O Duplo

OFICINA_DE CRIAÇÃO_LITERARIA. (3)Trabalhamos na Oficina a temática do duplo tão bem utilizada por Poe, Saramago, Borges, Dostoievsk e tantos outros mais. O grande mestre Poe ficou célebre com o conto William Wilson que nós lemos a propósito do tema. Este  conto é referência em todos os estudos sobre o duplo e é sobre ele que falarei aqui.

O conto traz a narrativa na primeira pessoa. O narrador, num tom confessional,  diz se chamar William Wilson, sugerindo que se trata de um pseudônimo, porque não gostaria de se comprometer revelando o próprio nome. A estrutura da narrativa é circular, começa pelo final quando o personagem aparentemente moribundo Próximo a atravessar o sombrio vale, tenta seduzir o leitor para que se penalize do seu drama ou talvez como uma forma de confissão diante da morte que se aproxima, lançando no seu coração  o que ele chama de influência benéfica de arrependimento e de paz :

Oh! Sou o mais abandonado de todos os proscritos! 0 mundo, as suas honras, as suas flores, as suas aspirações douradas, tudo acabou para mim. E, entre as minhas esperanças e o céu, paira eternamente uma nuvem espessa, lúgubre, ilimitada!

Com esse apelo, não há quem resista. Fisgado, o leitor quer saber o que aconteceu para que o personagem se sinta tão desgraçado. Então, ele se torna avaro, diz que não vai contar todas “as lembranças dos meus últimos anos de miséria e de crime irremissível  porque o que lhe aconteceu num período recente da vida extrapolou toda as dimensões da torpeza e que lhe seria quase impossível descrevê-las. E acrescenta, vou simplesmente determinar a origem desse súbito desenvolvimento de perversidade, porque perverso sempre se considerou, os pais até haviam desistido dele por conta disso, abandonando-o ao seu livre arbítrio, senhor absoluto de todas as ações, numa idade em que poucas crianças pensam ainda em sair do regaço materno. Mas o que aconteceu estava fora dos seus limites até então de perversão. Às vezes ele chega a duvidar se tudo não fora um sonho.

William Wilson começa a trazer as suas lembranças intercaladas com pedidos de desculpas por estar falando tanto de certos cenários do seu passado como da sua casa, da aldeia, do colégio onde tudo começou porque essas recordações são o seu único prazer hoje, quando está mergulhado na desgraça.  Realmente,acho que ele foi muito longe nessas descrições e eu perguntei aos viageiros se eles não achavam que esses cenários poderiam ter sido mais econômicos, porque, na minha opinião, tanta descrição distraíam um pouco o leitor da tensão que inicialmente havia sido criada.Diferente de mim, eles acharam que os cenários tão detalhados criavam a atmosfera necessária ao tom misterioso da narrativa. Penso um pouco diferente, como boa seguidora de Poe e Charles Baudelaire quando eles falam  do conto e da sua imensa vantagem sobre os outros tipos de narrativa, face à sua brevidade que acrescenta muito à intensidade do efeito. Apresentado como uma leitura, que pode ser realizada de um único fôlego, o conto prevalece sobre o romance pela imensa vantagem que a brevidade acrescenta à intensidade do efeito. Tal leitura, que pode ser realizada de um único fôlego. 

Após algumas páginas descritivas do cenário da escola onde ele estudava e exercia certa liderança entre os colegas, surge o momento onde tudo começou: alguém no grupo não lhe dá o lugar distinto e ascendente que os outros dão. É quando ele se dá conta de que aquele aluno sem ter qualquer parentesco com ele tinha o mesmo nome de batismo e de família. Aquela rebelião o incomodava, até porque ele não

podia deixar de encarar a igualdade que mantinha tão facilmente comigo, como uma prova de verdadeira superioridade, porque, pela minha parte, não era sem grandes e contínuos esforços que conseguia conservar-me à sua altura.

Embora ninguém parecesse perceber esse duelo que era travado, numa cegueira inexplicável aos olhos dele, e nem William, o seu duplo, demonstrasse qualquer ambição, mais parecendo que o seu objetivo consistia apenas em contradizê-lo, assustá-lo, atormentá-lo, mesmo assim não deixou de notar com certo espanto que o rival misturava às impertinentes contradições certos ares de afetuosidade, os mais intempestivos e os mais desagradáveis do mundo.

Este tipo de duplo que Cacilda muito bem chama de duplo perseguidor, é o que está mais presente nas narrativas literárias e representam a luta feroz que o indivíduo trava com os seus desejos mais profundos que ameaçam o ser social que ele julga ser. Angústia alucinante resultado dessa luta ferrenha entre o chamado eu-ideal e o ideal do eu. A fronteira entre realidade e fantasia parece se dissolver e esse encontro com  a própria imagem resulta na fantasia de um duplo como alguém estranho que me olha e me ameaça; Eu sou objeto de um outro..Eu vejo a mim como um estranho que vem de fora de mim.  

Alguns viageiros escreveram para expressar a sua visão do duplo. Cacilda Portela, por exemplo, fez algumas reflexões sobre o duplo de Edgard Allain Poe e de Dostoievski e apresentou-as sob o título de Notas:

39_rackham_poe_williamwilson Algumas Notas sobre William Wilson (Edgar Allan Poe)

Cacilda Portela

William Wilson substitui o próprio eu (self) por um estranho. Visão angustiante de si mesmo como outro. Resultado de um lento  processo  de mútua aproximação e reconhecimento no outro até alcançar sua identificação. Uma relação entre o ser e a consciência.

O duplo surge para William Wilson como recusa de uma angústia existencial  para que possa conviver com o benefício e a dificuldade. Transforma a vida num turbilhão de sentimentos e ações desencontradas. É o duplo como perseguidor, vivendo no pesadelo, na alucinação, nos erros e nos horrores. Metáfora da consciência que atormenta, persegue e aterroriza com sua voz sussurrante, com seus conselhos fraternais e com sua  elevação moral.

Escravo de circunstancias superiores ao controle humano, William Wilson se intimida com o risco de ver seu Ego empobrecido e tornar-se inadaptado ao mundo. Na impossibilidade de exorcizar o outro, o jeito é assimilá-lo para que deixe de ser outro. Uma decisão firme de não mais ser escravizado. Perde a luta para si mesmo.

downloadAlgumas Notas sobre O Duplo (Dostoiévski)

Cacilda Portela

“A duplicidade é o traço mais comum das pessoas… não inteiramente comuns”. É a consciência intensa… a exigência de um dever moral perante si mesma e a humanidade”. Dostoiévsky.

Golyádkin substitui o eu self por um outro Godyádkin estranho. Uma visão angustiante como o outro, que nele se reconhece na alucinação, na luta entre sonhos e realidade, ambições e humildade, desejos e fracassos.

Funcionário pobre e sem brilho externo, e com um profundo sentimento de solidão e desordenados devaneios, busca um outro “eu” poderoso para dar sentido a sua própria identidade. Como Golyádkin segundo, ele revela todos os aspectos sombrios de sua consciência, o que acaba sento fatal para o senhor Golyádkin primeiro.

Acredita, desesperado, ter inimigos cruéis que juraram arruiná-lo… Os inimigos de sempre eram o próprio senhor Golyádkin.  O duplo adversário que desafia ao combate o próprio Golyádkin é o mesmo que o sr. Golyádkin criara em seu imaginário doentio para realizar todos os seus sonhos.

Golyádkin transforma a vida num turbilhão de sentimentos desencontrados. Caminha entre o bem e o mal e é o emblema moral da consciência que o levou até a loucura.

Salomé Barros, nossa poeta cordelista, também escreveu o seu duplo com muita propriedade e esmero.

 

O QUE FOR SERÁ

Salomé Barros

Sempre fui independente
Não dependo de ninguém
Jurei, berrei de pé junto
Que jamais serei refém
Minha posição é firme
E alguém que não confirme
Não me trate com desdém

De uns tempos para cá
Tenho ficado assustado
Não mudei de opinião
Mas estou desesperado
Não sei bem como explicar
É um fato singular
Que me faz desconfiado

Faço tudo direitinho
Como manda o figurino
Jamais fui considerado
Mentiroso ou libertino
Mas com essa novidade
Aumenta a ansiedade
E me leva ao desatino

Tem um outro me instigando
Dia e noite sem parar
Já estou me sufocando
E não consigo afastar
Me chama o tempo inteiro
Parece um bisbilhoteiro
Que veio me atanazar

Pra piorar ele exige
Uma reciprocidade
Ameaçando instalar
Um clima de inimizade
Entre a cruz e a espada
Dou resposta salteada
E preservo a identidade

Foi chegando de mansinho
Assim sem querer, querendo
Aos poucos foi me cercando
A insistência crescendo
E eu anestesiado
Fui ficando abobalhado
E sem querer fui cedendo

O mistério desse encosto
É mesmo de arrepiar
Tem um raio de ação
Que chega a qualquer lugar
Seja aqui ou no Japão
Transmite a informação
Na hora, sem reclamar

E me vendo sem saída
Fiquei meio acomodado
Parece que esse outro
Está no corpo moldado
Dorme e acorda comigo
Acho que já é castigo
Será que estou viciado?

Fiz então uma pesquisa
Passando a observar
Pessoas que encontrava
Na rua, em qualquer lugar
E todas, sem exceção
Tem a mesma obsessão
Bem difícil de largar

E foi assim que o outro
Ganhou popularidade
E implantou nas pessoas
Um quê de dubiedade
Se para uns é progresso
Pra outros é retrocesso
E interfere na amizade

Também nas artes plásticas a figura do duplo é muito comum. Morreu esta semana Tunga, pernambucano, artista plástico da maior importância. Fizemos uma pequena homenagem a esse grande mestre que partiu tão cedo ainda na sua capacidade criativa. Além de lermos um pouco da sua biografia, falar de Inhotim seu espaço artístico, vimos pela internet algumas “instaurações” como ele chamava certas obras suas. Escolhemos para deixar aqui nesse blog as “Xifópagas Capilares” que trazem a problemática do duplo.

moledão xifópagas2

Memórias do Subsolo

RES-SENTIMENTOS

*Cacilda Portela

sendbinary2Depois de ler pela primeira vez Memórias do Subsolo, pensei em escrever sobre o personagem-narrador que tanto parece se divertir quando discute suas teses com o leitor. Este texto é resultado dessa leitura, que fiz na Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, e escrevo para leitores iniciantes em Dostoievski. Não tenho a intenção de compreendê-lo bem. Deixo esta missão para os críticos literários especialistas no autor, mas não me foi possível deixar de registrar algumas impressões sobre o livro.

Em Memórias do subsolo o personagem e narrador leva ao leitor sua profunda angústia existencial.  O sofrimento tem relação com as suas ideias e a forma com que reflete sobre sentimentos e ações. Na primeira parte são ideias sobre consciência hipertrofiada e inércia, razão e vontade que expõem ao leitor o comportamento estranho de um homem que fez opção pelo subsolo, e como ele próprio o diz, de um homem atingido pelo desenvolvimento social e pela civilização europeia.Também as suas ideias frente ao racionalismo ocidental, à mentalidade positivista e à sociedade russa do fim do século XIX são determinantes para explicar seu comportamento. Na segunda parte, o personagem narra episódios com um oficial, colegas da escola e com a prostituta Lisa, materializando, de certa forma, as ideias apresentadas na primeira parte. São revelações de um homem com sentimentos e atitudes contraditórios, que vão da raiva ou profundo rancor, passando pelas fases de ofensa, vingança, culpa, arrependimento, prazer (do sofrimento), devassidão e devaneio. Acreditamos que na origem do subsolo encontra-se um rancor intenso e uma profunda carência de si mesmo.

O homem do subsolo começa dizendo que é um homem doente e mau. E que não conseguiu se tornar sequer um inseto. Leva uma existência excêntrica e autodestrutiva. A explicação é dada pela consciência hipertrofiada e pela inércia. Acredita que uma dose muito grande, mas qualquer consciência é uma doença, uma doença autêntica, completa. Consciente de que as leis da natureza são a causa do seu sofrimento, nosso homem do subsolo prefere uma consciência sub-humana. Acredita e não se conforma que sua condição seja determinada pelas leis da natureza, pelas combinações lógicas inevitáveis das ciências naturais, e da matemática. São sentimentos exagerados, desproporcionais, desarmoniosos e tão contraditórios que, por vezes, levam a sintomas de náusea, desfalecimento, insônia e convulsões. Não vê outra saída senão imobilizar-se voluptuosamente em inércia.

Defende uma vontade própria, sua, livre, um capricho,’ sua própria imaginação, ainda mesmo quando excitada até à loucura.Clama pelo direito à individualidade, aos desejos, ao risco, ao acaso, ao fracasso e ao sofrimento.A razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer, de desejar, constitui a manifestação de toda a vida humana.O homem, muitas vezes, deseja, intencionalmente, absurdos, ato vis ou a realização dos seus sonhos mais estranhos, mais fantásticos, para demonstrar do que é capaz a natureza humana.  Irrita-se com a possibilidade de que seus interesses, a matemática e as leis da natureza possam coincidir com a própria vontade. A vontade conserva o principal, o que nos é mais caro, isto é, a nossa personalidade e a nossa individualidade. A vontade tem muita força é o que impulsiona o homem a transformar ideias em ações.

Nosso homem do subsolo finaliza a primeira parte dizendo que o melhor é a inércia consciente. Logo em seguida afirma que não é o subsolo, mas algo absolutamente diverso, pelo qual anseia, mas que, de modo algum  há de encontrar. Afinal! São quarenta anos de subsolo.

O episódio com o oficial, os amigos de escola e com a prostituta Lisa revelam um homem com sentimentos e atitudes contraditórios, que  passam pelas fases de raiva e profundo rancor, vingança, devassidão e arrependimento, e devaneio. Seus sentimentos são complexos, instáveis, confusos, se combatem com vigor, se misturam e levam nosso homem às condições de amargura e desgraça.

Passaremos a descrever as fases mencionadas, procurando destacar o pensamento avaliativo, o acontecimento desencadeador (sentimentos e sintomas) e o comportamento do homem do subsolo em cada fase.

Sua raiva é muito grande e se transforma, quase sempre, em um rancor profundo, que só aumenta e se fortalece com o passar do tempo. É frequente demais, intensa demais, muitas vezes imaginária e duradoura. É uma raiva dirigida para dentro de si mesmo e incapaz de uma ação efetiva, como a incapacidade de lidar com experiências dolorosas (infância difícil, vida escolar e condição social de pobreza). Por ser homem de consciência hipertrofiada, incapaz de agir de modo espontâneo, já que está condenado a desdobrar a série infinita dos motivos e causas... de todo agir, procura substituir a raiva pelo sofrimento da culpa.

No episódio com o oficial, sente-se ofendido, diminuído, desvalorizado. De modo algum perdoava que o oficial o tivesse feito mudar de lugar e, positivamente, ele não o tivesse notado.  Não esquece a ofensa e acrescenta sempre novos pormenores, e a imaginação ainda faz surgir mais outros. Nada vai esquecer, tudo vai examinar e há ainda de inventar fatos inverossímeis, com o pretexto de que também poderia ter acontecido.

No dia seguinte à ofensa, continuou com o que ele chamou de minha devassidãozinha, ainda com maior timidez, de modo ainda mais opresso e triste, como se tivesse lágrimas nos olhos, mas assim mesmo prossegui. Quando encontrava o oficial na rua o olhava com raiva. A raiva até se fortalecia e se expandia com o passar do tempo. Muitas vezes, a raiva o sufocava. Escreveu uma transposição acusatória e uma carta linda e atraente, implorando ao oficial que se desculpasse perante ele. Esperava que o oficial, depois de ler a carta, fosse se atirar ao seu pescoço e oferecer a sua amizade. E como seria bom! Viveríamos tão bem como amigos! Tão bem! Ele me defenderia com a imponência da sua posição; eu o tornaria mais nobre com a minha cultura…

Passou a frequentar mais a Avenida Niévski, onde o oficial costumava caminhar; sempre um suplício, uma humilhação insuportável, porque tinha de se desviar. Era uma mosca, cedendo sem parar diante de todos, humilhada e ofendida, dizia ele, atormentado pelo fato de que não pudesse tratar o oficial de igual para igual.

Quando escreveu a carta para o oficial, nosso homem fez uma viagem no tempo, repassando fatos ocorridos e vislumbrando possíveis experiências boas no futuro Dessa forma, buscava se tranquilizar, na medida em que liberava o sentimento de vingança que carregava em si tanto sofrimento. Por fim, depois de dois anos atuando pouco a pouco, com eficiência, conseguiu agradável vingança dando um encontrão com o oficial na rua que fingiu não ter visto nada; mas apenas fingiu, estou certo, completou ele.

Chegando ao fim a fase de devassidão, começaram náuseas terríveis, seguidas de arrependimento, que era repelido por demais nauseante. Apaziguava o arrependimento refugiando-se em devaneios, que vinham com particular doçura e intensidade, com lágrimas, maldições e êxtases:

… eu, por exemplo, triunfo sobre todos; todos, naturalmente,
ficam reduzidos a nada e são forçados a reconhecer voluntariamente
as minhas qualidades, e eu perdoo a todos…Apaixono-me, sendo poeta
famoso e gentil homem da Câmara Real. Todos choram e me beijam
e eu vou descalço e faminto pregar as novas ideias…

Necessita do confronto com o oficial, os colegas de escola porque se considera de uma classe social inferior. Ele pertence à paisanada, e o oficial e os colegas deviam desprezá-lo pelo fracasso na carreira de funcionário e pelo fato de ter decaído muito, de andar mal trajado…  E, também, porque o oficial e os colegas representam, para o homem do subsolo, o homem normal, direto, de ação, como o sonhou a mãe natureza, enquanto ele é a antítese do homem normal, ou seja, um  homem de consciência hipertrofiada que quase sempre está ofendido.

Casualmente, encontra antigos colegas de escola, que se preparavam para um jantar de despedida de um deles.  Nosso homem se convida para o jantar. Não encontra receptividade no convite. Mas, imagina que a sua atitude venceria a todos, que o olhariam com respeito.

Na noite anterior ao jantar com os colegas, teve abomináveis pesadelos, por conta das lembranças dos anos patibulares na escola.  A febre fazia com que tremesse. Imaginava desesperado, que seria recebido altiva e friamente, com desprezo embotado, de modo vaidoso e insolente. Pensa que o melhor seria não ir. Mais ainda: no mais intenso paroxismo da febre do medo, sonhava sobrepujá-los, vencê-los, arrastá-los, obrigá-los a amar-me; bem, ainda que fosse pela ‘elevação das idéias e pelo meu indiscutível espírito.
Decidiu que não deveria ser o primeiro a chegar, senão julgariam que me alegrara muito pelo convite, mas já na véspera sabia que seria assim. Os colegas só chegaram uma hora depois. Os criados informaram-no que o almoço havia sido marcado para seis horas e não cinco, conforme combinado. Desdenharam de me avisar, pensou ofendido. Mais tarde, quando todos já haviam chegado e a conversa já corria solta, quando perguntado pelo seu trabalho e sua manutenção(salário),explodiu de raiva, humilhação e vergonha. Ele se sentiu abandonado, esmagado, desprezado, destruído. Pensou em sair, mas ficou.  Os colegas se transferiram para um divã, e o homem do subsolo ficou andando da mesa até a lareira, bem em frente a eles, durante três horas, pensando que era impossível rebaixar-se de modo mais desonesto e deliberado.

Quando o grupo ia saindo, ele atormentado, febril, os cabelos molhados de suor, e achando que precisava  terminar tudo, nem que tivesse de me apunhalar!, então pede perdão a todos, a todos, eu ofendi a todos.Sente-se abandonado, esmagado, destruído. Só encontra, como resultado de suas ações, o sofrimento.

Na saída, abandonado, chamou um cocheiro e foi ao encontro dos colegas que iriam para outro lugar dar continuidade à noite. Agitado, pensava:Ou eles todos vão implorar a minha amizade, de joelhos, abraçando as minhas pernas…ou...

Quando se dirigia à casa noturna, sentia-se arrasado, destruído, coberto de escarros, embriagado e cheio de confusão na cabeça. Durante o percurso ia ruminando sua vingança com os colegas de escola, que incluía bofetões, puxões de cabelo, duelo, perda do emprego, deportação para a Sibéria, em residência forçada, etc. E pensava alto: Não! É preciso resgatar tudo isto! – Mas ou eu hei de resgatar ou, nesta mesma noite, morrerei fulminado. Foi atrás dos colegas para a vingança.Ao chegar à taberna sente os joelhos enfraquecendo terrivelmente. Algo parece pairar sobre ele, tocar-lhe, infundir-lhe intranquilidade. A angústia e a bílis ferviam novamente e buscavam saída … Não havia sinal deles.

Eu caminhava pela sala, sem dar atenção a nada, e, ao que parece, falava comigo mesmo. Era como se eu tivesse sido salvo da morte e alegremente pressentisse, com todo o meu ser, o seguinte: eu daria mesmo uma bofetada, sem dúvida, sem dúvida! Mas, agora, eles não estavam ali e… tudo desaparecera, tudo se modificara!… Eu olhava em torno. Não podia ainda compreender. Maquinalmente, lancei um olhar para a moça que entrara.

Depois de duas horas em modorra, abriu os olhos e viu Lisa. Pensou: Estou justamente satisfeito de lhe parecer repugnante; isto me agrada… (…) Algo me mordeu e aproximei-me muito dela… O olhar era frio, indiferente, taciturno, muito estranho, dava uma sensação penosa. Logo surgiu a ideia absurda, repugnante como uma aranha, da devassidão… Iniciou um diálogo com Lisa. Ele aborrecido e angustiado ( lembrança do jantar com os colegas) e ela parecia dizer deixe-me, está me aborrecendo. Em determinado momento,sente-se espicaçado, ferido, rancoroso. Através de uma atuação, que engana e distrai, com doses maiores ou menores de pretensão, como um recurso para distrair dos próprios pensamentos, sentimentos, disposições ou objetivos, começa sua atuação sobre Lisa.

No inicio, começa a narrar para Lisa o enterro (de uma prostituta) que vira quando se dirigia a taverna. Os fatos que narra e o seu tom coloquial têm a  intenção de exercer certo poder sobre ela. Lisa já estremecia e apresentava raiva. De súbito algo apareceu, ainda sem objetivo claro.  Sua narrativa é perversa, mas nela há o cuidado de não subir o tom. Enquanto humilha Lisa, procura ganhar sua confiança. Tem consciência que esta sendo mau, mas continua. Conta para Lisa a historia de uma família feliz ( o pai, a mãe e o filhinho), enquanto pensa é com estes quadradinhos, justamente com estes quadradinhos, que é preciso atuar sobre você’!... e um mau sentimento se apossou de mim. Espere um pouco, pensou. Pinta um quadro triste de como sera a vida futura de Lisa. Torna-se patético, um espasmo está a ponto de apertar-me a garganta, e… de repente, soergui-me assustado… o coração batia. Pressentia, desde muito, que lhe transtornara a alma inteira e lhe rompera o coração, e, quanto mais eu me convencia disto, tanto mais queria atingir o objetivo o mais depressa e o mais intensamente possível.

No primeiro momento com Lisa, quis apagar o seu sofrimento, impondo a ela o sofrimento da humilhação e utilizando o embuste como sentimento, para depois dominá-la. Tinha consciência de que estava sendo amoral, mas não desejava parar o jogo. Descarregou sobre ela todo rancor, que trazia do jantar com os colegas. Em algum momento, sentiu vergonha, sentiu-se culpado, perverso. Na saída, pede perdão e dá o seu endereço. Precisa humilhar Lisa para alimentar a sua raiva. Sofre, mas não sabe viver de outra forma.Seu comportamento foi uma forma de descarregar em Lisa todo o fracasso, humilhação e sofrimento do jantar com os colegas. Sua atuação foi representada propositadamente para alcançar os seus objetivos. Segue uma linha sobre a qual atua sobre Lisa. O que, Lisa? Por que, Lisa? Como, Lisa? O que procura, deseja, durante o curso da atuação. A ação é intencional. É intencional, tem propósito e é esse propósito que conduz os sentimentos e as ações do nosso homem.

Quando deixa Lisa, pede perdão e dá o seu endereço, mas já esta pensando tu tens razão em ser um canalha… sentir que, embora seja ruim, não pode ser de outro modo….sobretudo quando já se tem uma consciência muito forte do inevitável da própria condição.Fica atormentado pelo pensamento de que Lisa pode ir à sua casa. Três dias depois, começou o devaneio:

estou salvando Lisa, justamente pelo fato de que ela vem a minha casa e eu lhe falo… Faço-a progredir, cuido da sua instrução… Mas agora, agora você é minha, é a minha obra, pura, bela, a minha linda esposa’’. Finalmente, toda envergonhada, bela, trêmula, aos soluços, atira-se aos meus pés e me diz que sou o seu salvador e que ela me ama acima de tudo no mundo….

Lisa vai à sua casa buscar ajuda e é  recebida com rancor. O estado de espírito do homem do subsolo é de desânimo, abatimento e humilhação, depois de uma briga séria com seu criado.  Sente que Lisa haveria de pagar caro por tudo aquilo. Depois das palavras corriqueiras, na situação que se encontravam os dois, ele falou não me envergonho da minha pobreza… Pelo contrário, orgulho-me dela. Sou pobre, mas nobre de caráter… É possível ser pobre e ter nobreza. Balbuciei. Lisa o olhava inquieta.Em mais um dos seus costumeiros acessos de raiva, exclamou, referindo-se ao criado: vou matá-lo!, vou matá-lo! E depois, dirigindo-se a Lisa: você não sabe, Lisa, o que este carrasco é para mim. É o meu carrasco… ele… E, se desfez, em lágrimas. Sente vergonha em meios aos soluços, mas não podia contê-los. Água, quero água; está ali balbuciava, a voz fraca… Por assim dizer representava para salvar a decência, embora a crise fosse verdadeira. Lisa estava perplexa e assustada. Depois de alguns minutos, veio a pergunta; Lisa, você me despreza? Disse ele, olhando-a fixamente, tremendo de impaciência sem saber o que ela pensava. Estava enraivecido contra ele mesmo, mas, naturalmente, ela é que devia sofrer as consequências. Depois de um silêncio de cinco minutos, Lisa falou: eu quero… sair de lá… de uma vez. Nosso homem pergunta, enraivecido, porque ela veio à sua casa. E ele mesmo responde, você veio porque queria ouvir  palavras piedosas como as que lhe falei no cabaré. Diz a Lisa que fora humilhado no jantar com os colegas e queria humilhar também. Esmagada, Lisa o ouvia dizer que precisava de poder, conseguir as suas lágrimas, a sua humilhação, a sua histeria.

De repente, ofendida e esmagada, mas percebendo o meu desespero, deixou-se cair junto a mim e pareceu petrificar-se naquele abraço. Sentiu-se envergonhado e pensou que ela era a heroína e ele era a criatura humilhada e esmagada, de quatro dias antes. Logo, surge o sentimento de domínio e de posse: uma fase de devassidão. Como a odiava e como estava atraído por ela. Pouco tempo depois, ele andava pelo quarto e observava Lisa que chorava. Sente que a ofendeu para sempre; e que ela agora sabe o que é uma vingança, uma outra humilhação e que ele é incapaz de amá-la.

Lisa dá adeus e sai. Ele a chama várias vezes, mas sem convicção. E se pergunta: para quê ?

* Cacilda Portela é advogada, pesquisadora social, ensaísta.

Dostoievski – Passeio pelos subterrâneos

sendbinary2MEMÓRIAS DE SUBSOLO DE FIÓDOR DOSTOIEVSKI

Dostoievski  sempre foi lembrado ao fazermos a programação anual da Oficina. Chegou a sua vez, em outubro de 2013, com Memórias de Subsolo. A opção pela tradução de Boris Schnaiderman, da Editora 34, 6ª edição, deveu-se ao conhecimento e respeito que eu tenho pelo trabalho desse tradutor de obras extraordinárias de Dostoievski, Tolstoi e vários poetas russos de vanguarda. Certa vez, em entrevista, Boris Schnaiderman disse que no início da sua atividade de tradução ficava muito preso à literalidade, mas com o passar do tempo, passou a adotar forma menos mecânica, bem mais natural, por entender que a tradução é acima de tudo uma arte.

O texto que lemos é uma obra de arte literária e se conseguiu nos impressionar é porque a tradução foi realizada com muita maestria. Em seu prefácio, Bóris Schnaiderman traz  importantes opiniões sobre o livro, entre elas, o impacto que causou em Nietzsche: Um achado fortuito numa livraria: Memórias do Subsolo de Dolstoievski (…) A voz do sangue (como denominá-lo de outro modo?) fez-se ouvir de imediato e minha alegria não teve limites. E ainda as opiniões de André Gide: o ponto culminante de toda a sua obra; de George Steiner: provavelmente o mais dostoiesvskiano dos livros e uma verdadeira suma de toda a sua obra; de Górki:  Para mim, todo Nietzsche está em Memórias do Subsolo.

Mas, antes de falar sobre Memórias do Subsolo gostaria de tentar traçar em grandes linhas o cenário do autor, a Russia do seu tempo, para entender as circunstâncias que envolveram a sua vida literária e política e  que culminaram com a escrita dessa obra.

Fiódor Dostoievski nasceu em Moscou, em novembro de 1821. Ano rico para a literatura porque, Dostoevskij_1872também, nasceram nesse ano, na França, Charles Baudelaire (abril) e Gustave Flaubert.(dezembro). O ano registrou ainda, grandes mudanças na geografia política com a redistribuição  das fronteiras  hispanofônicas a partir do reconhecimento pela Espanha da independência da Venezuela, Peru, Guatemala, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador e México. No Brasil, com a volta do Rei D. João VI para Portugal, deixando D.Pedro I como Regente, começou a se delinear com mais nitidez também o que viria ocorrer em 1822, a sua independência.

A vida de Dostoievski foi marcada por grandes perdas desde cedo. Ainda na adolescência, ficou muito clara para ele a opção pela literatura. A morte da mãe, deixando o pai, médico de  hospital público, com 7 filhos para criar mudou tudo. Esta foi a primeira guinada de cento e oitenta graus em sua vida. O pai tornou-se alcoólatra e sentindo-se incapaz de administrar a família, mandou os dois filhos mais velhos, Mikhail and Fyodor  para a academia militar de São Petersburgo, com o objetivo de garantir o futuro deles. Dostoievski jamais tivera interesse em ser militar e pelo resto de sua vida ele iria se ressentir do grande erro que havia sido cometido pelo pai ao forçá-lo a seguir essa carreira. Em várias obras, os personagens trazem esse ranço contra a academia e os militares. O personagem narrador de Memórias do Subsolo revela  hostilidade aos militares, em especial ao oficial que ele encontra numa taverna, numa sala de bilhar. Por conta de um gesto que ele considerou humilhante, passou a persegui-lo daí em diante. Vejamos a cena primeira:

            Eu estava em pé junto à mesa de bilhar, estorvava a passagem por inadvertência, e ele precisou passar; tomou-me então pelos ombros e, silenciosamente, sem qualquer aviso prévio ou explicação, tirou-me do lugar em que estava, colocou-me em outro e passou por ali, como se nem sequer me notasse.Até pancadas eu teria perdoado, mas de modo nenhum poderia perdoar que ele me mudasse de lugar e, positivamente, não me notasse. (…) Oh, se aquele oficial fosse dos que concordam em lutar num duelo!

Por outro lado, a sua conexão com São Petersburgo foi total, achou a cidade  intensa, abstrata, e, no futuro, os seus personagens também expressarão essa opinião: esta é uma cidade de gente meio louca. Raramente se encontra um lugar com tantas influências sombrias, intensas e estranhas sobre a alma humana, como em São Petersburgo. (…) É uma particular desgraça viver em Petersburgo. O personagem de Memória do Subsolo reclama: …que tenha a infelicidade de habitar Petersburgo, a cidade mais abstrata e meditativa de todo o globo terrestre. Porém, há um momento em que ele diz claramente que não deixará São Petersburgo: Mas ficarei em Petersburgo; não deixarei esta cidade! Não a deixarei porque…Eh! Mas, na realidade, me é de todo indiferente o fato de que a deixe ou não. 

Ele amou São Petersburgo. Aquela foi a cidade de sua juventude, onde despontou como escritor, conheceu o sucesso e viveu trágicas experiências, pesadas perdas. Jamais teve o seu próprio apartamento, sempre morou em locais alugados. Durante os vinte e oito anos de sua permanência em São Petersburgo mudou vinte vezes e jamais morou mais de três anos na mesma casa. Os apartamentos situavam-se sempre em encruzilhadas, bifurcações, locais típicos dos edifícios para aluguel. Os seus personagens também moravam nesse tipo de edifício, ele sempre usou na escrita imóvel similar ao que ele vivia ou vivera. Talvez a sua necessidade de mudança estivesse ligada às exigências da sua criação literária. Das trinta obras de Dostoievski, cerca de vinte tiveram como cenário narrativo São Petersburgo. Essa cidade estranha, muito particular e misteriosa no dizer de Dostoievski oferecia-lhe a ambientação adequada para que em suas novelas o fantástico emergisse na mediocridade, as idéias insanas aparecessem e os crimes fossem cometidos: All of this is so vulgar and ordinary that  I almost borders on the fantastic.[i]

Graduado pela academia militar e designado para o Corpo de Engenheiros, embora Dostoievski jamais tenha abandonado o seu sonho literário, viu-se obrigado a permanecer ali para garantir a sobrevivência. Sempre preocupado em ganhar mais algum dinheiro, iniciou o seu trabalho como tradutor, chegando a traduzir, em duas ou três semanas, Eugene Grandet de Balzac, 365 páginas. As suas traduções não eram simplesmente literais, poderiam mais serem vistas como um tipo especial de literatura, não simplesmente a de Balzac, nem a de Dostoievski, mas a soma criativa dos trabalhos de dois grandes escritores.

Dostoievski reconhecia na leitura a sua principal escola de literatura. Lia compulsivamente, apaixonadamente. A leitura exercia estranho efeito sobre ele. Costumava reler as obras que ele gostava e dizia que novas inspirações, novos insights surgiam dessas releituras, assim como as habilidades para fazer as suas próprias criações. Em várias obras, os protagonistas são leitores e o livro escolhido para eles lerem nunca foi acidental, por exemplo, Nastasia Filippovna, personagem de O Idiota lia Madame Bovary às vésperas da sua morte.

Os personagens de Dostoievski não são apenas grandes leitores, eles têm personalidade muito criativa e tentam viver todo esse potencial criativo. Mas, inicialmente, as suas escritas estavam associadas aos seus anos na academia quando ele ainda sonhava com o sublime e o belo. Desde as primeiras páginas de Memórias do Subsolo que o personagem alude ao belo e sublime: o narrador se queixa de que este “belo e sublime” (sempre dentro de aspas) apertou com força o seu crânio durante quarenta anos. O tradutor, em nota, diz que é uma alusão à obra de Kant: Observações sobre os sentimentos do belo e do sublime (1764) que havia tornado a expressão muito popular entre os críticos russos das décadas de 1830 e  1840. Ele destruiu tudo que escreveu naquela época, ao descobrir que não havia nada mais fantástica que a realidade em si mesma.O personagem de Memórias do Subsolo se refere com desprezo a essa visão filosófica kantiana:. Quanto mais consciência eu tinha do bem e de tudo que é “belo e sublime”, tanto mais me afundava em meu lodo, tanto mais capaz me tornava de imergir nele por completo.Ao começar a olhar ao seu redor,observando os semblantes das pessoas com acuidade, estranhas e maravilhosas figuras, possíveis personagens ele foi descobrindo

             Era como se eu houvesse entendido naquele minuto algo que antes só havia mexido em mim, mas não houvera compreendido; como se visse o mundo através de algo novo, completamente novo e desconhecido; apenas conhecido por algum tipo de sinais misteriosos. Eu penso que foi precisamente nesse momento que a minha existência começou.

Não foi à toa que o seu primeiro livro, o que ele iniciou a carreira literária, Gente Pobre, o protagonista não era um herói romântico, mas um pobre e comum escriturário a quem ele deu roupagem literária, subvertendo o gênero por completo e sendo recebido efusivamente pelo público e pela crítica literária da época. Trata-se de um romance epistolar em que um  funcionário público de escalão inferior e a sua vizinha, uma órfã, ambos humilhados e injustiçados pela sociedade, trocam cartas, permitindo ao leitor acompanhar as pequenas alegrias e as dores dos dois personagens, captando as suas emoções, os seus valores, os seus sonhos, tudo escrito com muita maestria.

Pouco depois da publicação desse livro, Dostoievski foi preso por pertencer a um grupo de jovens e intelectuais que se auto-denominava de fourierista, fascinado pelas idéias do socialismo utópico de Charles Fourier, de uma idade de ouro para a humanidade. Este grupo sonhava com um futuro melhor para a Rússia, mas o Czar Nicolau I assustado com a onda revolucionária que atingia a Europa e ainda sob o temor do que acontecera na Revolução Francesa mandou investigar esses jovens que se reuniam em torno do poeta Mikhail Petrashevski, mandando prende-los, entre eles, Dostoievski. No alvorecer da sua força criativa, Dostoievski, mais uma vez, foi arrancado do seu sonho literário.

Durante oito meses ele ficou em uma solitária da Fortaleza de Pedro e Paulo, em São Petersburgo. Depois, foi enviado para fazer trabalhos forçados em Omsk Prison, por mais quatro anos até ficar exilado na Sibéria por seis anos. O pior de tudo, no entanto, foi a terrível experiência que ele passou. O Czar Nicolau I decidiu punir os idealistas de forma cruel para que servisse de exemplo aos seus contemporâneos. Na madrugada de 22 dezembro de 1849, oito meses após a prisão, eles foram levados para um espetáculo público, onde a execução iria ser promulgada.O ritual da execução penal foi seguido em sua totalidade, soldados perfilados, estáticos, um padre, com um grande crucifixo de ouro nas mãos, marcha à frente dos condenados. Amarrados em estacas, os prisioneiros estão diante do pelotão de fuzilamento. O comandante, acompanhado pelo rufar dos tambores, lê a sentença em voz alta, terminando com as palavras: morte por fuzilamento. Novo rufar dos tambores, ele ergue a mão para ordenar a execução quando, no último momento, surge um mensageiro, trazendo nas mãos nova ordem do Czar: a sentença fora comutada para trabalhos forçados e de serviço no exército. O Czar Nicolau I havia decidido se divertir  às custas deles, usando até mesmo fundos públicos para financiar esta fingida execução. O grupo viveu os piores momentos de sua vida esperando o fuzilamento. Dostoievski descreve em sua novela O Idiota, nas palavras do Prince Myshkin esse momento:

                 O homem foi trazido para a plataforma com alguns outros, e a sentença de execução por fuzilamento, por crime político, foi lida. Em cerca de vinte minutos o perdão foi igualmente lido, e um tipo diferente de punição designada.; contudo, no intervalo entre as duas sentenças, vinte minutos ou no mínimo  um quarto de horas, ele havia vivido com a firme convicção que em poucos minutos ele iria subitamente morrer. Ele lembrou cada coisa com inusual claridade e disse que jamais iria esquecer o que aconteceu naqueles minutos.

Esse fato marcou profundamente Dostoievski. Estar  vivo era o que contava, mesmo diante da possibilidade de passar o resto dos seus dias na prisão, conforme ele mesmo o disse ao ser irmão em carta escrita logo após a simulação do enforcamento:

                Vida é vida em qualquer lugar, a vida está dentro de nós, e não no mundo exterior. As pessoas vão estar ao meu lado,  e ser um ser humano entre pessoas e manter-se único sempre, sejam quais forem os infortúnios que acontecem, não cair em desespero e perecer – isto é o que é a vida, esta é sua missão. Eu percebo assim. Esta ideia entrou em meu corpo e sangue.

Os biógrafos de Dostoievski, todavia,  dizem que a escrita dele está dividida em dois momentos, antes da prisão e depois dela. Dez anos depois quando ele volta para São Petersburgo e reinicia as suas atividades literárias com sofreguidão, em busca do tempo perdido, a sua escrita já não é mais a mesma, está marcada por uma década de pesadas e dolorosas experiências conforme se poderá comprovar com a leitura de Humilhados e Ofendidos e Recordação da Casa dos Mortos.Se antes da prisão Dostoievski acreditava numa idade de ouro para a humanidade, mesmo que para isso fosse necessário fazer uma revolução, após a sua volta ao mundo dos vivos ele já não acreditava mais nessa via, pelo contrário, estava completamente convencido que a violência não traria felicidade para a humanidade.Após viagem à Europa, viagem que ele havia sonhado muitos anos, ainda antes de ser preso, para ver e sentir o que estava acontecendo por lá, deixou-o completamente frustrado, desiludido. Ele chegou à conclusão de que a proposição da Revolução Francesa, Liberdade, Igualidade, Fraternidade era falsa, apenas uma frase que carecia de profundidade. As suas impressões estão no livro Notas de inverno sobre impressões do verão, livro que ele trabalhou quase simultaneamente às Memórias do Subsolo,  onde a ideia principal é a impossibilidade do ser humano reger a sua vida com base na razão.Não é à toa que o personagem de Memórias do Subsolo descrê de todas as utopias, de qualquer possibilidade de existência de um mundo harmônico ou  Palácio de Cristal, sob o argumento de  que  ele seria apenas uma pequena roda dentada dessa engrenagem.

O personagem de Memórias do Subsolo está convencido de que todo o significado da existência humana reside na afirmação da vontade irracional, e ele resiste a toda argumentação matemática da razão. Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que não só uma dose muito grande de consciência, mas qualquer consciência, é uma doença. Insisto nisso. 

E ele continua com os seus paradoxos:

Sou homem doente…Um homem mau. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei ao certo, do que estou sofrendo.Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.)  (…) Menti a respeito de mim mesmo quando disse, ainda há pouco, que era um funcionário maldoso. Menti de raiva. (…) Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. 

Mas ele se considera inteligente e é por conta dessa inteligência que não consegue tornar-se algo, pois somente os imbecis o conseguem. Esta é um reflexão que ele faz em cima dos seus quarenta anos de vida: Esta é a convicção do meus quarenta anos. Por outro lado, ele diz que viver além dos quarenta anos (que ele considera a mais avançada velhice) é indecente, vulgar, imoral! Quem é que vive além dos quarenta? Respondei-me sincera e honestamente. Vou dizer-vos: os imbecis e os canalhas. Vou dizer isto na cara de todos esses anciães respeitáveis e perfumados, de cabelos argênteos. O interessante é que ele se acha com propriedade para falar dessa forma, de agredir a todos os que são velhos  porque ele vai viver até os sessenta! até os setenta! até os oitenta! Em outro momento, se referindo à própria inteligência ele se declara culpado de ser tão inteligente: …tenho culpa de ser mais inteligente que todos à minha volta.(Considerei-me, continuamente, mais inteligente que todos à minha volta, e às vezes – acreditam?- tinha até vergonha disso. Pelo menos, a vida toda olhei de certo modo para o lado e nunca pude fitar as pessoas nos olhos.)

Memórias do Subsolo foi escrito em 1864, quando o escritor vivia momentos muito difíceis com a sua esposa à beira da morte, atacada de tuberculose. Ainda quando estava no exílio, Dostoievski conheceu Maria Dmitrievna, viúva, o primeiro marido havia morrido por conta do alcoolismo, deixando-a com uma criança de seis anos de idade sem condição financeira de criá-la.Nesta época, com a ajuda de amigos, ele passou a ocupar função de oficial subalterno em Semipalatinsk, na Sibéria, onde ainda se encontrava exilado. Para ele que estava recém saído da prisão, vivendo ainda sob controle no exílio, encontrar essa ainda jovem mulher, de vinte e oito anos, bonita, inteligente,  muito educada, esperta, amigável, graciosa (com todos esses elogios, ele falou sobre a jovem viúva para o irmão) deu a Dostoievski sentimento de liberdade, de felicidade e retorno à vida normal. Eles se casaram e dois anos depois foi permitido a ele deixar a Sibéria, por questões de saúde, mas foi direcionado para Tver e proibido de entrar em Moscou, São Peterburgo ou adjacências.Mas ele não se demorou muito em Tver, conseguiu finalmente autorização para voltar para São Petersburgo, exatos 10 anos depois dali ter saído, em 1859.

A vigilância sobre ele permaneceu até 1875, foram 26 anos sob controle da polícia desde a sua prisão em 1849, isto significava que toda a sua correspondência era lida, todos os seus movimentos acompanhados. Isso levou-o, sem dúvida, a criar os seus personagens com tanta ânsia de liberdade, tão ávidos por decidir eles próprios seu destino.

Memórias do Subsolo é um grande livro que deve ser lido e relido muitas vezes.

                                             Jaboatão dos Guararapes, 02 de dezembro de 2013

                                                        Lourdes Rodrigues


[i] Tudo isso é tão vulgar e comum que quase beira o fantástico. A Guidebook – The Dostoievsky Museum In Saint Petersburg. N.Ashimbaeva, V. Biron