A RODA DA ESCRITURA

PSICANÁLISE, ARTE E LITERATURA

Lourdes Rodrigues

Com este texto pretendo trazer alguns elementos para discutir a relação da arte, mais especificamente da literatura, com a psicanálise.Usei como meu fio condutor o livro de Philippe Willemart, OS PROCESSOS DE CRIAÇÃO – NA ESCRITURA, NA ARTE E NA PSICANÁLISE. Autor de formação literária e psicanalítica, professor titular em literatura francesa na USP, coordenador científico do Laboratório do Manuscrito Literário (LML) e do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Critica Genética (NAPCG), ambos na USP, publicou várias obras aqui e no exterior, além daquela que estou trazendo, cito ainda Escritura e Linhas Fantasmáticas, Além da Psicanálise: a Literatura e as Artes e De l’ínconscient en litterature, entre outras.

Philippe Willemart diz que o advento da psicanálise trouxe muitos questionamentos para as categorias literárias. A primeira e grande questão sempre levantada é: quem escreve a obra, o escritor ou o autor? E ele cita Jacques Derrida que declarava não haver sujeito da escritura se entendemos por isso “qualquer solidão soberana do escritor”. Mais esclarecedor Willemart complementa: o sujeito da escritura é um sistema de relações entre as camadas: do bloco mágico (analisado por Freud), do psíquico, da sociedade, do mundo.

De acordo com a sua concepção, quem começa a escritura não é quem entrega o manuscrito ao editor. Nesse percurso duas instâncias logo se distinguem, a do escritor e a do autor que se opõem no tempo e na escritura. Além delas, mais outras três participam da roda da escritura: a do scriptor, a do narrador e a do primeiro leitor. Todas elas identificadas segundo o verbo definidor da ação do sujeito no processo da escrita.

A roda da escritura apresenta as seguintes instâncias:

– O escritor observa – primeira etapa da formação das idéias. Mais do que observar ele sente, afirma Willemart, A qualidade do artista se define mais por seu sentir do que por seu raciocínio.

– O scriptor inscreve – Na etapa seguinte, uma idéia simples ou uma representação na língua do escritor, vinda da observação, se transforma em imagem de si mesma, isto é, entra na linguagem, torna-se idéia complexa e é inscrita pelo scriptor que traça uma marca no papel, a partir da qual o narrador escreve e conta. (…) a partir desta primeira inscrição, o mundo se torna apenas representação, não tendo mais relação com a realidade, as idéias não representam mais as coisas, elas se representam entre si…

– O narrador conta – centralizando o foco narrativo e cedendo ou não a palavra ao personagem. O narrador está mais ligado ao imaginário lacaniano.

– O primeiro leitor relê e rasura – suspende o que o scriptor, a serviço da linguagem, e o narrador, pressionado pela tradição e pelos terceiros, propõem, agindo antes da intervenção do autor.

– O autor confirma – recusa ou aceita, rasura ou prescreve a proposta do narrador, suspensa pelo primeiro leitor, decidindo a escritura final. O autor começa a surgir com a primeira rasura e quanto mais o texto é rasurado mais se distancia do escritor e dá lugar à lenta formação do autor. Assim, o autor é fruto da escritura e não o seu pai.

Essas são as cinco instâncias da escritura e elas agem, cada uma por sua vez, em uma roda constante, construindo a obra literária.

Para Willemart, a instância do autor ao rascunhar e destruir o que surge livremente à cabeça do escritor entra em um processo de negação ou de denegação das origens… Apesar disso, diz ele, a rasura não se define somente como a negação do passado e da filiação, mas como a porta de entrada do futuro e da criação. Nabokov diz que a obra de arte é invariavelmente a criação de um mundo novo, de modo que a primeira coisa que devemos fazer é estudar esse mundo novo tão de perto quanto possível, abordando-o como um objecto inteiramente novo, sem nenhuma relação óbvia com os mundos que já conhecemos.

A dimensão dessa labuta, rasurar, escrever, rasurar, escrever de novo, rasurar … em Flaubert, principalmente na elaboração de Madame Bovary, foi de um sofrimento indizível, ainda que ele o dissesse muitas vezes, é como se exigisse dele um irrevogável adeus à vida, um circuito sisifeano, diz Roland Barthes. Flaubert deixou 4500 fólios rasurados na elaboração daquele romance que contém apenas 470 fólios na última versão. Aqui Philippe Willemart pergunta o que poderia ser a rasura no gabinete do analista. Ele diz serem as pontuações do analista que obrigam o analisando a bifurcar, se deixar levar por outras palavras ou expressões, por outros rumos para contar sua história e se dizer de outro modo. Em outras palavras, o analista ocuparia na roda da escritura (análise) o papel do primeiro leitor.

A rejeição de palavras, parágrafos, até de capítulos, para Philippe Willemart sugere a formação do sujeito freudiano que, por um processo inconsciente de rejeição e de aceitação, se libera ou aceita qualidades ou maneiras de viver e de pensar provenientes de familiares.

Sem dúvida, a escrita desvela as cercanias do escritor, a tradição, a vida, os fantasmas, o pensamento, a ideologia, os preconceitos e, principalmente, a luta agonista para romper com tudo isso, romper com o passado, romper com o seu tempo, transcendendo-o pela criação de um novo estilo poético que lhe dará nova identidade, uma identidade móvel, porque ele, sujeito atravessado pela linguagem, vai querer seguir adiante, em busca de outros escritos inéditos, sempre, sempre conduzido por esse gozo, por esse grão. Este grão ou pedaço do real, para Willemart, citando Lacan, poderia ser identificado ao Outro, que conduz o jogo, levando o escritor a se dizer, a se dessubjetivar ou a se perder. E Ele conclui o pensamento dizendo: Como o inconsciente aparece e desaparece, dá um sentido a um significante e some, até reaparecer em outro momento do discurso, dançando de lapso em lapso, de sonho em sonho ou, mais intensamente, no discurso associativo no divã, assim a escritura literária se constitui no decorrer das idas e vindas da mente do escritor ao manuscrito, por sua mão.

DUAS DAS QUESTÕES LEVANTADAS PELO AUTOR RELACIONANDO ARTE E PSICANÁLISE

1 – Escrever, pintar, esculpir ou inventar uma obra substitui uma análise?

Philippe Willemart começa dizendo que essa questão merece uma resposta ampla, mas que o seu resumo poderia ser o seguinte: enquanto a análise possibilita que o analisando abra seu mundo desconhecido, a prática da arte abre o artista para o “novo” no mundo, incluindo ou não a sua trajetória pessoal. E arremata:

A arte não substitui a análise, nem a análise a arte, mas ambas usam uma linguagem específica, centrada no sujeito através do imaginário, para tentar arrancar um pedaço do real e simbolizá-lo. (Aqui ele coloca uma nota dizendo que Lacan distingue o sujeito analisado do sujeito submetido às pulsões no Seminário, Livro XIV, A lógica do Fantasma, mas não refere o artista).

Sérgio Scotti diz que Lacan ao comentar Hamlet afirma que a obra de arte, no caso a arte escrita, não é uma transposição ou sublimação da realidade. A arte não é paralela à ordem simbólica que estrutura a realidade humana: ela é transversa, pois tem a natureza de um corte. E o que aparece, o que se constitui nesse corte é o sujeito. E é nesse corte que o Real do sujeito se manifesta.

2 – Se todo artista pode ser psicótico, perverso ou neurótico, o que o distingue do não artista?

A resposta de Phillipe Willemart é que o primeiro enfrenta o real, enquanto o segundo sofre ou padece do real.

E então ele apresenta dois exemplos que ilustram sua proposição. A primeira delas foi extraída da dissertação de mestrado – examinada por ele – de Cristiane Brito Uma escritura em Processo: Joaquim Aguiar; e a segunda, retirada de Lacan.

a) A dissertação de mestrado

A terapeuta (Cristiane) analisa os escritos de um psicótico, Joaquim Aguiar, que escreve sob a inspiração direta de Deus. Ela constatou a repetição do conteúdo em versões aparentemente diferentes. Nas entrevistas com o paciente ela lhe mostrou que poderia melhorar seus textos. Para sua surpresa, ele aceitou a sugestão e escreveu várias versões e publicou seu texto.

ANÁLISE

Para o autor, a terapeuta simplesmente sugeriu uma instância a mais que não existia entre o escritor (Joaquim) e o seu inspirador (Deus): a instância do primeiro leitor, a que lê, rasura, retoma e acrescenta.

O paciente conseguiu, após várias entrevistas, produzir uma obra não repetitiva. Isso aconteceu não porque ele encontrou na entrevistadora-terapeuta um scriptor, o instrumento da escritura, nem um narrador, aquela voz que conduz a narrativa, nem um autor, aquele que conclui e não volta mais atrás, mas a instância que manda o escritor reler sua página e reunir os trechos em um certa lógica, a de primeiro leitor.

Insatisfeito com a escrita, o primeiro leitor retoma a função de scriptor com coragem e re-escreve. A nova instância aliviou o paciente do peso do real, representado pela figura de Deus, e lhe permitiu enfrentá-lo.

Normalmente, o que leva a ação do primeiro, segundo ou terceiro leitor é o desejo de responder a uma demanda que pode ser formulada por vários interlocutores e à qual o escritor-leitor tenta e quer adequar-se. Desde uma visão estética, ética, códigos de escritura, movimento literário até requisitos do editor, agente literário, marchand.

Nesse caso, o que mobilizou a terapeuta foi o seu descontentamento com a escrita de Joaquim, ela queria mais, queria uma escrita melhor.

Philippe Willemart em sua análise diz que a terapeuta operando na transferência, se colocou na rota do desejo do paciente, ocupou o lugar do grande Outro e enxertou nele a instância faltante. Ela conseguiu em primeiro lugar descolar Joaquim de sua escritura ou de sua primeira campanha de redação, que ele considerava definitiva, separou o pequeno “a” do grande A que está sempre por trás, mas que nele estava aglutinado ou indiferenciado por força da disposição psíquica ou pela psicose. Nessa etapa, Joaquim deixou de ser psicógrafo ou transmissor da vontade de outro – Deus, deus ou uma entidade supranatural –, distanciou-se de Schreber ou de outros iluminados e não ficou mais inspirado por uma musa, como pretendiam os românticos.

Continuando a análise, Willemart afirma que o passo seguinte dado por Cristiane, ou talvez mesmo acontecido simultaneamente, consistiu em introduzir a dimensão do tempo no trabalho artístico dele, insistir no processo de escritura ou na necessidade de trabalho na confecção de uma obra de arte e permitiu um jogo muito mais ágil e prolongado entre as quatro instâncias citadas anteriormente; os mecanismos da escritura podiam rodar. Cravando a instância de primeiro leitor ou a dimensão temporal que se opõe à dimensão divina ela tornou o trabalho dele im-perfeito ou perfectível, o que é a marca do homem. Ou ainda, aceitando que escrever supõe uma ação se desenvolvendo ou se fazendo, o que os lingüistas chamam “aspecto do verbo”, Joaquim passou de uma identificação com uma divindade para uma identificação com o homem, assumindo a autoria de seus trabalhos ou a “responsabilidade de seu próprio fazer”. Agente consciente desse movimento, Cristiane ativou a dimensão inconsciente desse desejo de resposta às exigências do grande Outro.

Aqui Willemart procura esclarecer que o sujeito do inconsciente que liga o texto inscrito na mente é “teleguiado pelo desejo, não do grande Outro, mas para o grande Outro, como se buscasse um rumo, uma resposta, uma barreira à morte. É mais um ingrediente importante e coerente com a dimensão temporal: a obra de arte, ao mesmo tempo em que precisa da finitude decorrente da flecha do tempo, se quer obstáculo à morte, ou melhor, véu impedindo sua visão. Introduzindo o processo no trabalho de Joaquim Aguiar, a terapeuta inseriu quase automaticamente a morte e a finitude, “desdivinizou” ou laicizou sua postura.

O autor conclui afirmando que o trabalho de Cristiane permitiu a ele entender que conceitos inventados para interpretar e entender o movimento da escritura nos manuscritos – conceitos de scriptor, narrador, etc – são instrumentos muito importantes para entender não só o tratamento de pessoas como Joaquim, mas o modo como funciona a mente. Cristiane, no papel de primeira leitora, revelou-se capaz de analisar os escritos de Joaquim, ao reunir as diferentes formas discursivas e considerá-las palimpsesto, “cada texto agindo como uma rasura sobre o outro”.

b) – Exemplo retirado de Lacan

O autor se refere a um artigo de Lacan, publicado em 1933 na revista surrealista Le Minotaure, em que ele reflete sobre a criação artística. Nesse artigo, O Problema do Estilo e a Concepção Psiquiátrica das Formas Paranóicas da Experiência, que depois foi anexado à sua tese, por ocasião da publicação, Lacan argumenta que, no artista paranóico, “o valor de realidade não é de jeito nenhum diminuído pela gênese que os exclui da comunidade mental da razão”. E dá como exemplo Rousseau, autor de Contrato Social e outras obras importantes (Emílio, Discurso sobre as Desigualdades, entre elas) diagnosticado “como paranóico típico, mas que deve a sua experiência propriamente mórbida à fascinação que exerceu sobre seu século, por meio de sua pessoa e de seu estilo”. Lacan conclui que é possível conceber a experiência vivida paranóica e concepção do mundo que ela gera, como uma “sintaxe original, que contribui para afirmar, pelos laços de compreensão que lhe são próprios, a comunidade humana. O conhecimento dessa sintaxe nos parece uma introdução indispensável à compreensão dos valores simbólicos da arte, e especialmente aos problemas do estilo”.

O que significa dizer que nem a psicose, nem a neurose, nem a perversão são indispensáveis ao artista, mas se esses aspectos da psique se manifestam no ser humano com sensibilidade artística, não impedem a arte de surgir. Em outras palavras, diz Willemart, o verdadeiro artista, mesmo psicótico, consegue se fazer instrumento do desejo do Outro. E cita frase de Lacan em O Seminário, Livro 23, O Sinthoma: “Ser louco não é, portanto, um privilégio”. E Willemart acrescenta: Ser artista é ser suficientemente sensível ao real, ou melhor, padecer suficientemente do real para, como reação, imaginarizar o simbólico vigente e reconstituí-lo com o pedaço de real, arrancado do real.

 

*O GRÃO

O GRÃO

Lourdes Rodrigues

 

A literatura é uma fatia do espírito do tempo em busca de quem lhe dê relevância simbólica.Os escritores, seres mais propensos ao contágio, não escrevem para se curar e sim para afirmar sua própria anormalidade. [1]

Em qualquer entrevista a um escritor de romances está a célebre pergunta sobre o seu processo de criação. Ao tentar saber o segredo que envolve tal processo, o entrevistador, representando o leitor que ele é e os outros que o lêem, busca nas pegadas que o entrevistado deixa cair, muito mais do que traçar o percurso por ele percorrido para a construção da sua obra. Na verdade, é a expressão do seu estilo, entendido este como marcas do sujeito no discurso, a essência do sujeito que escreve, seus pensamentos, a forma de ver o mundo. que numa atitude de certa forma voyeurista ele tenta espreitar.

 Saramago diz que o leitor é movido pela secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir dentro do próprio livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que é o autor. E acrescenta, o romance é uma máscara que oculta e ao mesmo tempo revela os traços do romancista [2]. Na defesa do seu pensamento cita a famosa frase de Flaubert: Madame Bovary, c’est moi, que ele não acredita ter sido motivada pelo desejo de chocar a sociedade do seu tempo, mas de arrombar uma porta desde sempre aberta.

 Lacan, ao comentar Hamlet, segundo Sérgio Scotti,  diz que a obra de arte, no caso, a arte escrita, não é uma transposição ou sublimação da realidade. A arte não é paralela à ordem simbólica que estrutura a realidade humana: ela é transversa, pois tem a natureza de um corte. E o que aparece, o que se constitui nesse corte, é o sujeito. E é nesse corte que o Real do sujeito se manifesta. Scotti diz que o sujeito do desejo inconsciente é o sujeito dessa fala, e mais uma vez procura apoio em Lacan quando este se refere ao fantasma, no qual o sujeito tem acesso a seu desejo embora este lhe esteja interdito na dimensão do próprio corte, pois aí está seu inconsciente[3].

 Não pretendemos analisar o desejo de um autor no processo de criação por puro fetichismo literário. Neste momento, o farol está direcionado para as possíveis suposições teóricas que poderemos fazer, a partir dos rastros deixados por ele nessa construção, na tentativa de decifrar alguns significantes da criação literária.

 Poucos escritores deixaram marcas tão nítidas das suas caminhadas quanto Gustave Flaubert. Mario Vargas Llosa confessa ter comprado, com seus parcos recursos de jovem escritor, treze volumes contendo as cartas do autor francês, denominada Correspondance. Tesouro imensurável, junto com a sua obra, para escritores, geneticista da escritura, ou simples leitores capturados pela armadilha das suas palavras.

 Para efeito deste trabalho recorremos a Madame Bovary, uma das obras mais perfeitas da ficção poética no dizer de Nabokov,[4] e algumas cartas do autor para a sua amante Louise Colet. O objetivo é buscar paralelo entre o processo de criação de Flaubert e o trabalho do sonho apresentado por Freud, usando uma analogia comparativa da estrutura dos pensamentos do sonho com as metáforas e metonímias presentes no romance, tão bem utilizadas por Flaubert, para dar tratamento elíptico e delicado ao tema do erotismo.

 O sonho e a obra de arte são cortes transversos da realidade. O sonho é a busca de realização de um desejo; a arte constitui-se ela própria causa de desejo. Tal como o objeto a  de Lacan, no dizer de Scotti, contem ela mesma a falta, a castração, nem que seja pelo que nela contém, a negação da castração quando o herói realiza aquilo que o autor apenas sonha ou fantasia[5].

 Na Interpretação dos Sonhos Freud diz que as tentativas de solucionar o enigma dos sonhos fracassaram porque partiram do seu conteúdo manifesto, tal como o lembrava o sonhador. O diferencial da sua análise fora a inclusão de uma nova classe de material psíquico, o conteúdo ‘latente´, os chamados ‘pensamentos do sonho[6], pois é do pensamento do sonho, e não do seu conteúdo manifesto, que se depreende o seu sentido. E mais, o conteúdo do sonho é como uma transcrição dos pensamentos oníricos em outro modo de expressão cujos caracteres e leis sintáticas é nossa tarefa descobrir, comparando o original e a tradução[7]

 Continuando a sua análise Freud diz que a primeira coisa que se torna clara para quem quer que compare o   conteúdo de um sonho com os pensamento oníricos é que ali se efetuou um trabalho de ‘condensação´ em larga escala. Os sonhos são curtos, insuficientes e lacônicos em comparação com a gama e riqueza dos pensamentos oníricos[8].  Outra constatação dele foi: no trabalho do sonho está em ação uma força psíquica que, por um lado, despoja os elementos com alto valor psíquico de sua intensidade, e, por outro, ‘por meio da sobredeterminação,´ cria, a partir de elementos de baixo valor psíquico, novos valores, que depois penetram no conteúdo do sonho. Assim sendo, ocorrem ‘uma transferência e deslocamento de intensidade psíquicas no processo de formação do sonho, e é como resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do conteúdo do sonho e o dos pensamentos do sonho[9].A condensação e o deslocamento são fatores dominantes na formação do sonho. Sob o efeito do deslocamento, o conteúdo perde a semelhança com o núcleo dos pensamentos do sonho, distorcendo, assim, o desejo que existe no inconsciente, pelo efeito da censura exercida por uma instância psíquica sobre outra.

 Na criação literária talvez devamos chamar de formações substitutivas às deformações ou desvios do conteúdo latente. Pela censura, a castração se expressa continuamente na impossibilidade do desejo de vir à tona, manifestando-se por vias indiretas, por seus substitutos metafórico e metonímicos. Nessas variantes o autor encontra formas de expressão, ou  segundo o dizer de  Scotti, de realizar mesmo, como diz Lacan, o seu Real, ou, enfim, seu desejo que expressa, por sua vez, tanto a falta-em-ser quanto a falta cometida contra a lei[10].

 Nenhum tema foi tratado com tanta beleza, tanto primor e numa dose e distribuição tão perfeitas como o erotismo em Madame Bovary, o sexo está na base do que acontece, diz Mario Vargas Llosa.[11] Entretanto, o puritanismo da época e o receio de irrealidade levaram Flaubert a usar de grande maestria para trazer o sexo à narrativa e ao mesmo tempo deixá-lo oculto aos censores de plantão. Gesto inútil, Flaubert foi levado aos tribunais pela imoralidade do seu romance.

No episódio do primeiro encontro amoroso entre Ema e Rodolfo, o bosque de outono deixa de ser simples cenário da narrativa para transformar-se na metáfora de um ato sexual total, pela combinação de cores, sons e dos personagens.  A cena[12]:

          Caíam as sombras da tarde. O sol poente, atravessando os ramos, ofuscava os olhos da moça. Aqui e ali, à sua volta, nas folhas ou pelo solo, tremiam manchas luminosas, como se colibris tivessem espalhado suas penas, ao voar.

         O silêncio era geral. Alguma coisa de doce parecia emanar das árvores. Ema ouvia o coração, cujo palpitar recomeçava, e o sangue circular pelo corpo como um rio de leite.

         Então, ela ouviu, muito longe, para lá do bosque, sobre as outras colinas, um grito vago e prolongado, uma voz que se arrastava; e ouviu em silêncio, a confundir-se, como uma música, as derradeiras vibrações de seus nervos abalados.

 Ao escrever a cena, Flaubert trabalhou doze horas seguidas, fazendo pausa de vinte e cinco minutos para comer alguma coisa. Ele confessou para Louise Colet que estava sentindo tão profundamente o que minha heroína estava experimentando…[13] que quase teve um ataque de nervos, com a cabeça aturdida, levantou-se e saiu cambaleando até a janela e permaneceu assim, respirando a brisa do rio, até se acalmar.[14]. O esforço o exauriu completamente.

 Na linguagem, a metáfora consiste, por princípio, na designação de alguma coisa por meio do nome de uma outra coisa, por similaridade semântica ou homofônica. Assim, toda metáfora traz em sua essência uma comparação, embora os elementos gramaticais comparativos estejam ausentes. Nos processos inconscientes, todavia, as similaridades são encontradas em possíveis associações, como no caso do sonho em que o seu conteúdo manifesto é curto, insuficiente e lacônico, se comparado com as várias possibilidades do seu conteúdo latente. O processo de condensação no sonho desenvolve-se de maneira análoga aos processos metafóricos da linguagem. Joel Dor trazendo formulação de Lacan sobre a matéria: diz que a metáfora é uma substituição significante. Na medida em que a metáfora mostra que os significados extraem sua coerência unicamente da rede dos significantes, o caráter desta substituição significante demonstra a autonomia do significante em relação ao significado e, por conseguinte, a supremacia do significante[15]

 Na cena do bosque, a metáfora enseja a idéia do ato sexual, mas para escapar à descrição explícita, Flaubert por meio de um processo de deslocamento metonímico da linguagem, no qual presentifica a analogia que permite  a transferência de denominação, descreve a cena sem se referir a ela, permitindo que o leitor saiba o que aconteceu, sem jamais ter lido a narração dos fatos.. Toda metonímia é efeito de uma operação metafórica interrompida por ação de recalque, assim como toda metáfora é efeito de uma operação metonímica[16].

 Mas o clímax erótico de Madame Bovary não está na cena do bosque, e sim no episódio da carruagem, no interminável trajeto realizado pelas ruas de Rouen, quando Ema se entrega pela primeira vez ao seu segundo amante, Léon, um hiato genial, no dizer de Mario Vargas Llosa, um escamoteio que consegue dar extremo relevo ao material ocultado ao leitor[17]. Vejamos a cena[18]:

            — Ah! Léon!… Realmente… não sei… se deva!…

               Fez um trejeito. Depois, com ar sério:

              — Isto é uma grande inconveniência, sabe?

              — Por quê? — replicou o escrevente. — Isto se faz em Paris!

             E estas palavras, como argumento irresistível, decidiram-na imediatamente.

             Mas o fiacre não aparecia. Léon temia que ela tornasse a entrar na igreja. Enfim, apareceu o fiacre.

            — Saiam ao menos pelo portal do norte; gritou-lhes o Suíço, que ficara no limiar — para ver a Ressurreição, o Juízo Final, o Paraíso, o Rei Davi e os Condenados nas labaredas do inferno.

               — Aonde quer ir o senhor? — perguntou o cocheiro.

               — Onde você quiser! — respondeu Léon empurrando Ema para dentro do carro.

               E, ato contínuo, pôs-se a caminho a carruagem.

               Desceu a rua da Ponte-Grande, atravessou a praça das Artes, o cais Napoleão, a Ponte Nova, e parou de repente diante da estátua de Pedro Corneille.

               — Continue!— ordenou uma voz de dentro do carro.

               O fiacre saiu da grade e, alcançando logo a Alameda La-Fayette, desceu rapidamente a rampa, e entrou a galope na gare da estrada de ferro.

               — Não, não; continue direito!—gritou a mesma voz.

               O fiacre saiu da grade e, alcançando logo a Alameda, foi trotando suavemente, por entre os grandes olmeiros. O cocheiro limpou a cara, entalou entre as pernas o chapéu de oleado, e guiou o fiacre fora das contra-aléias levando-o para a beira da água, próximo da relva.

               Foi indo pela margem da ribeira, seguindo o caminho de sirga cheio de calhaus soltos, e por muito tempo do lado d’ Oyssyel, para além das ilhas.

               De repente, porém, lançou-se numa corrida através de Quatremares, Sottevile, a rua Larga, a rua d’Elbeuf, e fez sua terceira parada em frente do Jardim das plantas.

               – Vá andando! — exclamou a voz com ainda maior fúria.

               E continuando logo a corrida, passou por Saint Sever, pelo cais dos Curtidores, pelo cais das Medas, outra vez ainda pela ponte, pela praça do Campo de Marte e por detrás dos jardins do hospital, nos quais uns velhos de roupas pretas andavam passeando ao sol, num terraço todo verdejante de heras. Subiu depois o bulevar Bouvreuil, percorreu o bulevar Cauchoise, em seguida todo o Monte Riboudet até a encosta de Deville.

               Retrocedeu em seguida; e então, sem destino nem direção, ao acaso, foi vagabundeando. Viram-no sucessivamente em Saint-Pol, em Lescure, no monte Gargan, na Rouge-Mare e na praça do Guillardbois; na rua Maladrerie, na rua Dinanderie, em frente a Saint-Romain, Saint-Vivien, Saint-Maclou, Saint-Nicaise, em frente da Alfândega, – na atarracada Torre-Velha, nos três Cachimbos e no Cemitério Monumental. De vez em quando, o cocheiro lançava da almofada olhares desesperados às tabernas. Não podia compreender que furor de locomoção era aquele que levava os seus fregueses a não quererem parar. Tentou por várias vezes; mas logo ouvia atrás de si exclamações de cólera. Fustigava então o mais que podia os pobres animais, que escorriam suor, sem se importar com os solavancos, esbarrando ora aqui, ora ali, desorientado, quase chorando de sede, de fadiga e de tristeza.

               E no cais, entre fardos e barricas, nas ruas, parados às portas, os burgueses abriam muito os olhos, ante aquela coisa tão extraordinária na província: uma carruagem, com as cortinas descidas, e que reaparecia continuamente, mais fechada que um túmulo e balouçando como se fosse um navio.

A certa altura, no meio do dia, em pleno campo, quando o sol dardejava com maior intensidade contra as velhas lanternas prateadas, uma mão nua saiu por entre as cortinas de pano amarelo e jogou pedacinhos de papel, que se dispersaram ao vento e foram cair mais longe, como borboletas brancas, num campo de trevos vermelhos, todos em flor.

Afinal, lá pelas seis horas, a carruagem parou numa viela do bairro Beauvoisine e desceu dela uma mulher, que se foi, com o véu baixo, sem olhar para trás.

O mais surpreendente nesta cena, segundo Llosa, o mais imaginativo episódio erótico da literatura francesa, é que, em nenhum momento há qualquer alusão ao corpo feminino, nem uma palavra de amor, e seja unicamente uma enumeração de ruas e lugares, a descrição das idas e voltas de um velho carro de aluguel.[19]

Esse procedimento, tão comum em Flaubert, marca o seu estilo. Ao se fazer o paralelo com o trabalho do sonho, vê-se  que por um efeito de deslocamento de sentido, através de linguagem metonímica, a significação do ato sexual é transferida para a descrição de uma carruagem mais fechada que um túmulo e balouçando como se fosse um navio a percorrer com frenesi as ruas de Rouen, comandada por uma voz que sai do seu interior numa fúria assustadoramente crescente e a impede de parar.

Para Scotti, a razão do deslocamento, do desvio de sentido nos fala dos fantasmas de Flaubert e remete à cena primária em que os pais copulam diante do espectador que a descreve para nós, copulam diante de nós, para nosso deleite, seduzidos pela bela forma em que a cena nos é apresentada e que, ao mesmo tempo, nos protege de nos reconhecermos nesta cena da qual fazemos parte, nem que seja como excluídos e, por isso mesmo, desejando dela participar[20]. Com essa cena, Flaubert nos dá a oportunidade de satisfazermos esse desejo, de gozarmos, na fantasia, assim como ele próprio o fez, identificando-nos, ainda, com os amantes nesse passeio lúbrico. E acrescenta, No corte da realidade a que se referia Lacan quando falava do Real do sujeito, o que aparece aí, na obra de arte, nesse corte, é o fantasma e a pulsão, disfarçados, ocultos, mitigados pela ‘ars poética[21]´.

 E por falar em fantasmas flaubertianos, não podemos esquecer as botinhas pretas de Ema Bovary, presentes em várias cenas como objeto de desejo, de sedução. Mário Vargas Llosa considera estranho ainda não se ter produzido estudo sobre Flaubert e o fetichismo do botim, pela quantidade de matéria presente em sua obra e em suas cartas. Sartre em seu famoso estudo sobre o autor francês chegou a apontar a primeira vez em que aparece na sua obra o motivo do calçado, num romance escrito quando ele era ainda muito jovem Memoires d’un fou, onde descreve com finura um belo pé de mulher: seu pezinho mimoso calçando uma elegantinha botinha de salto alto, enfeitada com uma roseta preta[22]. Flaubert guardava em sua escrivaninha, entre cartas e certos objetos de sua amante, os chinelos que Louise Colet havia usado em sua primeira noite de amor e que, amiúde, como conta a ela em suas cartas, tirava-os para acariciá-los e beijá-los[23].

 Em Madame Bovary são muitos os episódios em que esse fetiche está presente. Na magia que ele opera no criado Justin, quando pede à criada que lhe deixe engraxar os botins de Ema e toca-os com amor tão reverente que mais parece objeto sagrado. Quando Ema ao chegar a Yonville, entra na estalagem, levanta a saia para aproximar à chama da lareira seu pé calçando uma botinha preta. É assim que Léon a vê pela primeira vez, completamente fascinado. Na cena do bosque, quando Ema caminha à frente de Rodolfo, erguendo o vestido pela cauda, ele contempla, entre o tecido negro e a botinha preta, a delicadeza da meia branca que lhe parecia algo de sua nudez. Em outro episódio, Ema Bovary está no auge de sua paixão por Rodolfo, e o narrador ao tecer loas sobre a sua beleza, diz que alguma coisa de sutil exalava-se mesmo de sua veste e da curva de seu pé.  Léon tenta se livrar do domínio que Ema exerce sobre ele, mas ao ranger das botinhas, sentia-se covarde, como os beberrões à vista de licores forte. São os tamancos calçados por Ema, alvo da primeira emoção de Charles.  E há muito mais cenas em que os pés de Ema ou as suas botinhas provocavam frisson nos cavalheiros.

 Freud ao falar de fetiche diz que ele é um substituto para o pênis, e esclarece, não se trata de um substituto para qualquer pênis, e sim para um pênis específico e muito especial, que foi extremamente importante na primeira infância, mas posteriormente perdido. Isso equivale a dizer que normalmente deveria ter sido abandonado; o fetiche, porém, se destina exatamente a preservá-lo da extinção. Para expressá-lo de modo mais simples: o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o menininho outrora acreditou e que – por razões que não são familiares – não deseja abandonar[24]

 Sem dúvida a escrita desvela as cercanias do escritor, a tradição, a vida, os fantasmas, o pensamento, a ideologia, os preconceitos e, principalmente, a luta agonista para romper com tudo isso, romper com o passado, romper com o seu tempo, transcendo-o pela criação de um novo estilo poético que lhe dará nova identidade, uma identidade móvel, porque ele, sujeito atravessado pela linguagem, vai querer seguir adiante, em busca de outros escritos inéditos, sempre, sempre, conduzido por esse gozo por esse grão. Este grão ou pedaço do real, segundo Willemart citando Lacan, poderia ser identificado ao Outro, que conduz o jogo, levando o escritor a se dizer, a se dessubjetivar ou a se perder:

 Como o inconsciente aparece e desaparece, dá um sentido a um significante e some, até reaparecer em outro momento do discurso, dançando de lapso em lapso, de sonho em sonho ou, mais intensamente, no discurso associativo no divã, assim a escritura literária se constitui no decorrer das idas e vindas da mente do escritor ao manuscrito, por sua mão[25]

 Gustave Flaubert foi um dos escritores mais lúcidos a respeito deste processo de conversão do real em fictício, da canibalização de sua vida pela literatura Eu sou um homem pena. Sinto através dela, por causa dela, em relação a ela e muito mais com ela. […] Há no entanto, no fundo, algo que me atormenta, é o não-conhecimento de minha medida. Ele não se limitou a pilhar em vidas alheias, sua própria existência alarga-se como uma mancha na realidade fictícia, manifestando-se nas situações e personagens mais diversos e, às vezes, da maneira mais insuspeitada[26]·. O seu estilo revela aquilo que ele é, o seu Real, assim ele confessa a Louise Colet:

 É por isso que amo a Arte. É que aí, pelo menos, tudo é liberdade num mundo de ficções. Aí podemos nos satisfazer com tudo, podemos fazer tudo, podemos ao mesmo tempo ser rei e povo, ativo e passivo, vítima e sacerdote. Não há limites; a humanidade se torna um boneco com guizos que se pode fazer soar ao fim  da frase que compomos como um acrobata que gira e cai sobre seus pés (foi assim que, frequentemente, eu me vinguei da existência; que revivi tantas doçuras com minha pena; que me dei mulheres, dinheiro, viagens), é assim que a alma encurvada se lança para um azul que só se detém nas fronteiras do Verdadeiro. Onde a Forma, efetivamente, falta, a idéia não mais existe.Procurar um é procurar o outro.[27]

* Texto apresentado na Jornada do Traço em 2010

[1]KEHL,Maria Rita. A mínima diferença:masculino e feminino na cultura.Rio de Janeiro:Imago.1996,p.88

[2]SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzerote I. São Paulo: Cia. das Letras, 1992,, p.234

[3] SCOTTI, Sérgio.Psicanálise, desejo e estilo. Texto Eletrônico, p.2..

[4] NABOKOV, Vladimir. Aulas de Literatura..Lisboa:Relógio D’Água,2004,p.182:

[5] SCOTTI, Sérgio – Obra citada, p.3

[6] FREUD, Sigmundo (1900). A Interpretação dos Sonhos I.ESB.Rio de Janeiro:Imago.2006, p.303

[7] Idem, ibidem

[8] Idem, p.305

[9] Idem, p.333

[10] SCOTTI, Sérgio. texto citado ,p.5

[11] LLOSA, Mario Vargas. A Orgia Perpétua.Rio de Janeiro:Francisco Alves,1979, P.23

[12] FLAUBERT, Gustave – Madame Bovary.Belo Horizonte:Editora Itatiaia,2009, p.123/124

[13] LLOSA, Mário Vargas. Obra citada, p.59

[14] Idem, ibidem.

[15] DOR, Joel. Introdução à Leitura de Lacan. Porto Alegre: ARTMED, 1989, p.43

[16] FERREIRA, Nádia Paulo. Jacques Lacan: apropriação e subversão da lingüística  – texto eletrônico – Revista Agora

[17] LLOSA, Mario Vargas – Obra citada, p.25/26

[18] FLAUBERT, Gustave .Obra citada, p.184/185

[19] LLOSA, Mario Vargas – obra citada, p.26.

[20] SCOTTI, Sérgio – Obra citada, p.9

[21] Idem, ibidem.

[22] LLOSA, Mario Vargas,. Obra citada. p.26

[23] Ibid.ibidem.

[24] FREUD, Sigmund – Fetichismo (1927), ESB, vol. Xxi, p. 155,

[25] WILLEMART, Philippe. Os Processos de Criação.São Paulo. Perspectiva:, 2009, p.103

[26] FLAUBERT, Gustave . Cartas Exemplares. P.62,

[27] FLAUBERT, Gustave . Ibidem, p.71

CONTO DE CÉSAR GARCIA

JULIÃO E SEUS HÓSPEDES

C.G. 29.7.2011

Dois homens chamados Julião. Um era professor em colégio masculino religioso tido como o melhor, onde estudavam os filhos dos ricos e dos remediados que queriam a todo custo dar uma boa educação à prole. De origem espanhola, branco, magro, alto e famoso no colégio por sua autoridade dentro e fora da sala de aula, o homem aterrorizava os alunos mais tímidos com gritos, ameaças e castigos físicos. Enciclopédico, ensinava todas as disciplinas do programa e tinha o hábito de cuspir no lenço que guardava no bolso da batina. Tinha lá seus alunos preferidos a quem dava tratamento privilegiado. As más línguas espalhavam histórias nunca comprovadas. Pois foi na classe deste Padre Julião que um aluno certo dia revelou que o pai tinha o mesmo nome, o que foi motivo de piadas e brincadeiras. Coisa de pouca importância se aquele não fosse o ano em que ocorreria a maior e mais escandalosa tragédia da história da cidade. O outro Julião, homem rico e feio, era casado com Eugênia, bela mulher de trinta anos ou pouco mais. Quem queria agradá-la dizia que se parecia com Ingrid Bergman, atriz então no auge da fama. Dispondo de empregada para todas as tarefas domésticas, D. Eugênia ocupava seu tempo com salão de beleza, encontros com amigas, curso de pintura e demoradas visitas à mãe e às tias. Fazia esses percursos em seu automóvel dirigido por Manuel, motorista de confiança com cinco anos no emprego, selecionado por ela própria, rapaz de boa aparência e leitor de romances durante as horas de espera. O filho estudava em colégio religioso por decisão do marido, pois D. Eugênia não gostava de igreja, de religião nem de padres – único traço de personalidade que não combinava com seu prestígio social, segundo a opinião das amigas. Quando a questionavam sobre o assunto, dizia que as religiões causavam mais mal do que bem e tinha sua própria forma de comunicar-se com Deus. Não era, contudo, uma forma eficiente. Do contrário, teria obtido de Deus a informação de que os sogros chegariam sem avisar para matar saudades, com a intenção de ficar alguns dias. Julião avisara que almoçaria na cidade com dois empresários amigos. Assim, D. Eugênia disse à cozinheira que seriam quatro à mesa: ela, o filho e os sogros. A estes, após o almoço, disse-lhes que fizessem a sesta na suíte do casal, pois o quarto de hóspedes não estava ainda arrumado. Permitiu que a empregada saísse mais cedo para acudir uma filha que dera à luz um bebê – e foi, com Manuel, levar o menino ao colégio. Todos esses eventos do cotidiano teriam pouca ou nenhuma importância se não estivessem inscritos numa sucessão de fatos que só o destino pode explicar. É que durante o almoço, os amigos de Julião acharam que algo não corria bem. Durante a conversa, tiveram que repetir as frases para que Julião entendesse o que diziam, parecendo distraído ou preocupado. Indagaram se estava bem e só ouviram a desculpa de que havia despedido um empregado há três dias e que recebera ameaças, o que só em parte era verdade. Não recebera ameaças. De fato, não estava nada bem porque lhe tinha chegado às mãos, na empresa, uma carta anônima dizendo que D. Eugênia o traía com o motorista na sua própria casa. Lera uma só vez a folha escrita em letras de imprensa e a rasgara em pequenos pedaços antes de jogá-la à lixeira. Atribuiu a maldade ao sujeito demitido, mas, na verdade, o veneno estava inoculado. Pensou na beleza da mulher, na sua antipatia pela religião, nos modos gentis do motorista, e em casos semelhantes que conhecia. Quase cancelara o almoço, mas achou que seria pior e também não devia tomar atitude precipitada, sem um mínimo de investigação. Mesmo assim, ao sair do restaurante, percebeu que não tinha condições de trabalhar e resolveu ir direto a casa. Dirigiu lentamente, pensando como deveria agir: de modo racional, civilizado, ou com violência, no caso de ficar provada a denúncia. Parou em frente à residência, deixou o carro na rua e entrou em silêncio com a cabeça confusa. Ao abrir a porta da suíte, viu na penumbra do quarto iluminado apenas pelas cores de um vitral acima da janela fechada, o casal deitado em sua cama. Sacou o revólver e começou a atirar. No segundo tiro, os corpos já não se mexiam, mas continuou atirando até acabarem-se as balas.

As famílias dos dois lados não conseguiram abafar os acontecimentos e os jornais estamparam fotos e títulos em grandes letras: EMPRESÁRIO MATA OS PAIS. No colégio, a repercussão foi terrível. O menino não queria voltar às aulas e os colegas tentavam obter notícia pelo telefone. Julião, o professor, proibiu que os garotos falassem no assunto, mas, no recreio, eles riam e inventavam várias histórias a partir da coincidência dos nomes: que Julião era chifrudo, assassino, qual Julião? Que o menino era filho do motorista e coisas piores. A agitação chegou a ponto de forçar o diretor a dar uma semana de férias à turma da quarta série, na esperança de caírem no esquecimento a tragédia e as infames brincadeiras – e aconselhou D. Eugênia a transferir o menino para outro colégio.

Manoel de Barros

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.