O patinho feio

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Dizem que O Patinho Feio é a história mais original de Hans Cristian Andersen. Dizem também que é autobiográfica, reconhecida pelo próprio autor e por seus biógrafos. A aparência de Andersen não era das melhores à época. Com altura de 1,85 cm, em torno de vinte centímetros maior do que seus contemporâneos, inclusive dos noruegueses de hoje, muito magro, nariz proeminente além da conta, não parecia ser um modelo de beleza. Filho de um sapateiro que morreu cedo quando decidiu tornar-se soldado e adoeceu, e de uma lavadeira que assim sustentava a família com a morte do marido, e depois tornou-se alcoólatra, não se pode dizer que ele tinha o melhor ambiente familiar. A casa que eles moravam era dividida com mais quatro famílias.  Com esta infância como Andersen tornou-se escritor e não sapateiro? Havia uma vizinha viúva, Mrs. Bunkeflod, que tornou-se de amores pelo jovem, iniciando-o no mundo das letras. Ela não era uma mulher rica, mas era culta, havia sido casada com um clérigo poeta e dispunha de uma pequena biblioteca em sua casa para a qual Andersen era convidado para ir ler. Ele passava a maioria dos seus dias nesta biblioteca lendo tudo que ali existia. Além disso, ela o convidava para participar dos encontros entre ela e a sua cunhada, onde rolava ricas  discussões. Andersen era tão reconhecido por esse afastamento do mundo familiar que o primeiro conto de fadas que ele publicou foi dedicado a Mrs. Bunkeflod.

Dizem que ele após conseguir publicar seus contos e tornar-se endinheirado, costumava vestir-se muito bem ao ponto de ser apontado como um dândi. De patinho feio a cisne após encontrar os seus semelhantes na literatura.

Os contos de Andersen são lidos para e pelas crianças com muito sucesso, O Patinho feio e A pequena sereia, principalmente. A garota que vendia fósforos é muito deprimente e as mães se encarregam da censura. Todavia, esses contos ao serem lidos por adultos permitem muitas interpretações e análises. Na Oficina, quando ele foi colocado como desafio para a escrita criativa surgiram muitas discussões. A proposta para reescrever a história com outro foco narrativo foi bem aceita, mas as análises não permitiram que se fizesse durante a Oficina, mas em casa, porque várias interpretações foram ali colocadas tomando o horário todo disponível. Não dá para reproduzir aqui todos os comentários, o que ficou evidenciado é que ele permite análise sob qualquer aspecto, principalmente sob o ponto de vista psicanalítico como bem o colocou Salomé, do estranho familiar, como disse César depois em email, ele não saiu de casa, aquela casa nunca foi dele, da nominação da mãe que apesar de estranhar aquele filho, aceitou-o, como lembrou Júnior, do conto ser bem mais para adulto pelo tanto de questões que ele levanta, segundo Adelaide.

Na verdade, O patinho feio comove a todos que o leem porque toca de forma particular a cada um. Freud certa vez disse que a tragédia de Édipo, de Sófocles, comovia às pessoas que o assistiam porque elas se identificavam, mesmo que disso elas não tivessem consciência, por conta do desejo primitivo de matar o pai para ficar com a mãe. Quem não se sentiu alguma vez o patinho feio? Essa sensação de estranhamento na família, na sociedade da qual faz parte está muito presente em algumas pessoas. Poucas, entretanto, conseguem libertar-se desse sentimento porque partiram em busca dos seus iguais. Permanecem como presa de uma sociedade que o constrange e inibe.

Em termos literários pode-se dizer que O patinho feio é realmente uma metáfora da vida do seu escritor que soube com muita competência realizá-la. As mudanças de estação indicando evolução, crescimento, maturidade. O lago como a sociedade cruel que exclui e discrimina os que são diferentes. O sentimento de estrangeiro do patinho que sai em busca de sua tribo e só a encontra quando está pronto para reconhecê-la. Tudo foi feito com muita maestria por Andersen.

Os Mortos, James Joyce

42691740NOTAS SOBRE A NOVELA OS MORTOS DE JAMES JOYCE

*Cacilda Portela

A Oficina de Literatura Clarice Lispector está lendo e analisando a novela Os Mortos, de James Joyce. Na impossibilidade de acompanhar até o fim os trabalhos, terminei a leitura sozinha, e aventurei fazer algumas anotações sobre a novela, observando alguns princípios gerais da análise literária. Desde já me coloco à disposição dos leitores para sanar alguma interpretação duvidosa ou precária.

Tema – o assunto, argumento ou proposição central da narrativa é a Morte. A ideia predominante da novela que se concretiza na ação. A ideia global que sustenta o planejamento e a ação. Diferencia-se do motivo pelo grau de abstração.

Motivo ou enredo – relativo ao movimento, se refere à ação ou enredo, e tem o poder de encaminhar a ação porque aciona sua dinâmica. A ceia de Natal, o discurso de Gabriel, o vinho e a dança, as brincadeiras quando os convidados se despedem no hall, a caminhada ao longo do rio sob a neve, a canção que Gretta escuta transtornada no final da festa são fragmentações do todo narrativo, que emergem do desenvolvimento da narrativa para os episódios finais: a revelação de Gretta e as consequências para Gabriel.

Forças-motrizes – constituem a permanência de certos padrões de comportamento diante da realidade, certos valores, certas soluções para os problemas humanos, certas ideias fixas, certos moldes mentais. Gabriel vai elaborando essas forças que implicam em sua visão do mundo.

O medo de falhar é um padrão do comportamento de Gabriel Comroy, e indica necessidade de fuga da situação. Teme falhar com os convidados se o seu discurso, logo mais, na ceia de Natal, não for bem entendido. Pensa: todo o discurso era um erro, do princípio ao fim. Falhara com Lily quando lhe ofereceu uma moeda porque ela guardara sua capa de chuva. Falhara também com a Srta. Ivors. Acusado por ela de escrever resenhas para o jornal Daily Express e de ser um bretão ocidental, fica estarrecido e reticente, só conseguindo responder que não via nada de política em escrever resenhas, enquanto queria dizer que a literatura está acima da política. Quando indagado pela esposa sobre a conversa com a Srta. Ivors, Gabriel responde que ela apenas queria que ele fosse viajar nas férias para o oeste da Irlanda. Pouco ouvia o que a esposa falava. Os dedos trêmulos batiam no vídeo da janela. Pensa como deve ser muito agradável caminhar sozinho ao longo do rio. Muito mais agradável do que estar ali na mesa do jantar!

Um Gabriel inseguro e deslocado com relação à sociedade, às pessoas e a si próprio, olhando a neve pela janela, voltou a pensar no seu discurso e na citação que faria dirigida para a Srta. Ivors:

Senhoras e senhores, a geração que agora está em declínio entre nós teve suas falhas, mas, de minha parte, creio que ela teve certas qualidades de hospitalidade, de humor, de humanidade, de que a nova e muito séria geração educada, que cresce entre nós, me parece carecer.

É a resposta de Gabriel que ele gostaria de ter dado para a Srta. Yvors, que deixa a festa sorrindo e não parecia estar chateada. Gabriel olhou para o nada escada abaixo.

Pensou nos tópicos do seu discurso e repetia para si mesmo a frase que escrevera em sua resenha: É como se estivéssemos ouvindo uma música atormentada por pensamentos. Aqui, o autor da novela traz para o leitor a ideia de que a frase é dirigida para Gabriel, e que significa algo que está sendo preparado ou montado para o tema da novela, e que, revelado, significa a tomada de conhecimento da razão de ser da vida de Gabriel. Será por acaso que, logo em seguida, tia Jane, ao piano, executa a canção Vestida para o Matrimônio?

Quando começa o discurso, Gabriel lembra que a Srta. Yvors havia ido embora. Cheio de confiança em si mesmo começa dizendo:

… vivemos em uma era cética e atormentada pelo pensamento de jovens que poderão desprezar valores de humanidade, de hospitalidade, de humor de um gracioso estado de espírito que pertenciam a dias passados. (…) e se nós nos remoermos demais nessas memórias jamais encontraremos forças para seguir bravamente com nosso trabalho entre os vivos. Nós temos, todos nós, deveres vivos e afetos vivos com esses valores”. (54)

Os convidados estavam saindo. Gabriel vê sua esposa escutando uma canção, e sente-se atraído por ela. Observava a esposa que não se envolveu na conversa. Ela parecia tão frágil que ele teve vontade de defendê-la de algo e, então, ficar a sós com ela. Sentia-se orgulhoso, alegre, carinhoso, valoroso. Ela perguntou pelo nome da canção que estava tocando. A Garota de Aughrin foi a resposta. Neste ponto, a ação se encaminha para algo novo, fundamental, para o desfecho da novela.

Gretta revela para Gabriel a paixão de adolescência pelo garoto Michel Furey. Ele morreu aos dezessete anos porque, mesmo muito doente, fora despedir-se dela que voltava de férias para a casa dos pais. Ele costumava cantar a música A Garota de Aughrin. Eu consigo vê-lo claramente, ela diz para Gabriel. Não é terrível, morrer tão jovem assim? Gabriel sente-se humilhado pela evocação daquela figura do mundo dos mortos. Uma consciência vergonhosa de si mesmo o avassalou. Gretta diz acreditar que Michel morreu por causa dela. Quase não lhe doía mais pensar no pobre papel que ele, seu marido, havia tido na vida dela.

Epifania – Seção da obra literária que apresenta, simbolicamente, um momento de revelação. O texto costuma ser denso e profundo. Um terror vago se apoderou de Gabriel como se um ser intangível e vingativo estivesse vindo contra ele em seu mundo vago. Era chegada a hora de iniciar sua viagem para o oeste da Irlanda. Pensou ver a silhueta de Michel Furey apoiada em uma árvore na neve. O mundo real, em que os mortos tinham vivido, desagregava-se. A neve cobria todo o universo como se fosse uma manifestação divina. Como se lhes descesse para a hora final, sob todos os vivos e os mortos. Surge então uma súbita sensação de entendimento ou de compreensão da essência das coisas. Um pensamento único e inspirador. Passado e futuro não importam mais. Gabriel Conroy toma consciência da finitude humana.

Cosmovisão – Visão filosófica singular de ver o mundo. Crenças sobre a forma como as coisas são e deveriam ser. Gabriel apresenta na ceia de Natal, e de forma mais incisiva, suas ideias sobre o valor e o destino da pessoa humana. Os episódios remetem para o conhecimento de toda a obra, e se encaminham para uma visão do mundo. Um Gabriel moralista, temeroso, desencantado, que sucumbe pela revelação da esposa. Há de chorar para sempre porque nada mais tem razão de ser. Essa crença, de base filosófica, explica sua amargura, que procura na morte apagar uma existência linear e sem grande sentido. Tem na morte um sono sem sonhos.

Conteúdo da Obra- Novela de ideias, pela retratação filosófica e atemporal. Vale salientar que a novela Os Mortos não está estreitamente relacionada ao ambiente histórico. E que nenhuma obra se desliga totalmente do seu ambiente externo.

* Cacilda Portela é advogada, pesquisadora social, ensaísta.

 

O Vermelho e o Negro – A França de Stendhal

StehdhalA França de Stendhal

* Luzia Ferrão e **Lourdes Rodrigues

 

É impossível dar conta da história. Pessoas interagem no tempo e no espaço, construindo e desconstruindo fatos, acontecimentos e narrativas. Efeitos do processo coletivo travado entre os homens e a realidade, singularizados apenas pelos nomes. Mas Stendhal consegue em O Vermelho e o Negro, obra de ficção, dar conta dos últimos cinquenta anos da história da França quando escreveu esse livro em 1830.
No primeiro capítulo já encontramos os primórdios da revolução industrial. Ao situar o cenário da sua narrativa em uma das mais belas cidadezinhas do Franco-Condado, Verriéres, criada ficcionalmente, o narrador ao falar da sua geografia, diz:

Uma torrente, que se precipita da montanha, atravessa Verrières antes de se lançar no Doubs e põe em movimento um grande número de serrarias, uma indústria muito simples que proporciona certo bem-estar à maior parte dos habitantes, mais camponeses do que burgueses. Contudo, não foram as serrarias que fizeram a cidadezinha enriquecer. É à fábrica de tecidos estampados, conhecidos como Mulhouse, que se deve a tranquila situação geral de Verriéres que, após a queda de Napoleão, fez reconstruir as fachadas de quase todas suas casas.
Basta entrar em Verriéres para que se fique atordoado pelo barulho de uma máquina ruidosa e de aparência horrível. Vinte martelos pesados, recaindo com um ruído que faz tremer o chão, são erguidos por uma roda movida pela água da torrente. Cada um desses martelos produz, por dia, não sei quantos milhares de pregos.

No contexto da Revolução Industrial, (1760 a 1820/1840), acontecimento considerado divisor de água na história humana, surge um novo modo de pensar e de agir. O fazer humano, seu trabalho, a condição que o distingue dos outros seres e principal instrumento de transformação, desloca-se da esfera do indivíduo e passa a ser produto de máquinas que, embora suas origens e criações sejam devidas a algumas poucas cabeças, dependem de muitos homens para serem operadas. O modo de produção não se baseia mais no trabalho servil dos tempos feudais. O desenvolvimento das forças produtivas promoveu o rompimento das relações sociais daquela época e novas relações surgiram no cenário: capital e trabalho agora se encontram no mercado.

O Vermelho e o Negro fotografa a sociedade francesa durante essa transição, referindo-se, constantemente, aos burgueses, aos liberais, à luta de classes. Há passagens no livro em que Julien Sorel negocia a sua força de trabalho, no caso, trabalho intelectual, devido à sua inaptidão para trabalhar na cadeia produtiva. O autor de forma irônica revela como a sociedade está imbuída da lógica capitalista, do lucro, do maior ganho. O personagem que ele criou encara seus patrões como opressores, para ele, ricos e pobres estão em permanente luta de classe. Julien Sorel carrega forte revolta contra os ricos, os poderosos: Gente rica é assim mesmo! (…) O ódio extremo que animava Julien contra os ricos ia explodir. (…) Quando está sendo julgado pelo crime de ter atirado, com premeditação, na Madame Rénal faz um discurso de caráter essencialmente ideológico:

Ainda, porém, que eu fosse menos culpado, vejo homens que, sem se deterem no que minha juventude possa merecer de piedade, irão querer punir em mim, e desencorajar para sempre, esses moços que, nascidos em uma classe inferior e de certa forma oprimidos pela pobreza, tiveram a felicidade de dispor de uma boa educação, e a audácia de introduzir-se naquilo que o orgulho das pessoas ricas chama de sociedade. Este é o meu crime, senhores, e será punido com severidade ainda mais que, na verdade, não sou julgado por meus semelhantes. Não vejo no banco dos jurados nenhum camponês enriquecido, mas unicamente burgueses indignados.

O livro retrata ainda a aristocracia marcada pelos efeitos da efervescência do clima de terror revolucionário dos anos de 1789 a 1799, data da Revolução Francesa, cujo principal legado para a humanidade foi sintetizar no ideário guia dos revolucionários valores norteadores das sociedades democráticas: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. –
O autor, apoiado no tripé Estado, Religião e Cultura conecta fatos e detalhes do passado recente que estão nas origens da nova sociedade, fatos transformadores das relações econômicas, políticas e sociais. Entretanto, o romance ao incorporar o momento histórico do seu autor não se atém, totalmente, à realidade dos fatos. O processo de criação do romancista está muito mais comprometido com a sua visão de mundo, seus anseios, suas paixões do que mesmo com a realidade.

Através dos discursos, dos símbolos e de tantos outros objetos próprios da cultura o romancista vai tornar inteligível e ao mesmo tempo agradável e bela a leitura deste romance histórico e psicológico. A começar pelo título controverso: O Vermelho e o Negro. Alguns dizem que representa o vermelho da França revolucionária, do sangue derramado; e o preto, do período de terror, chamado de trevas. Outros creditam às duas cores à divisão do personagem entre o uniforme vermelho do exército francês e a batina preta da Igreja. Stendhal não esclareceu e as especulações correm livres.

A passagem do ancien regime para uma nova sociedade se fez através de acontecimentos aterradores e sanguinários. A história do herói deste romance é, neste sentido, uma história revolucionária, captada através das rememorações das guerras napoleônicas, e do endeusamento de Napoleão, muito amado e odiado, pelas críticas aos valores conservadores da monarquia e da igreja e pelo fortalecimento da burguesia, em outras palavras.

A consciência crítica particular de Stendhal, revelada através do personagem Julien Sorel representa, num certo sentido, a consciência histórica da época. Escrito durante o período da Restauração, antes da Revolução de 1830, o romance traz a fermentação política que vivia a França, em especial, Paris, cenário de todos os movimentos sociais. O país era rico, mais o seu povo, principalmente o camponês era pobre. As crises econômicas, originadas por diversos fatores, geravam novos impostos para manter os padrões da monarquia, em detrimento das outras classes sociais.

O Iluminismo foi o movimento que buscou, através da razão, retirar o poder do divino, (representado na França pela Igreja Católica) e da monarquia, deslocando-o para as ideias, tornando o saber, a base do crescimento humano e cientifico, inspirou a Revolução Francesa e as guerras que se seguiram.

Os iluministas brilhavam nos salões de Paris, intelectuais burgueses que representavam o afastamento das trevas, principalmente da escuridão produzida pelas crenças religiosas, sobretudo as da igreja católica, secularmente contrária ao progresso de uma forma geral. O livre pensar era proibido pela igreja, isso ficou bem claro no livro Em nome da Rosa, de Umberto Eco. Ter coragem para fazer uso da tua própria razão! Este é o lema do iluminismo, afirmava Kant um dos filósofos deste movimento.

O personagem Julien Sorel sabe que a história não nasce espontaneamente, existem causas, relações que transformam o saber e o pensar dos homens, representadas na fala, na escrita, nas artes. No romance, o filosofo Voltaire é citado, respaldando a existência de novos pensamentos filosóficos, descobertas científicas, de ciências em erupção como a sociologia e a psicologia, compondo um novo cenário mundial. O estudo da alma humana presente no romance de Stendhal são representações dessas noções cientificas que começavam a serem desenhadas utilizando este novo olhar. Os sentimentos humanos e a racionalidade do personagem são constantemente evidenciados; o amor e a missão de vencer sua condição de filho de serralheiro são sustentados por um conhecimento e reconhecidamente erudito. Julien é aparentemente servil devido a sua condição social e econômica, mas é consciente do seu saber e faz questão de exibi-lo nos salões, fazendo críticas à realidade que o rodeia, encantando Mathilde com a sua ousadia. O acesso permitido pelo saber constitui a chave para penetrar nas engrenagens do poder e neste sentido ele o utiliza muito bem. Parece que nada escapa ao personagem; que usa linguagem crítica, ácida sobre a Igreja, os nobres, a burguesia. Ora num discurso direto, ora através de um narrador que usa o diálogo indireto livre os nobres, os padres, especialmente, os jesuítas, os burgueses, os políticos, os liberais são apresentados nos seus baixos patamares morais: mesquinhos, cruéis, mentirosos, falsos, gananciosos, avarentos, repulsivos, ciumentos, invejosos. Afora Chelán, o abade Pirard e o Marquês de La Mole ninguém escapa às suas críticas. O novo modo de produção trouxe novas formas de trabalho, novas relações sociais, e principalmente, outra forma de ver o mundo.

Em termos literários pode-se dizer também que o autor revolucionou, ao trazer para personagem principal o anti-herói, o arrivista Julien Sorel. As inovações não param por aí, ele inova também quando traz duas heroínas: Madame de Rènal e Mathilde. Dividido em duas partes, o romance na primeira traz o conflito da relação de Julien Sorel com a Senhora Rènal, mulher casada, mais velha, mãe das duas crianças das quais ele é o preceptor. Na segunda parte, o conflito gerado pelo envolvimento com a filha do seu nobre patrão, muito jovem, bonita, impulsiva, rodeada de pretendentes aristocratas.

O Vermelho e o Negro traz a modernidade no fazer literário ao privilegiar a cena em detrimento do sumário narrativo tão comum naquela época. A história ora é contada por um narrador onisciente intruso que emite opiniões sobre as pessoas, o cenário, a política, ora é entregue aos personagens invadindo os seus pensamentos, desejos e sentimentos, numa demonstração de onisciência múltipla e seletiva. O foco narrativo desliza de Julien Sorel para Madame Rènal, ou ainda para o marido dela, o Senhor de Rènal que, através de monólogos diretos ou de discursos indiretos livres assumem a narrativa, num predomínio absoluto da cena. A mudança de perspectiva ocorre, às vezes, dentro do mesmo parágrafo, para dois ou mais personagens. A impressão que se tem é de uma câmara deslocando-se de um personagem para outro. Personagens e narrador transitam tão juntos, quase sempre, que se confundem, não sendo possível identificar com clareza, a fala de um e de outro. O narrador invade a mente do personagem para falar dos seus sentimentos mais profundos, nada lhe escapa nem a mais torpe vilania deixa de ser revelada. Trata-se de um narrador que se imiscui de tal forma na narrativa que às vezes se transforma em personagem, colocando-se totalmente dentro da cena, falando de si próprio. Há várias passagens assim, uma delas, na qual ele está falando do paredão que o prefeito de Verriéres construiu, onde se descortina uma bela visão do Doubs ele diz:

Quantas vezes, rememorando os bailes de Paris abandonados na véspera, e com o peito apoiado contra aqueles blocos de pedra de um belo cinza caindo para o azul, meus olhares não mergulharam no vale do Doubs!

Mais adiante, diz ainda, De minha parte, apenas uma coisa tenho a censurar na ALAMEDA DA FIDELIDADE; lê-se esse nome oficial em quinze ou vinte locais. Em outra passagem diz: …mesmo eu sendo um liberal e ele conservador, louvo-o por essa medida.

A ironia usada durante a narração é outra das suas facetas. Sem dúvida, Stendhal pretendia explodir com as convenções que até então regiam a literatura. E conseguiu. Ao usar um fato da crônica policial para fazer o seu romance, ele demonstrou que os acontecimentos mais extraordinários são os mais comuns. É do dia-a-dia, de fatos extraídos da vida como ela é, como bem dizia Nelson Rodrigues, que se podem criar grandes obras, depende da ousadia do seu criador. E isso não lhe faltou.

A vida pessoal de Stendhal e a sua obra literária se entrelaçam de forma escancarada. Dele diz Dóris Lessing, conforme se pode ler na tradução feita por Adelaide Câmara e já postado nesse blog: Seu trabalho está cheio de pais monstruosos e figuras de autoridade. Ninguém fiou mais grato do que ele quando finalmente cresceu e foi capaz de deixar o lar.

Na análise que Otto Maria Carpeaux faz de Stendhal na História da Literatura Ocidental, ele diz que:

Stendhal é muito mais moderno do que Balzac, romancista da burguesia em ascensão. Veio diretamente do romance gótico e parece, por isso, mais romântico do que Balzac; na verdade é, no gênero burguês do romance, um sobrevivente de época pré-burguesa. Stendhal é o único clássico do gênero moderno romance. (…).

O Vermelho e o Negro é ainda quase pioneiro no gênero de romance psicológico, antes dele, apenas Choderlos de Laclos, autor de Ligações Perigosas. Depois, veio Dostoievski com Crime e Castigo. Apesar do cenário histórico, a viagem mais longa que o romance traz é pela alma humana. Personagens controversos, movidos pelo desejo, por motivações interiores trazem elementos ricos e reveladores do ser humano. Merecem um capítulo à parte de estudos.

                                                             Jaboatão dos Guararapes, agosto de 2014.

* Luzia Ferrão – professora universitária, assistente social, contista, ensaísta, começou a participar da Oficina em 2014..

 **  Lourdes Rodrigues – economista, contista, ensaísta, coordenadora da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector desde 2006.

Notas sobre O Vermelho e o Negro

Algumas notas sobre O Vermelho e o Negro, de Stendhal
(até a leitura do capítulo 5) 

*Teresa Sales

08 de março de 2014

 

            Don Gruffot Papera, já referido aqui no blog, avisa-nos que a cidadezinha de Verrières, uma das mais bonitas do Franco Condado, não existe de fato e, tal como o cenário reconstruído de uma novela, é inventada pelo autor. Pelo ensaio de Heinrich Mann, que aborda principalmente a vida pessoal do autor, também ficamos a saber o quanto a criação da natureza e da personagem principal, Julien, tem a ver com a sua própria trajetória de vida.

            Diferentemente do que ensinam os manuais, onde se deve capturar o leitor já no primeiro capítulo, apontando uma possível trama ou conflito, no capítulo inicial desse livro temos apenas uma belíssima descrição da cidadezinha, cenário da trama que virá a seguir. A personagem principal não aparece ainda. Os que aparecem, completando o cenário da cidadezinha com as serrarias, a fábrica de pregos e a de tecidos estampados, são o camponês e o nobre, ambos recém transformados em burgueses. O primeiro, carregando seu modo grosseiro de vida. O segundo, a sua aristocracia e, para não se envergonhar de ser industrial, fez-se prefeito.

            A negociação pelo espaço urbano entre o industrial aristocrata e o industrial camponês; assim como a promiscuidade entre o público e o privado incorporada na figura do primeiro; e ainda a tirania da opinião, ou despotismo característico da província; remete-nos aos dias de hoje, com outros personagens, em pleno século XXI.

            Seria isso então a capturar o leitor? A universalidade da arte de narrar, que nos leva, pela leitura, a co-autores da narrativa?

            É no capítulo II, que tem como personagem principal o prefeito, que começam a aparecer os conflitos: entre o poder civil local, representado pelo Senhor. Rênal (prefeito); e a Igreja, representado pelo Padre Célan; e o poder central em Paris, representado pelo Sr. Appert.

            Até o capítulo V a narrativa se parece com um jogo de quebra-cabeça em que cada peça nova vai se somando às anteriores, dentro de uma paisagem apresentada em grandes traços no primeiro capítulo.

          Ficou uma dúvida: é um narrador intruso ou discurso indireto livre que caracterizam alguns parágrafos desse segundo capítulo?

            O capítulo III é dos mais repletos de cenas. Aprofunda-se o conflito do capítulo II já referido, interrompido abruptamente pelo susto causado pelo filho dos de Rênal subindo em um muro perigoso, o que leva o Sr. de Rênal a consolidar sua decisão de aprofundar seu prestígio social, contratando um preceptor para os filhos. É nesse capítulo que sai do anonimato a Senhora de Rênal, não somente expressando uma opinião em relação ao conflito, mas sendo apresentada em algumas de suas características de personalidade: uma mãe fervorosa que não quer olhar o enfado de sua relação conjugal, na qual o amor está ausente e ela é desmerecida em suas opiniões e preocupações com os filhos e que, desde que lhe deixem com esses e seu jardim magnífico, nada questiona.

            Outra peça do quebra-cabeça aparece no capítulo IV, através de duas cenas: a proposta da contratação do Julien feita pelo aristocrata de Rênal ao seu pai, o camponês Sorel; e a rude relação entre o pai e o filho Sorel, que serve como título ao capítulo.

            O capítulo V, chamado “Uma negociação”, na qual “a astúcia do camponês venceu a astúcia do homem rico, que não precisa dela para viver”, dá continuidade à rudeza na relação pai-filho, apresentando algumas características de Julien: sua fantástica memória, suas preferências literárias e como se constituiu a sua alma hipócrita. Aqui outra intrusão: “A palavra (hipocrisia) surpreende os leitores? Até chegar a essa palavra horrível, a alma do jovem camponês teve de percorrer um bom caminho”.  Seguem-se nove parágrafos de flashback sobre Julien, interrompendo a narrativa quando ele deu a paradinha na igreja.

            A descrição de Julien na igreja deixa duas insinuações (suponho que isso há de ter alguma nomeação na arte da narrativa de ficção) que possivelmente serão retomadas mais adiante. Primeiro, o bilhete que ele encontra no genuflexório com o brasão do Senhor. de Rênal. E, “ao sair, acreditou ver sangue perto da pia; era água benta que se derramara: o reflexo das cortinas vermelhas que cobriam as janelas fazia que parecesse sangue” (a mim, lembrou uma cena emblemática carregada de símbolos do filme de Kleber Mendonça “O som ao redor”, quando a cor da água da cachoeira do engenho passa da cor normal à cor vermelha).

*Teresa Sales – Socióloga, ensaísta, cronista, ficcionista.