BALANÇO DE 2020 DOS VIAGEIROS E VIAGEIRAS

Retrospectiva 2020

Salete Oliveira

”tema para direcionamento de leituras e escritas será a condição humana: o vazio, a angústia, o ser ou não ser, o medo da morte, o desejo, o amor, a culpa, o ódio, a frustração, a paixão, a falta, a solidão, o sonho, a fantasia. Fontes primárias dos escritores que estão bem adiante das pessoas comuns no conhecimento da mente humana, segundo Freud. Elas permitem a tessitura de tramas que se tornam grandes obras literárias. Desvendar o homem através de seus sentimentos, diante de determinadas circunstâncias, é o peregrinar contínuo do escritor ficcional e o que o diferencia dos demais escritores.”

Lourdes Rodrigues, Proposta de Programação para 2020.

Dia 4 de fevereiro de 2020 chegou e-mail da Comandante,

com a programação e essa imagem que me meteu medo,

mete medo até agora, ainda mais.

Em suas palavras um tema dado, difícil

tema para leituras e escritas,

premonição das vivências pessoais logo mais,

dados jogados por quem?

Natureza ou deuses, a brincar com humanos?

Dia 5 estávamos no Traço, cheios de alegria e saudades,

Eu adoentada, sete meses sem os ver, ainda mais

saudosa e carente, perdera encontros e o lançamento

festivo carinhoso e exitoso como nunca visto

do Escrituras V recém chegado ao meu colo, logo mais

desafios, como entrar de cabeça e de corpo inteiro se jogar?

Precisava do aconchego, chegar, aterrissar,

acreditava que o tsunami passara, seria um ano de calmaria.

Pula para março… empaquei lá e agora,

novos desafios, estão no tema; mas não era para ler e escrever?

a condição humana: o vazio, a angústia, o ser ou não ser,

o medo da morte, o desejo, o amor, a culpa, o ódio,

a frustração, a paixão, a falta, a solidão, o sonho, a fantasia.

Era para viver, experenciar, vivenciar… ainda mais

alguém disse “cada um sempre escreve sobre si mesmo”,

Vamos fazer o grupo online? Vamos! Vivas à tecnologia!

Capengar, errar, acertar, empacar, ficar perplexo,

rir, chorar, ler muito muito muito… notícias, inverossímeis!

Que chegue logo a quarta-feira; um refúgio, a ficção;

o momento poético, um alento; um texto de um viageiro,

uma conquista, celebração, perseverar ainda mais;

o que lemos, quem lemos? Aprendemos a escrever,

reescrever, apreciar as entrelinhas, histórias paralelas,

nos enxerimos pelo discurso indireto livre, além do mais.

Navegar, navegamos, devagar pra canoa não virar,

dez meses de estudo e trabalho, produção…

vai dar livro, afinal um ano de boa safra,

poetas emergiram, da meada um fio não se perdeu, ainda mais

novelista apareceu, fazendo surpresa e mimo

de livro publicado; o Escrituras VI, aguarde, logo mais

sairá da gráfica, bonito e cheiroso, sobre os abismos

o barco paira e aportará, calmamente, em águas plácidas.

20/dezembro/2020

Dia 21 temos a Estrela de Belém, a anunciar o Natal, e o Ano Novo!!!

Vamos fazer uma carinha alegre de fé e esperança?

Quarta-feira (retrospectiva 2020)

                                     Elizabeth Freire
 
 
 
 Quarta-feira (retrospectiva 2020)
  
 Quarta-feira no Traço,
 planejamento do ano:
 dos mestres, o conto,
 de nós, a condição humana.
  
 Quarta-feira aflita,
 medo, incerteza, angústia.
 Fé, coragem para seguir.
 Para continuar, esperança.
  
 Quarta-feira animadora,
 Fé em Deus, fé no outro.
 Esperança nas palavras,
 coragem nas entrelinhas.
  
 Quarta-feira tecnológica.
 Sem encontro, sem abraços,
 Sem Eleta, sem Cacilda,
 Olhos na tela, online.
  
 Quarta-feira encantada,
 Ray Bradbury, Guimarães,
 Graciliano, Brodsky,
 Ferreira Gullart, tantos mais.
  
 Quarta-feira imaginária,
 favelados, seringueiros,
 ex- garimpeiros, menina má
 Severina, Amarelinho, Rosinha...
 Quarta-feira alvissareira,
 Escrituras VI no prelo.
 Renova-se a esperança:
 outras quartas virão.
  
 Quarta-feira venturosa,
 Antevéspera de Natal.
 Ao Deus Menino, a prece:
 saúde para todos nós.
   
  

Balanço do Ano de 2020

Fernando Gusmão

Neste ano que ora se finda navegamos em um mar perigoso, tempestuoso, que nos obrigou, entre outras atitudes, ao isolamento e ao distanciamento social, com todas suas dificuldades e desconfortos.

No entanto, vejo que, para mim, essa medida de defesa da nossa sobrevivência propiciou-me um tempo extra para novas leituras e, principalmente, para reler obras que eu dava como lidas, e que estavam servindo ultimamente somente para enfeitar minha estante ou para eventuais consultas, rápidas e diretas.

Ademais, reler diversos clássicos estando agora participando da nossa Oficina abriu-me outras perspectivas estéticas e fez-me ver detalhes que antes me tinham escapado. Falo, principalmente, daquelas leituras feitas na adolescência, com destaque para as histórias de Monteiro Lobato com seus inesquecíveis personagens.

Entre essas releituras, voltei aos livros de Jorge Amado, dentre os quais Velhos Marinheiros, em que o narrador, ao final indaga: qual a moral a extrair desta história por vezes salafrária e chula? … Onde está a verdade? Quem a conduz pelo mundo afora, iluminando o caminho do homem? O Meritíssimo Juiz ou o paupérrimo poeta? Chico Pacheco, com sua integridade, ou o Comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso? Essa indagação é feita pelo narrador-personagem com a finalidade de explicar a complexidade de uma sociedade burguesa, excludente e corrupta.  Ele conta que recorreu ao “golpe” da doença dos olhos para conseguir uma licença médica, pois “garantira-me um amigo que o golpe da doença dos olhos pega sempre:  os médicos, comovidos, assinam os papéis sem discussões nem exames.

Em Dona Flor e seus Dois Maridos, também de Amado, o personagem Vadinho é igual e sobejamente dado a “golpes” e “jogadas”. Mesma coisa com Quincas, de A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água.

Sabendo que o Amarelinho também é chegado a comportamentos assemelhados, dei uma pesquisada para ver se achava alguma base comum entre personalidades picarescas com tais perfis comportamentais.

Achei um artigo de Altamir Botoso, “Romance Picaresco e Malandro: a consagração do anti-herói ”, de 2017, onde o acadêmico discute o ressurgimento do “pícaro” na literatura brasileira, em vários romances do século XX, que consagram e garantem a sobrevivência do anti-herói na ficção e que teriam se originado no núcleo da chamada “picaresca clássica espanhola”.

Curioso é que daquela época três romances são considerados como fazendo parte do núcleo dessa picaresca:  “El Buscón”, de 1626, “Lazarillo de Tormes”, de 1554, e “Guzmán de Alfarache”, de Mateo Alemán, que nasceu em 1599.

Segundo o articulista, o personagem picaresco, ou o pícaro, apareceu na literatura espanhola em oposição aos heróis dos romances de cavalaria, publicados com destaque na Espanha durante o século   XVI, com seus paladinos, princesas e dragões,  

Segundo Altamir Botoso, essa categoria literária, na qual o pícaro é o protagonista, inaugura uma nova maneira de narrar e, além do mais, expõe uma visão fortemente crítica da realidade social da qual o anti-herói faz parte.

Por exemplo, apesar de aprender que o trabalho não é o caminho indicado para chegar à riqueza, Guzmán exerce o ofício de criado. Mas, ele foi e será sempre um pícaro, que pagará qualquer preço pela sua liberdade e o seu bem-estar. A única meta que importa a Guzmán é manter intacta a sua liberdade e salvar a própria pele.  O seu “arrependimento” equivale a um lance de picardia, que consolida e reafirma a sua posição dentro da obra, já que ele continuará sendo, sempre, um pícaro.

A MORTE E A VIDA

Luzia Ferrão

A morte e a vida nos ronda sempre como dois elos de uma mesma corrente. O menino Jesus vai nascer e morrer logo, logo, aos trinta e três anos. Assim foi 2020 choramos a morte (do meu irmão principalmente) e quase enlouqueço no primeiro caso da família (meu neto/filho). Gritei: não vou resistir, não vou resistir… resisti e foi só uma “gripezinha”. Essa frase deveria ser o grito dos nossos mortos. Infelizmente o demônio que à pronunciou não morreu é um demônio. Demônio não morre, aprendemos a nos livrar dele com o seu oposto que nos guarda.

 A Oficina Clarisse Lispector estou mais do que consciente que é a minha última tentativa de exorcizar meus demônios. Correu o tempo fiz de tudo que suas imaginações possam criar. Há 75 anos tento livrar-me deles. Consegui conviver numa boa com grande parte deles, alguns são tão resistentes, tão fdp que ainda riem da minha cara, mesmo eu sabendo que são demônios. É nesses instantes que minha raquítica lucidez me diz: Ligue não todo mundo tem os demônios que merece. Assim foi o ano de 2020, repleto de meninos Jesus, (na família tem um gordinho lindo com 8 meses), e com despedidas online.

Amiguinhos e coleguinhas vocês não podem imaginar os encantamentos e as raivas que vocês me propiciaram nos nossos encontros. Botando na balança foi 80 a 20% , por isso eu quero desejar de  coração ( só vale assim) que sonhemos juntos 2021 assemelhado ao paraíso na terra.

Coloco tudo na balança da vida

FELIZ 2021

22 de dezembro de 2020.

BALANÇANDO O BALANÇO

Salomé Barros

MOVIMENTO INTERMITENTE

É O QUE CHAMAM BALANÇO

UM VAI E VEM DESMEDIDO

COM RETROCESSO OU AVANÇO

SE O CLIMA NÃO AJUDAR

SÓ REBOLO E NÃO DANÇO

FORAM MUITAS TURBULÊNCIAS

NESSE ANO QUE TERMINA

UM VIRUS DESTRUIDOR

FEITO AVE DE RAPINA

ESTRAGOU ATÉ JUIZO

DE QUEM TOMOU CLOROQUINA

TUDO FOI TÃO DE REPENTE

CONFINAMENTO FORÇADO

ISSO TROUXE DE PRESENTE

UM TEMPO MAIS AMPLIADO

INJETOU INSPIRAÇÃO

DEIXOU CÉREBRO TURBINADO

COMO TUDO TEM DOIS LADOS

FICAMOS COM O POSITIIVO

NOSSA OFICINA AMPLIOU

O RESULTADO EFETIVO

A PRODUÇÃO FOI CRESCENDO

DANDO FORÇA AO COLETIVO

E CADA UM DE SEU JEITO

FOI SOMANDO SEU TALENTO

O VOLUME FOI TÃO GRANDE

QUE ESBORRAVA O PENSAMENTO

E O BARCO SEGUIU CERTEIRO

ENFRENTANDO ONDA E VENTO

A RECOMPENSA CHEGOU

NOSSO LIVRO ESTÁ BOMBANDO

TEMOS QUE COMEMORAR

COM O EGO ALIMENTANDO

A ENERGIA POSITIVA

PRA CONTINUAR CRIANDO

                                             

ORA (DIREIS) CONVERSAR COM ESTRELAS

Osvaldo Sarmento

Acho que não tem sido fácil pra ninguém estes tempos de pandemia, naturalmente que excluo desse ninguém uns poucos grupos como donos de funerária, por exemplo.    Surpreendentemente, para mim, embora difícil, esses tempos não têm sido o desastre super desastroso que pensei.

Li menos do que devia, mas li. Como um aluno responsável, li atentamente todo o material objeto dos encontros semanais da Oficina de Literatura Clarice Lispector, fossem eles teóricos ou não. Pus no mesmo pé de igualdade tanto os escritos clássicos de autores consagrados, sugeridos pela coordenação, como a produção literária do grupo

Fiz o que pude sob o signo dessa pandemia desgraçada. Debrucei-me, valentemente, sobre os ditos de Clarice em “A Hora da Estrela”, quebrando com isso, minha promessa de esquecê-la. Reli com prazer, Graciliano e José Lins do Rego. Sofri com a leitura de “Para sempre Alice” de Lisa Genova, porque cada página me remetia à trajetória de minha mãe adotiva padecente do mal de Alzheimer. Depois desse livro, o jeito foi passar um unguento na alma lendo sem compromisso dois policiais de Agatha Christie e passeando pelo “Cem Sonetos de Amor” de Pablo Neruda. Abandonei, por enquanto, a leitura de “O Vale do Issa” de Czeslaw Milosz (Prêmio Nobel de Literatura) e “O Castelo” de Kafka. Não fazem meu gênero! Mas vou conclui-la em breve, por uma questão de honra até, pois nunca deixei inacabada a leitura de qualquer romance.

Gastei – alguém dirá desperdiçou – muito tempo com leituras ligadas ao momento político do país, tentando desesperadamente manter a esperança de uma saída. Esse tipo de leitura tem sido um vício para mim. Preciso controlar-me, reconheço.

Em matéria de criação literária, também fiquei devendo. Escrevi somente dois contos, um antes do aparecimento da pandemia neste solo abençoado por Deus e em que se plantando tudo dá. Dentro da área do que foi um dia minha atividade profissional, mas que insisto em continuar escrevendo, mesmo que para o vento, também estou a dever. Fiz o roteiro de um artigo dito científico e só. Acho que vou escrevê-lo, o mais rápido possível. Tenho medo de que essa maldita pandemia interrompa meu sonho. Escapei da primeira, mas tenho sérias dúvidas se sobrevivo à segunda onda. E vou culpar o governo por tudo de ruim que porventura possa me acontecer. E se acontecer, procurarei a ajuda da força divina, para voltar de onde estiver, arrancá-lo do palácio e conduzi-lo até as portas do inferno.

Desculpem o delírio que me fez dizer tantas asneiras. Sei que nunca vou realizar meu sonho por completo. Meu sonho, como já disse Erundina, não cabe numa vida só. Por enquanto quero apenas completar uma etapa desse sonho, que é infinito e, só aos poucos se revela.

A pandemia suspendeu os encontros presenciais da Oficina, mas, felizmente, não interrompeu a viagem sem fim do grupo no mar das palavras. Sob a liderança da timoneira manteve-se os encontros, dessa feita, de maneira virtual graças, é bom enfatizar, ao enorme avanço da tecnologia no campo das comunicações. Muito melhor do que nada, evidentemente, embora esteja um pouco longe dos encontros presenciais.

Digo isso, não só pela falta do calor humano insubstituível de uma reunião presencial. Já vai fazer um ano, que parece um século, que não provo as inigualáveis iguarias trazidas por Adelaide. Modesta como sempre, transfere os elogios para sua auxiliar, Paula a ‘mãos de fada’.  Lembra-me Lourdes desviando suas merecidas glórias pra nós, simples e mortais viageiros. A propósito, sinto saudade também do desesperado som de sua sinetinha tentando a impossível tarefa de disciplinar a tagarelice vinda daquele lado da sala do Traço onde se sentam Eleta, Cacilda, Luzia, Junior e alguns outros sem fidelidade de assentos. Desculpem-me se comparo viageiros a simples crianças, mas não consigo evitar a lembrança de meus venturosos tempos de menino frequentando a escola. Confesso que sinto falta, igualmente, do zelo de Luciene para conosco.

Procurei um aspecto bom da pandemia, não sei se achei. Mas, vamos lá! A relativa prisão em que me vejo me fez frequentar muito o jardim de casa, a qualquer hora do dia ou, especialmente, no silêncio da noite. Fiquei surpreso com a visita de tantos pássaros e da vontade deles de me brindarem com seus maravilhosos recitais e da incrível velocidade de seus voos. De noite, voltei a conversar com as poucas estrelas visíveis no céu de uma cidade grande, como fazia no meu tempo de adolescente, na acanhada Maceió, de pouquíssima iluminação, influenciado pelo belo poema de Olavo Bilac, “Ora, direis ouvir Estrelas”. Ainda pretendo contar essa história, noutra oportunidade.

Não sei se por conta da Covid-19, voltei a sonhar, ou melhor dizendo, a lembrar-me de meus sonhos. Ontem tive dois sonhos, ou dependendo do ponto de vista de cada um, pesadelos. Sonhei que era uma tartaruga de couro, dessas que podem viver mais de trezentos anos e que singrava tudo que era oceano com uma volúpia nunca sentida. O outro foi que eu era um pássaro muito vistoso e viajante por excelência que conhecia a rota de todas as partes do mundo. Tanto fazia pousar pra descansar em árvores centenárias, como nos grandes monumentos das diversas civilizações. Acordei maravilhado e os interpretei como duas propostas do Divino para minha próxima encarnação e já decidi o que vou pedir ao nosso Criador. Adoro viver, mas vou preferir ser um pássaro. Encantarei os humanos com minha plumagem e gorjeio. Com o gozo de tudo conhecer, viajarei pelo mundo com a força de minhas asas, sem precisar de malas. Farei meu pouso onde bem entender. Devolverei, em forma de estrume, o que receberei da natureza como alimento, em qualquer lugar, sem ter que me esconder. Amarei ao ar livre, como sempre quis.

Nosso barco

Lília Gondim

O que podemos fazer, tio? Nada, além de viver.

O tio Vânia – Peça de Tchekhov

O ano começou feliz. Nosso barco corria leve e solto nas águas tranquilas, mar sob controle, ondas confiáveis, com muitas coisas a comemorar, apesar da difícil situação política do país. Minha sobrinha portuguesa, Juliana, e seu namorado Nuno, residentes na cidade do Porto, estavam desde janeiro em Olinda, em visita ao pai dela, meu irmão, provocando alegres encontros e passeios.

Logo na primeira dezena do mês, Paulinho fez aniversário, 70 anos, e organizamos, para surpresa dele, uma bela comemoração familiar animada pelos músicos Bozó e Beto do Bandolim.

Final de fevereiro, Momo nos reservou dias tranquilos e agradáveis na pousada onde costumamos, de uns cinco anos para cá, passar todos os carnavais: em Porto de Galinhas, frente para o mar, caminhadas, água salgada, comida boa, livros, rede e cervejinha gelada que ninguém é de ferro.

De saída pra Recife na Quarta-feira de Cinzas, deixamos uma reserva de dez dias, para o mês de maio, quando eu estaria de férias.

Março fez a nossa pequena embarcação balançar em águas revoltas. Tivemos a notícia triste das primeiras mortes provocadas pela pandemia de Covid-19, que transformaria o mundo nos meses seguintes num grande cemitério, com mais de 1 milhão e seiscentos mil mortos, sepultados sem direito a velório e com restrições à presença de familiares. Fato que, entre nós brasileiros, tornar-se-ia gravíssimo pela falta de uma política de saúde, que visasse o controle da doença e a preservação de vidas, além da presença predatória de um ignorante irresponsável no comando do país.

A partir daí nossas águas nunca mais foram tranquilas e transparentes e tivemos que tomar algumas precauções. Em primeiro lugar, fizemos descer do nosso barco a tripulação de apoio. Nossa secretária foi mandada para casa desde então, mantendo o salário até hoje. A faxineira foi dispensada e, por conseguinte, nós dois assumimos todas as tarefas da nossa embarcação: Faxina, cozinha, limpeza e arrumação diária, lavagem de roupa e louça etc.

Em seguida, foram cancelados todos os embarques de amigos e familiares, ficando nosso barquinho reduzido a conduzir apenas nós dois, dividindo o comando, os trabalhos e a vida, bem como os percalços da viagem, sem bússola, astrolábio ou carta de navegação.

Desembarques, só os extremamente necessários e em portos bem seguros, com atendimento individualizado e previamente agendado: dentista, consultório médico e, mais tarde, em setembro, alguns exames imprescindíveis com o mesmo cuidado.

Passamos a fazer todas as compras por entrega domiciliar e pagamento por transferência bancária ou cartão. Em nosso prédio foi proibida a subida de entregadores, a não ser o da água mineral. Passamos a descer de máscara e luvas para receber as compras e em seguida a lavar tudo. Nunca me imaginei antes dessa terrível crise sanitária lavando um pacote de Bombril ou um de batatas fritas! E o pior, literalmente, lavando dinheiro!

No começo do desastre, em março, achávamos que em julho tudo estaria terminado e a navegação voltaria ao normal. Que nada! Já em maio, as ondas cresceram lavando o convés do nosso barco e fiz o primeiro adiamento da reserva na pousada de Porto, para o mês de outubro, quando seria a minha vez de fazer 70 anos. Não deixaria de comemorar essa data. Amigas de Fortaleza e Porto Alegre já tinham se comprometido a estar presentes, com passagens já compradas.

Mas a tempestade foi grande. Fechou tudo: comércio, bares, restaurantes, praças, praias, hotéis, casas de festas; apenas supermercados, farmácias e padarias podiam funcionar, cumprindo certos protocolos; proibidas aglomerações; mandatos festivos de Santo Antônio, São João e São Pedro foram cassados; essas e outras medidas foram tomadas na tentativa de reduzir os danos causados pelo vírus. Recomendações oficiais de uso de máscara, higienização frequente das mãos com água e sabão ou álcool gel. E principalmente manter o distanciamento social. Muita gente não respeitou as regras e chegamos ao isolamento social obrigatório.

Em consequência das proibições e medidas restritivas, aqui no Estado foi atingido um certo controle; as mortes e os casos diminuíram bastante e chegamos a uma situação em que os governantes acharam que era seguro o retorno gradual das atividades econômicas, com redução semanal das restrições. Mas o povo entendeu tudo errado e se encontrou, se abraçou, se beijou, festejou, aglomerou, não usou máscara, lotou hotéis e praias, principalmente nos feriados que emendavam com os fins de semana.   Comentava-se nas redes sociais que “o povo em Recife não deixa de ir à praia nem com tubarão, que dirá com Covid, que não tem dente”. As pessoas acharam que, com a queda paulatina das restrições, a pandemia tinha acabado! Ou será que não estavam nem aí para a situação grave que se mantém até hoje?

No final de setembro fui obrigada a fazer o segundo adiamento, dessa vez para janeiro de 2021, da minha ida para Porto de Galinhas. As amigas cancelaram as passagens de avião. Não pude comemorar meu aniversário, o que não foi ruim de todo, por que no ano que vem, se eu estiver viva e o coronavírus morto, faço de novo setenta e economizo um ano.

Um trabalho importante que conseguimos realizar nesse período foi a reorganização da biblioteca do barco. Cadastramos e numeramos quase mil e quatrocentos volumes. Para doação ainda foram separados mais de cem livros. Ainda ficaram faltando cadastrar os componentes das categorias Arte, Técnicos e Romances Policiais.  O trabalho foi pesado, rendeu torcicolos e dores nas costas, mas valeu a pena.

A situação voltou a piorar em novembro. Aumentaram consideravelmente os números de casos e mortes. Hospitais e UTIs lotados e o povo na rua, sem máscara, disposto a enfrentar a Morte, enquanto eu, da solidão a dois do meu barquinho, torço por um novo fechamento da cidade e isolamento social obrigatório, mas, principalmente, torço pela chegada da vacina, única forma eficaz de proteção, rebaixada à cabo eleitoral pelo cidadão imbecilizado que dirige o país e seu Sinistro da Saúde.

Assustei-me um dia ao observar em outras embarcações, próximas à nossa, luzes piscando e enfeites natalinos. Puxa! Será verdade? Estamos em dezembro? Será possível um ano, que nunca foi, estar terminando?

No nosso barco de dois lugares, a navegação continua. Saudades dos filhos, netos, amigos, pesam no coração. Saudades de um barzinho e cerveja com os amigos. Saudades dos próprios amigos com os quais só nos comunicamos virtualmente. E saudades da tripulação de apoio para o bem do nosso descanso.

Em mim, particularmente, essa situação pesou e pesa. Gosto de pessoas, de gente, de beijar os filhos, chamegar com os netos. Às vezes fico meio depressiva. Choro à toa. Há meses não consigo bordar nem escrever. Interessante é que ideias não me faltam, mas não consigo concentração para sistematizá-las e transformá-las em histórias consumíveis. Me sinto numa espécie de “limbo literário”, tal e qual Garcia Márquez descreve em seu livro Viver para Contar. Não gosto muito de encontros pela tela do computador, apesar de achar válido para conseguirmos atravessar os abismos das separações necessárias. E assim, os viageiros do nosso grupo literário, nunca deixaram de reunir seu comboio marítimo todas as quartas-feiras, em um tranquilo e alegre porto virtual sob o Comando da Comodoro Lourdes Rodrigues, que da sua Nau Capitânia, garante o sucesso da aportagem das nossas pequenas embarcações. Importante manter a ideia contida no título do livro da Oficina Literária Clarice Lispector, o Escrituras VI, a ser lançado nos próximos dias, onde os viageiros entendemos perfeitamente que “todo abismo é navegável”, como bem ensina Guimarães Rosa. Apesar de não conseguir escrever, o isolamento social provocado pela pandemia me deu oportunidade de ler muito durante todo este ano. De janeiro até aqui li, entre leituras novas e releituras, 57 livros, o que dá em média mais de um livro por semana.

Paulinho e eu passaremos o Natal embarcados, como estamos há dez meses, olhando a noite do convés da nossa embarcação, acompanhados de um bom jantar e um vinho português e desejando que todos os amigos tenham um Natal o mais feliz possível e um Ano Novo com vacina anti-covid.

E já estou pensando em adiar pela terceira vez minha hospedagem na pousada, dessa vez para as próximas férias, em maio vindouro, porque, por enquanto, como um prevenido gajeiro, “não vejo terras de Espanha nem praias de Portugal*”.

Dez. 2020

*Do Romance da Nau Catarineta

Balanço Oficina 2020

Ana Amancio

 O que podemos dizer de 2020? Que foi um ano atípico? Que perdemos amigos e parentes? Que foi de muito sofrimento? E de muito isolamento?

Tudo isso e muito mais. Mas quem ama as palavras, tem salvação.

Na Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, todas as quartas-feiras. No inicio presencial no Traço, mas depois virtual e não fomos intimidados. Nossas tardes continuaram produtivas, criativas, enriquecedoras, de muito aprendizado e porque não dizer divertida.

Continuamos nossas leituras de autores diversos e de nossos escritos, a produção foi farta, até quem nunca fez poesia se arriscou!

Houve produção de uma novela de dois colegas.

Um livro de todo o Grupo em breve terá seu lançamento, on live, é claro.

Nossa comandante organizou, prefaciou, escreveu….  E uma equipe se empenhou nas incansáveis revisões.

E a capa, Ah! a capa, fico sem fôlego só em pesar, BELÍSSIMA, um artista plástico do grupo, nos honra novamente. Onde revela o ano difícil que tivemos e quantas turbulências atravessamos sem nunca recuar, para chegar ….

Ao Escrituras VI.

Balanço Oficina 2020

Everaldo Soares Júnior

Caros e Caras, atrasado, mas não fora de tempo, assim espero, o computador estava no conserto, mas vamos em frente.

As palavras que me vêm são de reconhecimento ao nosso trabalho na Oficina, durante esse ano. As leituras com os colegas, os debates sobre o que escrevemos, foram de grande importância para mim.

Nem esse ano atípico, de contato virtual, impediu que mantivéssemos um bom nível na produção de Escrituras VI, sob a competente coordenação de Lurdinha.

O balanço que faço, portanto, é bem favorável e incentivador para que continuemos esse trabalho prazeroso e profícuo em 2021.

Vamos, com o nosso entusiasmo, fazer o lançamento do nosso livro, contando com o empenho de cada um de nós para que ele, enfim, crie asas!

Feliz Natal e esperanças renovadas no Ano Novo.

Abraços,

AFINAL, FIZ UM BALANÇO?

                                                                                                        Graça Lins

Começo tomando emprestado um  verso de Bandeira.

“Quando eu tinha 6 anos de idade”…

Foi exatamente nessa idade que me inquietou a palavra “balanço”.

Meu pai era funcionário de uma loja de brinquedos. Daí, num mês de dezembro, ouvi dizer à minha mãe “vou ao balanço”. Com olhos interrogativos perguntei  “ e por que não me leva? É tão bom ir pra o balanço?”

Minha mãe sorriu e falou “ fazer balanço é fazer contas das coisas da loja”. Era ininteligível para mim…

Quando bem recentemente a nossa Nau foi estimulada a “fazer um balanço”, pensei em tantos momentos não vividos este ano mas que alimentaram os encontros virtuais.

Muitos grupos se desfizeram, muitos livros foram abandonados, muitos contatos desprezados, muitos zaps desativados, muitos projetos adiados.  Mas a nossa nau continuou a singrar os mares do sonho, da fantasia e da ficção.

Os viageiros… tão diferentes e tão iguais no amor à Literatura.

Manter um grupo tão diverso com um ideal comum a todos é uma Arte. A Comandante sabe disso.

Quando neste Natal recebi uma peça bordada por Luzia, um postal belíssimo de Salete, um LIVRO feito criativamente  por Fernando e Liza, e entregue com afeto, pensei e me certifiquei que a vida vale à pena em qualquer circunstância.

Assim, as nossas reuniões virtuais foram alimentadas pelos momentos vividos em nossos encontros e que guardamos em nossa memória como:

Os doces com sabor de infância que Adelaide nos presenteia,

As conversas ao pé do ouvido exigindo o sino da Comandante.

As deliciosas bolachas de Saramago.

O complicado tablet das irmãs Cacilda e Eleta, sempre atentas.

O cafezinho quente de Luciene no meio da tarde.

A cara marota de Formigão olhando as sobremesas de Ana.

As impecáveis saladas de Salete.

As considerações psicanalíticas de Junior

A leitura expressiva de Ricardo

As pertinentes intervenções de Luzia

A produção maravilhosa do casal  Lilia e Paulo.

A partilha amorosa dos textos de Fernando e Liza

O precioso cordel de Salomé.

A evolução na escrita de Mita.

Um carrossel de livros à espera de leitores.

E a fantástica programação de Leitura Literária conduzida por Lourdinha.

Em tempos da publicação de ORVIL (LIVRO ao contrário), sobre o qual ouvi assustadores comentários, continuaremos  a tomar a PALAVRA  e sua significância, criando personagens, cenários, conflitos, lendo e relendo, enfim, trazendo vida para nossas vidas.

Bom retorno para nosso grupo!

Bons textos em 2021!

 

Meu encontro com Clarice

A vida cheia de coincidências sempre me revelando segredos inestimáveis.

Nair Beder

Numa certa manhã do ano de 2019, num lugar inusitado (no caixa do Banco do Brasil) aconteceu uma conversa tão rica que mudaria para sempre minha vida.  Ali, pela amiga Ana Amâncio, eu soube da Oficina Clarice Lispector. O ano já estava terminando, ia ser lançado um livro e o convite já estava feito:  em 2020, já reservaria todas as quartas-feiras para entrar neste barco comandado por Lourdinha. No início fiquei reticente e me senti muito imprudente em aceitar tal convite. O medo me rondou muitas vezes por me lançar em tão desconhecidos mares quando mal conhecia as areias das praias. Mas fui assim mesmo: gosto de desafios.

No primeiro dia da Oficina, as apresentações, o coração apertado e batendo forte, ensaiei em casa as palavras com as quais ia dizer quem sou. Mas o encontro com velhos amigos, todos já antigos viageiros, me deixou quase em casa. Levei um caderno muito bem escolhido para a ocasião, mas qual não foi a minha surpresa quando a nossa Capitã, com seu jeito tão peculiar de observar as coisas falou: “aqui procuramos poupar as florestas e por isso damos preferência aos tablets ou ao kindle”. Guardei imediatamente o meu caderno e tratei de ressuscitar um velho tablet, há muito desativado.  Nos primeiros encontros me vali do amigo Sarmento que me disponibilizava a leitura em seu moderno equipamento. Procurava logo sentar-me junto dele. Mas isso durou pouco…  Após o carnaval, uma doença desconhecida e assustadora que logo tomou conta do mundo, nos impediu de continuar os nossos maravilhosos encontros presenciais. Mas isso não foi empecilho suficiente para fazer naufragar o nosso barco! Ao contrário: diante do inusitado momento, de todas as dores, sofrimentos, medos e toda sorte de imprevistos, continuamos firmes no nosso barco, que nos altos e baixos das ondas foi sempre muito bem guiado pela nossa Capitã que nos fez trabalhar como nunca, com uma tarefa em cima da outra, com leituras e mais leituras, numa sede quase insaciável de nos salvar a todos e conduzir nosso barco à calmaria de tempos passados. E ela venceu; e, também nós vencemos.

O nosso livro, fruto da dedicação de todos e da resiliência de nossa mestra, enfim vai chegar ao mundo.

 Para mim, uma iniciante no caminho das palavras, tentando a todo custo enfrentar o medo de uma folha em branco, esse momento não tem preço. E hoje, conversando com os meus botões, penso se teríamos feito o mesmo se não estivéssemos em circunstâncias tão adversas. Para mim, este momento, apesar de penoso e muito difícil, certamente nos marcará para sempre como um novo paradigma onde as pessoas poderão pautar suas vidas daqui por diante com mais afeto, cuidado e principalmente amor ao próximo, ao ter conseguido a certeza de que sozinhos não somos nada. Ou quem sabe isso apenas continuará a fazer parte da minha eterna utopia, agora renovada pela certeza de que a única coisa que nos salva é a nossa irmandade?

Serei eternamente grata a todos pelos momentos que passamos juntos nas nossas tardes, onde a fantasia e a vida real se confundiram a tal ponto, que muitas vezes flutuamos, mesmo durante os vendavais mais turbulentos, próprios de uma grande tempestade.

2020

Ricardo Braga

Literatura da boa, bom humor e interação nas quartas não são novidade na nossa Oficina. 2020 pegou a rampa dos anos anteriores e já ia deslanchando do jeito que a gente gosta. Eis que o vírus empatou a inércia dos bons ventos, nos atirando para fora da zona de conforto.

O jeito foi dispensar a vela e apelar para os remos. Vinte remadores no meio da tempestade. Foi preciso a timoneira tirar a bússola do bolso e orientar a navegação com comando firme. Slap, slap… síncronos, nas vozes e imagens pela internet, alguns ainda aprendendo a remar em condições adversas ao hábito.

Logo o barco apruma e segue o bom destino, agora com a boa literatura entremeando os dias, a ansiedade compensada pelo riso espontâneo no WhatsApp e a simpatia das quartas transformada em empatia, solidariedade e preocupação cotidiana com o outro.

Acredite, visto assim, ganhamos com a pandemia. Agora substituo, com ganhos, a palavra colega, de 2019, pela expressão meus amigos, de 2020.

A ESPERANÇA DE NOVOS TEMPOS

Eleta Ladosky

Certamente 2020 ficará na história da Humanidade como um ano doloroso! Mas a capacidade de resistência humana às adversidades ficou comprovada mais uma vez.

Em função dela, teremos em 2021 a esperança de retomada da nossa vida normal. A nossa Oficina de Criação Literária é mais um exemplo dessa resistência. Sob o comando da incansável e competente coordenadora Lourdinha demonstrou ser capaz, com reuniões virtuais, de uma produção literária maior que a dos anos anteriores e que barquinhos de papel carregados de palavras podem navegar no abismo. Muitos oficineiros, além de contistas e cronistas, tornaram -se também poetas.

O nosso livro, Escritura VI, organizado com zelo por Lourdinha, está chegando. E até uma novela sobre o tema universal da loucura, foi descrita surpreendentemente à quatro mãos por oficineiros, em capítulos alternados, de forma pitoresca e regionalista.

Que 2021 possa nos reunir de forma presencial.

Homenagem aos cem anos de Clarice Lispector

Clarice, a pobre /rica

Luzia Ferrão

Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. Assim falou Clarice e ficamos morrendo de inveja desta pobreza. Oh Clarice, esse anúncio nos enche de inveja (da boa, será?). Passados cem anos e esta pobreza, a cada leitura e releitura dos seus textos, enriquece nossa pobre e única alma.

Sou o que quero ser, porque possuo apenas uma vida e nela tenho a chance de fazer o que quero. Sabe Clarice, acho que entendi o que está escrito nesta frase. As pessoas mais felizes não tem as melhores coisas, elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seu caminho. Gostei, você mesmo respondeu e imaginei ela de fato aproveitou todas as oportunidades, caso contrário não teria deixado uma herança tão incomensurável. Coitado dos milionários que conhecemos, são tão pobres se comparados à nossa madrinha. Ela é tão rica que nos acompanha na riqueza e na pobreza, na beleza e na feiura, na tristeza e alegria.

Posso escrever, sonhar, fazer o que quiser, até escrever errado, mal escrito, como agora, porque ela outro dia me avisou: Sonhe com o que você quiser. Nunca sofra por não ser uma coisa ou por sê-la.

Infelizes e felizes seremos sempre. Buscaremos consolo e sua benção minha madrinha, sempre. Obrigada pela seu centenário.

Dezembro, segunda fase da pandemia. Ui.

Homenagem aos cem anos de Clarice Lispector

Singela homenagem a Clarice Lispector

Sempre gostei de ler, mas não sabia nada de literatura. Depois de dois anos na Oficina de Criação Literária Clarice Lispector aprendi a admirar não só o conteúdo, mas, sobretudo, a forma de escrever. Têm sido inúmeras descobertas. Quando me integrei ao grupo, eles haviam acabado de ler a Paixão Segundo GH. Eu conhecia Clarice só de nome e pelo amor que ela tinha pelo nosso Recife, onde passou a infância. Pena que a cidade não tenha, até hoje, correspondido a esse amor.  O primeiro livro que li dela foi justamente A Paixão Segundo GH. Confesso que o fiz sem parar, sem procurar entender. O forte fluxo de consciência me confundiu e porque não dizer, fundiu meus miolos. Aquilo me intrigou. A curiosidade sobre a escrita dela me fez continuar a ler seus livros. Li mais recentemente o seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem. Ela começou botando pra quebrar. É uma escrita ousada, singular, inconfundível. Continuei, estou lendo a Hora da Estrela, seu último livro. Encontro-me extasiada com a forma de contar a história da nordestina. Sim, desta vez tem uma história. Não tenho condições de falar mais sobre sua obra. Há muito caminho a percorrer. Deixo aqui minha singela homenagem à nossa conterrânea e madrinha da Oficina. Salve Clarice!

Elizabeth Freire

HOMENAGEM AOS CEM ANOS DE CLARICE LISPECTOR

Clarice, sua leitura

Salete Oliveira

                                                 A gente tem o direito de deixar o barco correr. As coisas se arranjam, não é preciso empurrar com tanta força.

Clarice Lispector

         

Sou leitora desorganizada, não guardo datas nem faço anotações, minhas memórias organizam-se em geral junto a outros acontecimentos… não sei quando nem onde li Clarice pela primeira vez, mas lembro o visceral impacto que foi ler A via crucis do corpo e da agonia de acompanhar Macabéa em A hora da estrela, da surpresa e dor que senti por sua morte, e da minha não aceitação.

          Li crônicas nas revistas ao tempo que saíam semanalmente; seu primeiro romance Perto do coração selvagem li recentemente.

          Da literatura infantil, lera à época de filhos na escola, A vida íntima de Laura. Ultimamente li A mulher que matou os peixes, proposto e disponibilizado pela colega Graça Lins, estudiosa da obra literária infantil de Clarice; interessante foi ler pela primeira vez junto com meu neto de oito anos, que fez sua análise crítica.

          Não esmiucei sobre sua vida, mas sempre soube ter morado em Recife em sua infância, onde se fez brasileira após aqui chegar estrangeira, onde viveu seus desejos de menina fantasiada à porta de casa para brincar um carnaval; de onde saía de madrugada à praia em Olinda. Ela se fez tão perto e tão próxima com sua casa ali na Praça, fonte à frente, a brincar nas ruas do Bairro da Boa Vista, a gente a passar na calçada e a se dizer, aqui morava Clarice Lispector. Esse pertencimento às ruas do Recife, tal Bandeira e João Cabral, Josué de Castro, nesse caminhar e atravessar as pontes do Recife, as mesmas que atravessamos, faz que ela também nos pertença e a ela nos refiramos como a uma vizinha.

          Vi uma peça sobre ela no Teatro Santa Isabel, Beth Goulart a incorporou em interpretação extasiante; rimos, nos encantamos, sofremos e choramos na platéia, adrenalina não faltou em sua vida, além de nicotina, como fumava!

          A paixão segundo G.H. ficou anos à espera de ser lido. Na Oficina de Criação Literária Clarice Lispector o lemos enfim em 2018, aceito após instigarmos o grupo, com viageiros divididos sobre sua leitura ou não. Eu sabia que era um livro para ser lido com a coragem de um grupo; foi essencial ter companhia para o ler junto, mesmo que da metade para o final viajei e o lia sozinha mas havia o grupo para discutir e me apoiar, trocar figurinhas mesmo que do outro lado do mundo.

          Em março de 2019, o colega Júnior enviou um presente por e-mail, um arquivo com Todas as Crônicas, que passei a ler devagarinho. Ah Clarice! não são apenas crônicas, são viagens ao interior, dela própria e nosso, passei a parar e me extasiar e muitas vezes a reler a mesma crônica ou trechos delas, refletir sobre memórias.

          Clarice passou a ser minha companhia diariamente quando deitava, de novo no Japão de setembro a dezembro/2019, como uma melhor amiga que nos ouve e nos ajuda a pegar no sono diante de tantas preocupações na cabeça em momentos difíceis. A me inspirar mais uma vez, como ser vivente, com suas dúvidas, ansiedades e agonias nas escolhas, com indignações diante do que se vê no mundo, ou enfados, retraimentos, incertezas, mas também encantamento diante do belo. Mas acima de tudo, com a fé no humano, na busca de si e ser quem se é, no caminho. Afinal, a vida é apenas uma, e muitas vezes há que se provar do que não se gosta e enfrentar o medo e seguir, seguir e seguir. És crê ver, escrever, deixar sair aos borbotões até se esvaziar das agonias e ter momentaneamente alguma paz, diminuir angústias, esvaziar a cabeça, matar a fome.

          Gratidão a Clarice, que nos inspira e nos dá essa permissão de escrever sobre o que seja, sem maiores cobranças de publicar ou agradar, escrever por necessidade.

HOMENAGEM AOS CEM ANOS DE CLARICE LISPECTOR

Notícias e Metáforas em Clarice Lispector

Fernando Gusmão

Só uma escritora diferenciada, por muitos comparada a Virgínia Woolf e a James Joyce, poderia se dar ao desplante de iniciar um romance com uma vírgula e terminá-lo com dois pontos. Como em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres:

, estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava o serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos[…]

Eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafada porque ele estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte:

Na Oficina de Criação Literária Clarice Lispector encontrei esse ser de mistério chamado Clarice. Autora diferente, sua escrita é dotada de ângulos, aspectos e faces mais que enigmáticas, misteriosas. Mistério! Ou charada? Textos herméticos, permeados por silêncios, numa alquimia linguística habitada por sentidos tácitos e quebras de regras, inclusive de pontuação, onde se procura um enredo e, em certas ocasiões, depara-se com um desenredo.

Muito já se falou e se escreveu sobre ela. O motor de busca Google informa mais de cinco milhões de páginas digitais que citam ou falam de Clarice. O que eu poderia dizer sobre ela que ainda não foi dito? Só posso afirmar que, do que já li de sua obra e das notícias que a mim chegaram, algumas ocorridos são marcantes. Por exemplo, minha sobrinha-neta Clarice, também neta da colega de Oficina Adelaide Câmara, tem seu nome numa homenagem de Roberta, a mãe, à notável escritora. Outra coisa, a obra de Clarice, mesmo não sendo fácil, teve, até hoje, mais de duzentas traduções para mais de dez idiomas. Universidades pelo mundo afora, com destaque para os Estados Unidos e Portugal, oferecem cursos sobre sua criação literária. Quem entende diz que três fatores explicam essa notável aceitação de Clarice Lispector por leitores estrangeiros: o substrato universal de sua literatura, sua atividade como jornalista e o trânsito internacional da autora.

Casada com um diplomata, falava sete idiomas e viajou muito. Morou em Nápoles, na Itália, na Suíça, na Inglaterra e em Washington, nos Estados Unidos. Sua atividade como jornalista e tradutora a levou a trabalhar no Jornal do Brasil, no Correio da Manhã, no Diário da Noite e nas revistas Senhor, Manchete e Fatos e Fotos. Escreveu quatorze romances, quase quinhentas colunas, publicou mais de cem textos e trezentas crônicas. Atuou, em 1952, no tabloide antigetulista Comício, com os pseudônimos de Tereza Quadros e Helen Palmer.

Considerava-se recifense, mas nasceu, a 10 de dezembro de 1920, em Chechelnyk, na Ucrânia e teve como nome Chaya Pinkhasovna Lispector. Chegou ao Brasil em 1922, entrando por Maceió, vindo, de lá, para o Recife, onde virou Clarice e viveu até os 14 anos num sobrado da praça Maciel Pinheiro, na Boa Vista. No conto Felicidade Clandestina conta a história de uma menina do Recife apaixonada por Monteiro Lobato. Aqui, fez o curso primário no Grupo Escolar João Barbalho e estudou no Ginásio Pernambucano. Depois, foi com a família para o Rio de Janeiro, onde cursou Direito.

No que diz respeito ao substrato universal de sua literatura, aprendi com Carlos Eduardo Pinto Carvalheira, no artigo A Literatura em Clarice e a Psicanálise em Lacan, que, ao analisar as epifanias na singularidade de Clarice, Joyce ou Lacan, focaliza também algo de essencial e comum que está presente na maioria das epifanias dos três, que são as metáforas de não suposição, ou de negação, também conhecidas como metáforas de colisão… Pode-se perceber que há algo de comum nas epifanias dos três: todos três falam epifanicamente – têm na língua o mesmo corte espantoso do Zen. Mas Clarice, no silêncio de sua estranha e poética língua – em carne viva, no Real, nos beija – nos beija divinamente… diabolicamente.

Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e, no entanto, vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão […]

               Cortes como estes, no meu entendimento, provocam a quebra da lógica racional evitando o comum, o usual, o concordante. Despertam o leitor para uma iluminação súbita ou cheia de graça. Como o palhaço engraçadamente faz rir a criançada —e alguns poucos adultos— quando, ao caminhar, tropeça nos próprios pés e cai, epifanicamente, de cara no chão, exemplo maior de uma metáfora de colisão.

Só que, lembra, ainda, Carlos Eduardo Pinto Carvalheira:

            Clarice escreve com o corpo sangrando de angústia – em carne viva. A epifania de Clarice não tem como objetivo a felicidade, mas sim a iluminação súbita de sua verdade avassaladora, em contraste com a futilidade da vida.

HOMENAGEM AOS CEM ANOS DE CLARICE LISPECTOR

Clarice Lispector
Fonte: Wikipédia

A Escritora e a Dona de Casa

Everaldo Soares Júnior



De Clarice, não sei dizer tantas coisas sobre a sua vida. Mas as notícias de conversas, de documentos escritos sobre ela chegam ao meu conhecimento de qualquer maneira. Sei que a vida dela foi bastante singular e as biografias sobre ela poderiam me aproximar mais dos seus livros, que gosto tanto de ler.


Não sei que distância é essa que procuro, ficar lendo seus romances, seus contos, suas cartas e até suas entrevistas, tudo isso é mesmo uma fascinação. A vida ingênua de Macabéa, li e reli várias vezes, não me conformo com aquela cartomante, que poderia lhe ter oferecido um destino melhor. De Água Viva, o chamado meta-romance, reli vários parágrafos, ora apreciando sua criação literária, ora questionando construções conceituais que me levam à dimensão lacaniana do Real. O estranhamento não está presente somente no desafiante Paixão Segundo G H, perpassa em grande parte da sua obra, a tensão e a surpresa são inevitáveis.


Imaginar Clarice e seu mundo, às vezes me surpreende mesmo, penso nela como uma dona de casa nos seus afazeres. Com discrição e devagar, entro na sua casa furtivamente, sem me deixar perceber e a encontro com um vestido simples, de sandálias, sem lenço na cabeça, nem no pescoço, estendendo as roupas lavadas no varal. De volta para a sala, passa na cozinha, mexe a panela do feijão com uma colher de pau e experimenta o sal. Pega no balcão o que parece frango temperado e coloca no forno. Na mesa da sala, seus dois filhos e mais uma menina da vizinha, fazem os deveres de casa. Ela olha o que as crianças estão fazendo, diz algumas coisas, sem interromper os estudantes. Senta-se na poltrona junto ao sofá. Na mesinha do lado, pega a sua máquina de escrever e a coloca no colo, ajeita o papel, relê as poucas páginas amontoadas que já foram escritas, fica parada, pensando, rabisca com o lápis algumas anotações, que me parecem breves. Volta para a máquina e recomeça a escrever, tocando as teclas num ritmo cadenciado, acompanhado da atenção do seu olhar.


Puxa vida, queria saber o que ela está escrevendo, mas a distância não me permite. Agora, tenho que ir embora, vou sair do mesmo jeito que entrei, sem que ninguém me veja.  

Já no meu gabinete, paro de viajar com esses pensamentos invasivos. Na estante, pego o Legião Estrangeira, abro e o coloco no suporte, ligo a minha câmera de leitura e aterrisso nos escritos de Clarice.

João Pessoa, 10 de dezembro, Dia dos Direitos Humanos, 2020.