Escrituras IV – Do riso ao siso, contos à beira do cais

Encerramos a nossa viagem de 2017 com a publicação pela Amazon.com de Escrituras IV – Do riso ao siso, contos à beira do cais, que nos deixou muito felizes por registrar a nossa jornada durante os doze anos de existência da Oficina. O livro está à venda no link: https://www.amazon.com.br/gp/aw/s/ref=nb_sb_noss/131-8624433-6602358?k=lourdes+rodrigues.

Postamos aqui o prefácio do livro, para deixar registrado na  Carta de Navegação do nosso blog, os percursos realizados.

Os Caminhos das Letras

Lourdes Rodrigues

São tantos os caminhos das letras. Quanto mais elas andam mais o círculo brilhante que as circundam deixam sombras de mistério e de silêncio em seus rastros. A bússola dos viageiros são essas pegadas que elas largam. Segui-las é mais do que uma escolha, torna-se a própria razão de ser da viagem. Pouco importam os mares revoltos, os ventos açoitadores, os cantos das sereias, os icebergs enganadores. É preciso segui-las, desvendar-lhes os mistérios, reconhecê-las em suas incompletudes e mesmo assim continuar a persegui-las. É preciso viver a utopia de que vai alcançá-las, de que até vai dominá-las para aquietar essa ansiedade que norteia um caminhante viageiro das palavras.

Mas há um tempo para aportar.

Voltar ao cais não significa encerrar a viagem, desistir do sonho ou acreditar que ele foi alcançado. Ele vai estar sempre na linha do horizonte. É preciso aportar para rever cartas náuticas ou simplesmente ficar olhando as estrelas sem marear, num descanso justo de quem sabe que muitas milhas ainda há por navegar.

Os diários de bordo registram que a travessia não foi fácil: as notícias de casa falavam de hostilidade, intolerância, abusos, ameaças à liberdade. Apreensivos, os navegantes mergulharam nas águas profundas das palavras. A poesia deixou de ser um momento da viagem para se tornar o seu suporte e salvação. Os becos de Cora Coralina foram fontes onde se bebeu para tentar compreender a sociedade, as suas configurações em torno das relações de poder. Em vão. Como compreender A morte de um pássaro (…) se ele nascera para cantar, assim disse Vinicius de Moraes em seu Réquiem a Federico Garcia Lorca, cujos lábios frios mal puderam articular as palavras de pasmo que lhe causava a vista de todos aqueles homens preparados para matá-lo. Lorca não tinha o mesmo gosto pela morte que o poeta Augusto dos Anjos, este parecia querer desafiar as almas sensíveis falando de verme, cuspe, vômito. Recorreu-se a T.S Eliot para fugir da crueza dos versos do poeta paraibano, procurando conforto no monólogo A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock, o pensamento de um homem maduro que busca amor e razão para um mundo tão incerto e crepuscular. Mas foi o grito de Liberdade, de Paul Éluard, que devolveu a esperança à resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial, lido nas traduções belíssimas de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, que resgatou a confiança dos viageiros. Assim finalizam seus versos:

Escrevo teu nome
E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar
Liberdade

O marujo Sarmento reforçou esse sentimento com uma música de sua autoria, cantada à capela, que fala das coisas que ele tanto quer: Sonho ir além do horizonte/E fazer o destino mudar /Pra que não muito distante/Se possa um dia chegar/Às coisas que tanto quero/Às coisas que tanto quero.

Muitos outros poetas vieram à nossa embarcação, Joseph Brodoski, russo que se exilou nos Estados Unidos, prêmio Nobel de Literatura, cujo julgamento em seu país ficou famoso pela insistência com que ele dizia que o seu trabalho era de poeta, o que levou o juiz a perguntar Quem o enlistou como poeta? E ele com altivez devolver: Quem me enlistou no rol da raça humana? Grandes poetas estiveram entre nós como W.H. Auden com seu belíssimo Funeral Blues, Elizabeth Frye, Walt Whitman, Ezra Pound, Florbela Espanca, Charles Bukowski, José María Eguren, Anna Akhmátova, Fernando Pessoa, entre outros.

Não se buscou apenas poetas de outros oceanos. Dos mesmos mares vieram nos abençoar Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Manuel de Barros, Manoel Bandeira, Adélia Prado, Jaci Bezerra, Austro Costa, Daniel Lima, Esman Dias, Geir Campos, Políbio Alves, Sérgio de Castro Pinto, certamente outros mais que os registros falharam. Nunca se deveu tanto à poesia quanto nessa travessia.

Mas a prosa não perdeu o seu espaço.

Viajamos por águas desconhecidas de correntes coreanas nas perdas e culpas irreparáveis de Por Favor, Cuide da Mamãe. Jornada difícil, cheia de interrupções, adiamentos. Desacostumados ao tratamento íntimo do tu, os viageiros entreolhavam-se desconfiados, esquivavam-se. Muitos se renderam e até voltaram a refazer o percurso, deixando-se levar por aquele tratamento atrevido. Outros permaneceram num distanciamento respeitoso de quem admira, mas não se aproxima. Houve até quem não a suportasse e a rejeição se fez presente. Do balanço final fica a certeza de que não é viagem para ser feita uma única vez, algumas revisitas poderão trazer descobertas surpreendentes.

Mergulho em mares do nosso continente permitiu-nos atravessar O Túnel de Ernesto Sabato, para seguir Juan Pablo Castel em sua obsessiva perseguição a Maria Iribarne, sem entender suas razões ou desrazões, encantados com a grandeza e complexidade psicológica do personagem. Ainda na Argentina, agora num percurso bem mais curto, vimos As Babas do Diabo, de Cortázar, onde enveredamos pela magia e fantasia, pelo fantástico e mistério. As Babas do Diabo permitiu-nos muita discussão, numa bela esgrima entre o que cada um levou de seu nessa viagem, fazendo o próprio percurso, e o que a narrativa oferecia concretamente. No mesmo continente, agora no Uruguai, visitamos Mario Benedetti com a sua prosa breve, brevíssima, O Outro Eu, trazendo de volta, de forma magistral, a questão do duplo tão trabalhada em anos anteriores.
O roteiro seguinte foi pelo quarto de Sútulin, na Rússia, que ao aplicar o conteúdo de uma bisnaga escura, fininha, em seu quarto, começou a vê-lo crescer, crescer, de forma incontrolável. Trata-se de um conto de Sigismund Krzyanowski, narrativa que se enquadra no fantástico maravilhoso hiperbólico, segundo Todorov, em que o exagero das dimensões do quarto vão criando tensão, asfixiando o leitor, apesar de ele estar consciente de sua irrealidade. Vídeos e filmes foram feitos baseados nesse conto, um deles foi apresentado na Oficina.

A Festa no Jardim trouxe-nos de volta Katherine Mansfield, escritora da insular Nova Zelândia, de quem Virgínia Woolf confessou ter inveja em seus diários. O conto trouxe muitas visões, demonstrando, mais uma vez, quanto a leitura coletiva é rica. Desde a análise sociológica à psicológica, as interpretações fluíram livremente, sequenciando boas resenhas.Outro conto lido foi Ele? de Guy Maupassant, grande mestre das histórias curtas, especialmente fantásticas, que retratam situações psicológicas e críticas da sociedade de forma aprofundada.

A personagem ratinha, uma das mais belas da literatura universal, comoveu a todos no conto Amor, do autor persa Saadi (1184-1291), em tradução primorosa de Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda. Trata-se da história de amor de uma ratinha por um gato, ambos vivendo em uma mesquita abandonada, na qual quase todos os ratos haviam sido dizimados pelo tal gato. A ratinha é porta-voz dos ratos sobreviventes para tentar convencer o gato a se mudar do local. Belíssima e comovente história.

O teatro devolveu-nos o riso com a Comédia Francesa de Moliére: As Preciosas Ridículas. Investidos nos seus personagens, os viageiros que andavam muito sisudos recuperaram o humor e trouxeram grande descontração com o drama dos burgueses ávidos por apresentar uma cultura que eles estavam longe de ter. Ainda no teatro, dessa feita com o brasileiro Menotti Del Picchia e seu poema lírico Máscaras que fala do amor de dois homens muito diferentes Pierrot e Arlequim por uma linda Colombina, belo triângulo amoroso que representa a difícil escolha entre deuses igualmente encantadores como Dionísio e Apolo, o primeiro lhe realiza o desejo, a paixão avassaladora, o outro lhe dá a certeza, a paz, a segurança, o amor lírico.

Mas foi o conto de Raduan Nassar, Hoje de Madrugada¸ que trouxe o momento íntimo de um casal, onde a mulher suplicava o amor do companheiro e ele dizia que não tinha amor para dar, que provocou muita discussão, análise literária e psicológica como a do marujo Everaldo Júnior, que teve o aplauso de todos. A frieza da rejeição atingiu os viageiros, especialmente, as mulheres. Algumas releituras foram escritas, ora sob o ponto de vista da personagem rejeitada, ora sob o ponto de vista do sujeito que rejeitou. Houve mudança no tempo da narrativa e histórias foram contadas pelos viageiros dando continuidade ao conto de Raduan. Momentos criativos e ricos de interpretação. Os contos dos viageiros longe de reproduzir o texto original, são novas criações, trazendo a inovação sem perder o elo com a fonte que serviu de inspiração.

E por falar na criação dos escritores-navegantes, se não foi uma jornada especialmente pródiga em termos de quantidade em 2017, quando comparada com a jornada anterior, foi muito fértil em termos de inventividade, criatividade tanto na prosa como na poesia, no cordel. Escrituras IV traz essas caminhadas, assim como outros percursos realizados pela Oficina e registrados em Escrituras, Escrituras II e Escrituras III, num resgate do passado, para dar uma visão completa do que tem sido essas viagens durante doze anos. Aos leitores que nos acompanharam nas viagens anteriores, a oportunidade de relembrar, aos que ainda não o fizeram esse resgate é uma amostra do que podem encontrar naqueles livros que, com certeza, irão procurar para ler.

As viagens de 2017 tiveram dois ancoradouros, o de sempre, o Porto-Traço, e o da nossa querida maruja Adelaide Câmara, o Porto-dos-Afetos, das guloseimas deliciosas de Paula que tornaram as nossas tardes ainda mais agradáveis. Forças adversas a impedem de estar conosco no Porto-Traço, como sempre aconteceu nesses doze anos, mas não nos impedem de aportarmos em seu cais para ouvir os poemas que selecionou, para escutá-la em sua sabedoria, toda vez que os bons ventos assim o permitem.

Jaboatão dos Guararapes, 18 de dezembro de 2017