CARNAVAL

Restos de Carnaval

Clarice Lispector

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha ao encontro da minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola. Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem.

Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto, essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

Escala 01 – Passeio pela prosa curta com os russos

A brincadeira

Um claro dia de inverno… o frio é forte e seco de estalar, e Nádenka, que eu levo pelo braço, fica com os cachos das fontes e o buço no lábio superior orvalhados de prata cintilante. Estamos no cume de um morro alto. Diante dos nossos pés, até a planície, lá embaixo, estende-se um declive escorregadio e brilhante no qual o sol se mira como um espelho. Ao nosso lado está um trenó pequenino, forrado de pano vermelho-vivo.

— Deslizemos até lá em baixo, Nadêjda Petrovna! – imploro eu. — Só uma vez! Garanto-lhe, ficaremos sãos e salvos!

Mas Nádenka tem medo. Toda essa extensão, desde as suas pequeninas galochas até o fim da montanha de gelo, se afigura a ela como um terrível abismo de profundidade imensurável. Ela fica tonta e perde o fôlego, só de olhar lá para baixo, quando eu apenas lhe proponho sentar-se no trenó – que terá então se ela arriscar despenhar-se no precipício? Ela morrerá, enlouquecerá!

— Eu lhe suplico! – digo eu. — Não tenha medo! Compreenda, isso é fraqueza, é covardia!

Nádenka cede, finalmente, e eu vejo pelo seu rosto que ela cede com receio pela própria vida. Acomodo-a, pálida e trêmula, no trenó, sento-me, enlaço-a com o braço e junto com ela precipito-me no abismo.

O trenó voa como uma bala. O ar cortado chicoteia o rosto, silva nos ouvidos, bate, belisca raivoso até doer, quer arrancar a cabeça dos ombros. A pressão do vento tolhe a respiração. É como se o próprio diabo nos tivesse agarrado com as suas patas, e, urrando, nos arrastasse para o inferno. Os objetos que nos cercam fundem-se num só longo risco, que corre vertiginoso. Parece, um instante mais, e estaremos perdidos!

— Eu te amo, Nádia! – digo eu a meia voz.

O trenó começa a deslizar mais devagar, mais devagar, os uivos do vento e os zumbidos das lâminas do trenó já não são tão terríveis, a respiração já não é tão ofegante, e, finalmente, chegamos ao fim. Nádenka está mais morta do que viva. Está pálida, mal consegue respirar. Eu a ajudo a se levantar.

— Nunca mais farei isto – diz ela, encarando-me com os olhos dilatados, cheios de terror. – Por coisa alguma do mundo! Por pouco não morri!

Logo depois, ela volta a si e já me fita com um olhar interrogador: terei sido eu quem disse aquelas quatro palavras, ou foi apenas uma alucinação dentro do zunido da ventania? Mas eu estou calado diante dela, fumando e examinando com atenção a minha luva.

Ela toma o meu braço e passeamos longos minutos diante do morro. O problema, visivelmente, não a deixa em paz. Foram pronunciadas aquelas palavras, ou não? Sim ou não? Sim ou não? É uma questão de amor-próprio, de honra, de vida, de felicidade, uma questão muito importante, a mais importante do mundo. Nádenka perscruta o meu rosto com olhares impacientes, tristes, penetrantes, responde atabalhoadamente, espera que eu fale. Oh, que jogo de emoções neste rosto encantador, que jogo! Vejo que ela luta consigo mesma, que precisa dizer alguma coisa, perguntar, mas não encontra palavras, está encabulada, amedrontada, embargada pela alegria…

— Sabe duma coisa? – diz ela, sem olhar para mim.

— O quê? – pergunto eu.

— Vamos mais uma vez… deslizar pelo morro.

Subimos para o cume, pela escada. De novo faço Nádenka, pálida e trêmula, sentar no trenó, de novo nos despencamos no precipício medonho, de novo uiva o vento e zunem as lâminas, e de novo, quando o voo do trenó está no auge do ímpeto, eu digo a meia voz:

— Eu te amo, Nádenka!

Quando o trenó se detém, Nádenka lança um olhar para o morro que acabamos de descer voando, depois perscruta longamente o meu rosto, escuta, atenta, a minha voz indiferente e calma, e toda ela, toda, até mesmo o regalo de peles e o capuz, toda a sua figurinha, exprime extrema perplexidade. E no seu rosto está escrito: “Mas o que é que está acontecendo? Quem pronunciou aquelas palavras? Foi ele, ou foi engano dos meus ouvidos?”.

Esta incerteza a perturba, a impacienta. A pobre menina não responde às minhas perguntas, franze a testa, está prestes a romper em choro.

— Não preferes ir para casa? – pergunto eu.

— Mas eu… eu gosto destas… descidas – diz ela, enrubescendo. Não quer deslizar mais uma vez?

Ela “gosta” destas descidas, e, no entanto, sentando-se no trenó ela, como das outras vezes, fica pálida, ofegante de medo, trêmula.

Descemos pela terceira vez, e eu vejo como ela fita o meu rosto, como observa os meus lábios. Mas eu aperto o lenço contra a boca, tusso, e quando chegamos ao meio do declive, deixo escapar:

— Eu te amo, Nádia!

E a charada continua charada! Nádenka se cala, está pensando… Acompanho-a para casa, ela procura andar mais devagar, atrasa o passo, espera sempre que eu lhe diga aquelas palavras. E eu vejo como sofre sua alma, como ela tem que se esforçar para não dizer: “Não pode ser que tenha sido o vento! E eu não quero que tenha sido o vento quem falou aquilo!”.

No dia seguinte de manhã, recebo um bilhetinho: “Se o senhor vai ao morro hoje, venha me buscar. N.”. E desde essa manhã, comecei a ir com Nádenka ao morro, todos os dias e, voando encosta abaixo, no trenó, eu pronuncio, cada vez, a meia voz, as mesmas palavras:

— Eu te amo, Nádia!

Logo Nádenka acostuma-se a esta frase, como ao vinho e à morfina. Não pode viver sem ela. É verdade – voar montanha abaixo lhe dá medo, como antes, mas já agora o medo e o perigo adicionam um encanto especial às palavras sobre o amor, as palavras que, como dantes, constituem uma charada e oprimem a alma. São sempre os mesmos dois suspeitos: eu e o vento… Qual dos dois lhe declara o seu amor, ela não sabe, mas, ao que parece, isto já não lhe importa mais; não importa o vaso em que se bebe, importa ficar embriagada!

Um dia, fui até o morro sozinho; misturei-me à multidão e vi como Nádenka chegou até o sopé, como me procurou com os olhos… E depois, timidamente, ela sobe os degraus… Ela tem medo de ir sozinha, oh, quanto medo! Está pálida como a neve, treme e vai, como se fosse para o cadafalso, mas vai, vai sem olhar para trás, com decisão. Pelo visto, ela resolveu, finalmente, tirar a prova: será que se farão ouvir aquelas palavras estranhas, quando eu não estiver junto? E vejo como ela, lívida, com a boca entreaberta de horror, toma assento no trenó, fecha os olhos, e, despedindo-se para sempre do mundo, o põe em movimento… “zzzzzz…” zunem as lâminas. Ouvira Nádenka aquelas palavras? Não sei… Vejo apenas como ela se levanta do trenó, exausta, fraca. E vê-se pelo seu rosto que nem ela mesma sabe se ouviu alguma coisa ou não. O pavor, enquanto ela voava morro abaixo, roubou-lhe a capacidade de ouvir, de distinguir os sons, de entender…

Mas eis que chega o mês de Março, primaveril… O sol torna-se mais carinhoso. O nosso morro de gelo escurece, perde o seu brilho e se derrete, afinal. Acabaram os passeios de trenó. A pobre Nádenka já não tem mais onde ouvir aquelas palavras, e nem há quem as pronuncie, pois o vento não se ouve mais, e eu me preparo para voltar a Petersburgo – por muito tempo, quiçá para sempre.

Uma vez, pouco antes de partir, uns dois dias, estava eu sentado, ao crepúsculo, no jardinzinho, separado do pátio onde mora Nádenka por uma cerca alta de madeira. Ainda faz bastante frio, debaixo do lixo ainda há neve, as árvores ainda estão mortas, mas já cheira à primavera, e, preparando-se para a noitada, as gralhas fazem grande algazarra. Aproximo-me da cerca e espio pela fresta. E vejo como Nádenka sai para os degraus e fixa o olhar tristonho e saudoso no firmamento. O vento da tarde sopra-lhe no rosto pálido e desanimado… Ele lembra-lhe aquele outro vento, que uivava lá no morro, quando ela ouvia aquelas quatro palavras, e seu rosto fica triste, triste, e pela face desliza uma lágrima. E a pobre menina estende os braços, como se implorando ao vento que lhe traga aquelas palavras mais uma vez. E eu, esperando o vento favorável, sopro a meia voz:

— Eu te amo, Nádia!

Deus meu, o que se passa com Nádenka! Ela solta um grito, sorri com o rosto inteiro e estende os braços ao encontro do vento, risonha, feliz, tão bonita.

E eu vou arrumar as malas…

Isto foi há muito tempo. Agora, Nádenka já é casada; casaram-na, ou foi ela mesma que quis – isto não importa – com um secretário da Curadoria, e hoje ela já tem três filhos. Mas os nossos passeios no morro e a voz do vento trazendo-lhe as palavras “eu te amo, Nádenka”, não foram esquecidos. Para ela, isto é hoje a mais feliz, a mais comovedora e a mais bela recordação de sua vida…

Mas eu, hoje, que estou mais velho, já não compreendo mais por que dizia aquelas palavras.

Não compreendo mais por que brincava…

Tradução: Fabio Baptista.


*Fala-se Russo

Vlademir Nabokov

A tabacaria de Martin Martinich fica localizada num prédio de esquina. Não é de admirar que tabacarias tenham uma predileção por esquinas, porque o negócio de Martin está indo muito bem. A vitrine é de tamanho modesto, mas bem arrumada. Espelhinhos dão vida ao mostruário. Embaixo, em meio aos vales dos montes de veludo azul, aninha-se uma variedade de caixas de cigarros com nomes expressos no brilhoso dialeto internacional que serve também para nome de hotel; mais acima, fileiras de charutos riem em suas caixas delicadas.

Em sua época, Martin foi um proprietário de terras abastado. Em minhas lembranças infantis ele se destaca por um trator incrível, enquanto seu filho Petya e eu sucumbimos simultaneamente a Meyn Ried e à escarlatina, de forma que agora, depois de quinze anos chocantes de todo tipo de coisas, eu gostava de comprar na tabacaria daquela esquina viva onde Martin vendia seus produtos.

Desde o ano anterior, além disso, temos mais que reminiscências em comum. Martin tem um segredo e me fez fiador desse segredo. “Então, tudo normal?”, pergunto num sussurro, e ele, olhando por cima do ombro, replica também baixinho: “É, graças a Deus, tudo tranquilo.” O segredo é bastante excepcional. Lembro que estava de partida para Paris e fiquei com Martin até a noite da véspera. A alma de um homem pode ser comparada a uma loja de departamentos e seus olhos, a vitrines gêmeas. A julgar pelos olhos de Martin, estavam na moda cores cálidas, castanhas. A julgar por aqueles olhos, a mercadoria dentro de sua alma era de soberba qualidade. E que barba luxuriante,bem brilhosa com robusto grisalho russo. E seus ombros, a estatura, a atitude… Houve tempo em que se dizia que ele era capaz de cortar um lenço com uma espada: uma das proezas de Ricardo Coração de Leão. Agora, um colega emigrado diria com inveja: “Esse homem não se entregou!”

Sua esposa era uma velhota balofa, delicada, com uma verruga na narina esquerda. Desde o tempo das agruras revolucionárias, o rosto dela adquirira um tique patético: ela revirava os olhos depressa para o lado e para cima. Pety a tinha o mesmo físico imponente do pai. Eu gostava de suas boas maneiras carrancudas e de seu humor inesperado. Tinha uma cara larga, flácida (da qual o pai costumava dizer: “Que carantonha: nem em três dias dá para circum-navegar aquilo”) e cabelo castanho-avermelhado, permanentemente despenteado. Pety a era dono de um cineminha numa parte pouco populosa da cidade, que lhe valia modestos rendimentos. E aí temos toda a família.

Eu passei aquele dia anterior à minha partida sentado junto ao balcão, observando Martin receber os clientes: primeiro ele se inclinava ligeiramente, com dois dedos apoiados no balcão, depois ia às prateleiras, apresentava uma caixa com um floreio e perguntava, abrindo-a com a unha do polegar: “Einen Rauchen?” Me lembro desse dia por uma razão especial: Pety a entrou de repente da rua, descabelado e lívido de raiva. A sobrinha de Martin decidira voltar para sua mãe em Moscou, e Pety a tinha sido enviado a encontrar osrepresentantes diplomáticos. Enquanto um dos representantes estava lhe dando alguma informação, um outro, obviamente envolvido com a diretiva política do governo, sussurrou de modo apenas audível: “Essa ralé da Guarda Branca ainda continua na ativa.”

“Eu queria fazer picadinho dele”, disse Pety a esmurrando a palma da mão, “mas infelizmente não podia deixar de pensar em minha tia em Moscou”.

“Você já tem dois ou três pecadilhos na consciência”, Martin murmurou, bem-humorado. Estava se referindo a um incidente muito divertido. Não muito tempo antes, no dia de seu onomástico, Pety a visitara a livraria soviética, cuja presença mancha uma das ruas mais encantadoras de Berlim. Lá vendem não apenas livros, mas também bugigangas variadas, feitas à mão. Pety a escolheu um martelo enfeitado com papoulas e gravado com uma inscrição típica de um martelo bolchevique. O vendedor perguntou se ele queria mais alguma coisa. Pety a disse: “Quero, sim”, apontando um pequeno busto de gesso do Senhor Uly anov.1 Pagou quinze marcos pelo busto e pelo martelo, e então, sem dizer uma palavra, bem ali no balcão, atacou aquele busto com aquele martelo, e com tamanha força que o Senhor Uly anov se desintegrou.

Eu gostava dessa história, assim como gostava, por exemplo, das frases tolas e queridas da infância inesquecível, que aquecem o coração da gente. As palavras de Martin me fizeram olhar para Pety a com uma risada. Mas Pety a sacudiu os ombros, mal-humorado, e fechou a carranca. Martin remexeu na gaveta e estendeu para ele o cigarro mais caro da loja. Mas nem isso dispersou a melancolia de Petya.

Voltei a Berlim um ano e meio depois. Num domingo de manhã, senti uma urgência de encontrar com Martin. Nos dias de semana, podia-se entrar pela loja, uma vez que seu apartamento (três quartos e cozinha) ficava nos fundos. Mas é claro que num domingo de manhã a loja estava fechada e a vitrine, coberta com sua grade. Através dela olhei rapidamente as caixas vermelhas e douradas, os charutos escuros, a modesta plaquinha num canto:“Fala-se russo”, notei que a placa havia de alguma forma ficado mais cinzenta, e dei a volta pelo pátio até a casa de Martin. Coisa estranha: o próprio Martin me pareceu ainda mais alegre, animado, mais radiante que anteriormente. E Petya estava absolutamente irreconhecível: o cabelo oleoso, embaraçado, estava penteado para trás, um amplo sorriso vagamente tímido não deixava seus lábios, ele mantinha uma espécie de silêncio satisfeito e uma curiosa, jovial preocupação, como se carregasse uma carga preciosa dentro dele que abrandava todos os seus movimentos. Apenas sua mãe estava mais pálida que nunca e o mesmo tique cruzava seu rosto como um ligeiro relâmpago de verão. Sentamos na saleta bem-arrumada e eu sabia que os outros dois quartos (o de Petya e o dos pais) eram igualmente arrumados e limpos, e me foi agradável pensar nisso. Tomei chá com limão, ouvi a fala melíflua de Martin e não consegui evitar a impressão de que alguma coisa nova tinha aparecido em seu apartamento, algum tipo de alegre, misteriosa palpitação, como acontece, por exemplo, numa casa em que há uma jovem grávida. Uma ou duas vezes, Martin olhou preocupado para o filho, e diante disso o outro prontamente se levantou e deixou a sala e, ao voltar, acenou discretamente com a cabeça para o pai, como se quisesse dizer que alguma coisa estava indo muito bem.

Havia também algo novo e para mim enigmático na conversa do velho. Estávamos falando de Paris e dos franceses, e, de repente, ele perguntou: “Diga, meu amigo, qual é a maior prisão de Paris?” Respondi que não sabia e comecei a contar sobre uma revista musical francesa em que havia mulheres pintadas de azul.

“Você acha isso grande coisa!”, Martin interrompeu. “Dizem, por exemplo, que as mulheres raspam o reboco das paredes da prisão e usam para empoar o rosto, o pescoço, sei lá.” Para confirmar suas palavras, trouxe do quarto um grosso volume de um criminologista alemão e encontrou o capítulo sobre a rotina da vida na prisão. Tentei mudar de assunto, mas por mais que eu mudasse de assunto, Martin o revirava com artísticas circunvoluções de forma  que, de repente, nos víamos discutindo quanto a prisão perpétua era mais humana que a execução, ou os métodos engenhosos inventados por criminosos para escapar para a liberdade.

Fiquei intrigado. Pety a, que adorava tudo o que era mecânico, estava cutucando com um canivete as molas de seu relógio e rindo consigo mesmo. A mãe, trabalhando em seu bordado, de vez em quando empurrava em minha direção a torrada ou a geleia. Martin, agarrado à barba revolta com os cinco dedos, me deu uma rápida olhada de lado com seus olhos fulvos e, de repente, alguma coisa cedeu dentro dele. Bateu a palma na mão na mesa e se virou para o filho. “Eu não aguento mais, Pety a: vou contar tudo para ele senão estouro.”Pety a assentiu silenciosamente. A esposa de Martin estava se levantando para ir à cozinha. “Que tagarela você é”, disse ela, sacudindo a cabeça indulgentemente. Martin pôs a mão em meu ombro e me deu tamanho safanão que se eu fosse uma macieira no pomar as maçãs teriam literalmente se desprendido de mim, e me olhou no rosto. “Estou avisando”, disse ele. “Vou contar um segredo, mas um segredo que… nem sei. Veja bem: lábios selados! Entendeu?”

 E inclinando-se para perto de mim, banhando-me com seu odor de tabaco e com seu próprio cheiro penetrante de velho, Martin me contou uma história realmente incrível.2

“Aconteceu logo depois que você foi embora”, Martin começou. “Um cliente entrou. Evidentemente, não tinha notado a placa na vitrine, porque se dirigiu a mim em alemão. Deixe eu frisar bem isto: se tivesse notado a placa, não teria entrado numa modesta loja de emigrados. Reconheci imediatamente que ele era russo por sua pronúncia. Tinha cara de russo também. Eu, é claro, parti para falar russo, perguntei qual faixa de preço, qual tipo de produto. Ele me olhou com desagradável surpresa: ‘O que faz o senhor pensar que eu sou russo?’ Dei uma resposta absolutamente gentil, pelo que me lembro, e comecei a contar os cigarros. Nesse momento, Petya entrou. Quando viu meu cliente, disse com absoluta tranquilidade: ‘Ora, que encontro agradável.’ Então, o meu Pety a vai até o homem e bate em seu rosto com o punho. O outro gelou. Como Petya me explicou depois, o que aconteceu não foi apenas um nocaute com a vítima caindo no chão, mas um tipo especial de nocaute: acontece que Pety a deu um soco de ação retardada e o homem continuou de pé. Parecia que estava dormindo em pé. Então começou lentamente a cair para trás como uma torre. Petya deu a volta e pegou o homem pelas axilas. Era tudo muito inesperado. Pety a disse: ‘Me ajude aqui, pai.’ Eu perguntei o que ele pensava que estava fazendo. Pety a repetiu apenas: ‘Me ajude aqui.’ Conheço bem o meu Pety a (não adianta dar essa risadinha, Pety a), e sei que tem os pés no chão, pondera os seus atos e não põe ninguém fora de combate a troco de nada. Arrastamos o desmaiado da loja para o corredor e depois para o quarto de Pety a. Bem nesse momento escutei a campainha: alguém tinha entrado na loja. Muito bom, claro, que não tivesse acontecido antes. Lá fui eu de volta para a loja, fiz minha venda, então, por sorte, minha mulher chegou à loja e imediatamente pedi que ficasse no balcão enquanto eu, sem dizer uma palavra, ia ventando para o quarto de Petya. O homem estava deitado de olhos fechados no chão, Pety a sentado à sua mesa, examinando com ar pensativo certos objetos como uma grande charuteira de couro, meia dúzia de cartões-postais obscenos, uma carteira, um passaporte, um revólver antigo mas aparentemente eficiente. Ele me explicou imediatamente: tenho certeza de que você já entendeu que essas coisas tinham saído dos bolso do homem e ele próprio não era outro senão aquele representante, você se lembra da história de Pety a, que tinha feito aquela observação sobre a ralé Branca, isso, isso, exatamente o mesmo! E a julgar por certos documentos, era um membro da GPU3 sem dúvida nenhuma. ‘Muito bem’, eu disse a Petya, ‘então você deu um soco na cara de um sujeito. Se ele mereceu ou não é outra história, mas por favor me explique, o que você pretende fazer agora? Evidentemente, você esqueceu completamente de sua tia em Moscou.’ ‘É, esqueci’, Pety a disse. ‘Temos de pensar em alguma coisa.’

“E pensamos. Primeiro, arrumamos uma corda forte e tapamos a boca dele com uma toalha. Enquanto a gente fazia isso, ele voltou a si e abriu um olho. Olhando mais de perto, vou lhe dizer, a cara dele não era só repulsiva, mas burra também: algum tipo de sarna na testa, bigode, nariz grosso. Deixamos o homem deitado no chão, Petya e eu nos acomodamos bem perto e começamos uma judiciosa investigação. Debatemos um bom tempo. Estávamos preocupados não tanto com a afronta em si, isso era uma bobagem, claro, mas sim com a profissão dele, por assim dizer, e com as coisas que ele tinha cometido na Rússia. O acusado teve permissão para dar a última palavra. Quando tiramos a toalha da boca dele, soltou uma espécie de gemido, engasgou, mas não disse nada além de ‘Esperem só, esperem para ver…’ Amarramos a toalha de novo e retomamos a sessão. Os votos ficaram divididos no começo. Petya queria pena de morte. Eu achava que ele merecia morrer, mas propus trocar a execução por prisão

perpétua. Pety a pensou um pouco e concordou. Acrescentei que, embora ele certamente tivesse cometido crimes, nós não tínhamos como ter certeza disso; que o simples emprego dele constituía um crime em si; que nosso dever se limitava a tornar o homem inofensivo, mais nada. Agora escute o resto.

“Temos um banheiro no fim do corredor. Um quartinho escuro, muito escuro, com uma banheira de ferro esmaltado. A água muitas vezes entra em greve. Há uma ou outra barata. O quartinho é tão escuro porque a janela é extremamente estreita e situada bem debaixo do teto e, além disso, bem na frente da janela, a menos de um metro, existe uma boa e sólida parede de tijolos. E foi aí, nesse esconderijo, que resolvemos manter o prisioneiro. Foi ideia de Petya, foi, sim, Pety a, a César o que é de César. Em primeiro lugar, claro, a cela tinha de ser preparada. Fomos arrastando o prisioneiro pelo corredor para ele estar perto enquanto a gente trabalhava. E foi aí que minha mulher, que tinha acabado de trancar a loja para a noite e estava a caminho da cozinha, nos viu. Ficou perplexa, indignada até, mas entendeu o nosso raciocínio. Dócil, a menina. Pety a começou por desmontar uma mesa sólida que tínhamos na cozinha: arrancou as pernas e usou a prancha que sobrou para lacrar a janela do banheiro. Depois tirou as torneiras, removeu o cilindro do aquecedor de água e pôs um colchão no chão do banheiro. Claro que no dia seguinte acrescentamos várias melhorias: mudamos a chave, instalamos uma tranca, reforçamos a prancha da janela com metal. Tudo isso, claro, sem fazer muito barulho. Como você sabe, não temos vizinhos, mas mesmo assim convinha agirmos com cautela. O resultado ficou uma verdadeira cela de prisão, e lá pusemos o sujeito da GPU. Desamarramos a corda, desamarramos a toalha, alertamos que se ele começasse a gritar ia ser imobilizado de novo, e por muito tempo; então, satisfeitos porque ele tinha entendido para quem era o colchão colocado na banheira, trancamos a porta e ficamos de guarda a noite toda, em turnos.

“Esse momento marcou o começo de uma nova vida para nós. Eu não era mais simplesmente Martin Martinich, mas Martin Martinich, o carcereiro chefe. De início, o prisioneiro ficou tão tonto com o que havia acontecido que seu comportamento foi discreto. Logo, porém, retomou seu estado normal e, quando levamos o jantar, partiu para um furacão de grosserias. Não posso repetir as obscenidades desse homem; me limito a dizer que ele colocou minha falecida mãe nas mais curiosas situações. Eu estava decidido a inculcar seriamente nele a natureza de sua posição legal. Expliquei que permaneceria preso até o fim de seus dias; que se eu morresse primeiro, ele seria transferido a Pety a, como um legado; que meu filho, por sua vez, transmitiria o seu cuidado a meu futuro neto e assim por diante, fazendo com que ele se transformasse numa espécie de tradição de família. Uma joia defamília. Mencionei, de passagem, que, na eventualidade improvável de mudarmos para outro apartamento em Berlim, ele seria amarrado, colocado num baú especial, o que tornaria muito fácil a mudança para nós. Prossegui e expliquei que só num único caso ele poderia obter anistia. Especificamente, que ele seria libertado no dia em que explodisse a bolha bolchevique. Por fim, prometi que seria bem alimentado, bem melhor do que eu fui quando, em minha época, fui preso pela Cheka,4 e que, como privilégio especial, ele receberia livros. E, de fato, até hoje não acredito que tenha reclamado da comida nem uma vez. Verdade, no começo, Pety a propôs que ele fosse alimentado com ruivo seco, mas por mais que a gente procurasse não se encontrou esse peixe soviético em Berlim. Fomos obrigados a servir comida burguesa para ele. Exatamente às oito horas, toda manhã, Pety a e eu entramos e colocamos ao lado da banheira uma tigela de sopa quente e um pedaço de pão preto. Ao mesmo tempo, retiramos o urinol, um utensílio engenhoso que compramos só para ele. Às três, ele recebe um copo de chá, às sete mais um pouco de sopa. O sistema nutricional segue o modelo em uso nas melhores prisões europeias.

“Os livros foram mais problemáticos. Fizemos um conselho familiar para saber com quais começar e nos detivemos em três títulos: Príncipe Serebryanïy, as Fábulas de Kry lov e A volta ao mundo em oitenta dias. Ele anunciou que não ia ler aqueles ‘panfletos da Guarda Branca’, mas deixamos os livros e temos toda razão para acreditar que ele leu com prazer.

“O estado de espírito dele era variável. Ele se tornou calado. Evidentemente estava aprontando alguma coisa. Talvez esperasse que a polícia fosse começar a procurar por ele. Nós conferimos os jornais, mas não havia nem uma palavra sobre um agente da Cheka desaparecido. Muito provavelmente, os outros representantes deviam ter concluído que o homem simplesmente desertara e preferiram enterrar o assunto. A esse período pensativo pertence a sua tentativa de escapar, ou ao menos de se comunicar com o mundo exterior. Ele caminhava pela cela, provavelmente chegou até a janela, tentou soltar as pranchas, tentou esmurrar, mas fizemos uma ou outra ameaça e os socos pararam. E uma vez, quando Pety a entrou sozinho, o homem pulou em cima dele. Pety a o prendeu num abraço de urso cuidadoso e o pôs sentado na banheira. Depois desse acontecimento, ele passou por outra mudança, ficou muito bem-humorado, até fazia piadas de vez em quando, e finalmente tentou nos subornar. Ofereceu uma soma enorme, que propôs conseguir através de alguém. Quando isso também não adiantou, ele começou a chorar, depois voltou a xingar pior do que antes. No momento, ele está num estágio de tristonha submissão, o que, eu temo, não é bom sinal.

“Nós levamos o sujeito para uma caminhada no corredor todos os dias, e duas vezes por semana ele toma ar numa janela aberta; naturalmente tomamos todas as precauções necessárias para impedir que grite. Aos sábados, ele toma um banho. Nós temos de tomar banho na cozinha. Aos domingos, eu faço uma palestrazinha para ele e deixo que fume três cigarros. Na minha presença, claro. Sobre o que são essas palestras? Todo tipo de coisa. Sobre Puchkin, por exemplo, ou a Grécia Antiga. Só um assunto é omitido: política. Ele é totalmente privado de política. Simplesmente como se isso não existisse na face da terra. E sabe de uma coisa? Desde que mantenho um agente soviético prisioneiro, desde que me pus a servir a Pátria, eu simplesmente sou outro homem. Animado e feliz. E os negócios prosperaram, então também não é um grande problema sustentar o sujeito. Ele me custa vinte e poucos marcos por mês, contando a eletricidade: lá dentro é completamente escuro, então das oito da manhã às oito da noite deixamos uma lâmpada fraca acesa.

“Você me pergunta sobre a origem dele? Bom, como posso dizer… Ele tem vinte e quatro anos, é camponês, é pouco provável que tenha terminado até mesmo a escola da aldeia, é o que se chama de ‘um comunista honesto’, estudou apenas literatura política, o que pelo nosso livro significa fazer um desmiolado virar um cabeça-dura, só sei isso. Ah, se quiser, mostro o prisioneiro a você, mas, lembre-se, nem uma palavra!”

Martin foi para o corredor. Pety a e eu seguimos atrás. O velho com seu confortável paletó de ficar em casa realmente parecia um diretor de prisão. Enquanto caminhava, tirou do bolso a chave e havia algo profissional no modo como a inseriu na fechadura. A fechadura girou duas vezes e Martin abriu a porta. Longe de ser um buraco mal iluminado, era um banheiro esplêndido, espaçoso, do tipo que se encontra em residências alemãs confortáveis. Luz elétrica forte, mas agradável aos olhos, acesa atrás de um quebra-luz alegre, decorado. Um espelho cintilante na parede da esquerda. Na mesinha de cabeceira ao lado da banheira havia livros, uma laranja descascada num prato lustroso e uma garrafa de cerveja intocada. Na banheira branca, sobre um colchão coberto com lençol limpo, com um travesseiro grande debaixo da cabeça, havia um sujeito bem alimentado, de olhos brilhantes, com uma barba por fazer há muito, roupão de banho (descartado por seu senhor) e chinelos macios e quentes.

“Bom, o que me diz?”, Martin me perguntou.

Eu achei a cena cômica e não sabia o que responder. “Era ali que ficava a janela”, Martin apontou com o dedo. Sem dúvida nenhuma, a janela tinha sido vedada com perfeição.

O prisioneiro bocejou e virou para a parede. Saímos. Martin alisou a tranca com um sorriso. “Nenhuma chance de ele escapar”, disse e acrescentou, pensativo: “Mas eu tenho curiosidade de saber quantos anos vai passar aqui…”

*Contos Reunidos – Vladimir Nabokov. Editora Alfaguara. Tradução José Rubens Siqueira. Le Livros.site

Notas

1 Nome verdadeiro de Lenin. (D.N.)

2 Nesta narrativa, todos os traços e sinais característicos que possam apontar a real identidade de Martin foram, é claro, deliberadamente distorcidos. Menciono isso para que os curiosos não procurem em vão pela “tabacaria da esquina.”

(V.N.)

3 Gossudarstwenoje Polititscheskoje Upravlenije, em russo: Administração Política Nacional, o serviço secreto soviético até 1937. (N.T.)

4 A polícia política soviética que antecedeu a GPU. (N.T

ESCALA 01

ALGUMAS VEREDAS DA POESIA

Lourdes Rodrigues

Primeiro, antes de entrarmos pelas suas veredas, seria importante definir o que é Poesia; se poema e poesia são a mesma coisa; que tipos de poesia existem. São essas perguntas que sempre vêm à cabeça quando falamos sobre o assunto. 

  1. POESIA VERSUS POEMA

Poesia é tudo que expressa sentimento, que comove, que encanta, que contém beleza, assim, ela pode estar presente em todas as artes, seja literatura, música, pintura ou escultura. Assim, é uma manifestação artística que não se limita ao fazer literário, às palavras. Embora seja uma arte baseada na linguagem, ela ultrapassa esses limites; e seu significado é tão amplo que é difícil de definir, porque é menos determinado: a poesia expressa um certo estado da mente, diz Wladyslaw Tatarkiewez em seu trabalho acadêmico sobre O Conceito da Poesia.

Poema é a forma de expressão da poesia no universo literário, através de composições em versos, estrofes e, por vezes, rima. É a retratação pelo poeta do seu eu lírico em forma de palavras sonoras.

  • CLASSIFICAÇÃO DA POESIA

São três as modalidades de poesias: a poesia lírica; a poesia épica; e a poesia dramática.


Na poesia lírica a subjetividade impera, ali o poeta expressa o seu eu mais profundo, a sua visão de mundo, seus anseios, seus sentimentos. Primando pela estética refinada, a métrica, o verso e a rima os poetas dos textos líricos apresentam em linguagem elaborada e de forma estruturada seus poemas.

Na poesia épica há o predomínio da objetividade, dos fatos, das circunstâncias que o poeta deseja narrar. Normalmente são de grande extensão e linguagem apurada. Os temas são, em geral, as guerras, os atos heroicos, as grandes viagens com rigor formal e estético.

Na poesia dramática há uma combinação das duas primeiras, na medida em que a subjetividade e a objetividade convivem harmonicamente.  Apesar de ser uma narrativa épica, ao invés dos narradores nesse tipo de poesia estão presentes os personagens das ações, em sua essência e emoção, dando-lhe um aspecto lírico.

Exemplo:

Morte e vida Severina

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,

não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:

há muitos na freguesia,

por causa de um coronel

   que se chamou acarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria

3.0O FAZER POÉTICO

3.1 – O Lado de fora da Poesia

Do lado de fora da poesia está a sua aparência, o seu exterior, o seu aspecto formal, aquele que segue a Norma Culta. Com ele damos conta dos seguintes aspectos:  quantidade de estrofes, de versos, esquema das rimas de cada estrofe, métrica, a métrica predominante.

Os versos estão distribuídos por linhas, cada linha corresponde a um verso; um conjunto de versos separado de outro conjunto de versos por uma linha branca é chamado de estrofe.

A quantidade de versos é uma escolha do poeta. Assim como, a quantidade de estrofes. Alguns tipos de poemas apresentam uma estrutura fixa, tanto em termos de versos como de estrofe.

Há uma classificação do poema, inclusive, segundo a quantidade de versos por estrofe:

  • Estrofe com um verso: monóstico;
  • Estrofe com dois versos: dístico;
  • Estrofe com três versos: terceto;
  • Estrofe com quatro versos: quarteto ou quadra;
  • Estrofe com cinco versos: quintilha;
  • Estrofe com seis versos: sextilha;
  • Estrofe com sete versos: septilha;
  • Estrofe com oito versos: oitava;
  • Estrofe com nove versos: nona;
  • Estrofe com dez versos: décima;
  • Estrofe com mais de dez versos: estrofe irregular.
  • – Poemas com estrutura fixa
  • Soneto: Formado por duas quadras e dois tercetos. Ou seja, duas estrofes de quatro versos e duas de três versos. Ao todo são 14 versos. A sua criação é atribuída a Francesco Petrarca, embora haja registro de sua existência antes mesmo de Petrarca. William Shakespeare não usava esse formato para os seus poemas. Ele usava 3 quartetos e um dístico. Há ainda, o Soneto Monostrófico que tem apenas uma estrofe de 14 versos.
Soneto de fidelidade
Vinicius de Moraes

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

  • Balada: Formada por três oitavas (ou décimas) e uma quadra (ou quintilha), ou de uma quintilha (cinco versos) no lugar do quarteto, geralmente todos de versos octossílabos (oito sílabas poéticas). A última estrofe, a menor, é chamada de oferenda ou ofertório.
Baladas Românticas – Verde…
Olavo Bilac
Como era verde este caminho!
Que calmo o céu! que verde o mar!
E, entre festões, de ninho em ninho,
A Primavera a gorjear!…
Inda me exalta, como um vinho,
Esta fatal recordação!
Secou a flor, ficou o espinho…
Como me pesa a solidão!

Órfão de amor e de carinho,
Órfão da luz do teu olhar,
– Verde também, verde-marinho,
Que eu nunca mais hei de olvidar!
Sob a camisa, alva de linho,
Te palpitava o coração…
Ai! coração! peno e definho,
Longe de ti, na solidão!

Oh! tu, mais branca do que o arminho,
Mais pálida do que o luar!
– Da sepultura me avizinho,
Sempre que volto a este lugar…
E digo a cada passarinho:
“Não cantes mais! que essa canção
Vem me lembrar que estou sozinho,
No exílio desta solidão!”

No teu jardim, que desalinho!
Que falta faz a tua mão!
Como inda é verde este caminho…
Mas como o afeia a solidão!
  • Sextina: Formada por seis sextilhas e um terceto. Ou seja, a sextina é formada por seis estrofes de seis versos cada um (sextilha) e uma estrofe de três versos (terceto).

A sextina de Luís Camões

Foge-me, pouco a pouco, a curta vida,
Se por acaso é verdade que inda vivo;
Vai-se-me o breve tempo de entre os olhos;
Choro pelo passado; e, enquanto falo,
Se me passam os dias passo a passo.
Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena.

  • Que maneira tão áspera de pena!
    Pois nunca uma hora viu tão longa vida
    Em que posso do mal mover-se um passo.
    Que mais me monta ser morto que vivo?
    Pera que choro, enfim? Pera que falo,
    Se lograr-me não pude de meus olhos?
  • Ó fermosos gentis e claros olhos,
    Cuja ausência me move a tanta pena
    Quanta se não compreende enquanto falo!
    Se, no fim de tão longa e curta vida,
    De vós me inda inflamasse o raio vivo,
    Por bem teria tudo quanto passo.
  • Mas bem sei que primeiro o extremo passo
    Me há-de vir a cerrar os tristes olhos,
    Que amor me mostre aqueles por que vivo.
    Testemunhas serão a tinta e pena
    Que escreverão de tão molesta vida
    O menos que passei, e o mais que falo.
  • Oh! que não sei que escrevo, nem que falo!
    Que se de um pensamento noutro passo,
    Vejo tão triste género de vida
    Que, se lhe não valerem tanto os olhos,
    Não posso imaginar qual seja a pena
    Que traslade esta pena com que vivo.
  • Na alma tenho contínuo um fogo vivo,
    Que, se não respirasse no que falo,
    Estaria já feita cinza a pena;
    Mas, sobre a maior dor que sofro e passo
    Me temperam as lágrimas dos olhos;
    Com que, fugindo, não se acaba a vida.
  • Morrendo estou na vida, e em morte vivo;
    Vejo sem olhos, e sem língua falo;
    E juntamente passo glória e pena.
  • Luís de Camões, Lírica Completa, edição de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1980.
  •  
  • Rondó: Existe o rondó francês e o português. O rondó francês é formado por uma quintilha, um terceto e outra quintilha. No rondó português o número de estrofes é variado, embora o usual sejam oito quadras ou quatro oitavas. Uma quadra é repetida ao fim de oitavas ou do duas quadras.
  • Rondó dos Cavalinhos
    Manuel Bandeira

    Os cavalinhos correndo, 
    E nós, cavalões, comendo…
    Tua beleza, Esmeralda, 
    Acabou me enlouquecendo.

    Os cavalinhos correndo, 
    E nós, cavalões, comendo…
    O sol tão claro lá fora
    E em minhalma — anoitecendo!


    Os cavalinhos correndo,
    E nós, cavalões, comendo…
    Alfonso Reys partindo,
    E tanta gente ficando…

    Os cavalinhos correndo, 
    E nós, cavalões, comendo…
    A Itália falando grosso,
    A Europa se avacalhando…

    Os cavalinhos correndo, 
    E nós, cavalões, comendo…
    O Brasil politicando,
    Nossa! A poesia morrendo…
    O sol tão claro lá fora,
    O sol tão claro, Esmeralda,
    E em minhalma — anoitecendo!
  • Rondel: Formado por duas quadras e uma quintilha, nesta ordem.  Os dois primeiros versos da primeira quadra serão os dois últimos versos do segundo quarteto. O último verso da quintilha, e do poema, será sempre o primeiro verso do primeiro quarteto.

Oh Céus !
(Ângela Bretas)

Oh céus! Onde estás? – Exclamo aos mares e ventos.
Sem resposta, sem volta, sem entender permaneço…
Esqueci de rasgar do calendário os momentos.
E indagando eu vago, eu rogo. Incerta, padeço.

Onde errei? Não encontro respostas, de ti não esqueço.
Como fui mergulhar nestes rasos tormentos?
Oh céus! Onde estás? – Exclamo aos mares e ventos.
Sem resposta, sem volta, sem entender permaneço…

Será que pequei, que magoei, que feri: Julgamentos?
Quem és tu que me assombra. Ao recordar-te emudeço…
O que faço, o que digo? – Não sei, me perdi em lamentos…
Não temas, não fujas, não negue! – Será que não te mereço?
Oh céus! Onde estás? – Exclamo aos mares e ventos.

  • Haicai: Formado por um terceto.

O tradicional haicai japonês tem uma forma fixa composta de três versos (terceto) formados por 17 sílabas poéticas, ou seja:

  • Primeiro verso: apresenta 5 sílabas poéticas (pentassílabo)
  • Segundo verso: apresenta 7 sílabas poéticas (heptassílabo)
  • Terceiro verso: apresenta 5 sílabas poéticas (pentassílabo)

O haicai tem se modificado, alguns escritores não seguem esse padrão de sílabas, adotando uma silabação livre, em geral usando dois versos mais curtos e um mais longo.

Do poeta japonês Matsuo Bashô (1644-1694):

O sol de inverno:
a cavalo congela
a minha sombra.

  • No primeiro verso, cinco sílabas poéticas: O/sol/de in/ver/no;
  • No segundo, sete sílabas poéticas: a/ ca/va/lo/ con/ge/la;
  • No terceiro, cinco sílabas: a/ mi/nha /som/bra.

Fora do padrão japonês. Ex.     Paulo Leminsky

confira
tudo que respira
conspira

3.3 – EscansãoA divisão das sílabas na poesia

É chamada de escansão a divisão em sílabas métricas de um verso. Escandir um verso para encontrar a sua métrica constitui boa parte do fazer do poeta. A essa tarefa ele dedica grande parte do seu tempo.

A divisão em sílabas não é igual ao que se aprendeu na escola ao estudar gramática. Algumas regras são consideradas:

  • Classificação de versos quanto ao número de sílabas

Alguns exemplos:

3.4 – Rima e Esquema Rimáticos

            A rima é a repetição dos sons (fonemas) idênticos ou semelhantes, entre dois versos ou mais, e que confere musicalidade ao poema. Normalmente na sílaba final das palavras.

As rimas podem ser classificadas tanto quanto à fonética, como ao valor, à acentuação, e à posição no verso ou estrofe. O esquema rimático resulta da posição das rimas nos versos e nas estrofes.

Classificação de rimas:

a) – Segundo a fonética:

  • rima perfeita ou consoante;
  • rima imperfeita;
  • rima toante ou assonante;
  • e rima aliterante.

Rima perfeita ou consoante: Em que há correspondência total de sons, havendo repetição tanto dos sons vocálicos como dos sons consonantais.

                          falado/cantado;

presente/ausente;

  • particularidade/dificuldade.

Rima imperfeita: Em que apenas há correspondência parcial de sons. Pode ser toante ou aliterante.

Rima toante (ou assonante): Em que há apenas a repetição dos sons vocálicos.

  • boca/moça;
  • pálida/lágrima;
  • plátano/cálamo.
  •  

Rima aliterante: Em que há apenas a repetição dos sons consonantais.

  • fez/faz;
  • lata/luto;
  • medo/moda.
  •  

b) – Conforme o valor:

  • rima pobre;
  • rima rica;
  • e rima rara ou preciosa.

A rima rica é aquela em que o autor utiliza palavras de diferente categoria gramatical; a rima pobre, aquela em que são usadas palavras da mesma categoria.

  • Exemplo de rima pobre:
  • De repente do riso fez-se o pranto
    Silencioso e branco como a bruma
    E das bocas unidas fez-se a espuma
    E das mãos espalmadas fez-se o espanto
    […]

  • As palavras “pranto/espanto” e “bruma/espuma” pertencem à classe dos substantivos.

Exemplo de rima rica:

A escolha das palavras se dá de forma variada, usando vocábulos de classes gramaticais distintas, como numa das criações de Olavo Bilac, intitulada A um poeta:

A um poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica, mas sóbria, como um templo grego

Notamos que, bem ao estilo parnasiano, Bilac demonstra seu hábil manejo em combinar “rua/sua” = substantivo com verbo; “construa/nua” = verbo com adjetivo; “emprego/grego” = substantivo e adjetivo.

A rima é preciosa ou rara em tais circunstâncias:

 Quando as palavras que rimam possuem terminações incomuns, pouco utilizadas, como combinações entre verbos e pronomes. Exemplos: estrelas/vê-las; mandala/dá-la; parabéns/vinténs; profícuo/conspícuo.

Monólogo de uma sombra

(…)

Toma conta do corpo que apodrece…

E até os membros da família engulham,

Vendo as larvas malignas que se embrulham

No cadáver malsão, fazendo um s.

(…)

c)– De acordo com a acentuação:

  • rima aguda ou masculina;
  • rima grave ou feminina;
  • e rima esdrúxula.

Rima aguda ou masculina é aquela que ocorre entre palavras oxítonas tipo céu/chapéu; cantor/pintor; coração/animação.

Rima grave (ou feminina) é aquela que ocorre entre palavras paroxítonas tipo cedo/medo; agora/embora; metade/amizade.

Rima esdrúxula ocorre entre palavras proparoxítonas:

 célula/cédula; armário/salário; propósito/leucócito.

  • –  Quanto à posição no verso:

rima externa;

e rima interna ou coroada.

Rima externa: Que ocorre no fim do verso.

“E em louvor hei de espalhar meu canto
 E rir meu riso e derramar meu pranto
 (Vinícius de Moraes)

Rima interna ou coroada: Que ocorre no interior do verso.

“A bela bola do Raul
 Bola amarela” 
 (Cecília Meireles)

  • –  Quanto à posição na estrofe:
  • rimas alternadas ou cruzadas;
  • rimas emparelhadas ou paralelas;
  • rimas interpoladas ou intercaladas;
  • rimas encadeadas;
  • rimas mistas ou misturadas
  • e versos brancos ou soltos.

Rimas alternadas (ou cruzadas) quando se combinam de forma alternada, seguindo o esquema ABAB.

“O meu amor não tem
 importância nenhuma.
 Não tem o peso nem
 de uma rosa de espuma!”
 (Cecília Meireles)

Rimas emparelhadas (ou paralelas), combinação de duas em duas, seguindo o esquema AABB.

“Vagueio campos noturnos
 Muros soturnos
 Paredes de solidão
 Sufocam minha canção.
 (Ferreira Gullar)

Rimas interpoladas (ou intercaladas combinam-se numa ordem oposta, seguindo o esquema ABBA.

“De tudo, ao meu amor serei atento
 Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
 Que mesmo em face do maior encanto
 Dele se encante mais meu pensamento.”
 (Vinícius de Moraes)

Rimas encadeadas: Quando as palavras que rimam se situam no fim de um verso e no início ou meio do outro.

“Salve Bandeira do Brasil querida
 Toda tecida de esperança e luz
 Pálio sagrado sobre o qual palpita
 A alma bendita do país da Cruz”
 (Francisco de Aquino Correia)

Rimas mistas (ou misturadas): Quando apresentam outras combinações e posições na estrofe, sem esquemas fixos.

“Vou-me embora pra Pasárgada
 Vou-me embora pra Pasárgada
 Aqui eu não sou feliz
 Lá a existência é uma aventura
 De tal modo inconsequente
 Que Joana a Louca de Espanha
 Rainha e falsa demente
 Vem a ser contraparente 
 Da nora que nunca tive.
 (Manuel Bandeira)

Versos brancos (ou soltos) não rimam com nenhum outro verso.

“Uma palavra caída
 das montanhas dos instantes
 desmancha todos os mares
 e une as terras mais distantes…”
 (Cecília Meireles)

A inexistência da rima e muitas vezes da metro não significa, em absoluto, ausência de sonoridade; a sonoridade é um requisito essencial da poesia, o texto que não seja significativamente dotado de prazer sonoro se exclui ipso facto da poética.

O CORDEL – ONTEM E HOJE

Salomé Barros

 Histórico

Em sua origem mais remota, a literatura de cordel teve início no período medieval (século V a XV) com os chamados trovadores e menestréis. Cantavam acompanhados por instrumento musical, anunciando as notícias da época. Sendo analfabetos, tinham que decorar as informações, aliando a inteligência à capacidade artística inerente ao ser humano. Esta forma oral de declamação, constitui a raiz de nossos atuais cantadores de viola e repentistas.

Com o passar do tempo, os cantadores começaram a se alfabetizar. Em paralelo começaram a surgir pequenas tipografias permitindo a impressão rústica de folhas soltas que eram penduradas em barbantes (cordões) para serem vendidas.

Nossos atuais folhetos tem vinculação com essas folhas volantes ou soltas que começaram a surgir a partir do século XVII.

Países com Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, tinham também seus folhetos, característicos de cada região.

Em Portugal, no ano de 1789, D. João v promulga lei permitindo o comércio da chamada “Literatura de Cego”: folhas soltas, cuja venda era privilégio dos cegos.

No Brasil, a literatura de cordel chegou através dos colonizadores, também como “folhas soltas” ou mesmo manuscritos.

Foi no Nordeste que surgiu e se fixou como uma das peculiaridades da cultura regional. Aos poucos se espalhou por outras regiões tendo em vista as imigrações ocorridas na época.

Antigamente, com a inexistência de meios de comunicação, o cordel fazia o papel de transmitir notícias nas feiras do interior ou mesmo nos mercados das capitais.

Era utilizado também para alfabetização nas escolas. Um poeta paraibano, Antonio Américo de Medeiros, escreveu:

                             O cordel naquele tempo

                             Ensinava o povo a ler

 Uma revista,  um jornal                              Era difícil de ver                              O povo lendo cordéis                              Era o livro de aprender

]

O poeta e xiligravurista – José Francisco Borges, escreveu na contra-capa de seu livro para crianças – História de Jesus e o Menino do Galo: “Espero que todas as crianças que lerem esta história saibam que ela foi escrita e ilustrada por um poeta que não estudou além de dez meses e a pequena leitura que aprendeu foi completada lendo livrinhos de literatura de cordel”.

LITERATURA POPULAR E ERUDITA

Desde sua origem, o cordel tem resistido a altos e baixos.

Para alguns não se trata de literatura, porque consideram “arte menor”, vinda de camadas baixas da população iletrada. Era olhada como irmã pobre da literatura erudita.

Os dicionários traziam a definição de literatura de cordel de forma pejorativa, do tipo:

–  conjunto de folhetos de somenos valor literário

–  textos desprovidos de valor literário

–  baixa literatura

–  literatura de segunda classe, inferior, pouco elaborada, marginal

Em 1982 um grupo de poetas fizeram uma campanha contra determinado dicionário que classificava a literatura de cordel como “textos desprovidos de valor literário”. Ganharam a causa e conseguiram retirar toda a edição do mercado.

POESIA X CORDEL

Poesia em geral pode ser rimada ou não. A poesia de cordel possui métrica bem definida e obedece aos preceitos da rima.

Metrificação é a contagem das sílabas poéticas, que difere das sílabas gramaticais.

Verso é cada linha que forma a estrofe.

É mais comum que o verso tenha sete sílabas poéticas. Quando tem dez, chama-se decassílabo.

O número de versos de cada estrofe também varia:

–  QUADRA – quatro versos (pouco usada atualmente)

–  SEXTILHA – seis versos (forma mais usada)

–  SEPTÍLHA ou SETÍLHA – sete versos

– OITAVA – oito versos

– DÉCIMA – dez versos                                           

–  REDONDÍLHA – dez versos e dez sílabas

O cordel faz parte do grupo “poesia narrativa” que se propõe a contar histórias, romances, biografias, ideias, “causos”.

Escrever cordel exige sentimento e técnica. Segundo Braulio Tavares em seu livro: Contando Histórias em Verso – “Na poesia, como na música, a técnica existe para mostrar ao artista uma variedade maior de formas para que ele exprima seu sentimento”

A literatura de cordel é um gênero poético que possui regras próprias a serem seguidas. As principais são: métrica e rima.

Com essa estrutura pode-se escrever pequenos folhetos ou romances longos tendo como exemplo os escritores Ariano Suassuna, Wilson Freire e tantos outros.

A métrica corresponde a contagem de sílabas poéticas que é diferente das sílabas gramaticais. Fazendo paralelo com a música, a métrica é o ritmo ou a percussão. A rima é a sonoridade, aquilo que agrada aos ouvidos.

Várias músicas, principalmente nordestinas, seguem a métrica do cordel.

Exemplos: Último Pau de Arara de Luiz Gonzaga 

                                 A vida aqui só é ruim

                                 Quando não chove no chão

                                 Mas se chover dá de tudo

                                 Fartura tem de montão

                                 Tomara que chova logo

                                 Tomara meu Deus tomara

                                 Só deixo meu Cariri

                                 No último pau de arara

Observa-se que se trata de uma oitava com versos de 7 sílabas poéticas.

Outro exemplo é a famosa música de Geraldo Vandré: Disparada

                                   Prepare o seu coração

                                   Pras coisas que eu vou contar

                                   Eu venho lá do sertão

                                   E posso não lhe agradar

                                   Aprendi a dizer não

                                   Ver a morte sem chorar

                                   E a morte, o destino, tudo

                                   A morte o destino tudo

                                   Estava fora de lugar

                                   Eu vivo pra consertar

Trata-se de um decassílabo com versos de 7 sílabas poéticas.

No verso a última sílaba poética corresponde a sua última sílaba tônica.

Estrofe é o conjunto de versos. Na maioria dos cordéis as estrofes são formadas por 4 a 10 versos. O tipo mais comum é com seis versos que se chama sextilha. Em segundo lugar vem a septilha ou setilha com 7 versos.

Os versos de cada estrofe devem ter o mesmo número de sílabas. Assim se o primeiro verso tem 7 sílabas – que é o mais usado – todos os outros também devem ter esse número. Na sextilha a rima recai sobre o segundo, quarto e sexto verso.

Temos ainda outras modalidades de cordel como a cantoria, a peleja o galope a beira mar, os repentistas e tantos outros.

Em 2018 o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)  reconheceu o cordel como Patrimônio Cultural do Brasil.

.