante pelos recônditos da alma feminina.

Antes de voltarmos para casa, o timoneiro decidiu fazer manobra arriscada, fora da rota programada, para descobrir os mistérios da Caixa Preta de Jennifer Egan. Os viageiros ficaram tensos com a travessia, quase em clima de amotinação pelo tempo perdido em águas turvas, pouco interessantes. A embarcação arroteou, cortou ondas imensas em mar bravio e navegou a todo pano para atravessar a tempestade e sair para mares mais calmos. Na opinião do timoneiro, valeu a pena, apesar dos riscos, viagem que poderá ser refeita por algum dos viageiros que mesmo em face das tormentas tenha vislumbrado algo interessante naquela paisagem.

Mas, o  melhor da viagem ainda é voltar para casa, principalmente depois da turbulência enfrentada. E Essa Terra do escritor baiano Antonio Torres, premiado aqui e na França, permitiu-nos navegar em mares mansos, trouxe-nos o cheiro da cozinha da nossa casa,  ao falar das paisagens e do povo que tanto conhecemos, do sertão do nordeste. Nélo, impulsionado pelos técnicos da Ancar saiu de Junco em direção a São Paulo para voltar muitos anos depois, sifilítico, miserável e se suicidar. O filho querido que havia partido, motivo de orgulho da família e do próprio lugar, retorna para morrer. Muitas histórias de Nelo vamos saber através da narração de Totonhim, o seu irmão. Na verdade, não vai ser possível concluir essa viagem ainda em 2012, sob pena da pressa comprometer a leitura e apreensão da beleza. Foi o terceiro romance escrito por Antonio Torres, o que o consagrou definitivamente como um dos melhores escritores brasileiros contemporâneos.Apesar do estilo regionalista, Essa Terra não se encerra nessa visão. A escrita fragmentada cheia de idas e vindas, como diz Ítalo Moriconi, remete ao grande mestre William Faulkner, a quem Torres prestou tributo já na epígrafe do seu primeiro livro, orgulhoso do seu pai referência.Melhor padrinho, impossível. Os viajantes bem o conhecem desde O Som e a Fúria e Enquanto Agonizo. Será o primeiro porto de 2013 que iremos atracar, com certeza.

Tão importantes quanto as viagens que fizemos por portos estrangeiros foram as que fizemos com as escritas dos nossos viageiros, algumas estimuladas por faíscas criativas, contrangimentos,  outras bem livres e espontâneas. O tema da velhice trazido por Clarice Lispector com Viagem à Petrópolis, levou Teresa Sales a escrever um excelente conto O velho, que empolgou e trouxe muita discussão e lembranças. Mais adiante,  ainda empolgados com  o fator tempo, voltou-se à juventude e Paulo Tadeu iniciou um triálogo com Desencontros de brotos, usando o foco narrativo de três jovens rapazes conta a história de um baile conhecido como encontro de brotos; Edwiges C.C.Rocha, conta uma história do mesmo baile, dessa vez usando o foco narrativo da mãe das moças Nos tempos em que se chamavam brotos;  e por fimTeresa, conta Os bailes da vida, na ótica dos mesmos rapazes muitos anos depois. Todos os contos estimularam as recordações dos próprios viageiros na juventude, ocasionando  muitos risos.

Estimulados pelo primeiro parágrafo retirado do livro da Laura Restrepo, Delírio, lançado pelo timoneiro como faísca criativa, vários contos foram escritos. O parágrafo era mais ou menos o que segue: Soube  que tinha acontecido algo irreparável no momento em que um homem me abriu a porta daquele quarto de hotel e vi minha mulher sentada ao fundo, olhando pela janela de um modo muito estranho. Foi na minha volta de uma viagem curta, de negócios, só quatro dias. No conto de César Garcia, o marido leva a mulher para a casa e tenta todos os recursos médicos para fazer com que a mulher volte ao normal, até que ele resolve apelar para a homeopatia e então… O final é surpreendente, pega o leitor completamente desarmado. Muito criativo e inteligente. Na versão de Everaldo Júnior, o conto segue cheio de mistério, levando o leitor a ficar cada vez mais interessado em juntar as pedrinhas para construir a história. Não há traição, mas um drama muito pesado que o leitor termina sem saber se realmente aconteceu ou se é fruto da imaginação daquela mulher de olhar fixo por aquela janela. Muito bem constrúido, diálogos tensos, dramáticos. Paulo Tadeu é o nosso nelson rodrigues pela extrema riqueza na construção dos dramas familiares. O marido traz de volta a mulher para a casa, também tenta todos os recursos para salvá-la daquele mutismo, até que um dia … Todos gargalharam, não havia como deixar de escancarar a risada com o final que ele deu ao seu conto. Outros contos escritos por Paulo Tadeu já revelavam esse lado cômico-trágico e a compreensão rodrigueana dos laços de família. Em outro conto escrito por ele, um homem, taxista, sentia-se muito feliz com a sua família, filho prestes a se formar doutor, filha generosa, séria, compenetrada, mulher zelosa, enfim um lar perfeito, tanto que o títtulo do conto é Lar Doce Lar. Um dia, ele descobre no carro um pacote deixado por um cliente e leva para casa e aí começa o desmoronamento do castelo de areia que ele havia construído. Econômico nas palavras, rico no conteúdo, o conto encantou a todos. Mais um conto de Paulo lido na oficina Covardias, traz para reflexão o medo do ser humano, o medo de enfrentar situações que ele pensa não ser capaz de dar conta. Esse conto traz muita tensão para o leitor que só consegue respirar no final dele. Muito bom.

As produções dos viageiros são muito esperadas e motivo de grandes festejos quando chegam. O blog recebeu boas colaborações dos viageiros, ora sob a forma de resenha literária, às vezes com as poesias, notícias, críticas de filme, entre outras. Que em 2013, tanto as produções de contos como as contribuições ao blog venham cada vez mais e mais e mais…

De volta para casa, juntamos os retalhos da carta de navegação para resgatar o brilho do sol na menina dos olhos ao relembrar a viagem maravilhosa de 2012 e assim poder dividir lembranças com todos os velejadores.

Ribeira dos Arrecifes, 22 de dezembro de 2012

Lourdes Rodrigues

 

Lançamento Escrituras II - Traços da Oficina

Lançamento Escrituras II – Traços da Oficina

Tecendo Palavras

Lourdes Rodrigues

E assim se passaram oito anos. Quase uma década de viagens. Longas, curtas, tensas, densas, leves. No camarim de navegação, cartas náuticas cheias de rabiscos que refazem rotas, mudam roteiro. Dos primeiros quatro anos, deixamos registros em Escrituras, publicado em 2009. Trilhas dos últimos quatro serão deixadas aqui, em Escrituras II – Traços de Oficina.

Alguns viageiros navegam desde o começo. Outros aportaram, deixando marcas da sua passagem em Escrituras II. À nossa espera nos portos em que atracamos muitos amantes da aventura literária, todos recebidos com guirlandas de flores em volta do pescoço pelos navegantes. Sempre uma grande festa a chegada de outro companheiro.

O que leva diferentes seres, de formação diversa a se reunir para tão longa viagem? Não é por causa da Carta que vamos usar, porque ela está sempre sendo redesenhada e muitos nem a procuram e já se lançam ao mar, destemidos e confiantes. Acredito que velhos e novos marujos estão movidos pelos mistérios dos mares das palavras, pelo desejo de desvendar alguns significantes da criação literária como já o dissemos em Escrituras. Guardo a esperança de que essa atração pelos seus encantos alimente a chama do desejo de criação para que grafem sempre mapas para outros navegadores seguirem. Assim, no rastro desse desejo, leitura e escrita formarão binômio inseparável, quase monogâmico.

Desde tempos remotos, todavia, o idílio entre leitura e escrita nem sempre acabou em casamento. E é sempre a escrita, a excluída, a que suporta maior rejeição. Talvez, quem sabe, por acusarem-na de ser amante passional, extremista, cuja ambivalência vai do amor ao ódio, ora transportando aquele que sucumbe ao seu fascínio ao céu, ora às profundezas do inferno. Enquanto a leitura é desprendida, nada pedindo em troca, além da sua atenção.

Eu diria que a leitura se presta aos diversos quereres. Àqueles voltados para o prazer da deusa Volúpia, desejo plenamente satisfeito na história que é contada, ela não se faz de rogada, revela apenas a sua face exterior, a ponta do iceberg, no dizer de Hemingway. Para os mais exigentes, deixa-se conhecer em sua plenitude, desnuda-se, revela-se, permite que perscrutem os seus silêncios, as suas riquezas submersas, as suas vozes e curvas. Torna-se um caleidoscópio, quanto mais se olha mais se vê, mais se descobre. E é desse tipo de leitura que muitas vezes advém o desejo de escrever. Por mais assustadora que seja tal perspectiva, ela promove a escavação das fundações do binômio ler-escrever e, paulatinamente, a desconstrução das resistências, dos receios. Alicerce preparado, resistência vencida, cabe ao sujeito criador soltar as últimas amarras e iniciar a sua árdua e por vezes temida tarefa.

A capa deste livro, obra do viageiro-escritor-pintor Paulo Tadeu Gusmão, anuncia de forma vigorosa o ambiente da criação literária. Não vou analisar o quadro do ponto de vista da sua beleza plástica, embora muito me comova. Das linhas que organizam as suas figuras, não são as leis da perspectiva ou o seu movimento interno que neste momento me chamam a atenção. Tampouco suas belas cores, matizes, gradações, contrastes e brilhos. Quero falar do quanto ele expressa do cenário caótico do fazer literário: papéis soltos por cima da mesa, espalhados pelo chão, cadernetas de anotações dispersas sobre o móvel, borracha e lápis abandonados no assoalho, cortinas descerradas, deixando luz e paisagem atravessarem janelas envidraçadas para virem em socorro à inspiração do criador que parece ter saído às pressas, quem sabe devastado pela angústia das palavras que não chegavam.  À esquerda da cadeira vazia e luminosa, em cima de uma mesinha, o livro que ali se encontra bem poderia ser um pequeno dicionário, este fiel e inseparável companheiro do fazedor de palavras.

Escrituras II – Traços de Oficina traz amostra (textos selecionados) da criação vibrante e cheia de maestria dos escritores da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector nos últimos quatro anos. Eles foram pródigos em suas escritas criativas. Sem dúvida, tamanha fartura se deve às capacidades e talentos de cada um, contudo, não se pode deixar de reconhecer, como fundamental, a passagem dialética das leituras amorosas à escrita, realizada por aqueles autores. No quadriênio considerado (2010-2013), verdadeiro celeiro literário foi edificado na Oficina pelas leituras críticas de grandes obras: Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Viagem Sentimental, de Laurence Sterne, Horla, de Guy de Maupassant, A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda, A Varanda de Frangipanni, de Mia Couto, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, Essa Terra, de Antonio Torres, Boquitas Pintadas, de Manuel Puig,  Bartlebyo escrivão, de Herman Melville, Édipo Rei e Édipo em Colono, de Sófocles,  Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostóievski. Além de contos de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Luís Borges, Kafka, Katherine Mansfield, Arthur Schnitzler, ETA Hoffmann, Miguel Torga, Anton Tchekhov, Somerset Maugham, entre muitos outros.

Este livro traz influências dessas leituras e de tantas outras feitas ao longo da vida de seus autores, experiências que contribuíram para o encontro do próprio estilo, porque o eu do sujeito é falado a partir do lugar do Outro. São as leituras, as vivências e observações de cada um que liberam o fluxo criativo e fazem correr a pena.

Para ordenar conteúdos de temáticas tão heterogêneas recorri a Clarice Lispector, mais uma vez, e sob os auspícios de algumas epígrafes selecionadas, reuni textos que abrem portas para os campos tecidos pelos seus significantes. A divisão permite que o leitor se mexa à vontade em sua leitura, movido pelas veredas insinuadas nas epígrafes.

Escrituras II – Traços de Oficina é um livro predominantemente de contos, narrados na primeira ou terceira pessoa, monólogo direto ou monólogo interior, discurso direto, indireto e indireto livre, fluxos de consciência, narrativas lineares ou circulares, narradores intrusos, oniscientes ou neutros, personagens simples, personagens complexos entre várias outras técnicas literárias. São recursos que aprimoram a estética da escrita e separam o contador de histórias do escritor criativo e literário. Além dos contos, o livro traz excelentes crônicas, o que nos permite questionar onde termina a crônica e começa o conto. Às vezes a linha divisória é tão tênue que se é obrigado a recorrer a velhos cânones literários para tentar identificá-los. Na realidade, pouco importa essa separação, o que interessa, de fato, é a sua qualidade literária, e neste livro, ela é muito boa. Entre os viageiros estão excelentes cronistas e as suas escritas serão sempre incentivadas.

Aos leitores desejo que se lancem ao mar para fazerem as suas viagens e que elas sejam tão prazerosas quanto as nossas têm sido ao longo desses oito anos, em particular dos últimos quatro, cujas palavras tecidas estão neste livro que ora tenho o prazer de lhes apresentar.

Jaboatão dos Guararapes, 21 de setembro de 2013

 

 

4 ideias sobre “Cartas de Navegação

  1. Após a leitura desse intenso inventário literário, sinto uma imensa sensação de quem deixou o trem da vida passar e não fez nada para detê-lo. Aquela saudade de um tempo não vivido que nada pode remediar. Ainda bem que de última hora, pude embarcar na viagem sentimental de Sterne.

    • Eu não diria que de última hora. Eu digo que você chegou bem na hora e que é um privilégio ter conosco um viageiro tão especial.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *