Dividindo o tempo entre a Psicanálise e a Literatura, escrevo alguns contos que às vezes me confunde em que momento estou. O ato de escrever, em muitas ocasiões, parece-me com aquele instante do despertar, que ainda confusos não sabemos se foi sonho ou um acontecimento da realidade. A voz narrativa nos conduz a aventuras inesperadas. A escrita desses pequenos contos foi assim, escrevia e reescrevia sem parar, até que um dia consegui afastar-me deles e enviá-los à Oficina. Depois atendo à tentação de nova aproximação. Que novela! Everaldo Soares Júnior João pessoa, maio de 2019
MEMORAÇÃO
Everaldo Soares Júnior
Pensando bem, se é possível pensar assim, foi a tempo de se perder nas lembranças. Não sei o que aconteceu, aconteceu, o instante se fez, nada de nada, nem pressa ou demora, mais nada. E o mesmo se repetiu.
Alguma franja avermelhada no horizonte do céu com a terra sinalizava que era o anoitecer, hora de descansar o peso do corpo na linha comprida da terra. Abri o saco, passei a mão por dentro catando um resto de comida para enganar o ronco do estômago.
Estirado no chão, olhei para cima. Tudo estrelado, nuvens passando, escuro nenhum, a lua começando a aparecer majestosa.
No meio do moído de dores, um pensamento me subiu à cabeça: o que aconteceu, aconteceu, havia mesmo de parar aqui. Não esqueço, vi a cara de espanto dela escorada na cama, o barulho que ouvira foi da banda da janela batendo e logo a zoada do pulo no chão do terreiro. Ligeiro, com a pistola na mão, passei pela porta de trás da casa, nem precisou fazer mira, puxei o gatilho, escutei três estampidos e a pólvora sombreou a minha mão direita. Peguei o saco, enchi com o que pude e saí desatinado pelos matos afora.
Agora não necessito de volta, aconteceu, aconteceu, um fiapo de tempo sem sentido mudou o rumo da vida. Fazer o quê?
O que insistia era a lembrança do verde de folhas novas dos seus olhos, o cheiro de jasmim, a respiração ofegante no meu pescoço, a pele macia, arrepiada e o coração batendo apressado. Beleza, seu corpo amparado nos meus braços.
Vai passar, o que aconteceu, já aconteceu, arrependimento de nada adianta, melhor que fique cada um no seu lugar.
Acontece
Everaldo Soares Júnior
Há momentos que não consigo me dominar. Não tinha nada que me alterar daquele jeito. Ela ficou calada e baixou a cabeça, logo vi a besteira do meu descontrole. Saiu de casa e por azar meu, encontrou-se com aquele Nilson no portão, muito intrometido. Demoraram mais de meia hora conversando.
Cara, você tem que maneirar mais. Ela ficou sentida.
Sei, Nilson, mas depois resolvo. Agora vamos terminar esse trabalho chato.
Concordo, já não é sem tempo.
Queria dormir cedo, a amiga insônia chegou e veio com seu parceiro, o coração apressado. Vou telefonar.
Quero conversar, tem coisas em mim que, por mais cuidado que tenha, não controlo.
Agora não, amanhã, às quatro horas no Café da Praça.
Certo, até amanhã à tarde.
Mais calmo, vou dormir, ajeitei os travesseiros. Na mesa cabeceira apalpei a caixa de balas da pistola que trouxe para casa.
Moço, por favor, traga-me uma água com gás e um café simples.
Pensei em já encontrá-la aqui. O coração acelerou antes da hora.
Lembrei do cardiologista, depois de me auscultar e ler meus exames, ele falou: os resultados estão ainda na faixa da normalidade, mas vamos cuidar dessa arritmia.
E a pressão arterial?
Procure relaxar, que a máxima está 160, mas acontece que a mínima não passa de 90 e isso é o que nos interessa no momento, vou medicá-lo.
Procuro argumentos para justificar esse destempero e eu mesmo não me convenço. As brigas dos velhos ainda ressoam no meu destempero. As chateações do trabalho, o trânsito infernal, o cansaço, minha solidão maior que a dos outros, desamparo amoroso. Que nada, tudo besteira para justificar a atrapalhação que faço. No início é um calor no corpo todo, logo, logo, vem a raiva que espanta e afasta qualquer pensamento. O arrependimento não adianta nada. Volta tudo de novo.
Está demorando muito, será que vem? Ainda não consegui acabar o amor todo de seu coração. Assim espero.
Moço, mais um café.
Acho que enchi o saco com o desmedido, ficou triste e foi embora, pronto terminou.
Será? Também não fui só ruim assim. Uma vez vi na televisão um documentário sobre a visita de Vinicius ao amigo João Cabral de Melo Neto, em Sevílha. Grande festa organizada pela filha do João. O Poetinha pegou o violão e começou a cantar uma bossa nova que falava do amor e do coração. Distingui uma voz rouca e baixinha lá no fundo da sala que dizia, essa é a única víscera que ele sabe cantar? Puxa, chamou o coração de víscera. E muita gente deu risada.
Alô, sim sou eu, mas agora não, estou aguardando uma pessoa me ligar, amanhã conversamos sobre a reforma desse escritório, desculpe.
Está atrasada, ontem ficou com lábios cerrados, pálida e a testa franzida, olhos sem expressão, foi embora sem despedida. Também a repetição se tornou tão frequente. Via o seu rosto cada vez mais triste, muito diferente do dia que a conheci. Foi na festa do Nilson. Aproximei-me da mesa do aniversariante e logo a notei, parecia uma rosa sorrindo. Parei, tomado de simpatia, irradiava atenções, falava com as pessoas, ficou dançando solta numa roda animada.
Fiquei bem perto da animação e fui descoberto pelo seu olhar. Estendendo nossas mãos chegamos próximos e começamos a dançar juntos.
O telefone dela está fora da área ou encontra-se desligado. Não vem e nem quer falar comigo.
Pareço aquele personagem, Juan Pablo, de Ernesto Sábato, do livro O Túnel. Tudo tinha de ser como ele dizia. Usava as palavras da moça para argumentar contra ela. Humilhada, concordava e ele ainda ficava satisfeito. Não, assim é demais, também sofri, a disritmia é a prova disso. Tivemos momentos encantadores, inesquecíveis, olhávamo-nos nos olhos, seu corpo macio junto ao meu, abraçados assim, o tempo desaparecia. Espere, são quase seis horas, estou aqui há mais de duas. Podia ter me casado com ela, agora teria filhos, casa, quem sabe se eu não estaria melhor dessa mortificação.
Alô Rosa, estou lhe ouvindo bem.
Ernesto, estou no hospital, acompanhando meu pai.
O que foi que ele teve?
Uma arritmia e a pressão arterial subiu muito, está na U T I.
Bom, se a mínima não ultrapassou 90 mm de Hg, pode ser medicado e logo vai melhorar. Qual é o hospital?
Acontece que a mínima ultrapassou os 90, eu vim com Nilson, não se preocupe.
O coração disparou.
Está bem, depois a gente se vê
Garçom, traga-me aquele conhaque espanhol, pode ser duplo e a conta.
Bebeu sorvendo de gole em gole.
Levantou-se devagar, saiu com passos largos até a calçada.
A avenida era um corredor. A passagem de pedestre era no final da quadra mais adiante. Parado, resolveu atravessar ali mesmo. Com passos largos começou a travessia movimentada e perigosa. Nos primeiros metros foi mais rápido que os carros, depois um automóvel de luxo parou em cima dele, cantando os pneus. O motorista gritou bravo, mas ele não deu ouvidos. Continuou andando depressa até o estacionamento
O carro estava limpo, foi lavado e lubrificado. Abriu a porta, sentou-se. Encontrou no porta-luvas a pistola. Ligou o som na música que gostava, respirou pausadamente, com a mão direita levou a arma até a cabeça, do lado direito, acima da orelha. Continuava respirando devagar. Sabia que tinha que apertar ligeiro o gatilho.
No
verão, ao anoitecer, quando o calor é menos intenso, agradava-me fazer longas
caminhadas pelas fraldas da Borborema, na companhia do meu tio Lucas. Não havia
rocha, ruína, olho d’água ou vale solitário que ele não soubesse de alguma
história estrambótica para contar. Narrativas envolvendo viageiros e tesouros,
pois nunca houve alguém tão afeito para esbanjar conteúdos de cofres escondidos
e de tesouros perdidos como tio Lucas, tio-avô, irmão do pai do meu pai. No fim
da vida, ficou conhecido em Campina Grande pelo nome de Guarda-Roupa por andar
sempre vestido com muitas roupas.
—
O que é aquela cruz sobre uma pilha de pedras, em direção à estreiteza da
ravina, meu tio?
—
Ah! Não é nada, apenas um tropeiro, meu conhecido, que foi assassinado, há
alguns anos.
—
Se entendo, meu tio, havia assaltantes assassinos quase na entrada de Campina?
Essa
conversa aconteceu no dia em que tínhamos partido para uma daquelas longas
caminhadas e subíamos um caminho rampeado, tio Lucas mais comunicativo que de
costume, quando vimos uma enorme cruz meio arruinada, ao pé de umbuzeiros e
gameleiras.
—
Esta é a Cruz dos Sete Andares!
E
mostrou as pedras ao pé do lenho, a marca meio apagada, que parecia o INRI, mas
que, apurando a vista, vi que era algo como 51RN, gravada a fogo e desbotada. Falou
em tom baixo que ali morava uma assombração desde o tempo em que os mouros
tomaram o Cariri, vindos dos lados de Sevilha e Granada. Esse fantasma, murmurou,
aparecia na forma de um cavalo sem cabeça, mas com orelhas, botando fogo pelas
fuças, perseguido por seis cães, que latiam e lançavam uivos terríveis.
—
Você já o viu? – Perguntei.
—
Não, graças a Deus, não! Mas, meu avô, amigo do alfaiate, conheceu muitas
pessoas lá em Patos que toparam com ele. Antigamente aparecia com mais
frequência do que agora, sob uma ou outra forma. Todos em Cajazeiras e Patos já
ouviram falar do Orelhudo e as avós assustavam as crianças chamando por ele
quando os meninos faziam o malfeito. Diziam os mais velhos que era a alma sofrida
de um cruel rei mouro, que matou seus seis filhos e os enterrou por aqui.
Abstenho-me
de contar os detalhes surpreendentes, na maioria das vezes, simples e pueris, que
me deu tio Lucas sobre este respeitável fantasma e sobre a Cruz que ele dissera
ser cópia da que existiu em Granada, à
porta onde Boabdil, também conhecido como al-Zugabi (“O
desafortunado”), veio a entregar sua cidade aos Reis Católicos.
Andando,
cursávamos agora uma área bem arborizada, ouvindo dois ou três nambus lançarem ao
ar trinados pouco harmoniosos. No meio do arvoredo, algumas cisternas estilo mourisco
e uma porta cortada no coração da rocha, mas obstruída naquele momento. Ali havia
alguns açudes que, contou meu tio, eram os favoritos dele e de seus
companheiros de infância, mesmo eles sabendo da história do hediondo Zanatas, que
costumava sair pela porta da rocha para levar para o Hades banhistas incautos,
que por ali se atreviam a tomar banho.
Maravilhosos
arvoredos, semelhantes aos do Generalife, ficavam para trás enquanto continuávamos
nosso pisar, descendo por uma trilha solitária e chegando ao campo sem fim, triste
e melancólico, desnudo de árvores e pontilhado pela caatinga. Tudo o que se via
era estéril e quase impossível de se conceber que, a uma curta distância de
onde estávamos, existissem pomares floridos. Esse é o clima da Borborema:
selvagem e duro, mas onde a seca e o jardim convivem, dizia tio Lucas, feito o amor e o desamor: sempre atrelados um ao
outro.
Tropeiros
Na
Caatinga, tio Lucas ficava sempre mais animado. Aproveitei para saber um pouco
mais sobre o assassinado. Ele, como que desconversou, começando a falar do
tempo em que ganhava a vida como tropeiro, tangendo burros de carga entre
Cajazeiras, Patos e Campina Grande. Andávamos e ele falava dos bons tempos em
que se percorria o sertão a casco de burro. Eu, calado, esperava. Talvez saísse
alguma coisa sobre o homicídio.
—
Ganhava-se com as coisas naturais do sertão e o convívio com sua boa gente.
Aquela nossa maneira de viajar, levando mercadorias em costas de animais, era
testemunha de muita hospitalidade. Havia, quase sempre, confiança entre os
viajantes e os senhores das terras e, à noite, cada um podia dirigir-se ao
castelo mais próximo, certo de bom acolhimento. Dormia-se a bom dormir, após a caminhada
diária de cinco a seis léguas, no passo miúdo das mulas seleiras, depois da
ceia muito rica, onde nunca faltava carne de sol assada, farofa e queijo de
coalho.
Tocando
aqui e ali com a bengala de ébano moçambicano, finamente trabalhada, que sempre
portava, aduzia:
—
Mas também tinha espíritos-de-porco, como bem avisava Pedro Malasarte. Lembro de
uma certa vez em que levava uma tropa no rumo de Floresta Nova, junto com um
amarelinho, que havia tomado como sócio nessa expedição, cearense, por nome
Raimundo Nonato, que me fora apresentado por um amigo cigano. Caía a noite e
pedimos guarida em um castelo à beira da estrada, de muitas janelas e, também,
de muitas seteiras, com um grande aprisco ao lado. Fomos atendidos. O capataz
nos ajudou com os burros na estrebaria, mostrou onde dormir e nos levou para
jantar. Na rica mesa, além de nós, um caixeiro-viajante e mais três tropeiros, dos
quais um eu conhecia de vista. Foi aí que apareceu toda a maldade do barão e da
sua consorte: pois, quando estávamos de colher na mão, prontos para nos
deliciar com tantas iguarias, eis que se ergue o barão, que estava à cabeceira
com a mulher, muito bem vestida, com uma mantilha de cetim aleonado forrada de
tela de prata, e recita em tom peremptório:
—
Estou feito e satisfeito, eu e minha mulher! E, assim, há de fazer, quem
vergonha tiver!
Olhamos
uns para os outros. Todos sertanejos fortes e de muita vergonha. E quando
estávamos nos levantando, dispostos a ir dormir com fome, mas a dignidade
preservada, o cearense amarelinho, baixinho, que só tinha cabeça, Raimundo
Nonato, ainda sentado e de prato cheio, formando como que um cálculo, respondeu
alto e esganiçado:
—
Nem deixo o prato, nem arreio a colher! Como o que aqui está e mais o que vier!
O
barão embasbacado, puxou a baronesa pelo braço e, balançando, como se tivesse
tomado todas, desapareceu da sala. Comemos muito bem, do bom e do melhor. Dali,
nunca esqueci um excelente rubacão de arroz-vermelho e um divino licor de
jabuticaba, de Bananeiras, do Brejo paraibano. Enquanto ceávamos, um jovem
copeiro nos explicou que o seu senhor era useiro e vezeiro nesse artifício.
Quando os hóspedes saiam da sala para ir dormir com fome, ele voltava com a
baronesa e se esbaldavam sozinhos na janta. Soube, tempos depois, que o barão de
Floresta Nova tinha ficado, de tal modo, impressionado com o amarelinho, que
lhe tinha dado a filha mais nova Isabelle em casamento, com um dote de cinquenta
e uma cabras leiteiras.
Acordava-se,
na maioria das vezes, tiritando de frio, naquele deleitoso Cariri, de planuras
e serrotas elevadas pelos 600 metros sobre o nível do mar, esperando-se, ainda,
na rede ancorada ao espeque da alpendrada, que o arrieiro aprontasse a
fumegante chaleira de café. Enquanto isso, a burralhada da tropa mastigava o
rijo milho sertanejo, que enchia os embornais.
Era,
dizia meu tio, como viajavam senhoras, homens e senhoritas, figurões do
comércio e da política, monsenhores, poetas e estudantes.
—
Seu pai, eu me lembro, veio criança de Patos para Campina desse jeito. No lombo
de uma mula, dentro de um caçoá equilibrado por uma saca de farinha de
mandioca. Engana-se, porém, quem pensar que as noites naqueles ermos corriam
silenciosas. Vozes mil de corujas, bacuraus, tetéus, caborés, mães-da-lua acompanhavam-nos
pela estrada, quando à noite viajávamos à suave luz do luar, ou quando,
cansados, dormíamos.
O
caminho estreito, que agora trilhávamos, chamava-se, falou Tio Lucas, Barranco Tisnado,
porque no passado ali havia sido
escondida uma sacola de couro de cabra com mais de 50 moedas de ouro e prata e
um estranho monograma de letras e números, que tinha sido queimada em uma
disputa com cangaceiros. Sobre essa sacola quem mais sabia eram os ciganos,
que viviam nas cavernas das encostas da Borborema. Para meu tio, homens de bem,
incapazes de fazer o mal a quem quer que seja. Muito menos a um tropeiro.
—
Mas, um dos que viu o almocreve ser chacinado, morreu no mesmo dia, 28 de julho
de 1938, em Poço Redondo, no sertão de Sergipe. Eu estava lá.
Zoraya
Aguardei
mais. Ele, pensativo, fechou-se. Continuamos o caminho em silêncio, até o topo
do penhasco, deixando para trás a Cadeira do Diabo, para onde teria fugido o
infeliz Boabdil, enfeitiçado por Isabelle de Solis cristã, que havia sido feita
prisioneira e depois converteu-se ao Islã com o nome de Zoraya, quando lhe fez uma
declaração, que meu tio sabia de cor e recitou enquanto andávamos:
Zoraya!
Quando
te vi, me apaixonei, padeci de coisa patente, senti o que nunca pensei, n’alma,
no corpo, na mente. Pareceu uma mundrunga, talvez mesmo, bruxaria. Sortilégio,
feito macumba, bagata, bozó, feitiçaria. De pai-de-santo, despacho; da parte de
bruxa, mandraca.
Na
certa, mandinga sacaca, coisa-feita de yara-macho. Trabalho sob’encomenda, braba
e velha traquinice, com fungu de preta-renda; mais mocó que mandraquice.
Ei
de fugir desse bruxedo, do mundo paranormal, com força libidinal perder do
malfeito o medo, tomar energia primal (antes engano que ledo) e, com o milagre
do sal, lavar do caborje o azedo, destruir a preta mandê, em Alhandra não mais
ir, de fantasmas passar a rir: pra pensar só em você!
Chegamos,
finalmente, àquela parte mais alta da serra. Ao cair da noite, o sol dourava os
pontos mais elevados da paisagem. Aqui e ali podia ser visto um ou outro vivente
tangendo burramas cansadas, acelerando a caminhada para chegar às portas da
cidade antes do anoitecer.
De
repente, o grave som de um sino (ou teria sido um longínquo trovão?), veio
através dos campos e vales, proclamando a hora da Oração. O toque foi glorificado
pelas arribaçãs nos galhos mais altos das algarobas. Tio Lucas, ao pé da colina,
tirou o chapéu enfeitado de espelhos e ficou por um momento imóvel, rezando contrito
a oração vespertina, prestando homenagem e agradecendo a Deus pelas
misericórdias do dia. Parecia que alguma santidade, momentaneamente entre nós, irmanava-se
ao espetáculo do sol afundando esplendidamente no horizonte, numa majestosa solenidade.
Na ocasião, o efeito foi mais surpreendente por conta do aspecto selvagem e
solitário do local. Estávamos em um planalto nu e agreste, com ruínas que
falavam de antigas gentes. Enquanto andava por entre os entulhos, meu Tio apontou
com sua bengala um buraco circular que parecia penetrar no coração do morro.
Era, sem dúvida, uma cisterna profunda, aberta pelos incansáveis mouros para
tirar e preservar seu elemento de maior valor com a mais possível pureza. Tio
Lucas saiu do seu mutismo e me segredou que, na verdade, o buraco era a entrada
oculta para as cavernas subterrâneas da Serra, onde Boabdil e sua corte se
esconderam dos espanhóis e dos mouros.
O
crepúsculo neste clima é de curta duração e nos avisou que era hora de deixarmos
esse rincão maravilhoso. Quando descemos as encostas já não se via muita coisa.
Sobrava só o chilrear dos nossos próprios passos. As sombras do vale se
tornaram mais densas, até que, de repente, tudo escureceu ao nosso redor. No céu,
um vago brilho da luz do dia; os altos da Borborema, como que cobertos de neve,
brilhavam no azul do firmamento, e parecia que estavam bem perto de nós, dada a
extrema pureza do ar.
—
Quão perto a Serra está! Parece que pode ser tocada com a mão e, no entanto, fica
a léguas daqui!
Enquanto
meu tio falava, uma estrela apareceu no céu. Tão pura, grande, brilhante e
bonita, que o fez exclamar num transporte de alegria: “ó que linda
estrela! Tão clara e limpa! Pode haver outra mais brilhante?”
Notei
várias vezes essa sensibilidade do sertanejo para com os encantos das coisas
naturais. O fulgor de uma estrela, a beleza e a fragrância de uma flor, a
corrente cristalina de uma fonte, inspiravam uma espécie de alegria poética; e
então, frases mais que bonitas falavam, numa linguagem magnífica, seus
transportes de alegria.
—
Mas que luzes são essas, Tio Lucas, que vejo coruscar por todo arredor? Pareceriam
estrelas se não fossem vermelhas e não brilhassem nas saias da Borborema!
—
Aquelas, meu filho, são as fogueiras que iluminavam os caminhos de Granada. Os almocreves,
com suas mulas, iam até a Serra todas as tardes e se revezavam, alguns descansando,
aquecendo-se nas fogueiras; outros enchiam os matulões de neve. Depois, desciam
e chegavam aos portões de Patos, antes do amanhecer. A Borborema, meu filho, é
uma montanha de gelo colocada no meio da terra para que a Paraíba sempre fique
fresca durante o verão.
Procissões
Estava
completamente escuro e voltamos atravessando a garganta, onde restava a cruz do
tropeiro assassinado. À distância, lusco-fuscos se moviam. Mais perto, deu para
perceber que eram tochas carregadas por um cortejo de estranhas figuras
vestidas de preto. Parecia uma procissão horrivelmente sombria na crueza e
solidão do lugar. Tio Lucas se aproximou de mim e disse, em voz baixa, que aquilo
era um enterro: estavam carregando o cadáver do tropeiro assassinado para o Santo
Amaro. É hoje! Meu coração começou a bater mais forte. Um mistério está para
ser revelado, pensei. À medida que a procissão lentamente passava, os reflexos tristes
das tochas iluminavam as feições sombrias e as vestes funestas dos acompanhantes
e das carpideiras. O efeito era tenebroso; mas, foi ainda mais arrepiador
quando o rosto do cadáver —de olhos abertos— foi banhado em luz, pois, segundo
o costume espanhol, estava descoberto e via a cara do seu assassino. Permaneci
por muito tempo apático, apalermado, seguindo com os olhos o préstito subindo
pela Serra, tal qual outra comitiva de demônios levara um dia o corpo de um
pecador para ser enterrado na cratera do Stromboli.
—
Ah, meu filho! Exclamou tio Lucas. —Eu poderia lhe falar de uma procissão parecida
que vi nessas serras, mas você iria rir de mim, pois dizem que é só mais uma
das histórias que seu avô Bráulio herdou do alfaiate.
—
Não, meu tio, conte, porque não há nada que mais me interesse do que suas
histórias admiráveis (Era agora!).
—
Bem, meu filho, você sabe que, há muitos anos, no tempo dos Reis a das Rainhas,
havia em Patos um velho lorde da Pedra do Reino chamado Pedro Sánchez
Pérez-Castejón, conhecido por todos como Mestre Pedro. Pois bem, certa vez
retornava ele de Patos para a Rainha da Borborema, já era noite, quando
terminou por adormecer na sela, balançando a cabeça para lá e para cá, deixando
a mula seguir sozinha, pelas beiradas de precipícios, subindo encostas e descendo
escarpadas ravinas. Depois de algum tempo, Mestre Pedro acordou, olhou para
trás e ficou surpreso e espantado… E, de fato, havia motivo para isso! Porque,
ao belo luar, que brilhava como o dia, viu perfeitamente Patos lá embaixo, com
seus edifícios brancos como uma xícara de prata à luz da estrela da noite. Mas,
por Deus, meu filho, não se parecia em nada com a cidade que ele havia deixado
algumas horas antes! Em vez da igreja, com a sua cúpula e torre, o convento com
suas escadarias, tudo encimado com a Santa Cruz, o que ele divisava eram
mesquitas, minaretes e cúpulas adornadas por crescentes brilhantes, como são
vistos nas bandeiras bérberes. Enquanto estava abestado, olhando para aquela
impossível cidade, um extraordinário cortejo subiu a Serra. Eram soldados de
infantaria e cavalaria, armados à moda mourisca. Mestre Pedro tentou sair do
caminho, mas sua mula velha empancou e se recusou a dar um passo. Parado, tremendo,
ele viu a comitiva fantástica passando por eles. Entre os guerreiros, alguns
aparentemente tocando trombetas, e outros, tambores e címbalos. Nenhum som era
ouvido, todos marchavam sem fazer o menor estalido, rostos pálidos como o de Abaddon.
À frente, entre dois mouros negros a cavalo, o Grande Inquisidor de Granada em
uma enorme mula branca como a neve. Mestre Pedro sabia que o Cardeal era famoso
por seu ódio aos mouros e a todos os tipos de infiéis, judeus, hereges e
cangaceiros, que perseguia a sangue e a fogo. Na presença da autoridade
católica, sentiu-se seguro. Fazendo o sinal da cruz, pediu sua bênção. Em
resposta, sentiu um chicote golpeando-lhe a cabeça. Ele e sua mula caíram no
fundo de uma loca, rolando algumas vezes de ponta-cabeça e outras tantas de pé.
Enquanto rodopiava, passou pela mente do Mestre que havia voltado ao sertão de
Sergipe: era noite, chovia muito. Ele e os compartes em barracas. Viu quando se
levantarem pela manhã para rezar o ofício e preparar o café. Mas, quando deram
por conta, já era tarde. O ataque durou cerca de vinte minutos e poucos
conseguiram escapar ao cerco e à morte. Dos trinta e quatro presentes, onze
acabaram ali mesmo. Outros foram presos. Ele e mais três conseguiram escapar.
No sonho, os volantes, eufóricos com o sucesso da empreitada, tomaram conta dos
bens do bando e mutilaram os mortos. Levantou-se no fundo da ravina e ainda deu
para ver, no fim do desfile, em uma leva de acorrentados, Colchete e Macela,
Quinta-Feira, Mergulhão, Luís Pedro, Elétrico, Enedina, Moeda, Alecrim e
Raimundo Nonato.
—
Então, tio Lucas, isto aqui está mais para uma espécie de limbo mourisco? No
meio dessas serras, para onde o Padre Inquisidor foi levado?
— Não, pelo amor de Deus, meu filho! Eu não sei nada sobre isso. Eu só conto o que ouvi do seu bisavô, marido de Zoraya.
*Fernando Gusmão é engenheiro, administrador de empresas, poeta, contista, cronista, ensaísta.