Hoje é dia de poesia

 

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Rosa Amarela

*Maria Salete Oliveira

A dor era tão funda que lhe era desconhecida, sequer latejava.
Para aflorar teria que ser despetalada,
espinhos à mostra rasgando carnes. 
Amarela era a dor, rosa o amor,
                        em flor se transmutou, enfim murchou.
Levantou-se e respirou, 
em alivio olhou ao redor. 
Havia outras cores.

*Maria Salete Oliveira – engenheira química, poeta, cronista, ficcionista

Aletrando com César Garcia

Sábado último, 15 de março,  César Garcia, nosso colega da Oficina,  participou de um evento na Livraria da Jaqueira Aletrar Freud e Outros,  no qual debateu sobre o tema Narcisismo a partir dos Espelhos, contos de Machado de Assis e Guimarães Rosa.

Seguem o texto utilizado na ocasião, gentilmente entregue por ele para postagem em nosso blog, o conto de Machado de Assis e o conto de Guimarães Rosa .Em 2009, trabalhamos esses dois contos na Oficina e mais o conto de Virgínia Woolf A Dama no Espelho: Reflexo e Reflexão. Na época, o debate foi intenso, gostaria de que este texto de César Garcia trouxesse de volta a discussão tão rica sobre o espelho, para entendimento da alma humana. No início do conto de Virgínia Woolf, o narrador diz de forma enfática: Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não se devem deixar abertos talões de cheques ou cartas que confessem algum crime horroroso.

Cartaz Aletrar Marco O Espelho Guimaraes Rosa O Espeho Machado de Assis AFDOIS ESPELHOS 

                                                                   *  César Garcia

 

             Dois contos com o mesmo título: O ESPELHO. Um de Machado de Assis, outro de Guimarães Rosa. Machado me prendeu numa armadilha já na primeira frase: “Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite…”. Percebe-se que há um narrador externo, supostamente onisciente, mas se é onisciente por que quatro ou cinco? O segundo parágrafo começa com a pergunta: “Por que quatro ou cinco?” Aí, então explica que só quatro falavam e o quinto ficava mudo. É justamente este que, nesta noite, resolve revelar sua teoria sobre a natureza da alma humana. Chamado Jacobina, diz que temos duas almas: uma interior e outra exterior. Esta pode ser qualquer coisa, um botão, um livro, um par de botas. Uma vez adotada, sem ela, entra-se em crise. É o caso dele mesmo, Jacobina, no passado um garboso alferes, elogiado por todos e particularmente por uma tia que morava no interior do estado. Em visita a esta tia, passou oito dias sem farda, sozinho na casa já que a tia fora forçada a ausentar-se. Deprimiu-se a ponto de não saber mais viver. Salvou-se quando, ao vestir o uniforme, viu-se no espelho. Não era mais um autômato, era um ente animado. Suportou mais seis dias de solidão vestindo a farda duas horas por dia. A farda era sua alma exterior.

            No conto de Rosa, o narrador personagem, sem nome, diz que há bons e maus espelhos, os que favorecem e os que detraem. E os que são apenas honestos. Ele alerta a seu interlocutor, amigo recente, também sem nome, sobre o perigo dos espelhos e lembra que Tirésias disse a Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não se visse. Diz também que às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão; que os primitivos achavam que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Relata que um dia viu-se em dois espelhos em ângulo e sua imagem lhe deu náusea, ódio, susto, eriçamento e pavor. Achou que a onça era seu sósia, carregava elementos hereditários, o contágio das paixões, ideias de outrem. Descobriu que para encontrar seu verdadeiro eu era preciso desfazer-se de tudo aquilo. Com muito esforço e disciplina livrou-se de tudo o que não era ele mesmo e então, ao olhar o espelho, não viu nada, nem seus olhos.

            Na primeira leitura, pensei que o conto terminaria aí, mas não. O personagem sem nome diz o que lhe aconteceu anos mais tarde: “Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava – já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E… Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal… E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Será que o senhor nunca compreenderá?” 

            Que há de comum nos dois contos? Há a pergunta desconcertante, perturbadora, permanente e talvez irrespondível que nos persegue a todos. A mesma que provoca o desassossego em Bernardo Soares, de Fernando Pessoa: quem sou eu? Machado diz que Jacobina, tinha um uniforme de alferes como alma exterior. Ressalva que Jacobina tinha também, como todo mundo, uma alma interior, (o eu?) mas justamente esta que mais lhe poderia interessar, estava escondida, não era vista por ele. O que Jacobina viu no espelho foi sua alma exterior e se deu por satisfeito. Não fez o esforço angustiante que o sem-nome de Guimarães Rosa fez para livrar-se das camadas de matéria alheia que lhe haviam sido pregadas no rosto de sua alma. Trabalho de restaurador que retira tudo que não faz parte do original. Livre dessas camadas, passou anos sem ver seu rosto no espelho.  Porém, um dia, divisou um ainda-nem-rosto, um rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Ali estava o eu do sem-nome, apenas delineado. Se me permitem os psicanalistas, este resultado parece-me semelhante ao de uma psicanálise bem sucedida.

           Tudo isto me trouxe à memória um fato curioso e agora muito significativo para mim. Li não sei quando nem onde que Jean Jacques Rousseau enviou sucessivamente seus cinco filhos ainda bebês para serem criados por uma família camponesa. As crianças só voltaram à casa paterna depois de alguns anos, o que não era estranho na França do século XVIII. Mesmo sendo um costume, achei que Rousseau não devia ter feito isto que me pareceu desumano para um intelectual do seu porte. Agora, durante a preparação deste texto, li um artigo de Ângela Furtado, psicanalista de Belo Horizonte, em que a autora comenta a ideia de Rousseau sobre a “boa socialização”, a passagem do estado de inocência (o bom selvagem) para o estado de virtude. Teria então Rousseau enviado os filhos para o campo a fim de evitar que os vícios da cidade se instalassem em suas mentes, trazendo-os de volta apenas quando já podiam passar pela “boa socialização”? No mesmo artigo colhi a seguinte frase de Rousseau: “O homem da sociedade está todo inteiro na sua máscara. Não estando quase nunca em si mesmo, quando está se acha estranho e mal à vontade. O que é, não é nada, o que parece, é tudo para ele.”

            A esta altura, é impossível deixar de lembrar aqui a frase de Freud WO ES WAR SOLL ICH WERDEN, traduzida de diversas formas das quais cito estas; ONDE ERA O ELE, CHEGARÁ A SER O EU; ALI ONDE ISSO ERA, EU DEVO ADVIR; ou, de uma forma mais livre, nas palavras de Ângela Furtado, É NAS FORMAÇÕES DO INCONSCIENTE (SONHO, LAPSO, ATO FALHO, CHISTE) QUE O SUJEITO APARECE. Tudo a ver com o uniforme de Jacobina, de Machado, com as heranças, os instintos, e as paixões do sem-nome de Rosa e com a “máscara” de Rousseau.

          Numa outra abordagem dos dois contos, lembro que o espelho é facilmente associado ao conceito de narcisismo, de Freud. A palavra vem de Narciso, o deus mitológico que se apaixona pela própria imagem refletida na superfície da água. Ele recusa o amor da ninfa Eco e prefere mergulhar em busca de si mesmo e morre. São muitas as representações de Narciso na pintura, admirando sua própria imagem. As mais famosas são Narciso, de Caravaggio, A metamorfose de Narciso, de Salvador Dali e Narciso e Eco, do francês Nicolas Poussain. O conceito tornou-se tão conhecido que não é raro ouvirmos o comentário “fulano é muito narcisista, vive se olhando num espelho”. Em linguagem psicanalítica, escolhi, para concluir, a frase da psicanalista Joviane Moura no artigo O CONCEITO DE NARCISISMO NA CONTRUÇÃO TEÓRICA DA PSICANÁLISE: “Na experiência do espelho o sujeito se identifica com algo que não é; ele acredita ser o que o espelho lhe reflete, acaba se identificando com um fantasma, é uma ilusão da qual procurará se aproximar”.

            Para finalizar, deixo aqui uma pergunta: esta busca penosa do eu é indispensável? Ou, numa versão mais radical, o eu existe?

 * César Garcia, engenheiro agrônomo, ficcionista, cronista e ensaísta, com vários livros publicados.

             

 

*O ESPELHO –

MACHADO DE ASSIS

 

“- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação”

Machado de Assis

Um grupo de senhores, por várias noites, reuniu-se para discutir sobre os assuntos de alta transcendência – coisas metafísicas. No grupo, um dos participantes se destacava pelo silêncio. Numa das noites, incitado por um dos participantes, o casmurro usou a palavra – narraria um fato de sua vida e não consentia réplica. Não se tratava de opinião ou conjectura, era apenas uma demonstração da matéria debatida.
“Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas…” A afirmação causa perplexidade, mas o narrador não se intimida e reitera que existem duas almas: uma exterior, outra, interior… A alma exterior não é sempre a mesma, modifica-se com as circunstâncias. As duas juntas, metafisicamente, se completam, quem perde sua alma exterior vive incompletamente, e há caso de pessoas que perdem a existência inteira.
O homem continua relatando sua experiência de quando tinha 25 anos e fora nomeado alferes da Guarda Nacional. Tornou-se o centro de atenção de sua humilde família e passou a ser identificado como o Sr. Alferes.
Não tardou e uma tia que morava a algumas léguas, convidou-o a passar alguns dias em sua casa, com a farda naturalmente. Os dias passavam nas formalidades próprias de uma autoridade. A grande relíquia da casa, um grande espelho, fora colocado em seu quarto como sinal de admiração e orgulho.
“- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se, mas não tardou que a primeira cedesse à outra; ficou-me uma parte íntima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente, a outra dispersou-se no ar e no passado.”
Ocorreu o imprevisto e a tia teve que se ausentar por alguns dias. Restaram os escravos que utilizaram suas cortesias e louvores “Nhô Alferes é muito bonito, nhô alferes há de ser coronel”. Um concerto de louvores escondia suas reais intenções. Na manhã seguinte, todos haviam fugido.
O homem, após alguns dias, no silêncio vasto tornara-se um boneco que mal comia, seu corpo era dominado de dor ou cansaço, nada mais… Durante muitos dias não se olhou no espelho num impulso inconsciente, mas findo oito dias olhou-se no espelho com o fim de encontrar-se dois, mas o que viu foi uma figura vaga, dispersa, mutilada… Sabia que pelas leis físicas aquilo não era possível, mas sua sensação era real – o espelho refletia uma decomposição de contornos. Em desespero, em meio a feições fragmentadas, teve a idéia de vestir a farda de alferes e tornou a mirar-se. O homem, alferes, enfim, havia encontrado sua alma exterior.
“Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho.”
Assim, Machado de Assis esboçou uma nova teoria da alma humana, espelhando o homem em sua enorme ambigüidade de ser para si e ser para o outro. Até que ponto as imagens convergem? O que antecede o objeto ou a reflexão? O espelho pode ser o outro a recriar a alma exterior?
Definir-se no que espelha do mundo, sentir-se importante ao assumir um papel representativo na sociedade. Tornara-se um alferes e isto o identificava mais do que seu nome próprio, do que sua intimidade sem projeção. Ele precisava da sombra sob seus pés para sentir-se imponente no mundo, precisava da palavra alferes repetida com orgulho para incorporar sua autoridade.
Sozinho no silêncio, perde-se na “sombra da sombra”, num eu fragmentado de um espelho que não conseguia projetar a alma exterior com a simples projeção do corpo.
Era necessário o uso da farda para manter viva a alma que dominara sua alma interior. Vestia-se num ritual e gesticulava diante do espelho todos os dias e pode atravessar mais seis dias sem perceber…
O signo do espelho, tantas vezes objeto de especulação, ganha aqui o papel de destaque – o encontro do homem com sua alma exterior. As reflexões de Lacan , demonstram que o espelho é um fenômeno limiar, que demarca as fronteiras entre o imaginário e o simbólico. A criança até se perceber no espelho é um ser fragmentado. É o que percebe ser. Para Lacan são três as fases: a criança compreende o espelho como uma realidade; depois como uma imagem, e até que numa terceira fase percebe que a imagem refletida é sua.
A primeira consciência da completa individualidade vem do exterior. A criança reconstrói seus fragmentos num corpo externo. Será que serão sempre duas existências a coabitarem um corpo e uma imagem? Qual a alma que transcende a relação especular e ganha corpo e espaço num eu absoluto?
Como disse Machado de Assis, são muitas as almas exteriores. A família, as realizações profissionais, o contato com os outros. Muitos objetos espelham nosso eu, encontramo-nos muitas vezes nas atitudes alheias, nos valorizamos nos elogios que ouvimos, nos sentimos vivos na percepção dos outros. São inúmeros os espelhos, ou almas exteriores, e um único e definitivo sujeito.
Não deixemos que as coisas no mundo, seja ela qual for, ofusque e aniquile nossa alma interior. Aproveitando o esboço de nosso grande escritor, tentemos elaborar um novo enredo em que o espelho se interioriza e possamos nos reconhecer no vasto mundo.
A crônica finaliza com um trecho do brilhante ensaio “Sobre os espelhos” de Umberto Eco: “Em todo caso, por mais fortes que sejam as ilusões, as ambigüidades, as confusões “sobre o limiar”, a tentação de homologar imagens especulares e registros, basta recorrer ao experimentum crucis: reproduza-se um espelho numa fotografia, num enquadramento cinematográfico ou televisivo, num quadro. Essas imagens de imagens especulares não funcionam como imagens especulares. Do espelho não surge o registro ou ícone que não seja um outro espelho. O espelho, no mundo dos signos, transforma-se no fantasma de si mesmo, caricatura, escárnio lembrança.”

  • Este texto foi copiado do Recanto das Letras, como postagem de Helena Sut em 25/01/05.

 O ESPELHO

João Guimarães Rosa

–Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas — que espelho? Há-os «bons» e «maus», os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando.

Resta-lhe argumento: qualquer pessoa pode, a um tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho. Sem sofisma, refuto-o. O experimento, por sinal ainda não realizado com rigor, careceria de valor científico, em vista das irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás, fazê-lo, e terá notáveis surpresas. Além de que a simultaneidade torna-se impossível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é o mágico de todas as traições… E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente… E então?

Note que meus reparos limitam-se ao capítulo dos espelhos planos, de uso comum. E os demais — côncavos, convexos, parabólicos — além da possibilidade de outros, não descobertos, apenas, ainda? Um espelho, por exemplo, tetra ou quadridimensional? Parece-me não absurda, a hipótese. Matemáticos especializados, depois de mental adestramento, vieram a construir objetos a quatro dimensões, para isso utilizando pequenos cubos, de várias cores, como esses com que os meninos brincam. Duvida?

Vejo que começa a descontar um pouco de sua inicial desconfiança, quanto ao meu são juízo. Fiquemos, porém, no terra-a-terra. Rimo-nos, nas barracas de diversões, daqueles caricatos espelhos, que nos reduzem a mostrengos, esticados ou globosos. Mas, se só usamos os planos — e nas curvas de um bule tem-se sofrível espelho convexo, e numa colher brunida um côncavo razoável — deve-se a que primeiro a humanidade mirou-se nas superfícies de água quieta, lagoas, lameiros, fontes, delas aprendendo a fazer tais utensílios de metal ou cristal. Tirésias, contudo, já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não se visse… Sim, são para se ter medo, os espelhos.

Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. Sou, porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com fantásticas não-explicações? — jamais. Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o Monstro?

Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões atávicas? O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aqueles povos com a idéia de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição fecundo ponto de partida para a pesquisa. A alma do espelho — anote-a — esplêndida metáfora. Outros, aliás, identificavam a alma com a sombra do corpo; e não lhe terá escapado a polarização: luz—treva. Não se costumava tapar os espelhos, ou voltá-los contra a parede, quando morria alguém da casa? Se, além de os utilizarem nos manejos da magia, imitativa ou simpática, videntes serviam-se deles, como da bola de cristal, vislumbrando em seu campo esboços de futuros fatos, não será porque, através dos espelhos, parece que o tempo muda de direção e de velocidade? Alongo-me, porém. Contava-lhe…

Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo descobri… era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?

Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei meses.

Sim, instrutivos. Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma inembotável paciência. Mirava-me, também, em marcados momentos — de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriam-se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente. O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer as mais necessárias novas percepções. Não vê, como também não se vêem, no comum, os movimentos translativo e rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés assentam. Se quiser, não me desculpe; mas o senhor me compreende.

Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa — a minha vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.

Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio “visual” ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado. Tomei o elemento animal, para começo.

Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, relembrar seu facies, é fato. Constato-o, apenas; longe de mim puxar à bimbalha temas de metempsicose ou teorias biogenéticas. De um mestre, aliás, na ciência de Lavater, eu me inteirara no assunto. Que acha? Com caras e cabeças ovinas ou eqüinas, por exemplo, basta-lhe relancear a multidão ou atentar nos conhecidos, para reconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior na escala era, porém — a onça. Confirmei-me disso. E, então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto.

Releve-me não detalhar o método ou métodos de que me vali, e que revezavam a mais buscante análise e o estrênuo vigor de abstração. Mesmo as etapas preparatórias dariam para aterrar a quem menos pronto ao árduo. Como todo homem culto, o senhor não desconhece a Ioga, e já a terá praticado, quando não seja, em suas mais elementares técnicas. E, os “exercícios espirituais” dos jesuítas, sei de filósofos e pensadores incréus que os cultivam, para aprofundarem-se na capacidade de concentração, de par com a imaginação criadora… Enfim, não lhe oculto haver recorrido a meios um tanto empíricos: gradações de luzes, lâmpadas coloridas, pomadas fosforescentes na obscuridade. Só a uma expediência me recusei, por medíocre senão falseadora, a de empregar outras substâncias no aço e estanhagem dos espelhos. Mas, era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo.. Sem ver o que, em meu rosto, não passava de reliquat bestial. Ia-o conseguindo?

Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista do espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já aí, porém, decidindo-me a tratar simultaneamente as outras componentes, contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário — as parecenças com os pais e avós — que são também, nos nossos rostos, um lastro evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto. E, em seguida, o que se deveria ao contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias. E, ainda, o que, em nossas caras, materializa idéias e sugestões de outrem; e os efêmeros interesses, sem seqüência nem antecedência, sem conexões nem fundura. Careceríamos de dias, para explicar-lhe. Prefiro que tome minhas afirmações por seu valor nominal.

À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma esponja. E escurecia-se. Por aí, não obstante os cuidados com a saúde, comecei a sofrer dores de cabeça. Será que me acovardei, sem menos? Perdoe-me, o senhor, o constrangimento, ao ter de mudar de tom para confidência tão humana, em nota de fraqueza inesperada e indigna. Lembre-se, porém, de Terêncio. Sim, os antigos; acudiu-me que representavam justamente com um espelho, rodeado de uma serpente, a Prudência, como divindade alegórica. De golpe, abandonei a investigação. Deixei, mesmo, por meses, de me olhar em qualquer espelho.

Mas, com o comum correr quotidiano, a gente se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, é sempre tranqüilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia… Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era — o transparente contemplador?… Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.

Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em mim se exercitara! Para sempre? Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles!

Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um… desalmado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho — com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças — o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória.

Mas, o senhor estará achando que desvario e desoriento-me, confundindo o físico, o hiperfísico e o transfísico, fora do menor equilíbrio de raciocínio ou alinhamento lógico — na conta agora caio. Estará pensando que, do que eu disse, nada se acerta, nada prova nada. Mesmo que tudo fosse verdade, não seria mais que reles obsessão auto-sugestiva, e o despropósito de pretender que psiquismo ou alma se retratassem em espelho…

Dou-lhe razão. Há, porém, que sou um mau contador, precipitando-me às ilações antes dos fatos, e, pois: pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois. Releve-me. E deixe que o final de meu capítulo traga luzes ao até agora aventado, canhestra e antecipadamente.

São sucessos muito de ordem íntima, de caráter assaz esquisito. Narro-os, sob palavra, sob segredo. Pejo-me. Tenho de demais resumi-los.

Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.

São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava — já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E… Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal… E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?

Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano — intersecção de planos — onde se completam de fazer as almas?

Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte — exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto mortale”… — digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas… E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: — ”Você chegou a existir?

Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?

 

 

Notas sobre O Vermelho e o Negro

Algumas notas sobre O Vermelho e o Negro, de Stendhal
(até a leitura do capítulo 5) 

*Teresa Sales

08 de março de 2014

 

            Don Gruffot Papera, já referido aqui no blog, avisa-nos que a cidadezinha de Verrières, uma das mais bonitas do Franco Condado, não existe de fato e, tal como o cenário reconstruído de uma novela, é inventada pelo autor. Pelo ensaio de Heinrich Mann, que aborda principalmente a vida pessoal do autor, também ficamos a saber o quanto a criação da natureza e da personagem principal, Julien, tem a ver com a sua própria trajetória de vida.

            Diferentemente do que ensinam os manuais, onde se deve capturar o leitor já no primeiro capítulo, apontando uma possível trama ou conflito, no capítulo inicial desse livro temos apenas uma belíssima descrição da cidadezinha, cenário da trama que virá a seguir. A personagem principal não aparece ainda. Os que aparecem, completando o cenário da cidadezinha com as serrarias, a fábrica de pregos e a de tecidos estampados, são o camponês e o nobre, ambos recém transformados em burgueses. O primeiro, carregando seu modo grosseiro de vida. O segundo, a sua aristocracia e, para não se envergonhar de ser industrial, fez-se prefeito.

            A negociação pelo espaço urbano entre o industrial aristocrata e o industrial camponês; assim como a promiscuidade entre o público e o privado incorporada na figura do primeiro; e ainda a tirania da opinião, ou despotismo característico da província; remete-nos aos dias de hoje, com outros personagens, em pleno século XXI.

            Seria isso então a capturar o leitor? A universalidade da arte de narrar, que nos leva, pela leitura, a co-autores da narrativa?

            É no capítulo II, que tem como personagem principal o prefeito, que começam a aparecer os conflitos: entre o poder civil local, representado pelo Senhor. Rênal (prefeito); e a Igreja, representado pelo Padre Célan; e o poder central em Paris, representado pelo Sr. Appert.

            Até o capítulo V a narrativa se parece com um jogo de quebra-cabeça em que cada peça nova vai se somando às anteriores, dentro de uma paisagem apresentada em grandes traços no primeiro capítulo.

          Ficou uma dúvida: é um narrador intruso ou discurso indireto livre que caracterizam alguns parágrafos desse segundo capítulo?

            O capítulo III é dos mais repletos de cenas. Aprofunda-se o conflito do capítulo II já referido, interrompido abruptamente pelo susto causado pelo filho dos de Rênal subindo em um muro perigoso, o que leva o Sr. de Rênal a consolidar sua decisão de aprofundar seu prestígio social, contratando um preceptor para os filhos. É nesse capítulo que sai do anonimato a Senhora de Rênal, não somente expressando uma opinião em relação ao conflito, mas sendo apresentada em algumas de suas características de personalidade: uma mãe fervorosa que não quer olhar o enfado de sua relação conjugal, na qual o amor está ausente e ela é desmerecida em suas opiniões e preocupações com os filhos e que, desde que lhe deixem com esses e seu jardim magnífico, nada questiona.

            Outra peça do quebra-cabeça aparece no capítulo IV, através de duas cenas: a proposta da contratação do Julien feita pelo aristocrata de Rênal ao seu pai, o camponês Sorel; e a rude relação entre o pai e o filho Sorel, que serve como título ao capítulo.

            O capítulo V, chamado “Uma negociação”, na qual “a astúcia do camponês venceu a astúcia do homem rico, que não precisa dela para viver”, dá continuidade à rudeza na relação pai-filho, apresentando algumas características de Julien: sua fantástica memória, suas preferências literárias e como se constituiu a sua alma hipócrita. Aqui outra intrusão: “A palavra (hipocrisia) surpreende os leitores? Até chegar a essa palavra horrível, a alma do jovem camponês teve de percorrer um bom caminho”.  Seguem-se nove parágrafos de flashback sobre Julien, interrompendo a narrativa quando ele deu a paradinha na igreja.

            A descrição de Julien na igreja deixa duas insinuações (suponho que isso há de ter alguma nomeação na arte da narrativa de ficção) que possivelmente serão retomadas mais adiante. Primeiro, o bilhete que ele encontra no genuflexório com o brasão do Senhor. de Rênal. E, “ao sair, acreditou ver sangue perto da pia; era água benta que se derramara: o reflexo das cortinas vermelhas que cobriam as janelas fazia que parecesse sangue” (a mim, lembrou uma cena emblemática carregada de símbolos do filme de Kleber Mendonça “O som ao redor”, quando a cor da água da cachoeira do engenho passa da cor normal à cor vermelha).

*Teresa Sales – Socióloga, ensaísta, cronista, ficcionista.

Romance para Domésticas e Salões

Romance para domésticas provincianas  e os salões de Paris
(Stendhal, O Vermelho e o Negro, por Don Gruffot Papera)

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*Lourdes Rodrigues

Quando coloquei na programação da Oficina, para 2014, O Vermelho e o Negro de Stendhal, a reação inicial foi de apreensão quanto ao tamanho da empreitada que iríamos enfrentar. Mais de 500 páginas, no mínimo, dependendo da publicação, deixavam-nos apreensivos. Passado o susto inicial, a decisão de seguir em frente encontrou os viageiros dispostos, destemidos e até mesmo ansiosos pela longa jornada.

Outro problema a ser enfrentado foi a escolha da publicação para a leitura. As livrarias não têm disponível nas prateleiras o livro, uma ou outra conta em seu acervo com um volume ou dois. Li um artigo de Gabriel Perissé Diferenças Mínimas na tradução de O vermelho e o Negro (www.perisse.com.br) que me ajudou a propor o acompanhamento por qualquer tradução disponível, vez que as diferenças são poucas entre uma e outra, e essa visão múltipla enriquece muito mais a discussão. Assim, iniciamos a leitura contando com as publicações da L&PM, tradução de Paulo Neves, da Cosac Naify, por Raquel Prado, Martin Claret, por Jean Melville (a despeito das acusações de plágio, é uma das publicações mais acessíveis no mercado) e da Editora Globo, com Casimiro Fernandes e Souza Júnior na tradução. Dúvidas que surgem, por conta das versões diferentes, são retiradas buscando o original pelo qual dois colegas acompanham a leitura.vermelho e o negro, o_m

A viagem por Verrières, sob os olhares desses tradutores e os nossos próprios olhares, tornou-se uma inesquecível jornada. Para começar lemos o Projeto de artigo sobre o Vermelho e o Negro, escrito pelo próprio Stendhal, sob pseudônimo de  Don Gruffot Papera (mais um entre centenas de outros que ele usou, cerca de 171 pseudônimos), para uma revista italiana que não chegou a publicar.Stehdhal, também um pseudônimo, talvez o mais usado pelo escritor Marie-Henry Beyle.

Interessante, nesse texto, como ele tenta promover o livro do Senhor Stendhal, escudado no pseudônimo. Primeiro, ele diz que enquanto os homens saem para caçar ou para trabalhar na agricultura, as suas pobres metades, não podendo fazer romances, se consolam em lê-los. (…) Não há nenhuma mulher de província que não leia cinco ou seis volumes “por mês, muitas lêem quinze ou vinte…”  Assim, ele situa o leitor de romances, na França, como sendo essencialmente feminino. E ademais, justifica que essa busca frenética pela leitura tem as suas raízes numa falta, num desejo insatisfeito que é o da impossibilidade de fazer romances com os seus próprios parceiros que estão mais interessados na caça ou no trabalho. Depois, ele diz que essas mulheres não têm o mesmo nível de educação, daí os livreiros fazerem distinção entre as leitoras de romances para domésticas (aqui ele pede desculpas pelo termo, dizendo que não é dele, mas dos livreiros, demonstrando claramente que a designação é preconceituosa), e a leitora de romances de salões. Passa então a descrever a forma e conteúdo desses romances.Stehdhal

No romance para domésticas, impresso no formato in-12, o herói é sempre perfeito e belo, as mulheres inocentes e perseguidas, pouco importando se os acontecimentos são absurdos, essas cenas extraordinárias existem para que os belos olhos das provincianas chorem.  As leitoras de romances de salões, em formato in 8º, por outro lado, detestam esses homens perfeitos, essas mulheres desgraçadas, exigem tramas muito mais apuradas. As leitoras de romances para domésticas, às vezes lêem os romances para salões, embora, em geral, não o entendam inteiramente. As leitoras de romances de salões, por sua vez, jamais leriam os romances para domésticas.

Esse era o grande desafio para qualquer escritor da época, como escrever uma obra que pudesse agradar a gostos tão diferentes, de forma a atingir todas as leitoras de romance da província ou de Paris. Segundo Don Gruffot Papera, este desafio foi o que o Senhor de Stendhal decidiu enfrentar com a escrita de O Vermelho e o Negro, mais do que isso, ele ousou descrever o caráter da mulher de Paris que não ama seu amante a não ser que julgue, todas as manhãs, estar na iminência de perdê-lo.

Outro aspecto importante destacado por ele foi que Stendhal escreveu um romance que não era bem um romance, pois partira de fatos reais, acontecidos alguns anos antes, em 1826, o romance foi escrito em 1830. Ele acompanhou pelos jornais o incidente acontecido com um jovem que atirou em uma ex-amante dentro da Igreja e foi executado por esse crime em 1828.

O fato,  pela tradução da Martin Claret:

No dia 23 de janeiro de 1828, foi fuzilado em Grenoble o ex-seminarista Antoine Berthet, que, em plena missa, disparara contra a senhora Michoud de La Tour, sua antiga amante. Durante algumas semanas, os jornais exploraram o estranho caso e Stendhal acompanhou apaixonadamente as narrativas. Tendo na memória os traços do condenado e os lances da história, começou a esboçar sua personagem mais famosa – Julien Sorel – protagonista de Le Rouge et Le Noir (O Vermelho e o Negro).

Depois de discorrer longamente sobre o romance que não devemos antecipar, agora, Don Gruffot Papera encerra  dizendo que o livro é vivo, colorido, cheio de interesse e de emoção. O autor soube pintar com simplicidade o amor terno e ingênuo.

E acrescenta outros dados sobre o livro, os mesmos dados que levaram muitos leitores no futuro a julgá-lo um romance de costumes, de crônicas da sociedade da época:

Ousou pintar o amor de Paris, ninguém o tentara, antes dele. Ninguém pintara com alguns cuidados os costumes dados aos franceses pelos diversos governos que pesaram sobre eles durante o primeiro quartel do século XIX. Um dia esse romance pintará os tempos antigos como os de Walter Scott.

 Na verdade, Walter Scott hoje quase não é mais lido ou mencionado e Stendhal continua a figurar em todas as listas dos melhores romances. Tornou-se um clássico da literatura ocidental.  Ele ultrapassou, assim, o seu Pai Poético, aquele que ele se propôs derrotar, encontrando a falha e realizando uma obra resposta que o corrigisse. É o que Haroldo Bloom chama de clinamen. Quando envolve dois poetas fortes, ela se concretiza por ações revisionistas, por desvios da identificação herdada.  Stendhal com o seu romance O Vermelho e o Negro revolucionou o fazer literário e despojou do trono Walter Scott, dessacralizando o mito, fazendo o contraponto com o seu jeito de escrever, desviando-se da tradição e criando o novo em termos literários.

Com certeza, a nossa viagem será inesquecível e dela iremos sempre dando conta aqui pelo blog.

Jaboatão dos Guararapes, 06 de março de 2014

 *Economista, ficcionista, ensaísta, cronista