A RODA DA ESCRITURA

PSICANÁLISE, ARTE E LITERATURA

Lourdes Rodrigues

Com este texto pretendo trazer alguns elementos para discutir a relação da arte, mais especificamente da literatura, com a psicanálise.Usei como meu fio condutor o livro de Philippe Willemart, OS PROCESSOS DE CRIAÇÃO – NA ESCRITURA, NA ARTE E NA PSICANÁLISE. Autor de formação literária e psicanalítica, professor titular em literatura francesa na USP, coordenador científico do Laboratório do Manuscrito Literário (LML) e do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Critica Genética (NAPCG), ambos na USP, publicou várias obras aqui e no exterior, além daquela que estou trazendo, cito ainda Escritura e Linhas Fantasmáticas, Além da Psicanálise: a Literatura e as Artes e De l’ínconscient en litterature, entre outras.

Philippe Willemart diz que o advento da psicanálise trouxe muitos questionamentos para as categorias literárias. A primeira e grande questão sempre levantada é: quem escreve a obra, o escritor ou o autor? E ele cita Jacques Derrida que declarava não haver sujeito da escritura se entendemos por isso “qualquer solidão soberana do escritor”. Mais esclarecedor Willemart complementa: o sujeito da escritura é um sistema de relações entre as camadas: do bloco mágico (analisado por Freud), do psíquico, da sociedade, do mundo.

De acordo com a sua concepção, quem começa a escritura não é quem entrega o manuscrito ao editor. Nesse percurso duas instâncias logo se distinguem, a do escritor e a do autor que se opõem no tempo e na escritura. Além delas, mais outras três participam da roda da escritura: a do scriptor, a do narrador e a do primeiro leitor. Todas elas identificadas segundo o verbo definidor da ação do sujeito no processo da escrita.

A roda da escritura apresenta as seguintes instâncias:

– O escritor observa – primeira etapa da formação das idéias. Mais do que observar ele sente, afirma Willemart, A qualidade do artista se define mais por seu sentir do que por seu raciocínio.

– O scriptor inscreve – Na etapa seguinte, uma idéia simples ou uma representação na língua do escritor, vinda da observação, se transforma em imagem de si mesma, isto é, entra na linguagem, torna-se idéia complexa e é inscrita pelo scriptor que traça uma marca no papel, a partir da qual o narrador escreve e conta. (…) a partir desta primeira inscrição, o mundo se torna apenas representação, não tendo mais relação com a realidade, as idéias não representam mais as coisas, elas se representam entre si…

– O narrador conta – centralizando o foco narrativo e cedendo ou não a palavra ao personagem. O narrador está mais ligado ao imaginário lacaniano.

– O primeiro leitor relê e rasura – suspende o que o scriptor, a serviço da linguagem, e o narrador, pressionado pela tradição e pelos terceiros, propõem, agindo antes da intervenção do autor.

– O autor confirma – recusa ou aceita, rasura ou prescreve a proposta do narrador, suspensa pelo primeiro leitor, decidindo a escritura final. O autor começa a surgir com a primeira rasura e quanto mais o texto é rasurado mais se distancia do escritor e dá lugar à lenta formação do autor. Assim, o autor é fruto da escritura e não o seu pai.

Essas são as cinco instâncias da escritura e elas agem, cada uma por sua vez, em uma roda constante, construindo a obra literária.

Para Willemart, a instância do autor ao rascunhar e destruir o que surge livremente à cabeça do escritor entra em um processo de negação ou de denegação das origens… Apesar disso, diz ele, a rasura não se define somente como a negação do passado e da filiação, mas como a porta de entrada do futuro e da criação. Nabokov diz que a obra de arte é invariavelmente a criação de um mundo novo, de modo que a primeira coisa que devemos fazer é estudar esse mundo novo tão de perto quanto possível, abordando-o como um objecto inteiramente novo, sem nenhuma relação óbvia com os mundos que já conhecemos.

A dimensão dessa labuta, rasurar, escrever, rasurar, escrever de novo, rasurar … em Flaubert, principalmente na elaboração de Madame Bovary, foi de um sofrimento indizível, ainda que ele o dissesse muitas vezes, é como se exigisse dele um irrevogável adeus à vida, um circuito sisifeano, diz Roland Barthes. Flaubert deixou 4500 fólios rasurados na elaboração daquele romance que contém apenas 470 fólios na última versão. Aqui Philippe Willemart pergunta o que poderia ser a rasura no gabinete do analista. Ele diz serem as pontuações do analista que obrigam o analisando a bifurcar, se deixar levar por outras palavras ou expressões, por outros rumos para contar sua história e se dizer de outro modo. Em outras palavras, o analista ocuparia na roda da escritura (análise) o papel do primeiro leitor.

A rejeição de palavras, parágrafos, até de capítulos, para Philippe Willemart sugere a formação do sujeito freudiano que, por um processo inconsciente de rejeição e de aceitação, se libera ou aceita qualidades ou maneiras de viver e de pensar provenientes de familiares.

Sem dúvida, a escrita desvela as cercanias do escritor, a tradição, a vida, os fantasmas, o pensamento, a ideologia, os preconceitos e, principalmente, a luta agonista para romper com tudo isso, romper com o passado, romper com o seu tempo, transcendendo-o pela criação de um novo estilo poético que lhe dará nova identidade, uma identidade móvel, porque ele, sujeito atravessado pela linguagem, vai querer seguir adiante, em busca de outros escritos inéditos, sempre, sempre conduzido por esse gozo, por esse grão. Este grão ou pedaço do real, para Willemart, citando Lacan, poderia ser identificado ao Outro, que conduz o jogo, levando o escritor a se dizer, a se dessubjetivar ou a se perder. E Ele conclui o pensamento dizendo: Como o inconsciente aparece e desaparece, dá um sentido a um significante e some, até reaparecer em outro momento do discurso, dançando de lapso em lapso, de sonho em sonho ou, mais intensamente, no discurso associativo no divã, assim a escritura literária se constitui no decorrer das idas e vindas da mente do escritor ao manuscrito, por sua mão.

DUAS DAS QUESTÕES LEVANTADAS PELO AUTOR RELACIONANDO ARTE E PSICANÁLISE

1 – Escrever, pintar, esculpir ou inventar uma obra substitui uma análise?

Philippe Willemart começa dizendo que essa questão merece uma resposta ampla, mas que o seu resumo poderia ser o seguinte: enquanto a análise possibilita que o analisando abra seu mundo desconhecido, a prática da arte abre o artista para o “novo” no mundo, incluindo ou não a sua trajetória pessoal. E arremata:

A arte não substitui a análise, nem a análise a arte, mas ambas usam uma linguagem específica, centrada no sujeito através do imaginário, para tentar arrancar um pedaço do real e simbolizá-lo. (Aqui ele coloca uma nota dizendo que Lacan distingue o sujeito analisado do sujeito submetido às pulsões no Seminário, Livro XIV, A lógica do Fantasma, mas não refere o artista).

Sérgio Scotti diz que Lacan ao comentar Hamlet afirma que a obra de arte, no caso a arte escrita, não é uma transposição ou sublimação da realidade. A arte não é paralela à ordem simbólica que estrutura a realidade humana: ela é transversa, pois tem a natureza de um corte. E o que aparece, o que se constitui nesse corte é o sujeito. E é nesse corte que o Real do sujeito se manifesta.

2 – Se todo artista pode ser psicótico, perverso ou neurótico, o que o distingue do não artista?

A resposta de Phillipe Willemart é que o primeiro enfrenta o real, enquanto o segundo sofre ou padece do real.

E então ele apresenta dois exemplos que ilustram sua proposição. A primeira delas foi extraída da dissertação de mestrado – examinada por ele – de Cristiane Brito Uma escritura em Processo: Joaquim Aguiar; e a segunda, retirada de Lacan.

a) A dissertação de mestrado

A terapeuta (Cristiane) analisa os escritos de um psicótico, Joaquim Aguiar, que escreve sob a inspiração direta de Deus. Ela constatou a repetição do conteúdo em versões aparentemente diferentes. Nas entrevistas com o paciente ela lhe mostrou que poderia melhorar seus textos. Para sua surpresa, ele aceitou a sugestão e escreveu várias versões e publicou seu texto.

ANÁLISE

Para o autor, a terapeuta simplesmente sugeriu uma instância a mais que não existia entre o escritor (Joaquim) e o seu inspirador (Deus): a instância do primeiro leitor, a que lê, rasura, retoma e acrescenta.

O paciente conseguiu, após várias entrevistas, produzir uma obra não repetitiva. Isso aconteceu não porque ele encontrou na entrevistadora-terapeuta um scriptor, o instrumento da escritura, nem um narrador, aquela voz que conduz a narrativa, nem um autor, aquele que conclui e não volta mais atrás, mas a instância que manda o escritor reler sua página e reunir os trechos em um certa lógica, a de primeiro leitor.

Insatisfeito com a escrita, o primeiro leitor retoma a função de scriptor com coragem e re-escreve. A nova instância aliviou o paciente do peso do real, representado pela figura de Deus, e lhe permitiu enfrentá-lo.

Normalmente, o que leva a ação do primeiro, segundo ou terceiro leitor é o desejo de responder a uma demanda que pode ser formulada por vários interlocutores e à qual o escritor-leitor tenta e quer adequar-se. Desde uma visão estética, ética, códigos de escritura, movimento literário até requisitos do editor, agente literário, marchand.

Nesse caso, o que mobilizou a terapeuta foi o seu descontentamento com a escrita de Joaquim, ela queria mais, queria uma escrita melhor.

Philippe Willemart em sua análise diz que a terapeuta operando na transferência, se colocou na rota do desejo do paciente, ocupou o lugar do grande Outro e enxertou nele a instância faltante. Ela conseguiu em primeiro lugar descolar Joaquim de sua escritura ou de sua primeira campanha de redação, que ele considerava definitiva, separou o pequeno “a” do grande A que está sempre por trás, mas que nele estava aglutinado ou indiferenciado por força da disposição psíquica ou pela psicose. Nessa etapa, Joaquim deixou de ser psicógrafo ou transmissor da vontade de outro – Deus, deus ou uma entidade supranatural –, distanciou-se de Schreber ou de outros iluminados e não ficou mais inspirado por uma musa, como pretendiam os românticos.

Continuando a análise, Willemart afirma que o passo seguinte dado por Cristiane, ou talvez mesmo acontecido simultaneamente, consistiu em introduzir a dimensão do tempo no trabalho artístico dele, insistir no processo de escritura ou na necessidade de trabalho na confecção de uma obra de arte e permitiu um jogo muito mais ágil e prolongado entre as quatro instâncias citadas anteriormente; os mecanismos da escritura podiam rodar. Cravando a instância de primeiro leitor ou a dimensão temporal que se opõe à dimensão divina ela tornou o trabalho dele im-perfeito ou perfectível, o que é a marca do homem. Ou ainda, aceitando que escrever supõe uma ação se desenvolvendo ou se fazendo, o que os lingüistas chamam “aspecto do verbo”, Joaquim passou de uma identificação com uma divindade para uma identificação com o homem, assumindo a autoria de seus trabalhos ou a “responsabilidade de seu próprio fazer”. Agente consciente desse movimento, Cristiane ativou a dimensão inconsciente desse desejo de resposta às exigências do grande Outro.

Aqui Willemart procura esclarecer que o sujeito do inconsciente que liga o texto inscrito na mente é “teleguiado pelo desejo, não do grande Outro, mas para o grande Outro, como se buscasse um rumo, uma resposta, uma barreira à morte. É mais um ingrediente importante e coerente com a dimensão temporal: a obra de arte, ao mesmo tempo em que precisa da finitude decorrente da flecha do tempo, se quer obstáculo à morte, ou melhor, véu impedindo sua visão. Introduzindo o processo no trabalho de Joaquim Aguiar, a terapeuta inseriu quase automaticamente a morte e a finitude, “desdivinizou” ou laicizou sua postura.

O autor conclui afirmando que o trabalho de Cristiane permitiu a ele entender que conceitos inventados para interpretar e entender o movimento da escritura nos manuscritos – conceitos de scriptor, narrador, etc – são instrumentos muito importantes para entender não só o tratamento de pessoas como Joaquim, mas o modo como funciona a mente. Cristiane, no papel de primeira leitora, revelou-se capaz de analisar os escritos de Joaquim, ao reunir as diferentes formas discursivas e considerá-las palimpsesto, “cada texto agindo como uma rasura sobre o outro”.

b) – Exemplo retirado de Lacan

O autor se refere a um artigo de Lacan, publicado em 1933 na revista surrealista Le Minotaure, em que ele reflete sobre a criação artística. Nesse artigo, O Problema do Estilo e a Concepção Psiquiátrica das Formas Paranóicas da Experiência, que depois foi anexado à sua tese, por ocasião da publicação, Lacan argumenta que, no artista paranóico, “o valor de realidade não é de jeito nenhum diminuído pela gênese que os exclui da comunidade mental da razão”. E dá como exemplo Rousseau, autor de Contrato Social e outras obras importantes (Emílio, Discurso sobre as Desigualdades, entre elas) diagnosticado “como paranóico típico, mas que deve a sua experiência propriamente mórbida à fascinação que exerceu sobre seu século, por meio de sua pessoa e de seu estilo”. Lacan conclui que é possível conceber a experiência vivida paranóica e concepção do mundo que ela gera, como uma “sintaxe original, que contribui para afirmar, pelos laços de compreensão que lhe são próprios, a comunidade humana. O conhecimento dessa sintaxe nos parece uma introdução indispensável à compreensão dos valores simbólicos da arte, e especialmente aos problemas do estilo”.

O que significa dizer que nem a psicose, nem a neurose, nem a perversão são indispensáveis ao artista, mas se esses aspectos da psique se manifestam no ser humano com sensibilidade artística, não impedem a arte de surgir. Em outras palavras, diz Willemart, o verdadeiro artista, mesmo psicótico, consegue se fazer instrumento do desejo do Outro. E cita frase de Lacan em O Seminário, Livro 23, O Sinthoma: “Ser louco não é, portanto, um privilégio”. E Willemart acrescenta: Ser artista é ser suficientemente sensível ao real, ou melhor, padecer suficientemente do real para, como reação, imaginarizar o simbólico vigente e reconstituí-lo com o pedaço de real, arrancado do real.

 

O QUE LEVA ALGUÉM SER ESCRITOR

O QUE LEVA ALGUÉM SER ESCRITOR?

 

 Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende as suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? (…) Sou mesmo forçado a escrever?Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples sou, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão.

                                               Rainer Maria Rilke (Cartas a um Jovem Poeta)

 

 O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é um exemplo de mistificador: conta histórias para que lhas aceitem como críveis e duradouras, apesar de saber que elas não são mais do que umas quantas palavras suspensas naquilo a que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, permanentemente assustadas pela atração de um não-sentido que as empurra para o caos, para fora dos códigos convencionados, cuja chave a cada momento ameaça perder-se.

José Saramago (Cadernos de Lanzarote II)

 

Afinal digo a frase, mas permaneço tomado de um grande terror, porque vejo que tudo em mim está pronto para um trabalho poético,  que esse trabalho seria para mim, uma solução divina, uma entrada real na vida, enquanto no escritório devo, em nome de uma lamentável papelada, arrancar um pedaço de sua carne ao corpo capaz de tal felicidade.

                                                                               Franz Kafka

 

Por que escrevo? — Poderia ser, entre outras coisas, por dever: por exemplo, para servir a uma Causa, uma finalidade social, moral, instruir, edificar, militar ou distrair (…) Ora, tanto quanto me permite minha lucidez, sei que escrevo para contentar um desejo (no sentido forte): o Desejo de Escrever

                                                                 Roland Barthes (A Preparação do Romance, V II)