Percursos da Literatura Ocidental

Percursos da História da Literatura Ocidental, sob o olhar de Otto Maria Carpeaux

Lourdes Rodrigues

 

Programamos seguir os percursos da Literatura Ocidental, sob o olhar experiente e sábio de Otto Maria Carpeaux, grande historiador e crítico literário. Ele escreveu uma grande obra, republicada pela LEYA, em seis volumes. A ideia é seguir o percurso realizado pelo autor através dessa obra.

Carpeaux inicia dizendo que História da Literatura” é um conceito moderno, que os antigos não se preocuparam em organizar panoramas históricos das suas literaturas, que aos gregos e romanos jamais ocorreu a ideia de referir os acontecimentos literários de seu tempo e tempos idos,  o que não quer dizer que não fossem interessados em colecionar e interpretar fatos literários. Só na decadência das letras e da civilização surgiu o interesse puramente pragmático, da parte de professores de Retórica ou de bibliófilos, de organizar relações de livros mais úteis para o ensino, para melhorar o gosto decaído, ou então, compor dicionários de citações e florilégios de resumos, para salvar da destruição pelos bárbaros os tesouros literários do passado.

Então ele cita Marcus Fabius Quintilianus (35-95 da nossa era), professor de Língua e Retórica, conservador doloroso, romano austero de estirpe espanhola, segundo Carpeaux, que ao observar com tristeza a decadência estilística e moral dos profissionais de sua arte, decidiu escrever uma obra (Institutio oratoria) para ajudar na preparação da formação dos alunos, e no décimo livro inseriu uma apreciação sumária dos mais importantes autores gregos e latinos, menos com a preocupação de fazer um resumo bibliográfico e mais como um esboço de um biblioteca mínima para o aluno de Retórica. Ele organizou uma relação de livros-modelo, de Homero, através de Píndaro, Eurípides, Ésquilo, Sófocles, Aristófanes, Heródoto, Tucídides, Demóstenes, Platão, Xenofonte, até Aristóteles; e de Lucrécio, através de Virgílio, Horácio, Salústio e Tito Lívio, até Cícero e Sêneca.

Carpeaux diz que ele não suspeitou das consequências da sua escolha. Até para definir se vão ser conservados ou não, uma obra e seu autor, em épocas de grandes perdas e destruições, essas definições passaram a ser regidas pelas escolhas de Quintiliano. Na primeira Idade Média, os monges de São Bento escolheram entre as obras de Quintiliano os livros didáticos para os jovens estudiosos dos conventos; os humanistas usaram a relação para discutir a importância dos autores citados; na época de Luís XV, durante a Querelle des Anciens et des Modernes, os argumentos de Quíntiliano em favor dos gregos foram bastante usados pelos defensores dos modelos clássicos e os argumentos dele em favor dos romanos pelos defensores da poesia moderna.

Essa seleção continua sendo uma tábua de valores, embora  Quintiliano não tenha escrito uma história da literatura. Houve só um Quintiliano, embora muitos outros espíritos menores tenham organizado fichários, listas bibliográficas, sem jamais atingir o seu nível de qualidade e extensão.

Os eruditos barrocos preferiram as enciclopédias críticas, nas quais as biografias de eruditos célebres de todos os tempos serviam de pretexto para se lhes discutirem as opiniões filosóficas e religiosas… O Dicionário de Bayle (1697) foi um mero pretexto para destruir a credibilidade de inúmeras lendas gregas e romanas Nascia assim a crítica histórica. Na querela entre os antigos e modernos é posta em dúvida a superioridade dos gregos e romanos. Vico reconhecerá os valores de diferentes épocas. Montesquieu deduzirá da história romana certas leis gerais da evolução das nações. O tempo passa a ser visto agora não mais só como passado mas como evolução que continua. Começam-se a se compor histórias das literaturas modernas, histórias no sentido de erudição barroca, coleções imensas, enciclopédicas, obras de verdadeiro fanatismo de reunir datas e fatos.

A História Literária da França, iniciada em 1733 pelos beneditinos, ainda estava nos primeiros volumes quando os jacobinos deram fim violento aos religiosos, várias décadas depois. No século XIX a Academia das Inscrições se propôs a dar continuidade, mas traçou um plano tão vasto que não foi possível concluí-la.

Na Espanha, em 1766 dois franciscanos tentaram fazer a Historia Literária da Espanha, uma obra tão grande, que no décimo volume, publicado em 1791, vinte e cinco anos depois, os autores ainda não haviam acabado a introdução.

Enfim, o jesuíta italiano Girolano Tiboschi compilou entre 1722 e 1782 em 9 volumes, a história da literatura italiana, embora seja apenas um trabalho de levantamento bibliográfico, nada que representa a história da literatura como se entende hoje. O que faltava a Timboshi, segundo Carpeaux, era a capacidade de narrar, o senso crítico.

O primeiro grande crítico ele diz ter sido Samuel Johnson que optou pela forma biográfica (The Lives of the Poets, 1781) A ligação entre história e crítica veio do pré-romantismo, com seu forte interesse pelas tradições históricas das nações modernas e pela apreciação crítica de épocas então meio esquecidas, como a Idade Média. O precursor foi Thomas Warton: a sua History of English Poetry (…) é a primeira obra na qual a história literária é tratada como se trata a história política. Mas, o fundador da história literária autônoma foi Herder, embora não tenha deixado uma única obra definitiva, apenas inúmeros escritos. Com ele, os registros dos livros foram substituídos pelas histórias das obras e das ideias.

Após mencionar vários seguidores de Herder, Carpeaux diz que a única forma de resolver a multiplicidade de obras sínteses representativas das literaturas de vários países, seria retirar o viés nacionalista da História da Literatura (gregos, romanos, franceses, italianos, alemães, etc.), … abolir as fronteiras Nacionais para realizar a história da literatura europeia (e americana) e chegar, enfim, a uma História da Literatura Universal.

A história dessa Literatura internacional é composta de grandes períodos: Idade Média, Renascença, Barroco, Ilustração, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Simbolismo, que, graças à análise estilística e ideológica, já têm sentido. E ele completa, a Literatura não existe no ar, ele diz, e sim no Tempo, no Tempo Histórico, que obedece ao seu próprio ritmo dialético. Ele ressalta, entretanto, que a Literatura reflete esse ritmo, mas não o acompanha. E diz que essa distinção é importante para não transformar a literatura em mero documento das situações e transições sociais, porque a repercussão imediata dos acontecimentos políticos na literatura não vai muito além da superfície. Quanto aos efeitos da situação social dos escritores sobre a sua atividade literária será preciso distinguir nitidamente entre as classes da sociedade e as “classes literárias”. Um terceiro aspecto que ele considera é a relação da literatura com a sociedade que não é de mera dependência: é uma relação complicada de dependência recíproca e interdependência dos fatores espirituais (ideológicos e estilísticos) e dos fatores materiais (estrutura social e econômica). Essa interdependência ele diz que constitui o objeto da “sociologia do saber”, cujos conceitos permitem estudar os reflexos da situação social na literatura sem abandonar o conceito da evolução autônoma da literatura.

Assim, em sua HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL, Carpeaux diz que a literatura é estudada como expressão estilística do Espírito objetivo, autônomo, e ao mesmo tempo como reflexo das situações sociais.

Nascentes da Tragédia

 

Há certo consenso quanto ao teatro grego ter origem no religioso. Tanto as tragédias como as comédias eram representadas com feições de rituais litúrgicos. Apesar disso, diz Otto Maria Carpeaux, não há uma tese definitiva quanto à liturgia que teria sido a base histórica do teatro grego. Segundo ele, Cambridgeanos, com base em pesquisas antropológicas, parecem ter comprovado que a tragédia grega havia nascido de atos litúrgicos do culto de Dioniso. Outros ingleses, no entanto, foram buscar a fonte da inspiração trágica nos ritos fúnebres em torno dos túmulos dos heróis.

 Mais uma vez recorrendo a Junito Brandão, encontrei que, em torno de 605-527 a.C, eram celebradas em Atenas quatro grandes festas em honra a Dioniso: Dionísias Rurais, Lenéias, Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias e Antestérias.  

A festa das Dionísias Rurais ocorria no mês Posídeon, o que correspondia mais ou menos à segunda metade de dezembro. A cerimônia central da festa consistia numa alegre e barulhenta procissão com danças e cantos, em que se escoltava um enorme falo. Os seguidores da procissão usavam máscaras ou disfarçavam-se de animais, o que mostra tratar-se de um sortilégio para provocar a fertilidade dos campos e dos lares. A partir do século V a.C., as Dionísias foram enriquecidas com concursos de tragédias e comédias. 

Sobre as Lenéias, Junito diz que não há muita informação. Celebradas no inverno, fins de Janeiro e início de fevereiro, também começavam com uma procissão de caráter orgiástico, muito vinho e invocação a Baco, seguidas de duplo concurso de comédia e tragédia. 

As Dionísias Urbanas aconteciam na primavera, fins de março, e a elas acorriam todo o mundo grego e embaixadores estrangeiros. Duravam seis dias. No primeiro dia, majestosa procissão com a participação de toda a cidade, onde uma estátua do deus do Teatro era levada do seu templo no sopé da Acrópole, até um templo arcaico de Baco, perto da Academia, de onde o ícone era solenemente levado e colocado, por fim, na Orquestra do Teatro, que, até hoje, tem o nome do deus e que fica ao lado do santuário, de onde a estátua fora retirada. Os concursos de dez Coros Ditirâmbicos eram realizados nos dois dias seguintes. Cada Coro era composto de cinquenta executantes que dançavam em torno do alto de Dioniso, na Orquestra. Depois deles, vinham os concursos dramáticos que duravam três dias. Apenas três poetas trágicos eram admitidos no concurso, cada um tinha uma manhã inteira para representar a sua obra, seguidas de um drama satírico. 

Junito Brandão diz que todas as tentativas de explicar a origem da tragédia, acabam, de certa forma, passando pelo elemento satírico. Na verdade, a tragédia seria uma evolução do ditirambo através do drama satírico. Aristóteles informa em sua Poética que a tragédia teve origem nos solistas do ditirambo, decorrente da transformação das peças satíricas que foram evoluindo de assuntos menores, fabulas curtas para assuntos mais elevados, abandonando, com isso, o tom jocoso da linguagem. Assim, o drama satírico antecedeu à tragédia e evoluiu para a tragédia. Aqui Junito esclarece sobre o que ele chama de satírico. O termo, segundo ele, nada tem a ver com sátira, nem sob o ponto de vista literário nem etimológico. O nome advém do fato de os personagens integrantes do Coro se disfarçarem em Sátiros, eternos companheiros de Dioniso. 

Aristóteles quando diz que a tragédia surgiu dos solistas do ditirambo, entendendo estes como o corifeu dos coros, ele se baseia na evolução do Drama Satírico que, em sua origem, consistia de danças mímicas e rituais em honra de Dioniso; depois, em representações rústicas, executadas por um coro de homens disfarçados de Sátiros, cujo corifeu reproduzia alguma façanha do deus; mais tarde, uniu-se ao drama cerimônias de caráter fúnebre e regionais e a alegria das primitivas representações deve ter desaparecido e outras divindades ocuparam o posto antes exclusivo de Baco. Ele supõe que no início deve ter havido coexistência pacífica entre ditirambo, drama satírico e tragédia, porém, à medida que esta última pelo seu tom sério e elevado desvinculou-se dos Sátiros e quase levou à morte o drama satírico, fez-se necessária uma intervenção maior para evitar que isso acontecesse. Em 490 a.C, Prátinas, em sua reforma, devolveu a Dioniso os Coros, fixando por escrito os vários cânticos e partes do drama satírico, dando-lhe, por isso mesmo, uma forma literária. Assim, Prátinas salvou o drama satírico e satisfez o povo que, não conseguia compreender o pouco que restava de Dioniso na tragédia, que passara de assuntos menores, satíricos, para temas mais elevados, reclamou da ausência do êxtase e do entusiasmo com uma expressão que se tornou proverbial: nada tem a ver com Dioniso.  

Segundo o mitólogo, a influência de Prátinas foi tão forte que daí em diante tornou-se obrigatória, nas representações dramáticas, a tetralogia, ou seja, três tragédias e um drama satírico.

Otto Maria Carpeaux considera a discussão sobre a origem da tragédia mais importante para a compreensão e registro da história da civilização e menos relevante para a história da literatura, preferindo, ele próprio, adotar a intuição de Nietzsche,que ele considera genial, de que a tragédia grega é a transformação apolínea de ritos dionisíacos Por isso, o único conteúdo possível da tragédia grega era o mito, fornecido pela tradição; enredos inventados pela imaginação do dramaturgo, que enchem os nossos repertórios, estavam excluídos. 

Para apreender o significado dessa afirmação de Carpeaux, recorri a Nietzsche, em busca de sua visão do trágico. Para ele, o grego conhecia e sentia os pavores e sustos da existência: simplesmente para poder viver, tinha de estender à frente deles a resplandecente miragem dos habitantes do Olimpo. Assim, a criação dos deuses pelos gregos derivava de uma necessidade profunda. Nietzsche pergunta: De que outro modo aquele povo, tão excitável em sua sensibilidade, tão impetuoso em seus desejos, tão apto unicamente para o sofrimento, teria podido suportar a existência, se esta, banhada em uma glória superior, não lhe tivesse sido mostrada em seus deuses? E ele estabelece paralelo com a arte ao dizer que é o mesmo impulso que chama a arte para a vida, como a complementação e perfeição da existência que induz a continuar a viver, que criou as condições para a existência desse mundo olímpico. E ele complementa: Assim os deuses legitimam a vida humana, vivendo-as eles mesmos – a única teodicéia satisfatória.  

Mais adiante, Nietzsche reforça o seu pensamento ao dizer que a tragédia grega tinha por objeto somente a paixão por Dioniso e que durante muito tempo ele foi o único herói cênico. E que poderia se afirmar sem medo de errar que até Eurípedes, Dioniso foi o único herói trágico, embora sob a máscara de grandes e célebres figuras como Prometeu, Édipo e tantas outras. Haver uma divindade por trás de todas essas máscaras é o único fundamento essencial para a “idealidade” típica dessas figuras célebres, tantas vezes notada com espanto. E Nietzsche sustenta a sua premissa na tese de que todo indivíduo, como indivíduo, é cômico e, portanto, não trágico, razão pela qual os gregos não os poderem suportar em seus palcos trágicos. E valendo-se de Platão, da valorização da idéia em contraposição ao ídolo, ele afirma: que o verdadeiro e único Dioniso está presente combatente em uma gama de figuras, sob a máscara de um herói e como que emaranhado em uma rede na rede da vontade individual.E assim que o deus, ao aparecer, fala e age, ele se assemelha a um indivíduo que erra, se esforça e sofre: esse, em geral, aparece com essa precisão e nitidez épicas, isso é o efeito de Apolo, esse decifrador de sonhos, que evidencia ao coro seu estado dionisíaco por meio dessa aparição alegórica. Em verdade, porém, esse herói é o Dioniso sofredor dos Mistérios, aquele deus que experimenta em si o sofrimento da individuação, do qual mitos maravilhosos contam que, quando rapaz, foi despedaçado pelos Titãs e nesse estado é venerado com Zagreu: o que sugere que esse despedaçamento, em que consiste propriamente a paixão dionisíaca, equivale a uma transformação em ar, água, terra e fogo, e que portanto temos de considerar o estado da individuação como a fonte e o primeiro fundamento de todo sofrimento, como algo repudiável em si mesmo. Do sorriso desse Dioniso nasceram os deuses olímpicos, de suas lágrimas os homens. 

Jaboatão dos Guararapes, 23 de abril de 2013 

Lourdes Rodrigues

   

O Teatro de Sófocles e Antígona

Lourdes Rodrigues

Nos dias 24 e 25 de agosto de 2016, realizou-se no Hotel Mércure, o Colóquio Ética, Antígona e a Invenção da Mulher promovido pelo Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise, tendo como palestrante o escritor, tradutor, filósofo e doutor em letras, Donaldo Schuler. A participação da platéia com perguntas,  reflexões,  enriqueceu muito o debate que enveredou não só pela mitologia, pela tragédia, mas, também, pela psicanálise, filosofia, ética. Questões fundamentais foram debatidas: limites do público e do privado, ética versus moral, ethos, daimon, a mulher na Grécia Antiga, o silêncio da mulher e a sua construção, desejo e subjetividade para os gregos, e muitas outras questões.

O Colóquio confirmou a relevância e atualidade da tragédia de Antígona, pela presença de tantas pessoas atraídas pela peça, dispostas não só a ouvirem o que Donaldo Schüler traria de novo sobre ela, mas a discutir as suas próprias reflexões e elaborações construídas ao longo do tempo.

Há alguns anos pensei em criar um blog. Ao pensar numa frase para o meu perfil, lembrei de Antígona quando disse para Creonte: Eu não nasci para odiar, mas para amar. Havia lido a peça de Sófocles e ficara impressionada com a força daquela mulher que nascera para amar. Enfrentar um tirano sabendo que a desobediência significaria a morte, pois ela mesma reconhecera diante dele esse saber: Sei que vou morrer.Como poderia ignorá-lo? , senhora de si, completamente senhora da sua própria lei, como diz o Corifeu: Gloriosa e acompanhada de louvor te encaminhas ao recinto dos mortos, sem feridas de enfermidades molestas, sem golpes de espada voraz, senhora de tua própria lei, viva, só tu entre os mortais baixarás ao Hades.

Antígona não reconhecia a lei do Estado que determinava deixar insepulto o corpo de Polinice, o seu irmão muito amado, Quem é ele para separar-me dos meus?, indaga referindo-se a Creonte), (…) Não foi, com certeza, Zeus que as proclamou,/ nem a justiça com trono entre os deuses dos mortos/ as estabeleceu para os homens./ Nem eu supunha que tuas ordens/ tivessem o poder de superar /as leis-não escritas, perenes, dos deuses,/ visto que és mortal.  Quando Creonte pergunta se ela não se envergonha por ir de encontro a todos que reconhecem em Polinice o traidor, aquele que invadiu Tebas para tomar o poder do seu irmão Eteócles, Antígona não argumenta, como ela bem o poderia ter feito, que ele lutou para tentar recuperar o que era seu por direito, uma vez que a alternância de poder havia sido pactuada pelos dois irmãos e  Eteócles decidiu não cumpri-la obrigando Polinice a tentar à força o que deveria ter sido na paz. Não, ela não está preocupada com esse tipo de  justiça. E acredita que os outros aprovariam a sua atitude se o medo não lhes travasse a língua, que estão todos intimidados e mordem a lingua para não falarem o que pensam daquele edito e conclui: Não há nada de vergonhoso em honrar os do mesmo sangue.

A postura irredutvel de Antígona – tão bem expressa pelo Corifeu: Nela se revela uma estirpe inflexível,/de um pai inflexível/ filha. Não sabe ceder aos golpes do mal.-  deixa Creonte, o tirano, em total desatino, e a sua fala revela o quanto ela o ameaçou: Muito bem, se precisas amar os mortos,/incorporate a eles,/ama-os. Mas, em minha vida, não permitirei/ que uma mulher governe. E mais adiante ele complementa: Agora, entretanto, homem não serei eu,/homem será ela,/ se permanecer impune tamanho atrevimento.

Donaldo Schuler disse no Colóquio realizado pelo Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise que, Antígona, ao ocupar o espaço publico para propor a Ismene o sepultamento do irmão, espaço reservado para os homens, inventou a mulher.O espaço público grego pertencia ao homem, o espaço privado à mulher. Mas foi no espaço publico que Antígona fez a sua ação. Para esse mesmo sentido Werner Jaeger, em a Paidéia, parece convergir quando ao analisar o teatro de Sófocles diz que É especialmente significativo que seja a primeira vez que a mulher aparece como representante do humano, ao lado do homem, com idêntica dignidade. As numerosas figuras femininas de Sófocles, como Antígona, Electra, Dejanira, Tecmesa, Jocasta, para não falar de outras secundárias, como Clitemnestra, Ismena e Crisótemis, iluminam com o maior fulgor a elevação e a amplitude da humanidade de Sófocles. A descoberta da mulher é a consequência necessária da descoberta do homem como objeto próprio da tragédia.

Das 120 peças que a tradição antiga atribui a autoria a Sófocles, apenas 7 delas sobreviveram até os nossos dias, destacando-se Antígona que, junto com ElectraÉdipo, Rei, é uma das mais representadas no teatro moderno.Otto Maria Carpeaux em História da Literatura Ocidental diz que a descoberta do fundo eternamente humano no mito grego, pela psicanálise, forneceu explicação satisfatória do efeito permanente do teatro da Antiguidade. Sobretudo Sófocles e Eurípides são forças das mais vivas do teatro moderno, influências permanentes.

Falando de Sófocles, Otto Maria Carpeaux diz que ele era um artista da palavra, dono de extraordinário lirismo musical, sobretudo nos coros.Mas foi também artista da cena, sábio calculador dos efeitos, mestre incomparável da arquitettura dramática, da exposição analítica dos enredos. Apesar disso, o que destacou Sófocles dos seus concorrentes na dramaturgia da época, especialmente de Ésquilo, de Eurípides um pouco menos, o que mais contribuiu para a imortalidade da sua obra foi a sua maestria na construção dos personagens: O espectador moderno reconhece-se nos personagens de Sófocles, primeiro grande mestre da dramaturgia de caracteres, diz Carpeaux. Os seus personagens são figuras ideais. Werner Jaeger falando sobre Sófocles diz que ele, ao seguir a tendencia formadora da sua épocas, dirige-se ao próprio Homem e proclama as suas normas na representação das suas figuras humanas. (…) É a elas que se liga Sófocles, cujas figuras capitais encarnam um poderoso elemento de idealidade.  (…) Os homens de Sófocles (aqui Werger fala de homens no sentido geral, homens e mulheres) nascem de um sentimento da beleza que tem a fonte numa animação dos personagens até então desconhecida. Nele se manifesta o novo ideal da arete, que pela primeira vez e de modo consciente faz da psyche o ponto de partida de toda a educação humana.´

Antígona diante do conflito trágico de obedecer a lei do Estado ou a lei não-escrita, a lei Natural, deixa de ser um personagem meramente sentimental para se tornar um ser trágico: o conflito lhe revela a força do seu imperativo de consciência que lhe impôs a resistência – e assim Antígone se tornou o símbolo permanente de todas as Resistências.

Assim, tantos séculos depois, Antígona ainda é capaz de atrair as pessoas para ouvir falar dela, do seu destino trágico, da força de uma mulher que não transige sequer diante da Morte, que com o seu gesto derruba a barreira entre o público e o privado e recria o Homem, reinventa a Mulher. Antígona, ao não cumprir a lei escrita para seguir uma lei não-escrita, afronta com altivez o tirano que a condena à morte e  torna-se símbolo de todas as resistências, o ideal Humano que atravessa os tempos.