CARNAVAL

Restos de Carnaval

Clarice Lispector

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha ao encontro da minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola. Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem.

Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto, essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

Lançamento livro da Oficina

Lançamento Escrituras II - Traços da Oficina

Lançamento Escrituras II – Traços da Oficina

 Escrituras II – Traços da Oficina reúne textos dos escritores da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, os viageiros dos mares das palavras.

A Oficina foi criada em 2006, a partir de um grupo dedicado às leituras clariceanas, o que levou à nomeação de Clarice Lispector como estrela guia. Faz parte do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise, associação de psicanalistas, cuja finalidade é promover e desenvolver estudos sobre a Teoria Psicanalítica e as Veredas Literárias, desde a perspectiva freud-lacaniana.

A Psicanálise, em sua origem, relaciona-se com a arte em bases profundas e fundamentais. A Literatura, em particular, se tornou o pilar de sustentação das teorias psicanalíticas, desde que Freud foi buscar suporte em Shakespeare e Sófocles para as suas primeiras formulações sobre o inconsciente e o complexo de Édipo.

Sem dúvida, a Literatura é o grande olho-d’água, lugar de jorro ininterrupto dos muitos saberes. As palavras guardam mistérios. É preciso tecê-las, abrindo portas para os seus significantes. Cada palavra é uma viagem, por isso estamos sempre nos lançando ao mar e nos chamando de viageiros. No leme, o binômio: leitura/escrita. Sempre.

                                            Lourdes Rodrigues

Clarice renasce no mercado norte-americano (Publishnews)

30 de maio de 2012, quarta-feira

Clarice Lispector renasce no mercado norte-americano

O Estado de S. Paulo – 30/05/2012 – Por Ubiratan Brasil

É o momento Clarice Lispector – quinta-feira, as livrarias dos Estados Unidos começam a receber quatro livros (Perto do coração selvagem, Água viva, A paixão segundo G. H. e Um sopro de vida) da grande escritora traduzidos para o inglês, todos pela editora New Directions, que já lançou no ano passado A hora da estrela. O fato repercutiu na imprensa, com o jornal Los Angeles Times citando a frase de um antigo tradutor de Clarice (1920-1977), Gregory Rabassa, que comparava a autora brasileira a Marlene Dietrich (no traço físico) e a Virginia Woolf (no traço estilístico). Os quatro volumes chegam com um delicado projeto gráfico: juntas, as capas reproduzem uma foto de Clarice jovem. E, em um canto, são reproduzidos elogios de personalidades literárias.

Leituras dos Viageiros

 LEITURAS REALIZADAS RECENTEMENTE PELOS VIAGEIROS DA OFICINA DE CRIAÇÃO LITERÁRIA CLARICE LISPECTOR

MARIA TEODORA DE BARROS OLIVEIRA

Li Contos de Fantasmas, de Daniel Defoe. Acho que nossos contos contados verbalmente, sobre fantasmas, são mais causativos.

Comprei para ler, agora,  o livro mais clássico de Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão, ou, na nova tradução, Origem do drama trágico alemão. Depois desses, vou ler sobre a Alegoria, construção e interpretação da metáfora, de Hansen.

Tudo isso para tentar entender um pouco mais sobre o melancólico.

 

LOURDES RODRIGUES

Li no mês de abril, Eu a Amava, de Anna Gavalda. Primeiro romance de uma escritora francesa de 32 anos na época do lançamento. Ela já havia publicado livro de contos: Je voudrais que quelq’um m’attende quelque part, com mais de 200 mil exemplares vendidos. Eu a Amava, também sucesso de vendas – segundo a edição que eu li, 2004, Editora Record, Tradução de Procópio Abreu — foram vendidos  cerca de 500 mil livros na França, com tradução para  mais de 20 países.

Jovem, casada, dois filhos pequenos, abandonada pelo marido que se apaixonou por outra, em profundo desespero viaja com o sogro para a casa de campo da família. Narrado pela jovem senhora, que mantém  diálogo/duelo com o sogro de quase 170 páginas, em que as emoções afloram, as diferenças de visão de mundo se escancaram, as histórias secretas de cada um aparecem, a solidão e o desamparo escapam das palavras. Aqui e ali alguns diálogos indiretos livres, fluxos de consciência. Não diria que é um grande livro, mas a leitura fluída é agradável. O excesso de diálogos às vezes cansa, senti vontade de mandá-los calar a boca, para tomar  fôlego.

Ainda no mês de abril comecei a ler e estou terminando O Rio é Tão Longe, as Cartas de Otto Lara Resende para Fernando Sabino. Achei adorável o encontro com o mundo literário do pós-guerra até 1970. São 400 páginas de cartas, do confesso espistológrafo Otto. Cartas escritas com uma avidez incrível, enquanto ele estava em Bruxelas, como adido cultural na embaixada do Brasil, quando voltou para o Rio de Janeiro (Sabino estava em Londres) e depois quando morou em Lisboa, novamente a serviço da embaixada. O jeito de ele escrever é hilário, conta os mínimos detalhes de um fato, descreve diálogos, fala mal de todo mundo, descreve cenas com perfeição, abre a alma, expõe-se, reclama. São cartas deliciosas de serem lidas, por elas passam Carlos Drummond, Dalton Trevisan, Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Castelo, Hélio Pellegrino, Nelson Rodrigues, Murilo Rubião, além de Sabino e do próprio Otto e muitos outros. Estão nelas políticos mineiros JK, Magalhães Pinto, Israel Pinheiro (sogro de Otto), Benedito Valadares (ex-sogro de Sabino), além de Juarez Távora,  Carlos e Sérgio Lacerda, Castelo Branco, Costa e Silva, Janio e Jango. Apesar do período muito turbulento em termos políticos, ele fala pouco da questão política brasileira e isto é intencional. Recomendo a leitura, muito agradável.

Tenho o hábito de ler vários livros de uma só vez, até que um deles me fisga e eu abandono por algum tempo os outros. Os dois livros citados me fisgaram. Mas, estava lendo, ainda, A Melodia das Coisas, de Rainer Maria Rilke. É um livro com várias escritas do autor: alguns contos, contos longos, alguns bem biográficos; ensaios sobre as artes plásticas;  cartas ao Jovem poeta Franz Kappus; a resenha literária de Os Buddenbrooks, de Thomas  Mann; e o prefácio de Franz Kappus ao livro Cartas ao Jovem poeta (o poeta a quem Rilke dirigiu as cartas). Até o momento, li, apenas, um conto, autobiográfico,  Ewald Tragy, excelente, sobre a decisão difícil de tornar-se escritor.

Outro livro abandonado temporariamente foi Em busca de Sentido, de Viktor Frankl, quase cheguei a concluir a leitura, mas parei várias vezes. É um livro muito pesado, escrito por um psiquiatra austríaco que sobreviveu a um campo de concentração nazista. Ele relata a sua própria experiência nos campos de concentração, quase toda a sua família foi exterminada, e a sua busca de uma razão para se manter vivo em meio às atrocidades cometidas pelos seres humanos. Essa busca acabou no futuro levando-o à descoberta de um novo ramo da psicoterapia, a logoterapia.Uma leitura imperdível pela profundidade da análise da alma humana diante de situação extrema. Também, estava lendo Diário – IV,  de Miguel Torga, onde ele reúne poesias e passagens da sua vida, da infância, reflexões sobre a vida, a velhice.. Muito bom!

CÉSAR GARCIA

Terminei de ler O REMORSO DE BALTASAR SERAPIÃO, de Valter Ugo Mãe, que recebeu o prêmio José Saramago. Fala da crueldade sofrida pelas mulheres nas relações com os homens em um ambiente medieval, rural, pobre e ignorante. Mas a novidade é a linguagem que o autor usa. Parece ter buscado a fala da época em que se passa a história mais ou menos como fez Guimarães Rosa. Isto exige do leitor maior dedicação e interesse. Se estiver apenas querendo ler algo agradável é melhor procurar outro livro.

Estou lendo também EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, de Proust, que também exige paciência e perseverança sobretudo porque estou lendo em francês. Tampouco é agradável. Leio com esforço para entender de onde vem a sua fama.

 

Enquanto isso, li também a peça LISÍSTRATA, A GREVE DO SEXO, de Aristófanes. Só assim as gregas conseguiram forçar os homens a pôr fim às guerras e voltar para casa, pois elas não suportavam mais a solidão.

 

 

ANGELA CAROLINA CYSNEIROS

Também tenho o hábito de ler vários livros ao mesmo tempo. Um horror! Comecei e não terminei ainda Ramsés, vol. I,  leitura agradável, biografia romanceada do grande faraó egipcio ( são 4 vol) boa reconstituição de época, cenário, baseado em fatos reais, mas, como disse, romanceado. Como adoro o Egito, delicio-me a cada página, volto a elas para ver se encontro um pouco do Egito que visitei ( coitada de mim rsrs) .

Comecei e não terminei por estar achando um tanto sem graça e cansativo A Ilha do Tesouro, leitura tida como infanto-juvenil, mas que não é, talvez fosse interessante quando surgiu. Pode ser que quando ” deslanchar”, encontre algo para dizer a vocês. Por enquanto é isto: chato, cansativo, repetitivo e lento. Mas vou dar crédito a ele.

Continuo me deliciando com as Cidades Invisíveis, uma a cada dia, com leituras repetidas, obrigatoriamente; sem comentários; é metáfora demais para esmiuçar aqui. Acho que é subjetivo demais, mas sinto me transportar para cada uma daquelas cidades como se as estivesse visitando.

Há outro, mas que não é datado, não é romance e pode ser lido a qualquer hora, Uma história da Leitura, de Manguel, este fica na cabeceira para ser apanhado a qualquer noite. É imperdível.

 

Li de um só fôlego na Livraria um conto de César Garcia MUITO BOM, O Pacto, criativo, ágil, daqueles que prendem e surpreendem o leitor do início ao final, afora o fato de trazer uma história inusitada.

E ainda, mais recentemente, nas poucas horas vagas, contos de Virginia Woolf, saboreando um a um. Ufa!!!

 

Ontem fui sorteada com Eu a Amava. Li ontem mesmo, a noite, 40 páginas. Escrito numa linguagem simples, coloquial, com lugares comuns, até, mas a aparente simplicidade e até mesmo o não inusitado do enredo nos prendem. Na verdade, chegou no momento em que precisava de leitura assim. É o que Lourdinha já falou, pelo que pude ler.

Sim, comecei a ler A Visita Cruel do Tempo,  de Jennifer Egan, vencedor do Pulitzer, havia esquecido.Vai ver, eu esteja lendo com um certo preconceito pela linguagem, sei não. Pretendo pegá-lo de uma vez, pois talvez a leitura partida prejudique. Lourdinha, podemos trocar impressões sobre ele, ok?

 

TERESINHA PONCE DE LEON

Além dos lidos na nossa Oficina, não li nada de novo. Em compensação, aproveitando uma “ameaça”de gripe, relí alguns velhos amigos,como faço de vez em quando.Lá vão os comentários do primeiro, “fessora”:

O Rei Pasmado e a Rainha Nua, do grande escritor espanhol Gonzalo Torrente Ballester, utor de uma obra considerável que lhe valeu os mais importantes prêmios literários espanhóis: Prêmio Nacional de Literatura(1981), Prêmio Miguel de Cervantes(1985) e Prêmio Planeta(1988).

Resumo: Era uma vez um jovem rei que nunca tinha visto uma mulher nua. Nem mesmo sua linda e jovem esposa. Mas, ao amanhecer na cama da cortesã Marfisa, finalmente aconteceu! Uma surpresa, um deslumbramento…E o rei pasmado, afirmou: “ O paraíso tem que ser uma coisa semelhante”.

Agora, Sua Majestade quer ver nua também a rainha.Era  proibido, pecado,  ameaçava as altas esferas do poder. Espanha,1620. O terror da Inquisição espalha seu manto de repressão, fanatismo e hipocrisia política. Intrigas maquiavélicas movimentam os bastidores da Corte, onde a liberdade e a sensualidade enfrentam as forças da negação do prazer:uma história fascinante,cheia de humor e suspense.

Li esse livro pela primeira vez em 1993. Apaixonei-me e já perdi a conta das vezes que o li.

2.Tirei também da estante para reler a peça de Bernard Shaw,  Pigmalião, que adoro e que tem tudo a ver com uma parte essencial do meu trabalho.

 

DIVA HELENA SIMÕES

 Acabo de terminar a leitura de O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse. Tinha muita curiosidade de ler esse livro desde que vi Clarice Lispector citando-o naquela famosa entrevista que deu para a TV pouco antes de sua morte.

 

Gostei imensamente. Identifiquei-me bastante com a personagem Harry Haller. Na verdade, o livro é um pouco autobiográfico, pois fala de momentos vividos pelo próprio Hermann Hesse. Inclusive as iniciais H.H. da personagem são a mesma do autor. A também personagem Hermínia, que é interessantíssima, tem o nome feminino de Hermann e seria como o espelho de Harry Haller e, portanto, do próprio escritor.

A luta contra a melancolia, a estranheza de estar num mundo que não corresponde em absoluto aos seus ideais fazem de Haller alguém deprimido, selvagem, fora de seu habitat (um lobo da estepe). Ele procura nas figuras ilustres do passado, como Goethe, Mozart o ideal da perfeição e não aceita que ninguém quebre esse conceito do que era o ideal para ele. Só que aparece Hermínia, uma prostituta, que vai ajudá-lo a olhar o mundo de outra forma e com isso ajudá-lo a sair do abismo que se tornara sua vida.

Do meio para o final, parece que estamos dentro de um sonho, de um certo delírio de Harry Haller e o autor subverte totalmente o rumo que eu achava, a princípio, que o livro iria tomar.

Começa-se achando que se trata de um livro triste e pessimista, mas no final o que se vê é uma mensagem de otimismo e esperança.

 

ANGELA CAROLINA CYSNEIROS (Em Tempo)

 Navegantes, terminei o Eu a Amava e além do que já disse e Lourdinha também, embora seja uma novela que trata do que poderia ter acontecido a qualquer um de nós e deve ter acontecido a alguns de nós coisa parecida, é interessante que, mesmo como uma tradução que não me pareceu das melhores ( penso, não afirmo, sinto), com uma história banal- jovem com duas filhas pequenas é abandonada pelo marido que a troca por outra, e que vai, a convite do sogro, para a casa de campo onde ja estivera na época de casada. Relação distante com o sogro, homem calado, sisudo, frio, que, aos poucos, por afeto, por honestidade e um profundo arrependimento pelo rumo que deu à própria vida, abre o coração. É interessante o enredo sob o ponto de vista ” do que trai” , ver que todos estão cobertos de razão e que só vale a pena viver se for para ter momentos de felicidade, ainda que para tal tenhamos que, muitas vezes atropelar o companheiro(a) ou pessoas que amamos. Embora de forma simples, coloquial, colocando até palavras que não se esperam da boca de uma homem de certa idade e conservador, vocabulário pobre – para quem gosta de algo um tanto mais sofisticado – serve para meditarmos sobre nossas escolhas e o quanto custam a cada um de nós, sejamos o que “trai” ou o que se sente traído. Coloco as aspas de propósito. É interessante ainda, que quase toda a novela se passe numa cozinha. Ao ler, transportei-me para uma plateia de teatro e via cada diálogo, muito bem pontuado por observações ( bits, me parecem) que cortam às vezes a tensão, outras, passam a palavra para o antagonista, de forma tal que você sente o movimento da cena e faz com que os diálogos não tornem a narrativa lenta. De tudo, pois que digamos que as confissões em si não sejam lá grandes coisas, a forma, idem, as ideias que casam com o que sempre achei que assim deveriam ser as coisas do afeto e das decantadas traições, o melhor de tudo é ler como se numa plateia de teatro. Valeu, sim. O livro está à disposição de quem o quiser ler. Agradeço a Lourdinha a oportunidade de lê-lo e, principalmente, de tê-lo lido quase de um fôlego só (coisa que não vem acontecendo recentemente).

 

TERESA SALES

 Clarice Lispector

Um soco no estômago. Nunca levei um de verdade, mas deve ser assim, tirando o fôlego, como acaba de me tirar o fôlego, não do pulmão, mas do espírito, o final da leitura d’ A Hora da Estrela (lido sem parar do começo ao final). Pensava que seria releitura, mas não. Tinha visto o filme e por isso, pela maestria das interpretações, não consegui dissociar os personagens do romance de Marcélia Cartaxo e José Dumont (o papel Macabéa foi tão forte na vida da atriz que nunca mais ela fugiu dele, assim como José Dumont, que já era um Olímpico de Jesus antes do filme).

Ficou aí a lembrança. Mas, por mais tênue que ela seja, o livro é incomparavelmente mais rico. Não é a emoção dos sentidos que lembro ter sentido ao ver o filme. Mexe com o espírito, revolve a alma. Leva-nos, no caso específico desse livro, a um universal da dor humana e a um particular da situação do pobre nordestino brasileiro nas metrópoles do sul do país – por onde começaram minhas pesquisas sociológicas.

Uma das melhores construções de personagens que eu já li nos últimos tempos.

Luzilá Gonçalves Ferreira

Os Rios Turvos, romance histórico bebido na preciosa fonte de José Antônio Gonsalves de Mello, narra um dos casos de cristãos novos do Brasil perseguidos e julgados pela Inquisição da “Santa Madre” em finais do século XVI.

 

O que o personagem Bento Teixeira ganhou em estatura frente aos fatos históricos narrados pelo historiador, perdeu Felipa Raposa. Felipa Raposa não se sustenta enquanto personagem.

Fui ao historiador buscar os fatos, posto pré-existir a história. De Bento Teixeira já sabia quase tudo, contado com maestria pela romancista. Fez em parte o que suponho deve fazer o romance histórico: além de dar mais leveza à mesma história contada pelo acadêmico, acrescentando-lhe detalhes em prol da beleza literária; dá consistência aos personagens, preenchendo as lacunas por ele deixadas.

O que eu soube por José Antônio sobre Felipa Raposa? Muito menos do que em relação a Bento Teixeira, claro, posto ser ele seu objeto de estudo. O que por si já seria um mote precioso para a romancista construir sua personagem mulher. Soube apenas que ela era cristã-velha por parte de seu pai, André Gavião, homem nobre. De sua mãe nada soube. E ainda que, “andando o tempo, de lanço em lanço” entre Olinda, Igarassu e Cabo, levada por Bento Teixeira em fuga de seus amantes “se veio a danar a dita sua mulher Felipa Raposa, adulterando com muitos homens”. Do depoimento de Bento Teixeira, era ela “tão nobre na geração como em seus próprios vícios”.

Bebendo em Machado de Assis, a autora tenta por vezes deixar no leitor uma dúvida sobre a veracidade do adultério, o que se completa com a não abertura das cartas. Ah! Que maldade de Luzilá não abrir essas cartas… quantos segredos ocultos! Quanta lascívia! (ou apenas, quanta vida não vivida!)

Saber da mãe de Felipa Raposa seria fundamental para construir sua personagem. A mãe apresentada por Luzilá é uma convencional mulher de nobre, que lhe dá uma rígida educação formal. Não pode. Fosse Felipa Raposa apenas uma mulher cheia de vida e que somente por isso era estigmatizada pela sociedade seiscentista e pelo ciúme doentio do marido, fosse ela de fato uma mulher livre no tempo errado, sua mãe teria que ser outra. Uma índia, talvez. Ou mesmo uma prostituta imigrada para Portugal, por quem seu pai se apaixonou, tendo por isso se “exilado” no Brasil. Essa é a hipótese mais plausível, sendo Felipa Raposa ruiva e seus olhos verdes.

E as cartas, Luzilá? Por que as deixou perdidas no caminho entre o Cabo e o Mosteiro de Olinda, onde se homiziou Bento Teixeira depois de matar a mulher? Quem sabe, escreverei eu essas cartas…

MARCELO AUGUSTO VELOSO

Li na década de oitenta e terminei de reler La Guerra del Fin del Mundo. É uma releitura da guerra de Canudos que se encontra em Os Sertões de Euclides da Cunha. Parece-me que na obra de Vargas Llosa  são  explicitados os interesses políticos bahianos por trás da Guerra. Chama-me a atenção a narração do cotidiano da comunidade em torno de el Consejero. Impressiona-me a quantidade de personagens que são criados e a maestria de Vargas Llosa em mexer os fios deles na condução da trama; entre eles, destaco el León de Natuba, figura plasticamente muito bonita: um deficiente físico que anda de quatro e tem uma imensa cabeleira, daí seu codinome, que se põe aos pés del Consejero com a cabeça apoiada no joelho desse.

No feriadão, li O Livro de Areia de Jorge Luis Borges, contos, em geral, curtos; haja imaginação para criar tão diversas situações; para quem transita pela Psicanálise, é imperdível O Outro, conto que abre a coletânea.

Ainda no feriadão, li Sonetos do Amor Obscuro e Divã do Tamarit de García Lorca; tenho uma dificuldade com a leitura de poesia, só consigo saboreá-la quando a escuto declamada por alguém.

 

Por esses dias, comecei a ler, de Vargas Llosa, Tia Júlia e o Escrevinhador, outra avalanche de personagens.

 

Vou me arrastando na leitura de Breuder Grimm: Kindermearchen (Contos Infantis dos Irmãos Grimm), contos pedagógicos que se propõem a formar o ethos da criançada, escritos no século XIX e ainda estão de pé: A Gata Borralheira, João e Maria, entrou por uma perna de pinto e saiu por uma perna de pato seu rei mandou dizer que contasse quatro.