Leituras dos Viageiros II

Leituras realizadas por viageiros da

Oficina de Criação Literária Clarice Lispector

Certa vez, Henry Miller disse que a vida de um livro era consequência direta da recomendação apaixonada que um leitor faz a outro. Com a segunda lista de comentários de nossas leituras postadas aqui neste blog (a primeira foi em maio de 2012), talvez esteja fortemente presente o desejo de perpetuarmos alguns livros que tanto prazer nos deram ao serem lidos.

A primeira a aderir ao convite de dar continuidade aos comentários sobre as nossas leituras recentes foi Ângela Cysneiros. Eis as suas leituras e comentários:

Ângela Carolina Cysneiros

 Os meninos da rua PauloOs Meninos da Rua Paulo, do escritor húngaro Ferenc Molnar, que recebi de um amigo especial com uma recomendação especial: observar um dos garotos por quem, inevitavelmente, iria me apaixonar: tiro e queda. Trata-se de romance escrito no começo do século passado, com tradução e notas de Paulo Rónai, também húngaro, retratando a vida de meninos que, a exemplo de nossos irmãos ” meninos”, brincavam nas ruas, tinham seu reduto, sua fortaleza e códigos de honra que mais lembram os herois gregos, rivalidades, ” guerra” por poder e espaço. Uma delícia de livro. Se para mim que vivi, por tabela, realidade parecida, em que a rua era um mundo a parte, no qual a realidade e a fantasia se misturavam, as amizades nasciam com pretensão de serem ” para sempre” – e tantas o foram -, imagino o que seria para eles…Uma leitura deliciosa. Existe, em Budapeste, numa calçada, uma cena, em escultura, que retrata os meninos, a coisa mais linda.

Entre os livros de áudio, chamou-me a atenção Se eu fechar os meus olhos agora, de Ednei Silvestre. Trama muito bem urdida, bem escrita, numa linguagem simples, porém elegante, sem o esperado tom jornalistico, intrigante e além de tudo, com personagens ricos sob o ponto de vista psicológico. Tudo é colocado, todas as tramas, mortes, miséria humana, sem criticas morais ou julgamentos, com incursões na vida política do Brasil da época em que os fatos se passaram. Muito convincente e verossímil. Vale muito a pena. Além do mais, o escritor é de uma simpatia e simplicidade próprias de escritor de peso. Recomendo.

Ainda no esquema dobradinha audio livro/arrumações de gavetas e armários, com o som acompanhando os movimentos, recurso dos “sem tempo”, diverti-me a valer com as aventuras de A mulher que escreveu a Biblia, engraçadíssimo, às vezes escrachado, até, mas muito interessante. A história da mulher super feia, tipo Raimunda, que casa com o rei Salomão e cuja maior virtude é saber ler e escrever. De Moacir Scliar. Imperdível.

AInda  me diverti com os contos de Tchécov, choquei-me e baixei o astral com os do angustiado Edgar Allan Poe, torci pelo injustiçado Conde de Monte Cristo em uma versão simplificada à qual assisti, por coincidência na TV, e outros contos mais.. Este recurso tem sido minha salvação na angústia da falta de tempo para dedicar-me às leituras, como gosto de fazer.

Comecei/recontinuei a ler os contos do nosso César Garcia, que, como sempre, nos surpreende. Depois coloco minhas impressões.

Ah, ganhei e comecei a ler, também, Mia Couto, cujo título encantou-me de pronto: Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Tive a oportunidade de vê-lo no Roda VIva e achei-o, como sempre, encantador, sem estrelismos e muito consciente do papel dele como Africano e como cidadão do mundo. Homem inteligente, simples. Li somente o primeiro capítulo para me assenhorar do que se tratava, e de início, prendeu-me a bela narrativa. Estou ansiosa para continuar a leitura.

Ouvi a biografia de Paulo Coelho e deixou-me intrigada. Não consigo “qualificá-lo.” Ele é uma pessoa singular, obstinada, um louco, talvez, muito lúcido, oportunista em ambos os sentidos do termo, mas que não se pode negar ser um fenômeno. A que creditar essa verdadeira alucinação que o mundo inteiro tem por ele, não se sabe. Claro que a escrita – nunca o li, não por preconceito, mas por falta de oportunidade e interesse, claro- não pode ser considerada literatura de primeiro nivel, mas o fato é que ele tem um carisma que somente com a leitura de sua biografia pude dimensionar. A biografia é muito bem escrita, o biógrafo (escritor sério, autor de outras importantes biografias), acompanhou-o por três anos, pesquisou sua vida, lugares onde morou, seus escritos escondidos num baú lacrado cuja destinação após sua morte seria a incineração, vontade registrada em cartório, diz ser ele um homem singular. E esta a impressão que fica, ao final da leitura. Um homem que tinha uma obstinada vontade de ser escritor – famoso e respeitado – e que, se não é respeitado como intelectual, literato, conseguiu ser membro da ABL, é conhecido e reverenciado pelo mundo todo, seu nome e sua pessoa abrem caminhos seja onde for. Um fenômeno. Desceu aos infernos de um hospício, das drogas, dos porões da ditadura, do satanismo do sexo e soube sair de tudo isto aproveitando o que cada um desses infernos tinha para lhe ensinar. É casado há mais de 30 anos com a mesma mulher, leva uma vida simples, foi agraciado com castelo, carros, e sequer tem um chofer. É, de fato, não importa o que se diga dele como ser humano e como escritor, um homem singular e que, ao que parece, não guardou das más experiências ou incompreensões, mágoas.

Leituras de César Garcia

A Confissão da Leoa. de Mia Couto. O autor mais uma vez denuncia a violência dos homens contra as mulheres, mostra a importância das crenças, mitos e mistérios da sociedade antiga de Moçambique e a influência dos valores europeus. O romance é narrado em primeira pessoa por dois personagens. Tem feito sucesso entre críticos e leitores.

Diário da Queda,  Michel Laub, autor gaúcho radicado em São Paulo. Por meio de um diário, o personagem judeu registra seus traumas desde a infância e a história de seu pai e de seu avô, sobrevivente de Auschwitz. Um dos traumas vem da queda que os meninos judeus causam a um colega pobre, não judeu, por pura crueldade.

No teu Deserto,  romance de Miguel Sousa Tavares, português, narra a viagem de um jornalista e uma jovem através do deserto de Saara. Ótima leitura para as férias. (Agradeço a Diva o presente do amigo secreto.)

Últimas Palavras, pequeno livro em que Christopher Hitchens, jornalista inglês radicado nos EUA, reafirma suas ideias de ateu militante nos últimos dias antes de morrer de câncer.

O Escaravelho de Ouro, famoso conto de EdgarAllan Poe.

L’Inutile Beauté, fantástico conto de Guy de Maupassant que estou traduzindo do Francês por não ter encontrado em Português e que pretendo oferecer aos colegas da oficina.

O Inquietante,  artigo de Freud em que ele comenta o conto O Homem da Areia,  lido em nossa oficina.

A Consciência de Zeno,  de Ítalo Svevo, que vivia em Trieste, só teve sucesso depois que James Joyce, amigo do autor, expressou seu entusiasmo e o enviou para a França onde foi traduzido. Assim, o sucesso na Itália só veio depois da repercussão entre o público e os críticos franceses. O contato entre os dois autores foi bastante importante para criar relações estreitas entre o livro de Svevo e ULISSES, de Joyce.”Suas conexões com Ulisses são tão repetidas e óbvias que há até quem considere Svevo o inspirador de Leopold Bloom”… (José Nêumane, Cabra-Cega nos Espelhos, apresentação da edição Saraiva de bolso, do livro A Consciência de Zeno). Já as ousadias gráficas e a criação de palavras, tão frequentes em ULISSES, são claramente a sequência das invenções de Lawrence Sterne, irlandês como Joyce, em A VIDA E AS OPINIÕES DO CAVALHEIRO TRISTRAM SHANDY. E aqui no Brasil, essas relações aparecem entre Sterne e Machado de Assis em MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS em que o narrador morto, contando sua própria história, dirige-se com frequência ao leitor. Assim, Zeno, Shandy, Bloom e Cubas são quatro personagens que embora distantes geograficamente, teriam muito o que conversar sobre o que disseram de suas vidas esses quatro autores imortais cujas obras não podem ser ignoradas por quem gosta de literatura.

É Isto um Homem?,terrível livro do italiano PRIMO LEVI, também sobre a perversão nazista. O livro é famoso.

Finalmente, iniciei a leitura do famoso A Vida e as Opiniões de Tristram Shandy, de Lawrence Sterne, em Português, que consegui comprar na Estante Virtual.

Leituras de Lourdes Rodrigues:

A Coleção Folha Literatura Íbero Americana, da qual eu li alguns dos livros que vou comentar aqui, surpreendeu-me pela qualidade da literatura. É muito comum as coleções incluírem alguns bons e consagrados escritores – âncoras para atraírem o leitor – ao lado de outros que não se sabe a razão de estarem ali. Na Coleção Folha os autores são excelentes, a obra escolhida pode não ser a obra prima de cada um, mas figura entre as suas grandes criações, com certeza. Por enquanto, vou comentar sobre Tia Júlia e o Escrevinhador, de Mário Vargas Llosa; Delírio, de Laura Restrepo; O Túnel, de Ernesto Sábato; e, O livro de Areia, de Jorge Luís Borges.

Tia Júlia e o Escrevinhador,  de Mário Vargas Llosa, pode não ser o melhor livro do autor, mas tem um lugar de relevo no seu patrimônio literário, pela sua originalidade, pela estrutura da narrativa, pelo humor. No Prólogo, o autor dá a dimensão do tempo e esforço na escrita do romance. Ele foi iniciado em Lima, continuou a ser escrito, com muitas interrupções, em Barcelona, La Romana, Nova York e de novo em Lima, onde concluiu quatro anos depois. Não se sabe, na verdade, o tempo que levou para a sua elaboração. E ele fala que baseou o romance em fato real, num autor de radionovelas que havia conhecido quando jovem, cuja lucidez fora devorada, por algum tempo, por suas histórias melodramáticas. E diz, ainda, que acrescentou dados autobiográficos da sua primeira aventura matrimonial, para que o romance não ficasse artificial demais.

A história fusiona ficção e realidade com muito humor e originalidade. A multiplicidade de narrativas é um recurso utilizado pelo autor para contar a sua paixão pela tia Júlia, o seu desejo de se tornar escritor, a relação com Pedro Camacho, autor compulsivo de radionovelas, e as novelas do frenético radio-ator propriamente ditas. Os capítulos se alternam entre o romance do jovem pretenso escritor e as novelas do fenômeno radiofônico. São duas narrativas em paralelo, a do mundo ficcional de Varguitas, contada na primeira pessoa, e a do mundo ficcional de Pedro Camacho, todas as novelas na terceira pessoa. A mudança de voz e os estilos bem distintos entre um capítulo e outro, embora logo percebidos, não são suficientes para a identificação imediata das duas linhas narrativas. O leitor fica completamente frustrado sem saber o que ocorreu com os personagens da história de Camacho, pois os capítulos sempre se encerram no auge do conflito, cheios de perguntas que jamais serão respondidas. A deterioração do autor Pedro Camacho vai sendo observada pelas perdas de fio das meadas, mistura de enredos, morte e reaparecimento de personagens, entre outros. Este é um romance onde o humor reina com força absoluta. Há uma cena imperdível, em que o autor Varguitas vai entrevistar um mexicano, dirigente de uma revista, escritor, presidente de uma delegação de economistas, de cerca de 60 anos, que estava acompanhado da esposa, uma mulher miúda de olhos muito vivos, que usava um chapeuzinho de flores, e quando ele acompanhava o casal de volta para o hotel, a mulher começa a passar mal, abatida, abrindo e fechando os olhos, mexendo a boca de um jeito estranhíssimo e o marido lança um olhar feroz para a mulher e para ele, depois acelera os passos, abandonando-os à própria sorte. O trajeto para o hotel narrado por um Varguitas, completamente apavorado, é extremamente hilário, ele carregando a mulher nos braços pela rua, o homem correndo na frente, a chegada ao hotel, você fica imaginando a cena e não consegue parar de rir.

Li várias obras de Mário Vargas Llosa, creio até que já havia lido esta, mas não lembrava, talvez porque na época não tivesse a maturidade necessária para compreender a sua grandiosidade, e considero-a uma das suas melhores criações. O romance tem uma estrutura complexa que Mário Vargas Llosa maneja com extrema habilidade, competência e humor.

Delírio,  de Laura Restrepo, surpreendeu-me desde o primeiro parágrafo. Fiquei tão impactada com a sua leitura, que o usei como isca para os escritores da oficina criarem as suas próprias versões da história ali começada. É muito difícil escrever o primeiro parágrafo de um livro, parágrafo em que o autor ou atinge o leitor de forma mortal, e ele não tem mais como abandoná-lo, sob pena de se arrepender amargamente, ou vai entediá-lo, fazendo-o fechar o livro para nunca mais voltar a abri-lo. Gabriel Garcia Marquez, por exemplo, disse não ter a menor habilidade para fazer contos, porque a sua maior dificuldade como escritor, consistia na elaboração do primeiro parágrafo, e os contos exigiam vários começos. No início do primeiro parágrafo de Delírio, o personagem, na primeira pessoa, narra o momento em que ele entra num quarto de hotel, cuja porta foi aberta por um homem, e vê a sua mulher, sentada ao fundo, olhando pela janela de forma estranha. Em seguida, ele sai do modo narrativo para o de diálogo direto e diz, iniciando com letra maiúscula, Quando parti nada de estranho acontecia com ela (…), simplesmente separando a narração do diálogo com uma vírgula. Continuando a frase, a narrativa muda para a terceira pessoa, mas como Aguilar ia acreditar nisso (…), distanciando-se, colocando o narrador por fora, para depois voltar ao personagem em diálogo direto. E assim continua, sobrepondo vozes, espaços e tempos narrativos, na luta feroz do personagem para descobrir o que aconteceu com a mulher na sua ausência, obrigando o leitor a reler várias vezes as frases para se situar. No parágrafo seguinte, surge outro personagem, um ex-amante de Agustina, nome da mulher estranha, traficante ligado a Pablo Escobar que, num diálogo intenso com ela, de quem não se ouve a voz, pois apenas se percebe do monólogo dele sinais da sua fala, outro corte profundo no tempo e espaço narrativos pois não se sabe em que momento e lugar está acontecendo. O próximo parágrafo traz a história da Agustina quando criança, no início, na terceira pessoa, em seguida, no diálogo direto com outro personagem, o seu irmão, Bichi, dentro das frases, sem qualquer separação por aspas ou travessão. Mais adiante, outra história começa a ser contada, a de um alemão, que depois vai se descobrir ter sido o avô dela, cuja vida acaba de forma trágica. São várias histórias imbricadas, separadas apenas por parágrafos, numa escrita sôfrega e de aparência caótica, ou talvez alucinada, pela sucessão de vozes, que leva o leitor, algumas vezes, a ter de parar para não se perder totalmente naquele turbilhão de imagens, sons e insensatas emoções. Talvez tenha sido a estrutura mais complexa de um romance que eu tenha lido até agora, e já estava acostumada às estruturas das narrativas de Faulkner que são muito fragmentadas, difíceis de montar o quebra-cabeça. São 277 páginas de fragmentos que você vai juntando para compor a história, que a autora consegue manter cheia de mistério e tensão, revelando aos pouquinhos os segredos dessa estranha mulher. Até quase o capítulo final não se sabe o que de fato havia acontecido para deixá-la estranha daquela forma, mantendo o leitor aprisionado na angústia desse não saber. A autora envolve dados de realidade do narcotráfico colombiano, para dar mais veracidade a sua história. No meu ponto de vista totalmente dispensável, porque o conflito psicológico do personagem já era mais do que suficiente para sustentar a trama. Delírio foi vencedor do Prêmio Alfaguara de 2004 e José Saramago que presidiu o júri de premiação disse do livro: Um dos melhores romances na memória recente. E mais: Quando o nível da escrita chega onde Restrepo o levou, ele deve ser valorizado. A escritora Laura Restrepo, da Colômbia, certamente, ganhou mais uma leitora pela qualidade e arrojo na sua escrita complexa que ela com muita destreza soube arquitetar.

O Túnel,  de Ernesto Sábato, também da coleção, é outra obra extraordinária. Narrativa na primeira pessoa, no estilo bem confessional, no primeiro parágrafo, na primeira frase, o personagem revela ser pintor e ter assassinado Maria Iribarne, mas diz, ainda, que o processo deve estar na lembrança de todos e que ele não precisa dizer mais sobre a sua pessoa. Daí em diante ele teoriza um pouco sobre o que lembrar, para voltar no segundo capítulo à historia do seu crime. A estrutura não tem a complexidade das duas anteriores, o autor inicia a narrativa de trás para frente, começa pelo fim, pelo drama já acontecido e volta para o começo, para o dia em que ele encontrou pela primeira vez Maria Iribarne. Desde o primeiro capítulo o leitor percebe que está diante de um personagem obsessivo, que vive em aguda crise existencial e na mais completa solidão. O encontro com a sua vítima parte de uma suposta identificação, ela viu em seu quadro o que ninguém conseguia ver, somente ele e ela: Existiu uma pessoa que poderia me entender. Mas foi, justamente, a pessoa que matei. E daí em diante, ele passa a persegui-la alucinadamente, segue-a pelas ruas, descobre endereço, telefona, ele não consegue deixar de pensar nela, de colocá-la em suas obras, é uma narrativa delirante, escrita numa linguagem simples, bela. O túnel é um romance psicológico que traz em seu enredo simples, questões metafísicas fundamentais do ser humano. Não tenho dúvidas, de que assim como o estrangeiro de Alberto Camus, ele se tornará um clássico da literatura. Sobre o livro, o próprio autor declarou que enquanto o escrevia, ele mesmo ficava perplexo, confuso, pois o que saía era muito diferente do que ele havia planejado. A sua idéia inicial era escrever um conto em que o protagonista da história enlouquecia por não conseguir comunicar-se, nem mesmo com aquela mulher que parecia tê-lo entendido tão bem ao olhar aquele quadro e acabou se tornando uma obra em que o ciúme e posse tomaram a direção. Não há dúvida de que o personagem continua a se sentir num túnel, túnel que ele esteve à vida toda: em todo caso, havia um só túnel, escuro e solitário: o meu, o túnel em que transcorrera a minha infância, minha juventude, toda a minha vida. Na hora em que ele está para matar a amada, ele diz: Tenho que matar você, Maria.Você me deixou sozinho. Ele a matou por ela ter lhe dado a esperança de acabar com a solidão: senti como se o último barco que podia resgatar-me de minha ilha deserta passasse ao largo sem avistar meus sinais de desamparo. Meu corpo tombou lentamente, como se tivesse chegado a hora da velhice. Velhice e solidão estão aí como sinônimos.

O livro de Areia,  de Jorge Luis Borges, traz 13 contos, dos quais eu só li, até agora, dois deles, suficientes para eu saber do que tenho pela frente. O Outro, é uma história em que um professor está recostado num banco defronte ao rio Charles, na Universidade, quando na outra ponta do banco, senta-se alguém e estabelece-se um diálogo que, três anos depois, ele encontra coragem para falar, sem receio de perder o juízo.Na verdade, trata-se de um encontro do personagem com ele próprio quando jovem, trazendo à tona o tema do duplo. O desafio de Borges, segundo ele mesmo, no epílogo, é que os dois personagens fossem suficientemente diferentes para serem dois e suficientemente parecidos para serem um. Conseguiu de forma espetacular, deixando um friozinho na barriga ao contrapor as esperanças de um jovem de menos de vinte anos, seus ideais, à realidade vivenciada por um homem quase cego, com mais de setenta anos. Perfeito, claro, conciso, denso. Está na primeira pessoa, e o narrador é o homem mais velho, naturalmente. O outro conto lido foi Ulrica, que é uma linda história de amor, também na primeira pessoa, o protagonista é um professor colombiano, celibatário, e a mulher por quem ele se apaixona, uma norueguesa, Ulrica, pela primeira e última vez .

Além da Coleção Folha, quero acrescentar às minhas mais recentes leituras, dois livros de Léon Tolstoi, O Diabo (presente da minha amiga, Ângelae A Felicidade Conjugal (presente do meu amigo, César). Ambos trazem no tema, o desejo.

No O Diabo, o protagonista dá-se conta, após a morte do pai, que as finanças da família estão em baixa, devido às dívidas deixadas por ele. Larga o trabalha e vai administrar a fazenda para tentar pagar os débitos e garantir a sua propriedade. Durante anos o rapaz luta bravamente, conseguindo aos poucos ir melhorando a situação das finanças. Livre do sufoco maior dos débitos deixados pelo pai, Evguênia começa a ficar inquieto, como ele iria encontrar refrigério para a sua libido, ali na zona rural, onde as mulheres disponíveis ele não conhecia o paradeiro? Obrigado a uma continência involuntária, começou a perceber que não agüentaria por muito tempo aquela situação, por uma questão de saúde, física e mental, e não por libertinagem. Estava tão obcecado por essa falta que em todas as conversas sempre dava um jeito de falar de mulheres, prolongando o assunto o mais que podia, erotizando com o olhar cada mulher que passava à sua frente. Certo dia, conversando com o guarda florestal que fora caçador do seu pai, o assunto mulher veio à baila e ele confessou que estava passando por uma tortura imensa e o velho se dispôs a ajudá-lo, surgindo então Stepanida, cujo marido, cocheiro, vivia na cidade: é como se ela fosse mulher de soldado. É bonita e limpa. O senhor vai gostar. Há uma nota dizendo que o serviço militar durava 25 anos na Russsia tzarista, e as esposas dos soldados eram como viúvas de marido vivo, por isso a expressão. Pois é, Evguêni gostou, gostou até demais. Na primeira vez, livrou-se rápido dela, quinze minutos foi suficiente para sentir-se leve, calmo e bem disposto. Nem reparou direito na moça, lembrava-se apenas que era asseada, jovem, bonita e simples. Rapaz alheio à libertinagem, ele até pensou em nunca mais voltar a ver a moça, pois se sentia pouco confortável com tal procedimento. Mas, o desassossego voltou, e agora, ele tinha um rosto, o rosto de Stepanida, com seus olhos negros e brilhantes, aquele cheiro de algo fresco e forte, aqueles seios altos, que arfavam sob o avental…Na segunda vez, já houve conversa, mas ainda não quis marcar novo encontro. E assim os encontros foram se amiudando, ele sempre se debatendo com um juiz forte dizendo dentro dele para aquela ser a última vez e sempre os olhos e o cheiro de Stepanida voltando a lhe perturbar e esquecer o recomendado. Depois, já não precisava mais da intermediação do guarda florestal, eles já deixavam marcado o próximo encontro. E assim foi, embora ele achasse que ela não significava nada para ele, É somente para a saúde e é necessário, às vezes o desejo de vê-la era tanto que não conseguia pensar nem fazer nada até conseguir marcar novo encontro. E então ele casou com Liza, moça romântica, educada.O narrador intruso, porém, diz que Não existem explicações para Evguêni ter escolhido Liza Ánnenskaia, assim como é impossível explicar por que um homem escolhe uma determinada mulher. Durante um bom tempo, o jovem marido esqueceu Stepanida, a esposa engravidou, os negócios continuaram a lhe preocupar e ocupar, até que um dia, ele a encontra fazendo faxina, justo em sua casa. E o seu desespero, a sua angústia voltam, ao sentir que o desejo por aquela mulher ainda o dominava. São páginas e páginas com o tormento de Evguênia, que completamente tomado pelas suas emoções diz: Ela é o diabo. É o próprio diabo. Pois ela se apossou de mim contra a minha vontade. Não vou contar o final que é o ponto mais alto da narrativa. Tolstoi, neste romance, dá-nos a dimensão do conflito de um homem atormentado pelo desejo por uma mulher, sentindo-se obrigado a defender a sua postura de homem sério, marido zeloso e fiel de uma mulher que ele também amava, embora de forma bem diferente. Muito bem escrito, na terceira pessoa, mas o narrador está tão próximo do personagem que a linha que os separa, algumas vezes, torna-se invisível.

A Felicidade Conjugal,  também traz o desejo como tema, agora sob o ponto de vista da mulher. Narrado na primeira pessoa, por María Aleksândrovna, órfã, criada juntamente com a sua irmã, por uma criada, Kátia, tendo como tutor, um amigo de seu pai Serguêi Mikháilich. A evolução do sentimento de María por seu tutor, inicia com um gostar por hábito, todos na casa gostavam dele. Depois, pela lembrança de uma frase dita pela sua mãe, na presença dela, quando tinha apenas onze anos de idade, de que gostaria de um marido assim para mim (Um amigo psicanalista me disse, certa vez, que palavras de mãe ficam marcadas como cicatrizes.). Num reencontro, após seis anos sem se avistarem, quando ele a visita, deixa, ao partir, uma sensação de que a casa se tivesse enchido de vida e luz, para, no seu retorno, numa visita inesperada, ele olhá-la de forma estranha e ao ir embora ela ficar vendo-o afastar-se pela estrada.   Aqui, tudo é descrito de forma lírica, não são mais os instintos que comandam a ação, mas os sons noturnos do jardim, do rouxinol, do assobio, da folha tremulando. O sentimento de María por Serguêi vai num crescente, em passos de balé, até ela começar a enxergar em cada uma das palavras e movimentos dele, amor, e não duvidava deste. As descrições que María faz da paisagem denota o seu estado de apaixonamento. O medo de Serguêi, por conta da diferença de idade, faz com que ele use o artifício de contação de uma história para expressar os seus receios, história na qual os personagens eram um certo senhor A, um homem velho e vivido, e certa senhora B, jovem, feliz, que ainda não tinha visto nem as pessoas nem a vida. Vários desfechos foram dados a essa história até eles se entenderem e  no final , ela declarar que tinha na alma felicidade, uma felicidade que não voltaria jamais. Ela parecia estar sendo profética, porque depois de algum tempo de casados e felizes, ela começou a sentir-se solitária, mesmo estando ao lado dele: .Amar era pouco para mim, depois que eu experimentara a felicidade de apaixonar-me por ele. Eu queria movimento, e não uma fluência tranqüila da vida. Queria inquietação, perigos e autossacrifício em prol de sentimento. Havia em mim um excesso de força, que não encontrava lugar em nossa vida sossegada.Assaltavam-me repentes de angústia, que eu procurava esconder dele, como algo ruim, e repentes de ternura desenfreada e alegria, que o assustavam. Assustou tanto que Serguêi decidiu ir morar na cidade, embora odiasse a idéia de uma vida social intensa. E a partir daí, da perfeita adaptação de María à vida em sociedade, jovem que ainda não tinha visto nem as pessoas nem a vida, consolida-se o desgaste da relação conjugal que nem mesmo o nascimento do filho conseguiu mitigar.A crise fica aguda com o aparecimento de um jovem marquês italiano, mas não vou adiantar o que aconteceu, senão perde a graça. León Tolstoi consegue escrever com tal maestria, seja sob o ponto de vista masculino, ou feminino, que é impossível não se encantar com a sua escrita. Além disso, ele aborda questões fundamentais na sua literatura, o desejo, por exemplo, do homem ou da mulher, as relações estabelecidas com base nas diferenças, sejam diferenças de visão de mundo, de ordem econômica e social ou simplesmente temporal. Virgínia Woolf que o considerava o maior entre os escritores, costumava dizer quando lia algum escritor do qual ela gostava, mas, não é um Tolstoi … Sem dúvida, é uma referência no mundo da literatura.

Reparação, de Ian McEwan, livro que trata de grave e trágico equívoco. Rapaz, filho da empregada de uma  família de certo poder aquisitivo, de quem contou sempre com a ajuda financeira para os estudos, face o bom comportamento, é acusado, julgado e preso pelo estupro de uma adolescente, sobrinha da dona da casa. A acusação partiu de uma criança, de nove anos de idade, Briony Talles, filha da patroa. Acontece que o rapaz estava enamorado de Cecília, filha do seu benfeitor e irmã da garota que o acusou, que havia presenciado cena de intimidades entre eles e estava convencida de que o rapaz era pervertido. Dois fatos a levaram a pensar assim: a cena de sua irmã obrigada a despir-se pelo rapaz, entra no lago, segundo a sua visão ; e os amassos dela com o rapaz na biblioteca da casa. Ela pretendia tornar-se escritora e sempre estava fantasiando, inventando histórias, até uma peça de teatro tentou encenar, desistindo pela dificuldade com os atores, seus primos que ora moravam em sua casa. Cecília sabia que o rapaz havia sido injustamente acusado, defendeu-o o tempo inteiro, mas não impediu de ele ser condenado e preso. Ela abandona a família e vai morar em outra cidade, jamais deixou de se comunicar com o rapaz. Chegou a guerra, a criança cresceu, Briony torna-se enfermeira, assim como Cecília, e atende nos hospitais. A história atinge o seu clímax quando Briony descobre o verdadeiro estuprador, e vai atrás da irmã para pedir perdão a ela e ao rapaz pela cruel injustiça que ela cometeu. Aqui o autor usa de recursos técnicos para falar do encontro entre Cecília e Robie, e também dos dois com Briony, levando o leitor a ficar um pouco confuso entre fantasia e realidade. Narrado na terceira pessoa, o foco da narrativa circula, ora por Briony, ora por Cecília ou, ainda, por Robie, permitindo ao leitor acompanhar o conflito pelos personagens principais do romance. Muito bem escrito. Recomento. O filme fez enorme sucesso.

Fúria Santa, a biografia de Cacilda Becker,  autoria de Luís Andrade do Prado, cuja resenha já foi publicada no meu blog (marilurde.wordpress.com) e no blog da Oficina (traco-freudiano.org/blog),  é uma biografia diferente. Guarda a força e a seriedade documental, pelo registro de uma parte importante da história da arte cênica no país, além de sua relevante qualidade literária. Ela veio para servir de referência à trajetória do teatro brasileiro, contextualizado por cenários socioeconômicos e políticos. E tudo contado com muita mestria, usando artifícios próprios de um ficcionista maduro. Desde o prólogo se percebe isso. Ao usar várias visões para contar o momento em que Cacilda Becker sente-se mal e é socorrida no teatro, entre o primeiro e o segundo ato da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, Luís Carlos Prado deu uma jogada de mestre, demonstrando que o seu objetivo não era registrar o fato como ele ocorreu, na triste e pretensa tarefa do historiador que se engana pensando existir uma verdade a ser contada. Tem-se a impressão de que ele quis mostrar como cada um, do lugar em que se encontrava, viu aquele momento. Lugar aqui entendido como espaço físico (no teatro) e emocional (na relação com a atriz), num resgate possível das emoções daquele dia. O livro é riquíssimo em detalhes sobre a vida de Cacilda Becker no teatro, desde 1941, até a sua última cena, em Esperando Godot.