LANÇAMENTO ESCRITURAS VI – TODO ABISMO É NAVEGÁVEL

Osvaldo Sarmento

Hoje, dia 02 de junho de 2021 foi a vez de Osvaldo Sarmento participar do Lançamento do Escrituras VI – Todo Abismo é Navegável. Sarmento, também conhecido como Saramago, é escritor, compositor e gramático. É a ele que consultamos sobre as nossas dúvidas da língua mãe. Se tudo isso não bastasse, ainda enche as nossas tardes com as suas tiradas de muito humor. Caminhar com ele pelas letras é garantia de alegria, da palavra certa, do olhar amigo. Salve, Sarmento/Saramago. Salve.

Aqui estão o texto completo que ele apresentou uma trecho no Instagram.

Amigos de infância


Osvaldo Sarmento


Ademir, Belisário e Cesar são amigos de infância que, desde cedo, mostraram-se vocacionados para a música. Durante anos, moraram na mesma rua, em Maceió, frequentaram a mesma escola e tiveram juntos aulas de violão. Ainda adolescentes, foram morar em diferentes cidades. Mais de uma década depois, o destino, teimoso como ele só, tratou de reuni-los num congresso de música na cidade do Recife. Assim que souberam da boa-nova, não perderam tempo. Combinaram encontrar-se em festejado bar da Rua da Moeda, no Recife Antigo, considerado por muitos o mais boêmio e poético bairro da cidade.

O encontro, regado à cerveja geladíssima, ótimos tira-gostos e refinada música, foi emocionante, com demorados abraços, lágrimas mal disfarçadas e notícias sobre os familiares. Tocante, sem dúvida! Pareciam lutadores sobreviventes de uma guerra devastadora. Relembraram bastante as muitas estripulias de meninos e um pouco menos sobre suas vidas profissionais. Com o teor etílico no sangue já um pouco elevado, chegou a vez de falarem das coisas do coração.

O primeiro foi Ademir. Com voz embargada, se disse arrasado.

– Descobri que Maria Rita me traia com Isaias, lembram-se dele? Aquele comerciante de secos e molhados lá da rua, uns dez anos mais velho que nós. Feio que só briga de foice. Falei com ela, pedi explicações. “Demi, meu amor, sei que você não vai acreditar, mas juro que é verdade. Só Deus sabe o que foi o aperto lá em casa, até fome passamos. E depois que papai conseguiu um emprego, não arranjei jeito de largá-lo. Sei que fiz coisa muito errada, não mereço perdão, mas juro pela mãe de Jesus, que hoje mesmo dou-lhe as contas.” Perdoei-a… mas de nada adiantou. Fugiu, com quem não sei. Deixou-me um bilhete dizendo-se precisada de um homem que a mantivesse em rédeas curtas, não de um corno. Choro todo dia, não aguento tanta solidão.

– Como assim, irmão? Falas em solidão tendo em volta amigos e familiares?

– Não sei te explicar César, só sei que ódio, desprezo ou indiferença não são solução para amor não correspondido. Perdoaria a ingrata, só para tê-la de volta.

Belisário, por sua vez, também se disse arrasado. Seu namorado Pietro ganhou uma bolsa de estudo, por um ano, de uma Fundação patrocinada pelo maior estilista Italiano da atualidade.

– Mesmo com o coração partido, fui seu maior incentivador. Teimou que só iria para a Itália se fosse comigo, o que era impraticável. Ponderei bastante para convencê-lo. “Talento enorme como o seu não basta para impulsionar uma carreira se não se tem um empurrãozinho do destino… Se fosse eu, agarraria com unhas e dentes essa oportunidade única… Se pusermos fé no amor que temos um pelo outro, um ano de separação a gente aguenta, com sofrimento é verdade,… Muito pior era trinta anos atrás quando não havia a facilidade da comunicação de hoje…” – “Não sei Beli, estou apavorado, sinto-me frágil, demasiadamente carente… Promete que não vai me esquecer, que todo santo dia me telefonará? Promete que não vai me trair?” – “Claro, garoto.” E assim, ainda bastante amedrontado, se foi. No mesmo dia me telefonou. Foram dois meses de idílio, por telefone e longas mensagens. Apesar da saudade, sentia-me confortado, feliz. Depois, bem, depois a coisa foi se complicando. Alegava ter esquecido o celular quando saíra de casa. Em lugar das juras de amor, frases reticentes. No terceiro mês, disse-me, com ares festivos, que lhe fora oferecido um emprego, para assim que terminasse o curso. Isso pelo próprio presidente da Fundação! No mês seguinte, falou que havia conhecido um belo ragazzo, Alessandro, filho de um importante empresário italiano. Por último, pediu um tempo e, daí por diante, só recebi mensagens de “o número desse telefone não existe”. A partir de então, aquele vazio, aquela falta. Solidão é o que eu sinto, apesar de rodeado de gente por tudo o que é lado.

– E por que isso, meu rapaz?

– Não sei, Cesar, só sei que é assim, como diria Chicó1.

– Homem de Deus, não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe, como diz o velho e sábio ditado português. Quer saber de uma coisa? Nunca chorei por um amor perdido e desconfio que sei a razão. Garanto que, sem muito esforço, achará outro que lhe dê mais alegria.

Ao começar a falar sobre seus sentimentos, César se disse surpreso com o sofrimento dos amigos.

– E olhem que, em coisas do coração, não sou nenhum iniciante. Os dedos das mãos são poucos para contar os namoros, às vezes dois ao mesmo tempo. Tive até uma amigação passageira, e pulei de alegria quando se desfez. De algumas pessoas, gostei muito. Amor entre enamorados é muito bom enquanto dura, mas não precisa ser traumático quando acaba. É diferente do amor pela mãe da gente, único, insubstituível. Acho que sofreria de solidão se minha mãe tivesse me abandonado. Ausência física? Não. Pelo que ouvi falar, conta menos do que se imagina. A ausência da pessoa amada, em si, não causa solidão. O contrário também não garante cura para ela. Tenho um exemplo na família. Apesar de viver grudada no marido, uma das minhas tias queixa-se da maldita. Quando mãe partiu, que Deus a tenha, fez muita falta; deixou-me saudade, mas não solidão.

– Deus me livre, acho que se Maria Rita morresse eu partiria também: de solidão e desesperança. Juro, por tudo que é mais sagrado, que ainda acredito na reconciliação. Um dia, ela voltará arrependida para termos uma linda história de amor!

– Continuando, dou certeza que meu sentimento de solidão por abandono de mamãe não seria o mesmo de vocês. A propósito, acho nosso idioma paupérrimo nesse quesito de paixão, amor, solidão e quejandos. A paixão por futebol, por exemplo, nada tem a ver com a paixão por uma pessoa. Eu não tenho sexo com o futebol. Então o que sinto por ele é tudo menos paixão. Sentimentos diferentes deveriam ter nomes distintos, concordam?

– Sim e não! Talvez fosse bom cada palavra ter um só significado, mas o que importa mesmo é que entendam o verdadeiro significado do que estou a dizer. Amo Pietro e faço amor com ele! Amo meu pai, simplesmente! Entendeu o sentimento de amor nos dois casos?

– Pois bem, os poucos momentos em que me vi como amante largado foram aqueles em que mais arduamente me entreguei ao trabalho. Minhas melhores criações musicais nasceram ali. Eles foram, igualmente, ocasiões propícias de olhar mais pro céu e brincar de contar estrelas; de prestar mais atenção no gorjeio dos passarinhos no meu quintal; de revisitar os álbuns de minhas viagens para rememorar aquele lago plácido de tal lugar, cânions, cachoeiras e outras tantas coisas exuberantes feitas pelo capricho da natureza; de dedicar mais tempo ao meu cachorro e ao meu bichano, para recompensá-los pela alegria que me proporcionavam. Às vezes penso que o que fiz e farei nessas fases da vida, seja o antídoto ideal para prevenir essa doença. E vocês, o que dizem disso?

– Eu fico em dúvida quanto a teu antídoto. Lembro-me de estar em viagem de turismo, quando minha tia me telefonou para dizer que, enquanto eu me deleitava com as cataratas do Iguaçu, o “profeta” Isaias se fartava nas curvas exuberantes de minha Maria Rita. Desde então, a simples lembrança de qualquer cachoeira, mixuruca que seja, me põe a chorar.

– Belíssimos tolos, estamos bebendo na calçada deste bar e, neste momento, sem ser notada, paira sobre nós a lua, cheia, bela e poética. Garanto que esqueceram a estrela d’alva que, daqui a poucas horas, fulgurante como sempre, fará sua aparição. Ponham-se no lugar delas, vejam-se num palco dando o máximo de si e nenhum aplauso vindo da plateia. Como reagiriam, seus insensíveis? Elas, como nós, também se sentem desprezadas, solitárias. Vocês choramingam à toa! Agora que terminei meu sermão, vou me ausentar, se me permitem. Não previ que nosso encontro fosse tão prazeroso e se prolongasse tanto. Conheci, ontem, uma pessoa interessante e prometi aparecer numa balada perto daqui, onde ela disse que ia com alguns amigos. Espero não demorar muito, a não ser… Bem, voltarei.

A farra continuou animada, mesmo com a ausência temporária de Cesar. A cerveja descia com facilidade, os tira-gostos divinos, assunto não faltava, mas aqui e ali, voltavam ao ponto doloroso de seus amores desfeitos. Em um desses momentos, Ademir, em consonância com o conselho do companheiro ausente, propôs que tentassem compor algo que retratasse o sentimento da solidão de que padeciam e que, de alguma forma, também remetesse à conversa deles três. Em meio a generosos goles, foram construindo simultaneamente versos e melodia.

Quando Cesar reapareceu, pediram que desse uma olhada nos rabiscos da composição.

– Não concordo com a essência do que está dito, mas a fizeram de maneira simples e interessante. Mudaria umas poucas palavras, isso por questão de sonoridade, por exemplo, trocaria dito por refrão. Quanto à melodia, acho que posso melhorar a introdução. As mudanças sugeridas foram aceitas pelos dois amigos, e a letra restou desse jeito.

Castigo do Amor

Sei que o amor existe
Solidão também
E que em dias tristes
Há de haver alguém
Com uma palavra amiga,
Um refrão que diga
Que se um dia é triste
Outro alegre logo vem
Na senzala do amor
Um castigo é a solidão.
Não me dê como certeza
E me conte a razão,
Sei que a sobra é de tristeza
Mas me falta explicação.
Por um bem que vai embora,
Há alguém que ama e chora.
Não é verdade que se um vai,
Outro chega ao coração.
Quase sempre é que se um vai,
Outro sofre em solidão.

Mais alegres do que cansados, pagaram a conta com generosa gorjeta e saíram em busca da aurora que não tardava. Amparavam-se um no outro para, com passos trôpegos, empreenderem a curta, mas a essa altura difícil jornada até o Marco Zero. Não se cansavam de solfejar a canção, apesar da língua engrolada. Quando a erravam, gritavam “puta que pariu”, “caralho”…. Os impropérios, favorecidos pelas condições da madrugada, ecoavam pelas ruas vazias, e chegavam a bater inutilmente na porta da Igreja da Madre de Deus, onde os santos, piedosos por definição, faziam ouvidos de mercador para as blasfêmias dos arruaceiros.

Enfim chegaram. Quem por ali passasse àquela hora demoraria a acreditar no que via: a praça deserta do Marco Zero, suavemente varrida pela brisa vinda do oceano a sua frente, era palco de brincadeira de três marmanjos embriagados, em algazarra de muitos decibéis. Mal se sustentando em pé, jogavam Amarelinha, sem obediência às regras e cada qual querendo passar a perna nos demais. Recriavam momentos marcantes, onde juntos, felizes, brincavam, em noites de lua cheia, na mal iluminada Zacarias de Azevedo, rua de areia fofa, em Maceió.

Quando o sol se dispôs a abandonar seu esconderijo noturno e a apressada estrela d’alva preparava-se para sair de cena, interromperam o folguedo e se postaram de frente para o mar, fitando o horizonte em respeitoso silêncio. Lágrimas lhes escorriam pelas bochechas. Depois, em soluços, Ademir e Belisário imploravam ao pedacinho já visível do sol que trouxesse de volta Maria Rita e Pietro, “para não morrerem de solidão”, diziam repetidas vezes.

Um pouco atrás, Cesar balbuciava nunca ter visto um nascer de sol tão belo. “Só pode ser porque o estou vendo desta praça, deste lugar mágico, relicário de tanta história.” Mas notando o miserável estado dos dois companheiros, desmanchou-se em lágrimas também. E não chorava por ter sido abandonado por marias ritas ou pietros ou por quem quer que fosse. Eu choro é de dó deles, porra! Nem amigos, parentes, lua, sol, estrela d’alva, madrugada radiante são capazes de mandar para as cucuias essa tal de solidão da vida deles!

“Mas, afinal, o que é solidão? É mandinga, é coisa do diabo?” Virou-se para uma gaivota madrugadora que havia pousado perto do grupo com ares de curiosidade, e fez-lhe as mesmas indagações. A ave deu mostras de que também não sabia e, amedrontada, voou em direção ao oceano, talvez em busca do abrigo das asas de sua cara-metade. Por fim, desesperado, mas provido com a sinceridade dos bêbados e cheio de intimidades para com o astro-rei, voltou-se para ele e implorou.

– Por favor, meu rei, despache-me uma dose caprichada de solidão. Não me mande uma qualquer. Quero aquela que se abate sobre os amantes abandonados, para que eu a sinta, compreenda-a e ajude-os a recobrar a alegria de viver… ou então… deixe-me morrer do mesmo mal, encangado a esses dois filhos da mãe abestalhados.


1 Personagem de “O Auto da Compadecida”, obra imortal de Ariano Suassuna.

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