14 de Março – Dia da Poesia

No dia 14 de Março foi comemorado o Dia da Poesia. NInguém melhor do que Carlos Drummond de Andrade para falar sobre como fazer versos.

 

Procura da Poesia

Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.  Não há criação nem morte perante a poesia.  Diante dela, a vida é um sol estático,  não aquece nem ilumina.  As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.  Não faças poesia com o corpo,  esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro  são indiferentes.  Nem me reveles teus sentimentos,  que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.  O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.  O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.  Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza  nem os homens em sociedade.  Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.  A poesia (não tires poesia das coisas)  elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,  não indagues. Não percas tempo em mentir.  Não te aborreças.  Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,  vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família  desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas  tua sepultada e merencória infância.  Não osciles entre o espelho e a  memória em dissipação.  Que se dissipou, não era poesia.  Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.  Lá estão os poemas que esperam ser escritos.  Estão paralisados, mas não há desespero,  há calma e frescura na superfície intata.  Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.  Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.  Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.  Espera que cada um se realize e consume  com seu poder de palavra  e seu poder de silêncio.  Não forces o poema a desprender-se do limbo.  Não colhas no chão o poema que se perdeu.  Não adules o poema. Aceita-o  como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada  no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.  Cada uma  tem mil faces secretas sob a face neutra  e te pergunta, sem interesse pela resposta,  pobre ou terrível, que lhe deres:  Trouxeste a chave?

Repara:  ermas de melodia e conceito  elas se refugiaram na noite, as palavras.  Ainda úmidas e impregnadas de sono,  rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

 

As Brasas

*AS BRASAS, de Sándor Márai

                                César Garcia

 Romance denso sobre a amizade e a traição. Dois homens, ambos militares, amigos desde a infância, encontram-se para tirar dúvidas depois de quarenta e um anos de um afastamento aparentemente inexplicável. A conversa dura toda uma noite e ocupa cem páginas das cento e setenta e duas do livro. O general, Henrik, dono do castelo em que se encontram, fala quase o tempo todo e apenas pede que o amigo, Konrad, responda às suas perguntas. São duas, as principais: se o amigo tinha tido um romance secreto com Krisztina, mulher do general e se, na última caçada, ele apontara a arma para a sua cabeça a fim de matá-lo, e não para o cervo que se encontrava na mesma linha.  O autor, de nacionalidade húngara, nasceu em 1900 e morreu em 1989. No Brasil, a Companhia das Letras publicou também O Legado de Ezter, Veredicto em  Canudos, Divórcio em Buda, Rebeldes, Confissão de um Burguês, De verdade e Libertação.

Veredicto em Canudos, a ação se passa no sertão da Bahia e foi escrita em 1960, depois de ler Os Sertões de Euclides da Cunha. 

Sándor Márai publicou mais de 60 livros. Em 1989, ele se suicida. Morava em San Diego, nos EUA.

EXCERTO DE AS VELAS ARDEM ATÉ O FIM  DE SÁNDOR MARAI

ENVELHECER
Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer… Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exatidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreeende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal… e isso é precisamente a velhice.

 

* Tradução de Rosa Freira D´Águiar – Companhia das Letras, 172 p.

O Fim

 

 RESENHA DO CONTO O FIM

                                                                         César Garcia

O breve conto O FIM, de Jorge Luis Borges, lido em nossa oficina, já foi bastante estudado como se pode ver em  páginas argentinas da Internet. O cenário compõe-se de uma venda situada numa imensa planície cujo proprietário (Recabarren) sofreu um AVC e tem um lado do corpo paralisado. Está deitado e vê quase tudo o que se passa dentro e fora da venda. Há um narrador que na metade do conto cede a palavra aos personagens e no final a retoma. Venda é a tradução dada por Carlos Nejar, no livro FICÇÕES, para a palavra pulperia, em espanhol, termo de  origem sobre a qual não há consenso. Pulpo significa polvo, mas esses estabelecimentos típicos em praticamente toda a América hispânica estavam longe de ser vendedores de polvos. Vendiam um pouco de tudo, particularmente bebidas e alguns alimentos. A palavra caiu em desuso, substituída hoje por outras mais comuns. Aí aconteciam com freqüência as payadas, correspondentes ao nosso desafio, improviso.

No conto, um negro toca violão e espera alguém durante dias para um acerto de contas que é a cena principal. Seu adversário, que vai morrer varado por um facão, é ninguém menos que Martin Fierro, personagem do poema épico do poeta argentino José Hernández. Isto se sabe pelas palavras do próprio Borges: “Fuera de un personaje – Recabarren – cuya inmovilidad y pasividad sirven de contraste, nada o casi nada es invención mía en el decurso breve de [El fin]; todo lo que hay en él está implícito en un libro famoso y yo he sido el primero en desentrañarlo o, por lo menos, en declararlo.”

Borges cria um novo final para o poema com a morte de Martin Fierro que, na versão original, chega a uma conciliação com seu adversário: “Podemos imaginar una pelea más allá del poema, en la que el moreno venga la muerte de su hermano” .

 

“Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem em minha emoção”

(Jorge Luís Borges)

Lixo Extraordinário

 O Grupo Arte e Psicanálise, coordenado por Everaldo Soares Júnior,  fechou  o ano de 2011 com o documentário, premiado,  LIXO EXTRAORDINÁRIO. A direção é de dois brasileiros João Jardim e Karen Harley e da britânica Lucy Walfer.
Trata-se do registro da experiência do artista brasileiro VIK MUNIZ no aterro Sanitário Jardim Gramacho em Duque de Caxias, RJ, que recebe mais de 70% dos dejetos da capital fluminense.
 Waste Land – Lixo Extraordinário foi finalista do Oscar concorrendo na categoria de Melhor Documentário em 2011. Antes foi diversas vezes premiado em festivais internacionais:

Sundance 2010 – Prêmio do público de Melhor Documentário Internacional.

Festival de Berlim 2010 – Prêmio da Anistia Intenacional
                                           Prêmio do Público de Melhor documentário – Mostra
                                            Panorâmica.

Hot Docs ( Canadá) 2010) – Entre os dez favoritos do público

E ainda mais três prêmios em festivais dentro dos Estados Unidos.

 ViK Muniz  é conhecido como um artista que trabalha com materiais inusitados, do diamante ao lixo, e até com alimentos e outros materiais orgânicos. O documentário foi filmado ao longo de dois anos e nos traz o processo vivido pelo Artista desde o momento da decisão de trabalhar no aterro, enfrentando riscos de saúde, até suas dúvidas filosóficas diante do projeto, mas evidencia, sobretudo, uma determinação de empreender algo que nem ele sabia ao certo onde ia dar, mas que devia ir em frente.
O artista aproximou-se da comunidade através de seus representantes. Esta aproximação, como se vê no filme, foi feita cuidadosamente. Expôs sua ideia e aos poucos ganhou a confiança de alguns. VIK encontrou uma comunidade bem humorada e receptiva. Não foi difícil envolvê-los num projeto de recuperação da autoestima .O projeto criaria uma nova imagem dos catadores  para a sociedade como também  traria a possibilidade concreta de retorno financeiro através da venda dos trabalhos.

 Fica evidente no documentário que algumas ideias para a realização das fotos surgiram do convívio e da troca entre Vick e alguns catadores. Há uma escuta que é valorizada. VIK fotografou incansavelmente todo o ambiente e fixou-se em alguns personagens que espontaneamente foram se envolvendo no processo, como Tião, Zumbi, Walter, Suellem, Isis, Irmã e Magda.

 A ideia principal consistiu em reproduzir com eles cenas de quadros famosos e compor essas imagens com material reciclável, (sucatas, tampinhas, destroços de fantasias de carnaval, sapatos, garrafas etc). Em seguida, tentar vender num leilão em Londres  um desses trabalhos que além de ter um deles como modelo fosse  resultado do esforço dos que trabalharam incansavelmente sobre os grande painéis projetados no chão para compor obras que estavam transformando suas vidas.

 VIK  teve o cuidado de prepará-los para entender o que se passava e para viver o momento transcendente  em que já não se vê mais lixo, mas beleza, o milagre da arte.
O sucesso foi alcançado. A obra que foi levada e vendida num leilão em Londres retratava Tião, (Sebastião Carlos Santos) numa pose semelhante ao quadro A morte de Marat (1793), do francês Jacques-Louis David. O valor alcançado chegou a cem mil reais . Tião estava em Londres, no Leilão, e trouxe com ele o dinheiro para seus projetos
na associação que dirigia.Todos comemoraram.

 Logo depois, uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro mostrou todo o trabalho ao público brasileiro. Naquela noite, Magda, Irmã, Zumbi, Tião, Suellem, Isis, foram assediados pela imprensa e pelo público. Tudo estava começando.
 Dali em diante nada poderia ser como antes. Aquelas pessoas, ocupadas com o que de menor existe na sociedade que é catar lixo foram arremessadas para mais além pela força do desejo humano do reconhecimento do outro tendo a arte como estratégia.
Ao final, se é que há final, todos estavam transformados:
 – o lixo, em ARTE;
 – os catadores, em ARTISTAS com novas perspectivas;
 – o Artista, num ser humano admirável e cheio de interrogações;
 – finalmente, a platéia do documentário, desta feita, nós, aqui do Traço.

Júnior pensou até em abandonar nosso grupo das quartas feiras e retomar trabalhos que fez em sua juventude. Impossível ficar indiferente diante dos depoimentos de pessoas tão sensíveis; impossível não se comover testemunhando uma experiência tão definitiva para a vida de algumas pessoas e posteriormente para  a história de toda uma comunidade.

 Que seria do mundo sem a arte?

                                                                    Adília Morais

 AMOSTRA DOS TRABALHOS:

 

 

 

 

 

 

Dia Internacional da Mulher

Hoje, dia 08 de março, é o dia internacional da mulher. Simone de Beauvoir deve ser lembrada no mundo inteiro nessa data, pelo passo gigantesco que ela deu ao escrever  O Segundo Sexo, uma obra intensa e extensa, composta de dois volumes: Fatos e Mitos; e a Experiência Vivida. O estudo abrange aspectos biológicos da mulher, filosóficos, sociológicos, psicanalíticos, além de ricos relatos de experiências vividas. Embora muito questionado, o estudo ainda hoje é uma referência quando se aborda a questão do feminino. Há uma frase bombástica no estudo que provocou verdadeira revolução no mundo pós-guerra, e ainda hoje é motivo de acaloradas discussões. Está no Segundo Volume, o da Experiência Vivida – e  abre o Capítulo I: “Não se nasce mulher: torna-se.” e ela prossegue:  “Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que auqlificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indíviduo como um Outro.

Mas há outras frases bem mais simples dela, embora não menos tocantes:

Eu gostaria muito de ter o direito, eu também, de ser simples e muito fraca”

O que é um adulto ? Uma criança de idade.

Deus me livre de ser normal !

Deus só pode estar presente na criação sob a forma de ausência.

Várias foram as obras de Simone de Beauvoir, entre elas, Memórias de uma moça bem comportada – A Convidada – Os Mandarins I e II – Sangue dos Outros – A Mulher Desiludida. Ensaios: além do Segundo Sexo, A Velhice –  A Cerimônia do Adeus – Todos os homens são mortais. Memórias : Na Força da Idade 2 v. – Sob o Signo da História – América Dia a Dia

Ainda para homenagear o Dia Internacional da Mulher aqui estão algumas frases de mulheres famosas na literatura:

 VIRGÍNIA WOOLF – As mulheres serviram todos estes séculos como espelhos possuindo o poder de refletir a figura do homem duas vezes maior que seu tamanho natural.

 

Por quê as mulheres são… tão mais interessantes aos homens do que os homens são às mulheres?

A verdade é que eu sempre gosto das mulheres. Gosto da falta de convencionalismo delas. Gosto da integridade delas. Gosto do anonimato delas.

A história da oposição dos homens à emancipação das mulheres é mais interessante talvez do que a história da própria emancipação.

É fatal ser um homem ou mulher pura e simplesmente: deve-se ser uma mulher masculinamente, ou um homem femininamente.

Cora Coralina

Eu sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida, removendo pedras e plantando flores.

Todas as Vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera
das obscuras!

 

Clarice Lispector

E como nasci? Por um quase. Podia ser outra. Podia ser um homem. Felizmente nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu no jornal do que os elogios.Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo.

O espelho

Na última quarta-feira iniciamos a leitura de O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica, de Jacques Lacan, no grupo de Arte e Psicanálise que funciona no Traço sob a coordenação do psicanalista Everaldo Soares Júnior.

Durante a leitura, como é frequente ocorrer,fomos buscar amparo na Literatura para melhor entendimento da parte teórica. A nossa colega Adelaide lembrou-se de um poema de Sylvia Plath e Everaldo Júnior de um poema Borges. Sonua Sarmento enviou um poema de Cecília Meirelles. Ei-los:

MIRROR

     SYLVIA PLATH

I am silver and  exact. I have no preconceptions.
Whatever I see I swallow immediately
Just as it is, unmisted by love or dislike.
I am not cruel, only truthful —
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me,
Searching  my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully.
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish

     (23 October 1961)

ESPELHO

Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, desembaçado de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, desbotada. Há tanto tempo olho para ela
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ela falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.

Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vem e vai.
A cada  manhã seu rosto repõe  a escuridão.
Ela afogou uma  menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.

   .  

 

OS ESPELHOS
Jorge Luís Borges

Eu que senti o horror dos espelhos Não só perante o vidro impenetrável Onde acaba e começa, inabitável, Um impossível espaço de reflexos
Mas ante a água especular que imita O outro azul em seu profundo céu Que sulca o ilusório vôo, ao léu,
Da ave inversa ou que um tremor agita
E ante a superfície silenciosa
Do ébano sutil cujo fulgor
Repete como um sonho o alvor
De um vago mármore ou uma vaga rosa,
Hoje, ao fim de tantos e perplexos Anos errando sob a vária lua, Pergunto-me que acaso da fortuna Fez com que eu temesse os espelhos.
Espelhos de metal, emascarado Espelho de caoba que na bruma De seu rubro crepúsculo esfuma Esse rosto que olha e é olhado,
Infinitos os vejo, elementais Executores de um antigo pacto, Multiplicar o mundo como o ato Generativo, insones e fatais.
Prolongam este inútil mundo torto
Na vertigem de seus emaranhados; São às vezes de tarde embaçados
Pelo alento de alguém que não está morto.

 
O vidro nos espreita. Se entre as quatro Paredes do quarto existe um espelho,
Já não estou sozinho. Há outro. Há o reflexo Que arma na aurora um sigiloso teatro.
Tudo acontece e na memória é perda Dentro dos gabinetes cristalinos Onde, como fantásticos rabinos, Lemos livros da direita à esquerda.
Cláudio, rei de uma tarde, rei sonhado, Não sentiu que era um sonho até o dia Em que um ator mimou sua felonia Com arte silenciosa, em um tablado.
Que haja sonhos é estranho, que haja espelhos, Que o usual e gasto repertório
De cada dia inclua o ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos.
O empenho de Deus (eu penso) assombra, Com essa inapreensível arquitetura
Que edifica a luz com a brunidura
Do cristal e, com o sonho, a sombra.
Deus inventou as noites que se armam De sonhos e as formas do espelho Para que o homem sinta que é reflexo E vaidade. Por isso nos alarmam.

 

Retrato

“Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?”

Cecília Meireles

A folha de papel em branco

*A FOLHA DE PAPEL EM BRANCO

Lourdes Rodrigues

Droga! Há muito escureceu. O dia prestes a amanhecer traz o vazio de mais uma batalha perdida. Ah, maldita folha em branco! O tempo todo a me desafiar. Parece sorrir dos meus rituais para preenchê-la: casa silenciosa, lapiseiras carregadas de grafites deslizantes, plano bem elaborado, tema, narrador, cenário, diálogo, perfil psicológico dos personagens… E a resma de papel jaz em cima da escrivaninha…
Psiu, silencio! Escuto sons quase inaudíveis. São os passos delas, o farfalhar de suas vestes se avizinhando. Fecho os olhos, consigo vê-las desafiantes. Capturo uma, examino, carece de sentido. Agarro outra, junto à primeira. A frase fica manca. Insisto, pesco mais, insisto, escrevo, rasuro, escrevo, busco forma, coerência, estilo. Desisto. Amasso o papel, jogo fora. Levanto, ando para lá e para cá atrás de lembranças que incendeiem a minha escrita. Deus!, Deus!, Eu preciso de um furo na represa do meu fluxo imaginativo. É preciso que dele jorre o sêmen que romperá a castidade daquelas folhas malditas, fertilizando-as com as minhas fantasias. Inútil. Tudo inútil. Volto ao escritório por não ter opção. Cabeça vazia, corpo doído. E a peleja por um maldito começo recomeça. Ah, se eu o conseguisse, elas não me escapariam mais. Por que eu tenho de passar por isso, meu Deus? Por que essa necessidade imperiosa de escrever? Sou escrava das palavras, refém delas. Por que tolero esse jogo sujo de esconde-esconde?O que querem de mim essas aventureiras? Não, não tenho medo. Parece que sim? Medo de dizerem de mim o que eu não sei ou não quero que os outros saibam? Não, não. Elas apenas me irritam. São umas fora-da-lei, jamais seguem os meus traçados. Chego a sentir o cheiro delas, cheiro de coisa guardada, de há muito escondida. Quase as vejo atravessar a minha retina enfileiradinhas, sujeito, predicado, complemento antes de mergulharem nas profundezas das trevas, outra vez. Malditas, sabem que não são uma escolha para mim e se recusam a me servir. Tento afagá-las, amaciá-las, não se deixam seduzir, farejam o alçapão aberto.  Tudo por causa daquele quintal. Ali tudo começou. Ali comecei a vaguear a minha fantasia. Nunca mais ela deixou de me perseguir. Algumas vezes pensei estar livre desse cavoucar de escombros diante do desespero de uma página em branco, da luta ferrenha e esmagadora contra uma ampulheta que esvai o tempo. Que engano. Psiu!,Psiu!, São elas. São elas. Finalmente, estão vindo, estão chegando, Agora eu sei que vou começar. Silencio, silencio, silencio.

 O Papel em Branco

                   João Cabral de Melo Neto

Nessa folha branca
Um menino um dia
Descobriu-se livre
De tudo inventar.

Os cabelos nos olhos
Não deixavam ver
Que era menino triste
Sempre por chorar.
Menos quando um lápis
Entre os dedos sujos
De tinta,  viajava livre
Nesse mapa virgem.

                   

       Incontáveis são os registros em cartas, diários, autobiografias de escritores sobre esse desespero diante do bloqueio no processo de criação. E as perguntas são sempre as mesmas: Por que uma folha de papel em branco bloqueia e intimida tanto,  transformando a relação do escritor com a palavra num duelo de vida ou morte? De onde vem esse desejo incontrolável de escrever que retira do sujeito a sua autonomia? Por que alguém se submete a essa tortura?

Gabriel Garcia Marques, em uma entrevista, disse considerar  o conto uma narrativa extremamente árdua para se escrever, porque o mais difícil num processo de criação era o começo, e o escritor teria de fazer vários começos para compor um livro. Mas essa dificuldade não está apenas nas pequenas histórias. Gustave Flaubert viveu momentos desesperadores enquanto escrevia Madame Bovary, uma semana para escrever duas páginas, é de se morrer de desencorajamento! (…)Que ofício fodido!Que droga de mania! diz ele em uma carta a Louise Collet. Virgínia Woolf depois de um ano escrevendo Mrs Dalloway lamenta-se no diário porque espremia em demasia os miolos para arrancar míseras duzentas palavras por dia e à medida que o livro ia sendo escrito crescia o temor de achá-lo fraco, porém a obsessão em escreve-lo não lhe abandonava.

E por que continuar com essa agonia? Para Flaubert a razão era tão clara que ele até abençoava esse tormento, porque sem ele, seria preciso morrer.  A vida só é tolerável com a condição de nunca estarmos nela,  disse ele à sua amiga, Louise Collet. Virgínia Woolf também dizia em seu diário que a única realidade que importava para ela  era a dos seus livros.

Há uma tese bastante difundida de que escrever é um ato de rebeldia,  de dissidência do indivíduo com relação à vida e ao meio social em que ele se insere.  Defensor dessa tese, Mario Vargas Llosa acrescenta: quem se entrega à elucubração de vidas distintas daquela que vive na realidade demonstra dessa forma indireta sua rejeição e crítica à vida como ela é e ao mundo real, bem como seu desejo de substituí-los por outros, fabricados por sua imaginação e desejos. Por outro lado, o escritor peruano reconhece que nem sempre os escritores têm consciência da infelicidade, da rebeldia, e até se surpreendem quando se dão conta da raiz sediciosa de suas vocações fantasistas, por não se considerarem em absoluto destruidores secretos do mundo.

Cortázar jamais negou o seu lado questionador. Ele sempre se definiu como alguém contestante da realidade que lhe era apresentada, desde criança.

Creio que desde muito pequeno minha sorte, e ao mesmo tempo meu azar, foi o fato de não aceitar as coisas tal como estavam, prontas. Não era suficiente que alguém me dissesse “isto é uma mesa”, nem que ‘mãe’ fosse ‘mãe’ e ponto final. Ao contrário, no objeto ‘mesa’ e na palavra ‘mãe’ começava para mim um itinerário misterioso, que às vezes eu percorria e no qual às vezes me esborrachava… Em suma: desde pequeno, minha relação com as palavras, com a escrita, não se diferencia da minha relação com o mundo em geral. Eu não acho que nasci para aceitar as coisas tal como estão, tal como me são oferecidas. .

Sob o ponto de vista da psicanálise, Freud, muitos anos antes, ao analisar o conteúdo das fantasias enveredou pelo caminho da frustração, ao afirmar que a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita: As forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória.

A continuar nessa linha freudiana de que Desejos insatisfeitos são as forças pulsionais da imaginação poética,  a sublimação seria, assim,  o destino pulsional, alternativo, encontrado pelo escritor para mitigar o seu sofrimento psíquico, na medida em que  ela lhe permite organizar de forma construtiva a sua insatisfação.
Vejamos o que Flaubert diz sobre isso, ainda, à sua amiga, Louise:

É por isso que amo a arte. É que aí, pelo menos, tudo é liberdade num mundo de ficções, podemos ao mesmo tempo ser rei e povo, ativo e passivo, vítima e sacerdote. Não há limites; a humanidade se torna um boneco com guizos que se pode fazer soar ao fim da frase que compomos como um acrobata que gira e cai sobre seus pés (foi assim que, frequentemente, eu me vinguei da existência; que revivi tantas doçuras com minha pena; que me dei mulheres, dinheiro, viagens), é assim que a alma curvada se lança para um azul que só se detém nas fronteiras do Verdadeiro

.
Em um ensaio, Pulsão e Simbolização: Limites da Escrita, a psicanalista e escritora Ana Cecília Carvalho pondera que a sublimação nem sempre é apaziguadora. Existem algumas situações bem menos idílicas, eu diria, e que, até, elas são a maioria delas. Há muita dor, muita angústia durante o processo de criação, bem parecidos ou piores do que os casos já citados. E Ana Cecília entende que o indivíduo criativo, o artista e o escritor não estão livres de desenvolverem sintomas psicológicos. Pelo contrário, o profundo sofrimento emocional relacionado à criação artística tem sido apontado, muitas vezes, como uma marca na vida de escritores e artistas. É bem verdade que o sofrimento psíquico desenvolvido na via da criação artística e literária difere do aspecto do sintoma, naquilo que o caracteriza como uma expressão cifrada, repetida e não compartilhável.
Nesse sentido, para ela, há limites na sublimação que nós não estamos acostumados a pensar, ao admitimos, de forma ilegítima, que o indivíduo criativo é um privilegiado. Talvez fosse melhor pensar, diz ela,  que é a maior ou menor proximidade dos arranjos sublimatórios em relação ao sofrimento que eles buscam dominar que darão conta dos vários destinos da criatividade humana, tenham eles êxito ou caminhem para o fracasso.
E a partir desse pressuposto desenvolve o ensaio ao enfatizar o que ela chama de fenômeno intrigante, que é a morte trágica de escritores, sobretudo os que acreditavam na função organizadora ou mesmo terapêutica do seu trabalho, citando alguns que se suicidaram: Mayakovski, Florbela Espanca, Virgínia Woolf, Sylvia Plath, Paul Celan, Primo Levi, Anne Sextom, Ana Cristina César e Pedro Nava, entre tantos outros.
Ela diz não estar querendo estabelecer “parentesco” entre os escritores, baseada na morte trágica deles, pois reconhece que são diferentes as suas realidades político-histórica-social-culturai. O contraponto que se propõe a fazer, resguardadas as diferenças e singularidades desses escritores, é o da possibilidade talvez de relacionar o tipo de envolvimento existente entre a sublimação e o sofrimento emocional, examinando de perto a relação entre a escrita literária e o suicídio do escritor: Portanto, é essa situação enigmática que obriga o psicanalista não só a pensar no caráter incessante, mobilizador e prazeroso do processo criativo, mas também nos elementos que circunscrevem os limites da sublimação e indicam a presença de aspectos destrutivos no interior desse campo.
O objetivo do meu trabalho, porém, não é aprofundar a investigação teórico-literário-psicanalítica sobre a relação do ato criador com a sublimação versus vida, nem tampouco com a sublimação versus suicídio, embora esses aspectos tenham sido abordados como questionamentos e possibilidades de estudo. Pretendeu-se, na verdade, apenas, trazer a dor, dor viva, cruciante, aguda que envolve o processo criador para alguns escritores, resultante de uma tendência cada vez maior, que tornou o ato da escrita quase uma necessidade natural, fisiológica, pouco dependente da deliberação do sujeito, assim como no dizer de  Fernando Pessoa : Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender… Exemplo dessa escrita encontra-se também em Clarice Lispector: Não sei como me perdoar a inconsciência de escrever.


 O escritor estará sempre fecundado por esse desejo/necessidade que o levará a enfrentar luta ferrenha e angustiada para realizá-la, obrigando-o a um eterno recomeço que só se extinguirá com a sua morte, como tão bem expressou Albert Camus:
 Se há algo que finalize a criação, não é o grito vitorioso e ilusório do artista cego: eu disse tudo, mas a morte do criador, que encerra sua experiência e o livra do seu gênio.

Trabalho apresentado na Jornada de maio de 2011 do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise