Escrituras II Traços da Oficina

Lançamento Escrituras II - Traços da Oficina

Lançamento Escrituras II – Traços da Oficina

O lançamento de Escrituras II Traços da Oficina foi uma grande festa! Muitos convidados, muita música, comes e bebes fartos. Mais importante ainda, a alegria de todos com o livro,  a festa,  a vida. E como cantaram! Os cantores surgem aos montes após algumas taças de vinho ou doses de uísque. E surgem, também, mesmo sem o amparo etílico pela alegria. E todos estavam alegres.  Cantei, cantei, jamais cantei tão lindo assim. Todos acreditavam estar cantando lindo, porque a alegria é linda! A tristeza é feia. E todos estavam alegres, muito alegres

Alguns comentários sobre a festa dos viageiros :

Realmente, Lourdinha, tudo quanto se disser do lançamento da Antologia, é pouco. Além do ambiente físico que é muito agradável – um hiato neste mundo barulhento – o livro ficou, no meu entender, um dos mais belos que já vi. Sóbrio, distinto e bem organizado. (Djanira Silva)

Professora! Que festa legal, alegria que o Traço faz desde seus primórdios. Gente bonita, contente, o Natal chegou e a fraternidade se espalhou, foi uma feliz festança.Eu e Maria Enilda saímos pouco minutos antes da meia noite, não perdemos nenhum sapato, mas a vontade era de continuar até o sol raiar.A aritmética não é uma ciência exata, escapou dos cálculos a travessia do prazer muito bem vivido com a música, boa comida, bebida farta, conversas, beijos, sorrisos e abraços, participados por todos nós.Salve o Traço e a Oficina!!!A noite de Santa Luzia, padroeira dos cegos estava muito estrelada! (Everaldo Júnior)

Uma noite marcada por abraços. Valeu, Lourdinha! (Teresa Sales)

… a editoração, a capa. as intercaladas, tudo ficou extremamente bonito e muito elegante, como disse meu filho. Parabéns a todos os que trabalharam com afinco, em especial a Lourdinha,  Adelaide que, pela fala de Lourdinha, foi seu braço direito, e a César por suas inúmeras viagens de Aldeia à editora, fazendo as revisões. Não estou a par de quem mais tenha se emprenhado, por isto peço desculpas por não citá-los. Parabéns a todos os autores que pela realização do sonho de cada um, de ver sua escrita impressa, publicada e divulgada.Espero que a realização tenha estado a altura do sonho de cada um de vocês e que mais e mais obras palmilhem seus caminhos. (Ângela Cysneiros)

O encontro para lançamento do Escrituras II foi ótimo. Deu tudo certo.(Paulo Tadeu)

A festa foi ótima. Uma meia duzia saiu, na vassoura, as 4 da matina. Farra das boas.Quero registrar o agradecimento que lhe fiz pessoalmente. O livro está lindo, super elogiado e você está de parabéns! Estou feliz em ter participado dele, em ter me encontrado nos Traços, e em ter encontrado você. (Ana Catarina Mousinho)

A festa foi ótima, todos animados e soube que terminou tarde (ou cedo, dependendo do referencial).  (Rodrigo Passarelli)

Para encerrar o capítulo Escrituras II Traços da Oficina, deixo registrado no blog o prefácio:

Tecendo Palavras

Lourdes Rodrigues

E assim se passaram oito anos. Quase uma década de viagens. Longas, curtas, tensas, densas, leves. No camarim de navegação, cartas náuticas cheias de rabiscos que refazem rotas, mudam roteiro. Dos primeiros quatro anos, deixamos registros em Escrituras, publicado em 2009. Trilhas dos últimos quatro serão deixadas aqui, em Escrituras II – Traços de Oficina.

Alguns viageiros navegam desde o começo. Outros aportaram, deixando marcas da sua passagem em Escrituras II. À nossa espera nos portos em que atracamos muitos amantes da aventura literária, todos recebidos com guirlandas de flores em volta do pescoço pelos navegantes. Sempre uma grande festa a chegada de outro companheiro.

O que leva diferentes seres, de formação diversa a se reunir para tão longa viagem? Não é por causa da Carta que vamos usar, porque ela está sempre sendo redesenhada e muitos nem a procuram e já se lançam ao mar, destemidos e confiantes. Acredito que velhos e novos marujos estão movidos pelos mistérios dos mares das palavras, pelo desejo de desvendar alguns significantes da criação literária como já o dissemos em Escrituras. Guardo a esperança de que essa atração pelos seus encantos alimente a chama do desejo de criação para que grafem sempre mapas para outros navegadores seguirem. Assim, no rastro desse desejo, leitura e escrita formarão binômio inseparável, quase monogâmico.

Desde tempos remotos, todavia, o idílio entre leitura e escrita nem sempre acabou em casamento. E é sempre a escrita, a excluída, a que suporta maior rejeição. Talvez, quem sabe, por acusarem-na de ser amante passional, extremista, cuja ambivalência vai do amor ao ódio, ora transportando aquele que sucumbe ao seu fascínio ao céu, ora às profundezas do inferno. Enquanto a leitura é desprendida, nada pedindo em troca, além da sua atenção.

Eu diria que a leitura se presta aos diversos quereres. Àqueles voltados para o prazer da deusa Volúpia, desejo plenamente satisfeito na história que é contada, ela não se faz de rogada, revela apenas a sua face exterior, a ponta do iceberg, no dizer de Hemingway. Para os mais exigentes, deixa-se conhecer em sua plenitude, desnuda-se, revela-se, permite que perscrutem os seus silêncios, as suas riquezas submersas, as suas vozes e curvas. Torna-se um caleidoscópio, quanto mais se olha mais se vê, mais se descobre. E é desse tipo de leitura que muitas vezes advém o desejo de escrever. Por mais assustadora que seja tal perspectiva, ela promove a escavação das fundações do binômio ler-escrever e, paulatinamente, a desconstrução das resistências, dos receios. Alicerce preparado, resistência vencida, cabe ao sujeito criador soltar as últimas amarras e iniciar a sua árdua e por vezes temida tarefa.

A capa deste livro, obra do viageiro-escritor-pintor Paulo Tadeu Gusmão, anuncia de forma vigorosa o ambiente da criação literária. Não vou analisar o quadro do ponto de vista da sua beleza plástica, embora muito me comova. Das linhas que organizam as suas figuras, não são as leis da perspectiva ou o seu movimento interno que neste momento me chamam a atenção. Tampouco suas belas cores, matizes, gradações, contrastes e brilhos. Quero falar do quanto ele expressa do cenário caótico do fazer literário: papéis soltos por cima da mesa, espalhados pelo chão, cadernetas de anotações dispersas sobre o móvel, borracha e lápis abandonados no assoalho, cortinas descerradas, deixando luz e paisagem atravessarem janelas envidraçadas para virem em socorro à inspiração do criador que parece ter saído às pressas, quem sabe devastado pela angústia das palavras que não chegavam.  À esquerda da cadeira vazia e luminosa, em cima de uma mesinha, o livro que ali se encontra bem poderia ser um pequeno dicionário, este fiel e inseparável companheiro do fazedor de palavras.

Escrituras II – Traços de Oficina traz amostra (textos selecionados) da criação vibrante e cheia de maestria dos escritores da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector nos últimos quatro anos. Eles foram pródigos em suas escritas criativas. Sem dúvida, tamanha fartura se deve às capacidades e talentos de cada um, contudo, não se pode deixar de reconhecer, como fundamental, a passagem dialética das leituras amorosas à escrita, realizada por aqueles autores. No quadriênio considerado (2010-2013), verdadeiro celeiro literário foi edificado na Oficina pelas leituras críticas de grandes obras: Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Viagem Sentimental, de Laurence Sterne, Horla, de Guy de Maupassant, A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda, A Varanda de Frangipanni, de Mia Couto, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, Essa Terra, de Antonio Torres, Boquitas Pintadas, de Manuel Puig,  Bartleby, o escrivão, de Herman Melville, Édipo Rei e Édipo em Colono, de Sófocles,  Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostóievski. Além de contos de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Luís Borges, Kafka, Katherine Mansfield, Arthur Schnitzler, ETA Hoffmann, Miguel Torga, Anton Tchekhov, Somerset Maugham, entre muitos outros.

Este livro traz influências dessas leituras e de tantas outras feitas ao longo da vida de seus autores, experiências que contribuíram para o encontro do próprio estilo, porque o eu do sujeito é falado a partir do lugar do Outro. São as leituras, as vivências e observações de cada um que liberam o fluxo criativo e fazem correr a pena.

Para ordenar conteúdos de temáticas tão heterogêneas recorri a Clarice Lispector, mais uma vez, e sob os auspícios de algumas epígrafes selecionadas, reuni textos que abrem portas para os campos tecidos pelos seus significantes. A divisão permite que o leitor se mexa à vontade em sua leitura, movido pelas veredas insinuadas nas epígrafes.

Escrituras II – Traços de Oficina é um livro predominantemente de contos, narrados na primeira ou terceira pessoa, monólogo direto ou monólogo interior, discurso direto, indireto e indireto livre, fluxos de consciência, narrativas lineares ou circulares, narradores intrusos, oniscientes ou neutros, personagens simples, personagens complexos entre várias outras técnicas literárias. São recursos que aprimoram a estética da escrita e separam o contador de histórias do escritor criativo e literário. Além dos contos, o livro traz excelentes crônicas, o que nos permite questionar onde termina a crônica e começa o conto. Às vezes a linha divisória é tão tênue que se é obrigado a recorrer a velhos cânones literários para tentar identificá-los. Na realidade, pouco importa essa separação, o que interessa, de fato, é a sua qualidade literária, e neste livro, ela é muito boa. Entre os viageiros estão excelentes cronistas e as suas escritas serão sempre incentivadas.

Aos leitores desejo que se lancem ao mar para fazerem as suas viagens e que elas sejam tão prazerosas quanto as nossas têm sido ao longo desses oito anos, em particular dos últimos quatro, cujas palavras tecidas estão neste livro que ora tenho o prazer de lhes apresentar.

Jaboatão dos Guararapes, 21 de setembro de 2013

 

Lançamento livro da Oficina

Lançamento Escrituras II - Traços da Oficina

Lançamento Escrituras II – Traços da Oficina

 Escrituras II – Traços da Oficina reúne textos dos escritores da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, os viageiros dos mares das palavras.

A Oficina foi criada em 2006, a partir de um grupo dedicado às leituras clariceanas, o que levou à nomeação de Clarice Lispector como estrela guia. Faz parte do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise, associação de psicanalistas, cuja finalidade é promover e desenvolver estudos sobre a Teoria Psicanalítica e as Veredas Literárias, desde a perspectiva freud-lacaniana.

A Psicanálise, em sua origem, relaciona-se com a arte em bases profundas e fundamentais. A Literatura, em particular, se tornou o pilar de sustentação das teorias psicanalíticas, desde que Freud foi buscar suporte em Shakespeare e Sófocles para as suas primeiras formulações sobre o inconsciente e o complexo de Édipo.

Sem dúvida, a Literatura é o grande olho-d’água, lugar de jorro ininterrupto dos muitos saberes. As palavras guardam mistérios. É preciso tecê-las, abrindo portas para os seus significantes. Cada palavra é uma viagem, por isso estamos sempre nos lançando ao mar e nos chamando de viageiros. No leme, o binômio: leitura/escrita. Sempre.

                                            Lourdes Rodrigues

Dostoievski – Passeio pelos subterrâneos

sendbinary2MEMÓRIAS DE SUBSOLO DE FIÓDOR DOSTOIEVSKI

Dostoievski  sempre foi lembrado ao fazermos a programação anual da Oficina. Chegou a sua vez, em outubro de 2013, com Memórias de Subsolo. A opção pela tradução de Boris Schnaiderman, da Editora 34, 6ª edição, deveu-se ao conhecimento e respeito que eu tenho pelo trabalho desse tradutor de obras extraordinárias de Dostoievski, Tolstoi e vários poetas russos de vanguarda. Certa vez, em entrevista, Boris Schnaiderman disse que no início da sua atividade de tradução ficava muito preso à literalidade, mas com o passar do tempo, passou a adotar forma menos mecânica, bem mais natural, por entender que a tradução é acima de tudo uma arte.

O texto que lemos é uma obra de arte literária e se conseguiu nos impressionar é porque a tradução foi realizada com muita maestria. Em seu prefácio, Bóris Schnaiderman traz  importantes opiniões sobre o livro, entre elas, o impacto que causou em Nietzsche: Um achado fortuito numa livraria: Memórias do Subsolo de Dolstoievski (…) A voz do sangue (como denominá-lo de outro modo?) fez-se ouvir de imediato e minha alegria não teve limites. E ainda as opiniões de André Gide: o ponto culminante de toda a sua obra; de George Steiner: provavelmente o mais dostoiesvskiano dos livros e uma verdadeira suma de toda a sua obra; de Górki:  Para mim, todo Nietzsche está em Memórias do Subsolo.

Mas, antes de falar sobre Memórias do Subsolo gostaria de tentar traçar em grandes linhas o cenário do autor, a Russia do seu tempo, para entender as circunstâncias que envolveram a sua vida literária e política e  que culminaram com a escrita dessa obra.

Fiódor Dostoievski nasceu em Moscou, em novembro de 1821. Ano rico para a literatura porque, Dostoevskij_1872também, nasceram nesse ano, na França, Charles Baudelaire (abril) e Gustave Flaubert.(dezembro). O ano registrou ainda, grandes mudanças na geografia política com a redistribuição  das fronteiras  hispanofônicas a partir do reconhecimento pela Espanha da independência da Venezuela, Peru, Guatemala, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador e México. No Brasil, com a volta do Rei D. João VI para Portugal, deixando D.Pedro I como Regente, começou a se delinear com mais nitidez também o que viria ocorrer em 1822, a sua independência.

A vida de Dostoievski foi marcada por grandes perdas desde cedo. Ainda na adolescência, ficou muito clara para ele a opção pela literatura. A morte da mãe, deixando o pai, médico de  hospital público, com 7 filhos para criar mudou tudo. Esta foi a primeira guinada de cento e oitenta graus em sua vida. O pai tornou-se alcoólatra e sentindo-se incapaz de administrar a família, mandou os dois filhos mais velhos, Mikhail and Fyodor  para a academia militar de São Petersburgo, com o objetivo de garantir o futuro deles. Dostoievski jamais tivera interesse em ser militar e pelo resto de sua vida ele iria se ressentir do grande erro que havia sido cometido pelo pai ao forçá-lo a seguir essa carreira. Em várias obras, os personagens trazem esse ranço contra a academia e os militares. O personagem narrador de Memórias do Subsolo revela  hostilidade aos militares, em especial ao oficial que ele encontra numa taverna, numa sala de bilhar. Por conta de um gesto que ele considerou humilhante, passou a persegui-lo daí em diante. Vejamos a cena primeira:

            Eu estava em pé junto à mesa de bilhar, estorvava a passagem por inadvertência, e ele precisou passar; tomou-me então pelos ombros e, silenciosamente, sem qualquer aviso prévio ou explicação, tirou-me do lugar em que estava, colocou-me em outro e passou por ali, como se nem sequer me notasse.Até pancadas eu teria perdoado, mas de modo nenhum poderia perdoar que ele me mudasse de lugar e, positivamente, não me notasse. (…) Oh, se aquele oficial fosse dos que concordam em lutar num duelo!

Por outro lado, a sua conexão com São Petersburgo foi total, achou a cidade  intensa, abstrata, e, no futuro, os seus personagens também expressarão essa opinião: esta é uma cidade de gente meio louca. Raramente se encontra um lugar com tantas influências sombrias, intensas e estranhas sobre a alma humana, como em São Petersburgo. (…) É uma particular desgraça viver em Petersburgo. O personagem de Memória do Subsolo reclama: …que tenha a infelicidade de habitar Petersburgo, a cidade mais abstrata e meditativa de todo o globo terrestre. Porém, há um momento em que ele diz claramente que não deixará São Petersburgo: Mas ficarei em Petersburgo; não deixarei esta cidade! Não a deixarei porque…Eh! Mas, na realidade, me é de todo indiferente o fato de que a deixe ou não. 

Ele amou São Petersburgo. Aquela foi a cidade de sua juventude, onde despontou como escritor, conheceu o sucesso e viveu trágicas experiências, pesadas perdas. Jamais teve o seu próprio apartamento, sempre morou em locais alugados. Durante os vinte e oito anos de sua permanência em São Petersburgo mudou vinte vezes e jamais morou mais de três anos na mesma casa. Os apartamentos situavam-se sempre em encruzilhadas, bifurcações, locais típicos dos edifícios para aluguel. Os seus personagens também moravam nesse tipo de edifício, ele sempre usou na escrita imóvel similar ao que ele vivia ou vivera. Talvez a sua necessidade de mudança estivesse ligada às exigências da sua criação literária. Das trinta obras de Dostoievski, cerca de vinte tiveram como cenário narrativo São Petersburgo. Essa cidade estranha, muito particular e misteriosa no dizer de Dostoievski oferecia-lhe a ambientação adequada para que em suas novelas o fantástico emergisse na mediocridade, as idéias insanas aparecessem e os crimes fossem cometidos: All of this is so vulgar and ordinary that  I almost borders on the fantastic.[i]

Graduado pela academia militar e designado para o Corpo de Engenheiros, embora Dostoievski jamais tenha abandonado o seu sonho literário, viu-se obrigado a permanecer ali para garantir a sobrevivência. Sempre preocupado em ganhar mais algum dinheiro, iniciou o seu trabalho como tradutor, chegando a traduzir, em duas ou três semanas, Eugene Grandet de Balzac, 365 páginas. As suas traduções não eram simplesmente literais, poderiam mais serem vistas como um tipo especial de literatura, não simplesmente a de Balzac, nem a de Dostoievski, mas a soma criativa dos trabalhos de dois grandes escritores.

Dostoievski reconhecia na leitura a sua principal escola de literatura. Lia compulsivamente, apaixonadamente. A leitura exercia estranho efeito sobre ele. Costumava reler as obras que ele gostava e dizia que novas inspirações, novos insights surgiam dessas releituras, assim como as habilidades para fazer as suas próprias criações. Em várias obras, os protagonistas são leitores e o livro escolhido para eles lerem nunca foi acidental, por exemplo, Nastasia Filippovna, personagem de O Idiota lia Madame Bovary às vésperas da sua morte.

Os personagens de Dostoievski não são apenas grandes leitores, eles têm personalidade muito criativa e tentam viver todo esse potencial criativo. Mas, inicialmente, as suas escritas estavam associadas aos seus anos na academia quando ele ainda sonhava com o sublime e o belo. Desde as primeiras páginas de Memórias do Subsolo que o personagem alude ao belo e sublime: o narrador se queixa de que este “belo e sublime” (sempre dentro de aspas) apertou com força o seu crânio durante quarenta anos. O tradutor, em nota, diz que é uma alusão à obra de Kant: Observações sobre os sentimentos do belo e do sublime (1764) que havia tornado a expressão muito popular entre os críticos russos das décadas de 1830 e  1840. Ele destruiu tudo que escreveu naquela época, ao descobrir que não havia nada mais fantástica que a realidade em si mesma.O personagem de Memórias do Subsolo se refere com desprezo a essa visão filosófica kantiana:. Quanto mais consciência eu tinha do bem e de tudo que é “belo e sublime”, tanto mais me afundava em meu lodo, tanto mais capaz me tornava de imergir nele por completo.Ao começar a olhar ao seu redor,observando os semblantes das pessoas com acuidade, estranhas e maravilhosas figuras, possíveis personagens ele foi descobrindo

             Era como se eu houvesse entendido naquele minuto algo que antes só havia mexido em mim, mas não houvera compreendido; como se visse o mundo através de algo novo, completamente novo e desconhecido; apenas conhecido por algum tipo de sinais misteriosos. Eu penso que foi precisamente nesse momento que a minha existência começou.

Não foi à toa que o seu primeiro livro, o que ele iniciou a carreira literária, Gente Pobre, o protagonista não era um herói romântico, mas um pobre e comum escriturário a quem ele deu roupagem literária, subvertendo o gênero por completo e sendo recebido efusivamente pelo público e pela crítica literária da época. Trata-se de um romance epistolar em que um  funcionário público de escalão inferior e a sua vizinha, uma órfã, ambos humilhados e injustiçados pela sociedade, trocam cartas, permitindo ao leitor acompanhar as pequenas alegrias e as dores dos dois personagens, captando as suas emoções, os seus valores, os seus sonhos, tudo escrito com muita maestria.

Pouco depois da publicação desse livro, Dostoievski foi preso por pertencer a um grupo de jovens e intelectuais que se auto-denominava de fourierista, fascinado pelas idéias do socialismo utópico de Charles Fourier, de uma idade de ouro para a humanidade. Este grupo sonhava com um futuro melhor para a Rússia, mas o Czar Nicolau I assustado com a onda revolucionária que atingia a Europa e ainda sob o temor do que acontecera na Revolução Francesa mandou investigar esses jovens que se reuniam em torno do poeta Mikhail Petrashevski, mandando prende-los, entre eles, Dostoievski. No alvorecer da sua força criativa, Dostoievski, mais uma vez, foi arrancado do seu sonho literário.

Durante oito meses ele ficou em uma solitária da Fortaleza de Pedro e Paulo, em São Petersburgo. Depois, foi enviado para fazer trabalhos forçados em Omsk Prison, por mais quatro anos até ficar exilado na Sibéria por seis anos. O pior de tudo, no entanto, foi a terrível experiência que ele passou. O Czar Nicolau I decidiu punir os idealistas de forma cruel para que servisse de exemplo aos seus contemporâneos. Na madrugada de 22 dezembro de 1849, oito meses após a prisão, eles foram levados para um espetáculo público, onde a execução iria ser promulgada.O ritual da execução penal foi seguido em sua totalidade, soldados perfilados, estáticos, um padre, com um grande crucifixo de ouro nas mãos, marcha à frente dos condenados. Amarrados em estacas, os prisioneiros estão diante do pelotão de fuzilamento. O comandante, acompanhado pelo rufar dos tambores, lê a sentença em voz alta, terminando com as palavras: morte por fuzilamento. Novo rufar dos tambores, ele ergue a mão para ordenar a execução quando, no último momento, surge um mensageiro, trazendo nas mãos nova ordem do Czar: a sentença fora comutada para trabalhos forçados e de serviço no exército. O Czar Nicolau I havia decidido se divertir  às custas deles, usando até mesmo fundos públicos para financiar esta fingida execução. O grupo viveu os piores momentos de sua vida esperando o fuzilamento. Dostoievski descreve em sua novela O Idiota, nas palavras do Prince Myshkin esse momento:

                 O homem foi trazido para a plataforma com alguns outros, e a sentença de execução por fuzilamento, por crime político, foi lida. Em cerca de vinte minutos o perdão foi igualmente lido, e um tipo diferente de punição designada.; contudo, no intervalo entre as duas sentenças, vinte minutos ou no mínimo  um quarto de horas, ele havia vivido com a firme convicção que em poucos minutos ele iria subitamente morrer. Ele lembrou cada coisa com inusual claridade e disse que jamais iria esquecer o que aconteceu naqueles minutos.

Esse fato marcou profundamente Dostoievski. Estar  vivo era o que contava, mesmo diante da possibilidade de passar o resto dos seus dias na prisão, conforme ele mesmo o disse ao ser irmão em carta escrita logo após a simulação do enforcamento:

                Vida é vida em qualquer lugar, a vida está dentro de nós, e não no mundo exterior. As pessoas vão estar ao meu lado,  e ser um ser humano entre pessoas e manter-se único sempre, sejam quais forem os infortúnios que acontecem, não cair em desespero e perecer – isto é o que é a vida, esta é sua missão. Eu percebo assim. Esta ideia entrou em meu corpo e sangue.

Os biógrafos de Dostoievski, todavia,  dizem que a escrita dele está dividida em dois momentos, antes da prisão e depois dela. Dez anos depois quando ele volta para São Petersburgo e reinicia as suas atividades literárias com sofreguidão, em busca do tempo perdido, a sua escrita já não é mais a mesma, está marcada por uma década de pesadas e dolorosas experiências conforme se poderá comprovar com a leitura de Humilhados e Ofendidos e Recordação da Casa dos Mortos.Se antes da prisão Dostoievski acreditava numa idade de ouro para a humanidade, mesmo que para isso fosse necessário fazer uma revolução, após a sua volta ao mundo dos vivos ele já não acreditava mais nessa via, pelo contrário, estava completamente convencido que a violência não traria felicidade para a humanidade.Após viagem à Europa, viagem que ele havia sonhado muitos anos, ainda antes de ser preso, para ver e sentir o que estava acontecendo por lá, deixou-o completamente frustrado, desiludido. Ele chegou à conclusão de que a proposição da Revolução Francesa, Liberdade, Igualidade, Fraternidade era falsa, apenas uma frase que carecia de profundidade. As suas impressões estão no livro Notas de inverno sobre impressões do verão, livro que ele trabalhou quase simultaneamente às Memórias do Subsolo,  onde a ideia principal é a impossibilidade do ser humano reger a sua vida com base na razão.Não é à toa que o personagem de Memórias do Subsolo descrê de todas as utopias, de qualquer possibilidade de existência de um mundo harmônico ou  Palácio de Cristal, sob o argumento de  que  ele seria apenas uma pequena roda dentada dessa engrenagem.

O personagem de Memórias do Subsolo está convencido de que todo o significado da existência humana reside na afirmação da vontade irracional, e ele resiste a toda argumentação matemática da razão. Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que não só uma dose muito grande de consciência, mas qualquer consciência, é uma doença. Insisto nisso. 

E ele continua com os seus paradoxos:

Sou homem doente…Um homem mau. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei ao certo, do que estou sofrendo.Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.)  (…) Menti a respeito de mim mesmo quando disse, ainda há pouco, que era um funcionário maldoso. Menti de raiva. (…) Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. 

Mas ele se considera inteligente e é por conta dessa inteligência que não consegue tornar-se algo, pois somente os imbecis o conseguem. Esta é um reflexão que ele faz em cima dos seus quarenta anos de vida: Esta é a convicção do meus quarenta anos. Por outro lado, ele diz que viver além dos quarenta anos (que ele considera a mais avançada velhice) é indecente, vulgar, imoral! Quem é que vive além dos quarenta? Respondei-me sincera e honestamente. Vou dizer-vos: os imbecis e os canalhas. Vou dizer isto na cara de todos esses anciães respeitáveis e perfumados, de cabelos argênteos. O interessante é que ele se acha com propriedade para falar dessa forma, de agredir a todos os que são velhos  porque ele vai viver até os sessenta! até os setenta! até os oitenta! Em outro momento, se referindo à própria inteligência ele se declara culpado de ser tão inteligente: …tenho culpa de ser mais inteligente que todos à minha volta.(Considerei-me, continuamente, mais inteligente que todos à minha volta, e às vezes – acreditam?- tinha até vergonha disso. Pelo menos, a vida toda olhei de certo modo para o lado e nunca pude fitar as pessoas nos olhos.)

Memórias do Subsolo foi escrito em 1864, quando o escritor vivia momentos muito difíceis com a sua esposa à beira da morte, atacada de tuberculose. Ainda quando estava no exílio, Dostoievski conheceu Maria Dmitrievna, viúva, o primeiro marido havia morrido por conta do alcoolismo, deixando-a com uma criança de seis anos de idade sem condição financeira de criá-la.Nesta época, com a ajuda de amigos, ele passou a ocupar função de oficial subalterno em Semipalatinsk, na Sibéria, onde ainda se encontrava exilado. Para ele que estava recém saído da prisão, vivendo ainda sob controle no exílio, encontrar essa ainda jovem mulher, de vinte e oito anos, bonita, inteligente,  muito educada, esperta, amigável, graciosa (com todos esses elogios, ele falou sobre a jovem viúva para o irmão) deu a Dostoievski sentimento de liberdade, de felicidade e retorno à vida normal. Eles se casaram e dois anos depois foi permitido a ele deixar a Sibéria, por questões de saúde, mas foi direcionado para Tver e proibido de entrar em Moscou, São Peterburgo ou adjacências.Mas ele não se demorou muito em Tver, conseguiu finalmente autorização para voltar para São Petersburgo, exatos 10 anos depois dali ter saído, em 1859.

A vigilância sobre ele permaneceu até 1875, foram 26 anos sob controle da polícia desde a sua prisão em 1849, isto significava que toda a sua correspondência era lida, todos os seus movimentos acompanhados. Isso levou-o, sem dúvida, a criar os seus personagens com tanta ânsia de liberdade, tão ávidos por decidir eles próprios seu destino.

Memórias do Subsolo é um grande livro que deve ser lido e relido muitas vezes.

                                             Jaboatão dos Guararapes, 02 de dezembro de 2013

                                                        Lourdes Rodrigues


[i] Tudo isso é tão vulgar e comum que quase beira o fantástico. A Guidebook – The Dostoievsky Museum In Saint Petersburg. N.Ashimbaeva, V. Biron