Do Riso ao Trágico: Um Mar de Palavras

Embarcamos para a primeira Oficina de 2017 do cais da nossa maruja Adelaide Câmara, onde fomos recebidos com muitas guirlandas.Destaque para as coxinhas e lolitas que Paula nos preparou. Quase todos viageiros estavam presentes, exceções muito sentidas de Paulo, que se recuperava de uma gripe, e de Gratuliano que viajou para dar conta de afazeres inadiáveis com a sua fazenda.

Começamos com a Saudação Poética da nossa anfitriã, Adelaide, que leu o poema de Cecília Meireles, Canção.  É um belo poema  que fala de um sonho posto num navio que o proprio sonhador usa a mãos para fazer naufragar, disposto a chorar todo choro que for preciso para que o navio chegue ao fundo do mar e então “tudo estará perfeito: praia lisa, águas ordenadas,/meus olhos secos como pedras/
e as minhas duas mãos quebradas”. Muito triste.Tão belo quanto triste, eu diria

CANÇÃO
Cecília Meireles

Pus o meu sonho num navio
E o navio em cima do mar;
-depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Adelaide leu ainda um texto muito interessante de Augusto Abelaira, Requiem pelo ponto de Exclamação. Ele começa falando da particularidade da língua portuguesa ao dispor da palavra saudade, perguntando se os outros povos ignoravam o sentimento saudade e se quem não sabe nominar pode dispor do sentimento. E por aí segue… Leitura agradável, humor fino. O texto vai para a nossa biblioteca para quem se interessar pela leitura.

Iniciamos o humor daquela tarde com François Rabelais, mais precisamente com a leitura dos capítulos III a VII de Gargântua e Pantagruel . Realismo fantástico, absoluto. Gargântua após onze meses no ventre da mãe resolve nascer justo no dia em que ela se empanturrou de dobradinha (tripas de bois engordaddos no estábulo, segundo o autor), apesar dos protestos do marido, comendo dezesseis tonéis, uma pipa e seis alqueires. Ó bela matéria fecal que devia se formar dentro dela!  Não deu outra, depois do excesso gastronômico ela começou a sentir dor, a se lamentar e a gritar, aparecendo parteiras de todos os lados que ao a apalparem encontraram aparas de pele, fétidas, que eram os fundos que se lhe escapavam. Diante dessa situação, a parteira velha experiente deu um restringente tão forte que todas as peles ficaram tão apertadas e cerradas que pelas zonas baixas não passavam mais nada.  A passagem encontrada pela criança para sair foi pelos cotilédonos da matriz, seguindo pela veia cava, trepando pelo diagragma até acima dos ombros, onde a dita veia se divide em duas, tomou caminho à esquerda e saiu pela orelha sinistra. E ao nascer, não chorou como as outras crianças,  mas exclamou em voz bem alta: “Beber, beber, beber!”

Escatologia e realismo fantástico neste obra excelente do escritor francês, que tornou-se um clássico da literatura, inovando o fazer literário do humor. O dialógo dos bêbados é perfeito.São vários homens falando ao mesmo tempo, as conversas mais desencontradas e hilárias que se possa imaginar. Muito bom. A nossa colega Roberta Aymar, na ocasião, fez uma fala com uma sintese de Rabelais, muito interessante.A nosso pedido, ela está elaborando uma biografia do autor para dividir com os marujos e neste blog.

Após Rabelais, lemos um resumo que eu fiz do primeiro capítulo de Henry Bergson sobre O Riso, autor citado em todos os estudos sobre o humor. Filosófo e diplomata francês, ele ficou conhecido por vários trabalhos publicados, entre eles,  O RisoEnsaios sobre os dados imediatos da consciência, Matéria e Memória, A evolução criadora e As duas fontes da moral e da Religião.  O Riso foi publicado em 1899. Ele teve vários seguidores, entre os quais, Gilles Deleuze.

Bergson inicia o ensaio o perguntando o que é o riso? O que há de fato na essência do risível? O que há de comum entre uma careta de palhaço, um jogo de palavras, um qüiproquó de vaudeville, uma cena de comédia fina?  Então, ele cita três observações fundamentais para entender  a questão.

A primeira delas é que a comicidade é do humano. A natureza, os objetos não apresentam comicidade sem a ação do homem, sem a expressão humana.Eles em si não são risíveis.Rimos de um chapéu; mas então não estamos gracejando com o pedaço de feltro ou de palha, mas com a forma que os homens lhe deram, com o capricho humano que lhe serviu de molde.

Os filósofos definiram o homem como um animal que sabe rir. Bergson diz que eles deveriam também ter definido o homem como um animal que faz rir, pois, se algum outro animal ou objeto inanimado consegue fazer rir, é devido a uma semelhança com o homem, à marca que o homem lhe imprime ou ao uso que o homem lhe dá.

Outro ponto ressaltado por Bergson é a insensibilidade que acompanha o riso. Para êle o cômico só produzirá comoção se cair sobre uma superfície d’alma serena e tranquila. A indiferença é o seu meio natural. O maior inimigo do riso, diz Bergson, é a emoção, o que não significa que não se possa rir de quem temos piedade ou afeição. Para que o riso possa acontecer será necessário colocar em suspensão, mesmo que por apenas alguns instantes, qualquer piedade ou sentimento de afeição.

Numa sociedade de puras inteligências provavelmente não mais se choraria, mas talvez ainda se risse; ao passo que almas invariavelmente sensíveis, harmonizadas em uníssono com a vida, nas quais qualquer acontecimento se prolongasse em ressonância sentimental, não conheceriam nem compreenderiam o riso.
Que o leitor tente, por um momento, interessar-se por tudo o que é dito e tudo o que é feito, agindo, em imaginação, com os que agem, sentindo com os que sentem, dando enfim à simpatia a mais irrestrita expressão: como num passe de mágica os objetos mais leves lhe parecerão ganhar peso, e uma coloração grave incidirá sobre todas as coisas. Que o leitor agora se afaste, assistindo à vida como espectador indiferente: muitos dramas se transformarão em comédia. Basta taparmos os ouvidos ao som da música, num salão de baile, para que os dançarinos logo nos pareçam ridículos.
(…) Portanto, para produzir efeito pleno, a comicidade exige enfim algo como uma anestesia momentânea do coração. Ela se dirige à inteligência pura.

Outro aspecto levantado por Bergson é que nosso riso é sempre o riso de um grupo. O riso precisa de eco: Não saborearíamos a comicidade se nos sentíssemos isolados. Ele cita exemplo das pessoas que em viagem ou à mesa de hospedarias ouvem histórias que parecem muito cômicas para os que estão ali, pois os fazem rir o tempo todo e com muito gosto, mas que eles não conseguem alcançar a razão para tanto riso. E ele citou o exemplo do homem que não chorava num sermão em que todos choravam profusamente e quando lhe perguntaram porque não chorava ele respondeu: “Não sou desta paróquia.” Ele diz que isso é ainda mais verdadeiro quando se refere ao riso, porque Por mais franco que o suponham, o riso esconde uma segunda intenção de entendimento, eu diria quase de cumplicidade, com outros ridentes, reais ou imaginários.

Enfim, Bergson diz, para compreender o riso é preciso colocá-lo em seu meio natural, que é a sociedade; é preciso, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma função social. O riso deve ter uma significação social.

Foi uma bela tarde em que não faltaram as anedotas, as tirinhas e charges, e ainda as gostosas coxinhas e lolitas feitas por Paula, muito bem registrados por Adriana Câmara.

Lourdes Rodrigues

Cecília Meireles

A vez de Cecília

Folha de S. Paulo – 16/06/2012 – Por Raquel Cozer

A volta às livrarias de Cecília Meireles (1901-64), prometida para janeiro, não aconteceu. Agora parece que vai: a Global finaliza para a Bienal do Livro de São Paulo os quatro primeiros títulos da autora, cuja obra praticamente sumiu durante longa disputa entre herdeiros. A coluna de Raquel Cozer conta que saem, em agosto, Romanceiro da Inconfidência, Viagem, os infantis Ou isto ou aquilo e Os pescadores e suas filhas, e uma antologia na série Crônicas para jovens. Das três herdeiras que questionavam a decisão do agente Alexandre Teixeira, neto de Cecília, de publicar pela Global, uma se acertou com a editora: Maria Fernanda, filha mais nova da poeta, recebeu “vultuosa quantia”, segundo o advogado Roberto Halbouti. Outra quantia está depositada em juízo para as irmãs de Alexandre.

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CANÇÃO

  

Pus o meu sonho num navio

E o navio em cima do mar;

-depois, abri o mar com as mãos,

para o meu sonho naufragar.

 

Minhas mãos ainda estão molhadas

do azul das ondas entreabertas,

e a cor que escorre dos meus dedos

colore as areias desertas.

 

O vento vem vindo de longe,

a noite se curva de frio;

debaixo da água vai morrendo

meu sonho, dentro de um navio…

 

Chorarei quanto for preciso,

para fazer com que o mar cresça,

e o meu navio chegue ao fundo

e o meu sonho desapareça.

 

Depois tudo estará perfeito:

praia lisa, águas ordenadas,

meus olhos secos como pedras

e as minhas duas mãos quebradas.

POEMAS INFANTIS:                                .

A Língua de Nhem

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

 

Uma Palmada Bem Dada

É a menina manhosa
Que não gosta da rosa,
Que não quer A borboleta
Porque é amarela e preta,
Que não quer maçã nem pêra
Porque tem gosto de cera,
Porque não toma leite
Porque lhe parece azeite,
Que mingau não toma
Porque é mesmo goma,
Que não almoça nem janta
porque cansa a garganta,
Que tem medo do gato
E também do rato,
E também do cão
E também do ladrão,
Que não calça meia
Porque dentro tem areia
Que não toma banho frio
Porque sente arrepio,
Que não toma banho quente
Porque calor sente
Que a unha não corta
Porque fica sempre torta,
Que não escova os dentes
Porque ficam dormentes
Que não quer dormir cedo
Porque sente imenso medo,
Que também tarde não dorme
Porque sente um medo enorme,
Que não quer festa nem beijo,
Nem doce nem queijo.
Ó menina levada,
Quer uma palmada?
Uma palmada bem dada
Para quem não quer nada!

A AVÓ DO MENINO

A avó
vive só.
Na casa da avó
o galo liró
faz “cocorocó!”
A avó bate pão-de-ló
E anda um vento-t-o-tó
Na cortina de filó.
A avó
vive só.
Mas se o neto meninó
Mas se o neto Ricardó
Mas se o neto travessó
Vai à casa da avó,
Os dois jogam dominó.

Leilão de Jardim

Quem me compra um jardim
com flores?

borboletas de muitas cores,

lavadeiras e passarinhos,

ovos verdes e azuis

nos ninhos?

Quem me compra este caracol?

Quem me compra um raio de sol?

Um lagarto entre o muro e a hera,

uma estátua da Primavera?

Quem me compra este formigueiro?

E este sapo, que é jardineiro?

E a cigarra e a sua canção?

E o grilinho dentro do chão?

(Este é meu leilão!)

O mosquito escreve

O mosquito pernilongo
trança as pernas, faz um M,
depois, treme, treme, treme,
faz um O bastante oblongo,
faz um S.

O mosquito sobe e desce.
Com artes que ninguém vê,
faz um Q,
faz um U, e faz um I.

Este mosquito
esquisito
cruza as patas, faz um T.
E aí,
se arredonda e faz outro O,
mais bonito.

Oh!
Já não é analfabeto,
esse inseto,
pois sabe escrever seu nome.

Mas depois vai procurar
alguém que possa picar,
pois escrever cansa,
não é, criança?

E ele está com muita fome.

Sonhos da menina

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho
risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho
seria o rebanho?
A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

Ao se falar de poesia para criança, não há como deixar de lembrar Vinicius de Moraes com o seus Poema Enjoadinho:

Poema Enjoadinho

Vinícius de Moraes

Filhos… Filhos?
Melhor não tê-los! Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete…
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los…
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem shampoo
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!