Tua Cura

Na penúltima quarta-feira, César Garcia nos trouxe a poesia de  Andréa Campos que ele havia conhecido na Livraria Jaqueira. Impressionado com a qualidade do seu trabalho,  comprou o livro Cantos de Amor Agreste,  de poemas de sua autoria e levou-o à Oficina para apresentação e leitura do poema a seguir:

TUA CURA

Andrea Campos

Eu sou aquela que
Te amou
Por entre as cortinas,
No lusco-fusco
De quando a madrugada termina,

Eu sou aquela que te alucina,
Doce sabor da loucura
Por quem teu sonho germina,
Num cio que não passa,
mulher tão pura:
Eu sou tua cura.

Eu sou aquela
Que incendiou teu espelho
Pariu o amor
Intenso e vermelho,

Eu sou aquela que veio antes,
Restou durante
E estará depois,

Eu sou a nunca esquecida,
A voz redimida
Do que somos nós dois,

Eu sou a que está no teu
Corpo que treme,
Eu sou tua febre,
No destino, o teu leme.

A que abarca o teu dia,
Embala teu sono,
E te tem rendido

Eu sou teu passado perdido
Tudo que poderia ter sido
E tens de volta,
Sirvo ao teu desejo remido,
Eu sou tua escolta.

Mas se o que se diz é volátil
Quando enaltecido,
Então emudeço, me calo
E a ti ofereço minha pele,
Meu mais profundo tecido,

O que sou, o que fui, o que serei
Não importa,
Entra, me prende, te esfrega, me beija,
Deixa acesa só a luz
Que nos corta,
Afoga em mim teu desespero…

Eu sou aquela que é tua,
Fecha a porta.

Finalmente

Finalmente

*Everaldo Soares Júnior

Duas horas da madrugada, quando cansado não adormeço, ela não! dorme profundamente, ressona alto.Queria ser assim, mas as preocupações! Que faço com essas insistências tão irritantes?
Fecho o livro, não adianta. O percurso é o mesmo, banheiro, depois, a cozinha. Bebo água, gelada é melhor, vou relaxar.
Tsisis, tsisis, tsisis…
Cigarra tocando a essa hora, só faltava essa! Estranho, já são quase três, mas só ela continua roncando.
Quem é?
Abra, preciso falar com você.
Mas quem é?
Não se faça de inocente, você sabe muito bem.
Se identifique e diga o que quer?
Vou fazer um escândalo, não duvide.
Espere.
Assim é melhor.
Finalmente, eu o encontrei, fujão!
O que é isso?
Vai começar com as juras mentirosas? Não acredito mais, tudo mentira cavilosa e temos muito que acertar. E vamos logo ao assunto, no momento que lhe disse que estava grávida de um filho seu, ouvi belas enganações amorosas, depois sumiu, escafedeu-se. Sou tola até certo limite, agora o encontrei. Uso a lei e acabo com sua pose de conquistador de meia tigela.
Calma, há um equívoco nisso tudo.
Equivocada fui eu. Vamos logo, acenda a luz.
Epaminondas, está falando sozinho?
Ah! O seu nome é esse?
Sou Epaminondas Paraíso, não conheço a senhora.
Então vai ver mesmo quem é a mulher de verdade.
Que gritaria, estava dormindo, acenda as luzes da sala Nondas.
A visitante trapalhona era loura, alta, nem feia e nem bonita. Começou a chorar, o soluço cortava sua voz
Meu Deus que vergonha!!! Tudo por causa daquele safado
Tome um pouco d’água, lhe fará bem. Nondas, traga logo uma água com açúcar.
Obrigada, senhora, não sei o que falar.
Vou abrir a janela, está abafado.
Tenho quase quarenta anos e me apaixonei profundamente, sinto ódio e cada vez fico mais presa aquele safado, perdi até o bom senso. Ele era amoroso, disponível comigo, mas ultimamente estava diferente, arredio, às vezes grosseiro. Não aguentei, vinha o ciúme, a raiva e o medo de perdê-lo. Estou grávida. Loucura mesmo. Perdi minha mãe cedo, meu pai fez outra família, fui criada pela minha avó e pela minha tia. Já viu a complicação.
Calma, agora tem o filho para você cuidar
Desculpem-me, vou embora, chamo um táxi conhecido. Essa rua é a Hernesto Veras?
Não, aqui é a Hermenegildo de Maria.
Quero dormir, vou tomar um calmante fitoterápico.
Se quiser, volte para conversar.
Obrigada, apesar do meu vexame, foi bom conhecê-los.
Ainda está chovendo.
Está passando, o carro não demora, o motorista já dirigiu outras vezes para mim.
Ouviram a zoada do táxi partindo. Na casa voltou o silêncio.
Nondas, feche a janela, vamos dormir.
Eufrazina, faça-me um chá de camomila. Jamais a doce de coco faria uma desfeita assim comigo. Finalmente, preciso relaxar.
Nondas, seu calmante sou eu.

  • Médico, Psicanalista, ensaísta, contista.

A Escrita Criativa e O Patinho Feio

A ideia subjacente à Escrita Criativa é a criação de algo diferente, algo que espante não só ao seu autor como e principalmente a quem o irá ler depois. O conforto de trilhar caminhos conhecidos é muito difícil de ser abandonado! Alguns começam colocando um pé devagarinho para avaliar a profundidade das águas que vai mergulhar. Outros ficam a espreitar o mar. Poucos se aventuram a se jogar nas águas mesmo pairando dúvidas sobre a sua capacidade e fôlego para nadar

Os viageiros da Oficina são marujos experientes e estão imbuídos do desejo de sair da zona de conforto para se aventurarem em águas mais profundas onde o desconhecido, o novo poderão advir. Mas eles não têm pressa, sabem que há um caminho a ser caminhado antes de chegar lá e irão trilhá-lo com destemor e determinação.

O primeiro desafio foi criado com o conto de Andersen: O Patinho Feio. Pedi que reescrevessem o conto com o máximo de liberdade, desde a mudança do personagem, do foco narrativo, tempo e espaço da narrativa. Ainda estamos recebendo contos, outros já estão sendo reescritos partindo do pressuposto de que no ato de criação nenhuma amarra sintática, nenhuma dissonância fonética ou estética deverão ser objeto de preocupação sob pena de bloquear o fluxo criativo  ou quebrar o ritmo da escrita. Após esse primeiro momento é que se dá início ao processo artesanal do escritor onde todos os aspectos anteriormente ausentes vão ser contemplados, onde o texto irá passar por sérios e importantes cortes, profunda assepsia para deixá-lo no tamanho certo, com o tom requerido, a  beleza almejada. Cortar palavras não é fácil, mas é fundamental para todo aquele que se propõe a ser escritor. Edgard Allain Poe em A Filosofia da Composição, diz que o escritor deve planejar nos mínimos detalhes a sua obra antes de começar a escrevê-la. Na Escrita Criativa abrimos mão de toda cientificidade nesse primeiro momento para dar espaço e liberdade plena à criação.

O Conto Patinho Feio  de Everaldo Soares Júnior, viageiro da primeira hora, médico, psicanalista, ensaísta, contista já passou por todo esse processo e se encontra pronto para ser apresentado e é o que faremos agora:

O Feio

*Everaldo Soares Júnior

Sim, agora sou um cisne, branco como os outros, tenho postura imponente, flutuo nas águas da lagoa, mas não canto, Deus me livre!

Essa história já é bastante conhecida, foi o Hans Christian Andersen quem fez a invencionice de espalhá-la. Passei tempos desnorteado, mal estar diferente.

Houve um equívoco, nasci chocado por uma pata, porém era diferente dos irmãos patinhos, todos amarelinhos, contentes, enfileirados, tomando banho na lagoa. Andavam com os pés de lado, dez pras duas horas, bico chateado com o quá, quá, quá estridente, barulho infernal. Eu calado, só observando. É, mas a pata dizia, ele é pato, ou seja: meu filho! Gostava, o estranhamento se afastava um pouco de mim.O pai era omisso, quando não, era agressivo e desconfiado. Dizia que eu não tinha semelhança com ele.

O tempo foi passando, às vezes brincava com os outros, mas na maioria preferia ficar sozinho, cantar, de jeito nenhum!

Um dia, arrisquei ir para outra lagoa mais distante, maior e de águas bem limpas, parecia um lago estrangeiro, aquele que se ouvia a valsa famosa, mas eu não sabia cantar. Olhava as outras aves do lugar, brancas, altivas, todas deslizando na água azul. Olhei e vi uma branquinha, dos olhos claros, piscando para mim, fiquei nervoso. Mas, olhos nos olhos nos aproximando e agora? Não tive dúvidas, ficara fisgado pela linda avezinha. Rolou uma conversa, falei muito de meus antepassados desconcertantes. Ela ouvia com atenção e a leveza se instalou no momento dos nossos bicos se tocarem por um bom tempo. Sorrimos e continuamos juntinhos. Beleza! O paraíso está nessa lagoa!

Passaram os tempos, nasceram patinhos, ou melhor, cisnezinhos, branquinhos e lindos, formávamos a família feliz.

Uma tarde, quando o crepúsculo derramava suas cores alaranjadas, a estranheza voltou. Que diabo é isso? Estava tudo bem nessa sucessão de belos dias e agora a repetida imagem estranha volta e acaba com tudo. Desconfio que ela me é familiar, de algum modo. O feio é o que não quero ver em mim mesmo, vai para longe, inferno dos outros! Deixa-me em paz! Estranhe, se quiser, mas eu não canto.

  • Everaldo Soares é médico, psicanalista, ensaísta, contista.

Diferente de Andersen, O Patinho Feio de Júnior não resolve seu sentimento de rejeição e estranhamento quando se depara com a sua tribo. As afinidades e o amor com a cisne branquinha de olhos claros, e o nascimento dos filhotes não foram suficientes para afastar dele nos belos dias a velha sensação de estranheza que lhe era familiar de algum modo. E ele arremata, O feio é o que não quero ver em mim mesmo. (…) Estranhe, se quiser, mas eu não canto. 

Luzia Ferrão também optou por não encontrar saída para o seu patinho feio no encontro com a sua turma.  Após a triste travessia da descoberta pelos colegas que não era tão bonito quanto a sua mãe dizia, ele parece abandonar a luta, assumir a feiura e ganhar dinheiro com ela expondo-se ao horror do público frequentador do circo. Apesar disso, preserva a mãe dizendo que é artista de circo, sem expor  a humilhação a que ele se submete. Trouxe a sua história para os tempos atuais e para o ser humano. Usou um narrador na terceira pessoa para contá-la.

O monstrinho

*Luzia Ferrão

Quando nasceu era de fato horrível, vale dizer, fugia aos padrões da normalidade, na opinião dos parentes, amigos, dos que conviveram com ele, menos de sua mãe. Era filho único, realizou o maior desejo dela – ser mãe- Foi um grande presente, um dádiva divina, a um ser que não se sentia merecedor de nada. Sentia-se tão gratificada que tratou como normal, os pezinhos tortos, o estrabismo e o lábio leporino do seu filhinho querido. Os “consertos” não ficaram assim tão perfeitos, mas que importância traria essas pequenas falhas, num ser tão amado? Virou mantra, repetida com frequência: Meu filho amado e lindo!

Chegou o dia do menino abandonar o ninho e ir à escola. No novo ambiente o mantra mudou: beiçola, Frank, Zé monstrinho, dois ou mais repetiam quando por ele passava.

Acariciado extremamente, o filho lindo e querido trocou o alivio que as palavras confortadoras da mãe lhe dava por uma raiva não identificada por ela. Uma raiva incontida do tom monótono da voz, dos carinhos, da presença que se tornara insuportável. A relação se esgarçava, se rompia, aflorando uma culpa da maldade por alguém que só lhe deu amor. A promessa embutida nas palavras seriam a garantia de felicidade dentro e fora do ninho, mas que se tornaram impeditivas de responder às angústias advindas de tanto amor. Estava travada uma corrida em círculo, por vezes vencia o amor, por vezes o ódio. Diferente da mãe que estava realizada desde que o abrigou dentro de si, que dela se apartou, mas não desapareceu nunca de sua vida, sem mistério, sem culpa, amor incondicional.

O convite foi a porta que se abriu para fugir: o papel de homem monstro estava vago no circo ambulante.  Com apenas uns pequenos retoques,  maquiagem e ensaios de gritos, seguidos de som acústico para assombrar a platéia. Tornou-se artista permanente.

“Querida mãe,

orgulhe-se do seu filho, sou o mais novo artista do circo. Um beijo”

fd

  • Luzia Ferrão – professora universitária, assistente social, contista, ensaísta.

Sandy Wexler film trailer

O Patinho Feio em Cordel

DIFERENTE

*Salomé Barros

Eu já nasci estressado
Assustado e carente
Não queria abrir os olhos
Pra não ver o ambiente
Aos poucos fui descobrindo
Que eu era diferente

Minha mãe me acolheu
Mas me disse paciente
Demorou tanto a nascer
Que o ovo ficou quente
Os outros patos nasceram
Comigo foi diferente

Meu pai nem olhou pra mim
Deixando-me reticente
Tentei aproximação
Me tornando obediente
Mesmo assim me rejeitou
Só porque sou diferente

Meus irmãos eram bonitos
Tinham fama condizente
Formavam com os amigos
Um bando muito contente
E eu vivia sozinho
Só porque sou diferente

Um pensamento me vinha
De forma intermitente
Me deixava inquieto
Anuviava a mente
Seria eu o culpado
Por ser feio e diferente?

No íntimo eu buscava
A resposta coerente
Tudo era nebuloso
Deve estar no inconsciente
Fica ainda mais difícil
Só porque sou diferente

Aí divaguei de mais
Parece que estou demente
No meu reino não existe
Nem ego, nem consciente
E muito menos divã
Pra tratar o diferente

Um dia criei coragem
Fugi dali simplesmente
Perguntava a mim mesmo
E à estrela cadente
Qual era a explicação
Por eu ser tão diferente

Depois de caminhar muito
De manhã ao sol nascente
Vi um bando lá num lago
Brincando alegremente
Me aproximei com receio
Pensando: sou diferente

Qual não foi minha surpresa
E não mais que de repente
Percebi que me olhavam
Com um jeito atraente
Até que enfim me encontrei
Aqui não sou diferente

*Psicóloga, cronista, cordelista.

Comemoração do Dia Internacional da Mulher

A Oficina não poderia ficar indiferente às comemorações do Dia Internacional da Mulher. Pois é, na quarta-feira passada, a nossa viageira Adelaide Câmara selecionou um grupo de poetas de primeira linha que falaram poeticamente sobre esse ser chamado “mulher”.

hqdefaultMenos usa a Natureza o Amarelo

(Emily Dckinson)

Menos usa a Natureza o Amarelo
Do que qualquer outra Cor
Guarda-o todo para o Sol se pôr  ( para os Poentes)
Pródiga de Azul/
Qual Mulher, esbanja Carmesim
O Amarelo, porém, é bem guardado
Tão escasso e tão seleto
Como as Palavras do Amado.

Nature rarely uses yellow

 

Nature rarely uses yellow
Then another Hue
Saves she all of that for Sunsets
Prodigal of Blue

Spending Scarlet, like a Woman

Yellow she affords
Only scantly and selectly
Like a Lover’s Words

 

hqdefault (1)A Mulher Ó Mulher! Como és fraca e…

Florbela Espanca

A Mulher
Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!
Quantas morrem saudosa duma imagem.
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca rir alegremente!
Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doce alma de dor e sofrimento!
Paixão que faria a felicidade.
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!

sylvia-plath-quotes-3Canção de Amor da Jovem Louca –   (Mad Girl’s Love Song)

Sylvia Plath

tradução de Maria Luíza Nogueira

Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro
Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
(Acho que te criei no interior da minha mente)

Saem valsando as estrelas, vermelhas e azuis,
Entra a galope a arbitrária escuridão:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Enfeitiçaste-me, em sonhos, para a cama,
Cantaste-me para a loucura; beijaste-me para a insanidade.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Tomba Deus das alturas; abranda-se o fogo do inferno:
Retiram-se os serafins e os homens de Satã:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Imaginei que voltarias como prometeste
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão
Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:
(Acho que te criei no interior de minha mente.)

Limite  (Edge)

A mulher está perfeita.
Seu corpo
Morto enverga o sorriso de completude,
A ilusão de necessidade
Grega voga pelos veios da sua toga,
Seus pés
Nus parecem dizer:
Já caminhamos tanto, acabou.
Cada criança morta, enrodilhada, cobra branca,
Uma para cada pequena
Tigela de leite vazia.
Ela recolheu-as todas
Em seu corpo, como pétalas
Da rosa que se encerra, quando o jardim
Enrija e aromas sangram
Da fenda doce, funda, da flor noturna.
A lua não tem porque estar triste
Espectadora de touca
De osso; ela está acostumada.
Suas crateras trincam, fissura.

ESPELHO

Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, desembaçado de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, desbotada. Há tanto tempo olho para ela
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ela falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.

Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vem e vai.
A cada  manhã seu rosto repõe  a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.

 

SofiaMelloBreynerAndersen2012

O mar nos olhos

Sophia de Mello Breyner Andresen

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens…
Há mulheres que são maré em noites de tardes…
e calma
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens…
Há mulheres que são maré em noites de tardes…
e calma

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MULHER

Carlos Drumond de Andrade

Para entender uma mulher
é preciso mais que deitar-se com ela…
Há de se ter mais sonhos e cartas na mesa
que se possa prever nossa vã pretensão…

Para possuir uma mulher
é preciso mais do que fazê-la sentir-se em êxtase
numa cama, em uma seda, com toda viril possibilidade… Há de se conseguir
fazê-la sorrir antes do próximo encontro

Para conhecer uma mulher, mais que em seu orgasmo, tem de ser mais que
amante perfeito…
Há de se ter o jeito certo ao sair, e
fazer da saudade e das lembranças, todo sorriso…

– O potente, o amante, o homem viril, são homens bons… bons homens de
abraços e passos firmes…
bons homens pra se contar histórias… Há, porém, o homem certo, de todo
instante: O de depois!

Para conquistar uma mulher,
mais que ser este amante, há de se querer o amanhã,
e depois do amor um silêncio de cumplicidade…
e mostrar que o que se quis é menor do que o que não se deve perder.

É esperar amanhecer, e nem lembrar do relógio ou café… Há que ser mulher,
por um triz e, então, ser feliz!

Para amar uma mulher, mais que entendê-la,
mais que conhecê-la, mais que possuí-la,
é preciso honrar a obra de Deus, e merecer um sorriso escondido, e também
ser possuído e, ainda assim, também ser viril…

Para amar uma mulher, mais que tentar conquistá-la,
há de ser conquistado… todo tomado e, com um pouco de sorte, também ser
amado!”

Soneto da Separação

Na penúltima quarta-feira a leitura do poema foi feita por Eleta Ladosky que nos levou Vinicius de Moraes com o Soneto da Separação. Desde que esse momento poético na Oficina foi criado, Vinicius já foi levado algumas vezes o que denota claramente como os oficineiros gostam do poetinha.

Soneto de separação

Vinicius de Moraes

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Eleta fez uma análise do poema tão lírico, chamando a atenção para a beleza das metáforas criadas pelo poeta para expressar a dor de uma separação amorosa. A gravação que Ellis e Tom Jobim fizeram do poema em 1974, deixa bem evidente o drama do casal de amantes que se separa.

https://youtu.be/08sWP9vmHA0

O Patinho Manco

O PATINHO MANCO

*César Garcia

É sabido que o andar do pato é o mais deselegante dos andares de todos os animais. Digo é sabido, mas só vim tomar conhecimento disso muito depois do meu nascimento. Até então, coxo, pensava que só eu andava de modo ridículo. Meus irmãos aproveitavam-se do fato para me torturar e me excluir dos jogos e brinquedos. Meu pai era omisso e minha mãe tentou defender-me até certa idade e então desistiu. Disse-me que procurasse me divertir de outras formas, sem a companhia dos perversos. Não quis aceitar logo, mas acabei convencendo-me de que devia enfrentar o mundo unicamente com minhas forças, pois a maldade existia por todos os lados. O mundo era dos mais fortes, tudo bem, mas se eu não lutasse, esperando por atos solidários de alguém, eu sucumbiria na solidão das pequenas poças d’água. Tratei de prestar atenção aos costumes de outras espécies. Os cavalos carregavam os homens pra lá e pra cá; os cães latiam à toa, ou preocupados, quando alguma pessoa se aproximava; as ovelhas eram tosquiadas a cada verão. Tinham comida garantida, mas sua liberdade era vigiada de perto ou não tinham nenhuma. Eram úteis para os homens, mas não podiam sonhar com uma vida muito diferente. E eu? Poderia ter alguma aspiração? Andava mal, com uma pata mais curta do que a outra; pela mesma razão, nadava meio esquisito, sem muita velocidade; conseguia voar até bem, para um pato manco, e disso me aproveitei para ir além dos limites da lagoa em que morava. Talvez possa dizer que foi minha salvação. Conheci assim muitas lagoas, primeiro as mais próximas, depois outras mais distantes. Conheci patos iguais a mim que nem sempre eram hostis e me aceitavam em seus grupos. Perguntavam como eu conseguira chegar até ali e eu lhes dizia simplesmente: voando. Notei que alguns se surpreendiam porque eu não tinha aparência de grande atleta. Acontece que eles não tinham necessidade de voar muito, viviam bem na própria lagoa, ao contrário de mim, sozinho, sem amigos e com uma família que não ligava muito pra mim. Voar foi, portanto, um recurso decisivo na minha vida. Isto me permitiu desenvolver bem os músculos das asas e do peito. Numa dessas voanças, conheci uma galinha d’água que aprendera a falar a língua dos patos porque havia sido criada entre meus semelhantes. Tinha sotaque, mas justamente daí vinha seu charme. Começamos a nadar e a voar juntos em conversas que se tornaram interessantes porque não víamos as coisas da mesma forma. Por exemplo: eu não tinha medo da morte e ela não queria nem ouvir falar. Expliquei-lhe que depois da morte, não havia nada, não havia o que temer e ela respondeu: é justamente por isso que tenho medo, medo do nada. Ora, para mim, a frase não tinha sentido. Mesmo assim, não havia o que dizer, porque não era uma questão racional. Tive que aceitar seu medo do nada e ela conformou-se com meu jeito indiferente diante do que assombra todos os vivos. Ela gostava de voar sobre as copas das árvores e eu insistia para que ela ganhasse as alturas. Não queria. Cada diferença revelada era uma surpresa objeto de muita conversa. Um dia ela teve sensações estranhas e não quis voar. Escondeu-se entre os juncos deixando-se ficar quase imóvel. Seu jeito de olhar para mim de vez em quando despertou minha curiosidade e me atraiu para junto dela. Ninguém nos via, só o vento sussurrava nos juncos e eu não soube o que dizer, mas compreendi tudo quando ela levantou as penas de sua linda cauda. Algo estava errado, alguma convenção, talvez, mas nosso desejo foi mais forte: deitei-me sobre ela, prendi as penas de sua nuca com meu bico largo e juntei o que havia de mais íntimo em nossos corpos. O êxtase durou pouco e me desequilibrou. Ficamos ali, flutuando, nem sei quanto tempo, sem olhar um para o outro. Finalmente, perguntei: em que estás pensando, e ela, voltando-se para mim, disse: quero que ele nasça com minas longas pernas e com teu bico chato.

Casa Forte, 22 de fevereiro de 2016

  • César Garcia é escritor. Livros de contos publicados: PACTO, em 2005; CARTAS DE VENEZA, em 2008; e BREVE INSTANTE, em 2011.