Escrituras III – Manuscritos de Viagem

A Paixão pelas Palavras
Lourdes Rodrigues

Mais de uma década ao mar. Viagens longas, viagens curtas, sempre de olho no Traço-Porto-Seguro para fugir das arrebentações, das tormentas. Poder voltar sempre foi o que nos deu coragem de içar velas e enfrentar as ondas numa nova viagem.

Escrituras I e II mapearam as rotas dos oito primeiros anos, suas aventuras, suas emoções. Escrituras III – Manuscritos de Viagem representa as milhas náuticas percorridas em 2016. E a celebração pelo retorno das nossas estrelas guias que durante dois anos não navegaram; pela chegada dos novos viageiros, recebidos com guirlandas de flores em volta do pescoço pelos navegantes; e pelos marujos que se mantiveram firmes e indiferentes aos cantos das sereias, de olhos voltados para as águas turbulentas até o final da travessia.

Escrituras III – Manuscritos de Viagem registra o resgate da alegria dos primeiros tempos, de novos impulsos criadores, da exacerbação do sentir tudo de todas as maneiras, como dizia Fernando Pessoa, na poesia de seu heterônimo Álvaro Campos.

Os nossos viageiros são seres muito especiais que navegam pelos mares das palavras e das artes plásticas. Todas as imagens são de Anita Dubeux e de Paulo Tadeu, da capa às cortinas separadoras dos textos. Quase todos fazem poesia, líricas, com rimas, sem rimas, de cordel, prosa poética: Anita Dubeux, Eleta Ladosky, João Gratuliano, Luzia Ferrão, Salomé Barros, Salete Oliveira. E nossas tardes se enchem de encanto! Adelaide Câmara garimpa pérolas poéticas, com a poesia na alma, de olhos e ouvidos atentos para que não lhe escape um grande poema, embora teime em dizer que prefere a prosa ao verso, como modo de arte. Todos são ficcionistas, a prosa é a praia deles e escrevem com muito apuro.

Everaldo Soares, marujo dos primeiros tempos, nosso Ismael, transita com desenvoltura pelos mares das palavras não ditas, em face do seu perfil de psicanalista, com escuta especialmente arguta. Escreveu o conto O Feio, da releitura do Patinho Feio, trazendo à tona mal-estar imprevisível, interior, daquele que se sente diferente, quer pela feiura ou seus desconcertos, mas que mantém posição e não procura assemelhar-se ou desassemelhar-se com sua tribo. O seu patinho, apesar dos percalços vividos, não arreda pé de não cantar. Na temática do duplo, defendeu a ideia de que o duplo tem a ver com a constituição do eu e do outro, usando para isso o Estádio do Espelho de Lacan. O duplo é um outro perseguidor, geralmente do mesmo sexo, paranóico e destrutivo, que fracassa onde as pessoas comuns são vitoriosas, segundo Freud. Everaldo diz que a constituição do eu é erótica e mortífera, e a morte é fundamental para criação de símbolos: a palavra mata a coisa. Para ele, assim como para nós, a subjetividade é essencial ao trabalho da ficção. Por isso, a Psicanálise e a Literatura andam sempre juntas.

Cacilda Portela é resenhista, ensaísta, aqui e ali mergulha na escrita de um conto. O melhor crítico literário é João Gratuliano, nada escapa ao seu olhar. É o nosso Harold Bloom. Teresa Sales voltou, para a nossa alegria, a escrever suas prosas, contos e crônicas. Roberta Aymar, viageira de alguns portos, sempre a trazer contribuições inestimáveis.

Traçar cartas náuticas com esses viageiros tão destemidos e criativos nas artes e na literatura é saber que vamos mergulhar em mares profundos e fazer grandes e intensas viagens em que o riso, a alegria será sempre a bandeira hasteada. Mesmo quando o tema é difícil, o riso escapa para quebrar a tensão.

A Carta de Navegação 2016 põe em evidência a complexidade do ser humano, a partir de coordenadas fornecidas pela poesia, pela criatividade dos viageiros e pelos mergulhos entre linhas e silêncios dos escritos de autores selecionados pela sua alta conta na Literatura. Os escritores, como bem disse Freud, são seres que conhecem uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar.

No eixo Poesia, criou-se o Momento Poético, ocasião em que líamos os poetas preferidos ou as nossas próprias criações. Mais que um batismo para iniciação de cada percurso da viagem, tornou-se o instante em que cada viageiro pode mergulhar no mais profundo de seu ser e fazer a sua travessia muito particular. Grandes poetas por ali passaram. Começamos por Charles Baudelaire, lendo Gênio do Mal, tradução de Delfim Guimarães, que Adelaide Câmara descobriu, após exaustivas pesquisas, não existir na obra do poeta com esse título, embora inserido em As Flores do Mal sob o número XXV. Dentro do possível, procuramos acompanhar a leitura do poema traduzido para o português com a obra no original, permitindo-nos descobrir divergências, infidelidades e refletir sobre a definição de poesia de Robert Frost: That which is lost in translation.  Se na ficção é importante ver o original, porque os tradutores, por melhores que sejam, tendem a se tornar coautores ao se empolgarem e se afastarem muito do texto, na poesia, em que a sonoridade, às vezes a rima, a subjetividade, as metáforas, o intangível são a sua espinha dorsal, ler a tradução pode significar desvio e perdas substanciais. Entretanto, o tradutor e nós leitores não descobrimos sentidos, apenas nós os construímos.

Sonetos de William Shakespeare, Camões, poemas de Emily Dickinson, Lautréamont, Paul Valéry, Wislawa Szymborska, Sylvia Plath, Li Po, William Butler Yeats, Elizabeth Barrett Browning , Elizabeth Bishop, Benjamim A.S.M. M’Bakassy , Mia Couto, Cesare Pavese, Calderon de La Barca, Paul Verlaine, Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Florbela Espanca foram lidos com variadas doses de emoção pelos viageiros. Da Irlanda foi trazida uma poesia do Século VIII, Donal OG (no original, em Gaélico), Broken Wows (tradução inglesa), Votos Partidos (Português), com tradução belíssima de Lady Gregory que muitos já conheciam do filme Os Vivos e os Mortos, baseado no conto de James Joyce, Os Mortos. Muitas leituras vieram acompanhadas de vídeos, com excelentes interpretações, como foi o caso de Vincent Price, em O Corvo, de Edgar Allan Poe. As leituras de poemas pelo próprio poeta a exemplo de Sylvia Plath, Paul Verlaine, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, assim como a interpretação de Maria Betânia de poemas de Sophia Breyner e de José Régio encantaram-nos. Para comemorarmos o Dia Internacional da Mulher, a nossa viageira Adelaide presenteou-nos com poesias de Emily Dickinson, Florbela Espanca, Sylvia Plath, Sophia de Melo Breyner e o poema Mulher de Carlos Drummond de Andrade.

Para entender uma mulher é preciso mais que deitar-se com ela… Há de se ter mais sonhos e cartas na mesa que se possa prever nossa vã pretensão…

Poetas brasileiros, além de Carlos Drummond, que estiveram presentes uma e mais vezes no nosso recital poético: Ferreira Gullar, Mário Quintana, Manuel Bandeira, José Régio (Cântico Negro, lindo!), Carlos Pena Filho, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Manoel de Barros, Augusto dos Anjos, Vinicius de Moraes, Affonso Romano de Sant’Anna, Daniel Lima, Paulo Leminsky, Andrea Campos, Augusto dos Anjos. A viageira Luzia Ferrão nos trouxe o poeta das ruas, mais precisamente, dos semáforos, Lenemar Santos, natural de Gameleira, que vende seus livrinhos, feitos de forma artesanal, em Piedade.

Os nossos poetas também nos prestigiaram com suas criações. Anita Dubeux, Eleta Ladosky, João Gratuliano, Luzia Ferrão, Salete Oliveira e Salomé Barros trouxeram seus poemas para leitura na nossa nau, cada uma com um estilo muito próprio, dividindo conosco suas percepções poéticas. Salete ilustrou os seus com imagens bem sugestivas.

Quando trabalhávamos o tema erotismo, poemas antigos surgiram: Salomão (Cânticos dos Cânticos), Ovídio (A Poética do Sexo), Bocage, (Sonetos), Juan de La cruz (Eros Místico) e Apuleyo (Metamorfose).

Enfim, a poesia presente no início de cada milha náutica navegada em 2016 – bem ao estilo de Autran Dourado que dizia ler um poema todos os dias, antes de começar a escrever – preparou-nos o espírito para grandes viagens na criatividade e nas leituras que se sucederam.

Os primeiros desafios criativos foram a releitura de O Patinho Feio, de Christian Andersen; as escolhas difíceis, no limite do absurdo e do insuportável, A Escolha de Sofia, por exemplo, em que uma mãe se vê obrigada a escolher entre um filho e outro e a traição a uma amiga por ter se apaixonado pelo marido desta. Os marujos correram da parada da Escolha de Sofia, apenas Luzia Ferrão resolveu enfrentá-la e construiu texto muito interessante, Trindade, em que o personagem faz sua escolha. Salete Oliveira enfrentou o desafio da quebra de ética e escreveu Vizinhos. Apenas a faísca criativa de O Patinho Feio atingiu quase todos os viageiros e eles fizeram suas releituras a partir de narradores e personagens diferentes, pontos de vista, tempo e espaços narrativos diversos. Interessante exercício literário.

No eixo das leituras, a opção pelas viagens curtas deveu-se à certeza de que elas têm sobre os grandes percursos a vantagem da intensidade de efeito. Edgar Allan Poe decidido a falar sobre o seu processo criativo em A Filosofia da Composição, texto que lemos para dar suporte à nossa decisão, diz que:

Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído.

Além do efeito, a narrativa curta permite-nos o retorno a ela, seguidas vezes, para apreensão das entrelinhas que escapuliram às primeiras vistas, para preenchimento de silêncios carregados de vozes que passaram quase despercebidas, deixando no ar suspeitas de murmúrios a serem identificados. São tantos os olhares que se debruçam sobre ela que cada qual vai fazer uma leitura e julgá-la do seu lugar, com sua visão de mundo, com as suas percepções muito particulares.

A segunda opção foi que a nossa viagem seria temática, procuraríamos seguir roteiro que nos permitisse dar conta das pegadas desse ser complexo que é o homem.

O primeiro tema escolhido foi O Duplo. Temática instigante e intrigante da qual muito se fala e pouco se entende. Na visão mitológica o rastro atravessa milhares de anos, presente em muitas civilizações do passado. Talvez a mais antiga versão seja a de Doppelganger, palavra germânica que significa “duplo frequentador” e refere-se a um fantasma ou aparição que lançou sombras e é uma réplica ou duplo de uma pessoa viva. Considerado um mau presságio, indício de azar ou sinal de morte. Em termos de Psicanálise, o mais próximo que se chega para explicar é o Unheimliche de Freud, uma instância onde algo pode ser familiar e ao mesmo tempo estranho, e essa ausência de certeza traz profundo desconforto. O Duplo traz à superfície questões ligadas à identificação, ao narcisismo e ao medo da morte. Na verdade à própria essência do ser humano.Na Literatura, desde sempre esteve presente. Entre os gregos, com Narciso apaixonando-se pelo seu reflexo na água; no Egito, com Ka, espírito duplo, tangível. Nos tempos mais recentes, inúmeros autores trabalharam o tema em seus livros, entre eles Dostoievski, Borges, Edgar Allan Poe, Carlos Fuentes, Robert Stevenson entre muitos outros.
William Wilson, de Poe, é uma referência para qualquer estudo literário sobre O Duplo, por isso, a nossa escolha recaiu sobre ele. Em Escrituras III, o tema foi contemplado sob a forma de cordel, resenhas e contos.

Seguindo a mesma trilha, veio a Loucura como tema, conscientes da importância, seriedade e beleza dele, pois o que seria de nós sem ela, diz Fernando Pessoa: Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia/Cadáver adiado que procria? Graham Greene, diferente de Fernando Pessoa, contrapõe aclamando as artes plásticas, a música, a literatura como forma de fazer sinthoma para salvar o homem da loucura.

Às vezes cogito como é que todos os que não escrevem, não compõem ou não pintam conseguem escapar da loucura, da melancolia, do pânico inerente à condição humana.

Foram nossas leituras a fábula de Jean de La Fontaine, O Amor e a Loucura, a pequena novela ou conto de Gogol, Diário de um Louco, os contos O Sistema do Doutor Alcatrão e do Professor Pena, O Coração Delator, ambos de Edgar Allan Poe e mais adiante o excelente e terrível conto de Nabokov, Signos e Símbolos. Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdã não foi concluído, o que lamentamos pela excelente qualidade da obra.

Os viageiros não escreveram seus textos, quem sabe cautelosos com os riscos que o tema representa para aquele que resolve enfrentá-lo, verdadeiro campo minado. Quando ainda decidíamos que caminho seguir, Humor ou Loucura, apesar das dúvidas, venceu a última, para receio de alguns.

O Erotismo veio a seguir e provocou gargalhadas estrondosas durante o seu percurso, pela forma bela e irreverente como foi tratado por alguns clássicos da literatura e, também, pelos rubores e desconcertos dos viageiros em algumas passagens mais licenciosas. Tempos inesquecíveis dessa viagem, afastando temores e fantasmas deixados pelos temas anteriores.

Começamos com o Banquete (O amor e o Belo) de Platão, no trecho em que Aristófanes, dirigindo-se a Erixímaco, explica o poder do Amor, expondo a natureza humana e suas vicissitudes. E vai desenvolvendo a sua tese, dizendo que antes existiam três gêneros da humanidade, o homem, a mulher e um terceiro, andrógino aos dois. E por aí segue… Depois dele lemos A Metamorfose, de Lúcio Apuleio; A Poética do Sexo, de Ovídio; Cânticos dos Cânticos, de Salomão (atribuído, não questionamos a propriedade); Eros Místico, de Juan de La Cruz; Sonetos, do irreverente Bocage; De como Panurgo se apaixonou por uma grande dama de Paris, de Rabelais; A Sedução Criativa, de Giácomo Casanova e o Canto V, do Inferno, de Dante, onde estão aqueles que cometeram o pecado da Incontinência Sexual.

Depois veio o Marquês de Sade, impossível não considerá-lo, logo ele, representante maior do erotismo e da obscenidade. Do autor foram lidas duas obras,   O Marido que recebeu a Lição, texto levíssimo e bem humorado; De Monges e Virgens, de sua obra bem conhecida Justine, um texto em que a perversão está bem explícita. Finalmente, Bataille, em O Olho do Gato.
Em termos de erotismo na Literatura brasileira, embora existam grandiosas contribuições, escolhemos exatamente dois autores que não são conhecidos por essa temática: Clarice Lispector, nossa madrinha, em A Via Crucis do Corpo; e Carlos Drummond de Andrade, em A moça Mostrava a Coxa. A bem da verdade, após a sua morte, descobriu-se que ele era um mestre na literatura erótica. Vejamos o trecho a seguir do autor:

Assim o amor ganha o impacto dos fonemas certos
No momento certo, entre uivos e gritos litúrgicos,
Quando a língua é falo, e verbo a vulva,
E as aberturas do corpo, abismos lexicais onde se restaura
A face intemporal de Eros,
Na exaltação de erecta divindade
Em seus templos cavernames de desde o começo das eras
Quando cinza e vergonha ainda não haviam corroído a
inocência de viver.

O Erotismo é um campo vasto, apenas tocamos ao de leve por importantes literaturas dele, o caminho foi aberto para quem quiser segui-lo e, quem sabe, até mergulhar mais profundamente nas suas águas.

Da escritora portuguesa, Lídia Jorge, lemos o conto Marido que muito bem representa a servidão humana levada às últimas consequências. É uma narrativa tão forte que ao concluir a sua leitura todos ficaram mudos, olhando uns para os outros sem palavras. Quando o silêncio foi quebrado, todos quiseram falar ao mesmo tempo e por para fora o engasgo que os havia deixado sem fala. A autora, ao abordar um tema tão difícil e ao mesmo tempo tão presente em todas as épocas, utiliza, com maestria, a forma literária mais lírica e bela que se possa imaginar. Escrituras III – Manuscrito de Viagem apresenta duas resenhas sobre esse conto e dois textos ficcionais.

De Lígia Fagundes Telles, que bem deveria ter recebido o Nobel este ano, lemos a Pomba Enamorada ou Uma História de Amor, conto apaixonante e que se insere na temática da obsessividade. Enredo simples, contado com perícia/perfeição literária, muito rico em possibilidades de releituras, com outros pontos de vista e de finalização.O desfecho fica em aberto para o leitor continuar. Jovem candidata a rainha de um baile encontra rapaz e se enamora dele. Daí em diante ela não lhe dá trégua, criando inúmeras possibilidades de encontro, sendo sempre rejeitada por ele. Trata-se de um autêntico caso de obsessão amorosa, em que a pessoa observa no outro um ideal de amor, de relacionamento que só existe para ela. Duas resenhas e duas outras versões da história, além de outro final, estão neste livro.

Menina a Caminho, de Raduan Nassar, foi outra obra prima literária que mobilizou os navegantes a fazerem suas resenhas, cada qual com um olhar diferente do olhar do outro, conforme pode se observar nos escritos dos viajeiros.Uma menina magricela anda pelas ruas, sem pressa, e testemunha várias cenas que a fazem transitar entre o mundo infantil e o mundo adulto.

A última leitura que fizemos foi de O Búfalo, de Clarice Lispector, conto que levou a muitas interpretações, mas não houve tempo para a produção de resenha.
E mais contos e poemas participam desse livro como resultado de novas viagens realizadas pelos navegantes desgarrados de cartas de navegação, ao sabor do vento e do cheiro das águas.

Outro eixo importante da Carta de Navegação 2016 foi a criação do Carrossel Literário, espaço para compartilhamento das obras favoritas dos viageiros, que culminou num processo de transferência entre os seus participantes, pela identificação de interesses e paixões literárias. Importantes e desconhecidos autores, por alguns viageiros, desfilaram no carrossel e foram lidos com avidez e interesse.

Do Romance Coletivo foi concluída a primeira parte de três. Não houve fôlego para dar conta das duas restantes, devendo voltar à programação do próximo ano.

Escrituras III – Manuscritos de Viagem é um livro de contos, resenhas e poesias, formas de expressão literária que nós marujos encontramos para expressar o nosso sentir diante do mundo de fantasias que surgiram de nossas leituras dos textos aqui mencionados. Aos seus leitores, desejamos que também se lancem ao mar e façam suas próprias viagens.

Jaboatão dos Guararapes, 25 de novembro de 2016

O Duplo

OFICINA_DE CRIAÇÃO_LITERARIA. (3)Trabalhamos na Oficina a temática do duplo tão bem utilizada por Poe, Saramago, Borges, Dostoievsk e tantos outros mais. O grande mestre Poe ficou célebre com o conto William Wilson que nós lemos a propósito do tema. Este  conto é referência em todos os estudos sobre o duplo e é sobre ele que falarei aqui.

O conto traz a narrativa na primeira pessoa. O narrador, num tom confessional,  diz se chamar William Wilson, sugerindo que se trata de um pseudônimo, porque não gostaria de se comprometer revelando o próprio nome. A estrutura da narrativa é circular, começa pelo final quando o personagem aparentemente moribundo Próximo a atravessar o sombrio vale, tenta seduzir o leitor para que se penalize do seu drama ou talvez como uma forma de confissão diante da morte que se aproxima, lançando no seu coração  o que ele chama de influência benéfica de arrependimento e de paz :

Oh! Sou o mais abandonado de todos os proscritos! 0 mundo, as suas honras, as suas flores, as suas aspirações douradas, tudo acabou para mim. E, entre as minhas esperanças e o céu, paira eternamente uma nuvem espessa, lúgubre, ilimitada!

Com esse apelo, não há quem resista. Fisgado, o leitor quer saber o que aconteceu para que o personagem se sinta tão desgraçado. Então, ele se torna avaro, diz que não vai contar todas “as lembranças dos meus últimos anos de miséria e de crime irremissível  porque o que lhe aconteceu num período recente da vida extrapolou toda as dimensões da torpeza e que lhe seria quase impossível descrevê-las. E acrescenta, vou simplesmente determinar a origem desse súbito desenvolvimento de perversidade, porque perverso sempre se considerou, os pais até haviam desistido dele por conta disso, abandonando-o ao seu livre arbítrio, senhor absoluto de todas as ações, numa idade em que poucas crianças pensam ainda em sair do regaço materno. Mas o que aconteceu estava fora dos seus limites até então de perversão. Às vezes ele chega a duvidar se tudo não fora um sonho.

William Wilson começa a trazer as suas lembranças intercaladas com pedidos de desculpas por estar falando tanto de certos cenários do seu passado como da sua casa, da aldeia, do colégio onde tudo começou porque essas recordações são o seu único prazer hoje, quando está mergulhado na desgraça.  Realmente,acho que ele foi muito longe nessas descrições e eu perguntei aos viageiros se eles não achavam que esses cenários poderiam ter sido mais econômicos, porque, na minha opinião, tanta descrição distraíam um pouco o leitor da tensão que inicialmente havia sido criada.Diferente de mim, eles acharam que os cenários tão detalhados criavam a atmosfera necessária ao tom misterioso da narrativa. Penso um pouco diferente, como boa seguidora de Poe e Charles Baudelaire quando eles falam  do conto e da sua imensa vantagem sobre os outros tipos de narrativa, face à sua brevidade que acrescenta muito à intensidade do efeito. Apresentado como uma leitura, que pode ser realizada de um único fôlego, o conto prevalece sobre o romance pela imensa vantagem que a brevidade acrescenta à intensidade do efeito. Tal leitura, que pode ser realizada de um único fôlego. 

Após algumas páginas descritivas do cenário da escola onde ele estudava e exercia certa liderança entre os colegas, surge o momento onde tudo começou: alguém no grupo não lhe dá o lugar distinto e ascendente que os outros dão. É quando ele se dá conta de que aquele aluno sem ter qualquer parentesco com ele tinha o mesmo nome de batismo e de família. Aquela rebelião o incomodava, até porque ele não

podia deixar de encarar a igualdade que mantinha tão facilmente comigo, como uma prova de verdadeira superioridade, porque, pela minha parte, não era sem grandes e contínuos esforços que conseguia conservar-me à sua altura.

Embora ninguém parecesse perceber esse duelo que era travado, numa cegueira inexplicável aos olhos dele, e nem William, o seu duplo, demonstrasse qualquer ambição, mais parecendo que o seu objetivo consistia apenas em contradizê-lo, assustá-lo, atormentá-lo, mesmo assim não deixou de notar com certo espanto que o rival misturava às impertinentes contradições certos ares de afetuosidade, os mais intempestivos e os mais desagradáveis do mundo.

Este tipo de duplo que Cacilda muito bem chama de duplo perseguidor, é o que está mais presente nas narrativas literárias e representam a luta feroz que o indivíduo trava com os seus desejos mais profundos que ameaçam o ser social que ele julga ser. Angústia alucinante resultado dessa luta ferrenha entre o chamado eu-ideal e o ideal do eu. A fronteira entre realidade e fantasia parece se dissolver e esse encontro com  a própria imagem resulta na fantasia de um duplo como alguém estranho que me olha e me ameaça; Eu sou objeto de um outro..Eu vejo a mim como um estranho que vem de fora de mim.  

Alguns viageiros escreveram para expressar a sua visão do duplo. Cacilda Portela, por exemplo, fez algumas reflexões sobre o duplo de Edgard Allain Poe e de Dostoievski e apresentou-as sob o título de Notas:

39_rackham_poe_williamwilson Algumas Notas sobre William Wilson (Edgar Allan Poe)

Cacilda Portela

William Wilson substitui o próprio eu (self) por um estranho. Visão angustiante de si mesmo como outro. Resultado de um lento  processo  de mútua aproximação e reconhecimento no outro até alcançar sua identificação. Uma relação entre o ser e a consciência.

O duplo surge para William Wilson como recusa de uma angústia existencial  para que possa conviver com o benefício e a dificuldade. Transforma a vida num turbilhão de sentimentos e ações desencontradas. É o duplo como perseguidor, vivendo no pesadelo, na alucinação, nos erros e nos horrores. Metáfora da consciência que atormenta, persegue e aterroriza com sua voz sussurrante, com seus conselhos fraternais e com sua  elevação moral.

Escravo de circunstancias superiores ao controle humano, William Wilson se intimida com o risco de ver seu Ego empobrecido e tornar-se inadaptado ao mundo. Na impossibilidade de exorcizar o outro, o jeito é assimilá-lo para que deixe de ser outro. Uma decisão firme de não mais ser escravizado. Perde a luta para si mesmo.

downloadAlgumas Notas sobre O Duplo (Dostoiévski)

Cacilda Portela

“A duplicidade é o traço mais comum das pessoas… não inteiramente comuns”. É a consciência intensa… a exigência de um dever moral perante si mesma e a humanidade”. Dostoiévsky.

Golyádkin substitui o eu self por um outro Godyádkin estranho. Uma visão angustiante como o outro, que nele se reconhece na alucinação, na luta entre sonhos e realidade, ambições e humildade, desejos e fracassos.

Funcionário pobre e sem brilho externo, e com um profundo sentimento de solidão e desordenados devaneios, busca um outro “eu” poderoso para dar sentido a sua própria identidade. Como Golyádkin segundo, ele revela todos os aspectos sombrios de sua consciência, o que acaba sento fatal para o senhor Golyádkin primeiro.

Acredita, desesperado, ter inimigos cruéis que juraram arruiná-lo… Os inimigos de sempre eram o próprio senhor Golyádkin.  O duplo adversário que desafia ao combate o próprio Golyádkin é o mesmo que o sr. Golyádkin criara em seu imaginário doentio para realizar todos os seus sonhos.

Golyádkin transforma a vida num turbilhão de sentimentos desencontrados. Caminha entre o bem e o mal e é o emblema moral da consciência que o levou até a loucura.

Salomé Barros, nossa poeta cordelista, também escreveu o seu duplo com muita propriedade e esmero.

 

O QUE FOR SERÁ

Salomé Barros

Sempre fui independente
Não dependo de ninguém
Jurei, berrei de pé junto
Que jamais serei refém
Minha posição é firme
E alguém que não confirme
Não me trate com desdém

De uns tempos para cá
Tenho ficado assustado
Não mudei de opinião
Mas estou desesperado
Não sei bem como explicar
É um fato singular
Que me faz desconfiado

Faço tudo direitinho
Como manda o figurino
Jamais fui considerado
Mentiroso ou libertino
Mas com essa novidade
Aumenta a ansiedade
E me leva ao desatino

Tem um outro me instigando
Dia e noite sem parar
Já estou me sufocando
E não consigo afastar
Me chama o tempo inteiro
Parece um bisbilhoteiro
Que veio me atanazar

Pra piorar ele exige
Uma reciprocidade
Ameaçando instalar
Um clima de inimizade
Entre a cruz e a espada
Dou resposta salteada
E preservo a identidade

Foi chegando de mansinho
Assim sem querer, querendo
Aos poucos foi me cercando
A insistência crescendo
E eu anestesiado
Fui ficando abobalhado
E sem querer fui cedendo

O mistério desse encosto
É mesmo de arrepiar
Tem um raio de ação
Que chega a qualquer lugar
Seja aqui ou no Japão
Transmite a informação
Na hora, sem reclamar

E me vendo sem saída
Fiquei meio acomodado
Parece que esse outro
Está no corpo moldado
Dorme e acorda comigo
Acho que já é castigo
Será que estou viciado?

Fiz então uma pesquisa
Passando a observar
Pessoas que encontrava
Na rua, em qualquer lugar
E todas, sem exceção
Tem a mesma obsessão
Bem difícil de largar

E foi assim que o outro
Ganhou popularidade
E implantou nas pessoas
Um quê de dubiedade
Se para uns é progresso
Pra outros é retrocesso
E interfere na amizade

Também nas artes plásticas a figura do duplo é muito comum. Morreu esta semana Tunga, pernambucano, artista plástico da maior importância. Fizemos uma pequena homenagem a esse grande mestre que partiu tão cedo ainda na sua capacidade criativa. Além de lermos um pouco da sua biografia, falar de Inhotim seu espaço artístico, vimos pela internet algumas “instaurações” como ele chamava certas obras suas. Escolhemos para deixar aqui nesse blog as “Xifópagas Capilares” que trazem a problemática do duplo.

moledão xifópagas2

O adeus a Carlos Fuentes

Carlos Fuentes, escritor mexicano, morreu na última terça-feira – 15 de maio – de uma hemorragia digestiva, em um hospital da Cidade do México. Ele estava com 83 anos de idade, em plena atividade política e literária. Escrevia um novo livro.

Sobre a morte de Carlos Fuentes, seu amigo e companheiro do fazer literário Mario Vargas Llosa disse:”Fomos amigos todo esse tempo sem que nada, nunca, empobrecesse essa amizade. Deixa uma obra enorme que é um testemunho eloquente de todos os grandes problemas políticos e realidades culturais de nosso tempo”,

Na Oficina tivemos a oportunidade de ler uma obra desse autor: Aura, considerada a melhor prosa lírica dele. O livro não só nos encantou pelo surreal da história contada, como nos permitiu boas discussões sobre a narração na segunda pessoa e o processo de duplicação utilizados por ele. O interesse de todos para desvendamento do sujeito da fala, de quem era aquela voz que se escondia atrás daquele tu, levando a inúmeras possibilidades interpretativas, esquentou as tardes das quartas-feiras durante toda a leitura do livro e culminou na elaboração de um texto, que já foi publicado nesse blog em julho de 2011, mas estamos trazendo de volta, hoje, para a nossa homenagem particular ao grande escritor mexicano Carlos Fuentes.

AURA, DUPLO OU SEGUNDA PESSOA?

Aura, romance de Carlos Fuentes, escritor mexicano, publicado em1962. A tradução usada nesta resenha é de Olga Savary, publicação L&PM, Porto Alegre, 2001.

O ESCRITOR – Carlos Fuentes nasceu em 1928, no Panamá, de pais mexicanos. Filho de diplomata, na infância morou com a família nos Estados Unidos, Chile, Equador, Uruguai, Argentina e Brasil. Apesar do rigor de sua mãe que não permitia que se falasse outra língua em casa além do espanhol, a educação de Fuentes em Washington tornou-o bilíngüe ainda criança. Do pai, ele herdou a paixão pelos livros, verdadeira compulsividade pelas leituras, pelo cinema, artes em geral, e o interesse pelo conhecimento aprofundado da história do México, que ele passou a ver como uma história de amargas derrotas se comparada com a história dos EUA. A educação privilegiada imprimiu um cosmopolitismo precoce à sua personalidade, tanto que, aos 16 anos, ao retornar ao México para iniciar os estudos universitários, assumiu postura de rebelião, decidindo tornar-se escritor e abandonar os estudos. Confrontado com a necessidade da formalização acadêmica exigida pelo seu pai e aconselhada pelo seu amigo escritor Alfonso Reys com o argumento de que o México era un país muy formal…. Si tú no tienes .un título de abogado, si no eres el licenciado Fuentes, entonces es como una taza sin asa. No saben por donde agarrarte, tienes que tener un título, luego haz lo que quiera…  Fuentes tornou-se advogado e depois cursou Economia em Geneva, na Suiça, onde aprendeu a dominar o francês, língua inicialmente conhecida através das leituras de seu escritor preferido: Balzac. A rebeldia, todavia, não foi arrefecida, tornando-se marxista e filiando-se ao partido comunista no período universitário. De 1950 a 1952 foi membro da delegação mexicana da Organização Internacional do Trabalho, em Genebra, voltando ao México em 1954 quando se tornou assistente do Ministro de Relações Exteriores e depois Chefe do Departamento de Relações Culturais. Em 1955 fundou junto com Octavio Paz e Emmanuel Carballo, a Revista Mexicana de Literatura. Ainda trabalhou como assistente de diretor da Universidade Autônoma do México, abandonando tudo em 1959 para se dedicar à carreira de escritor.. Nos anos sessenta ele viveu na Europa, entretanto, o período em que esteve no México, marcou definitivamente a sua obra e a sua ação política expressando sentimento de compromisso com o país: Onde quer que eu fosse, o espanhol seria a língua da minha escrita e a América Latina a cultura da minha língua. Foi embaixador na França (1972/76) e chefe da Delegação na reunião do grupo dos 19 países em desenvolvimento na Conferência sobre Cooperação Econômica Internacional. Na vida acadêmica reúne títulos de catedrático das Universidades de Harvard (USA) e Cambridge (Inglaterra).

AS OBRAS – O escritor Carlos Fuentes marcou a sua vida literária pela autoria de extensa obra narrativa composta por contos, romances, ensaios, artigos, roteiros cinematográficos, além das reflexões sobre o fazer literário e a compreensão das civilizações pré-colombianas. A carreira literária foi iniciada antes mesmo do término dos estudos universitários com a publicação do livro de contos Los días enmascarados (1954). A influência de Balzac e de Cervantes em sua obra é admitida pelo próprio autor. Balzac, ele divide em duas fases, confessando-se influenciado pela fase mais realista, a que retrata os costumes, a sociedade, o cotidiano, composta pelas obras organizadas sob o título de Comédia Humana, chamada também de Waterloo ou napoleônica. De Cervantes, ele se diz herdeiro dos procedimentos literários presentesem Dom Quixote.

O sucesso das suas primeiras obras, entre elas Aura e A morte de Artemio projetou-o como uma das principais figuras literárias surgidas do boom latino-americano. Engajado politicamente chegou a afirmar que o escritor não pode ser alheio à luta pela transformação política que, em última instância, pressupõe também a transformação cultural. Carlos Fuentes organizou a sua obra literária segundo um esquema intitulado  La edad del tiempo. A idéia de rotular e encontrar algo que concatenasse toda a sua obra, segundo ele, veio de Balzac que reuniu na Comédia humana mais de 90 romances e contos que retratam a realidade da vida burguesa na França do século XIX. Como a temática do tempo sempre havia sido o eixo da sua obra ele denominou o seu esquema geral de La edade del Tiempo, desdobrando-o conforme  exposto a seguir:

                I.El mal del tiempo: Aura (1962), Cumpleaños (1969) e Una familia lejana (1980), Constancia y otras novelas para Vírgenes (1990), Instinto de Inez (2001), La hueste inquieta (em processo).

II.Tiempo de Fundaciones: Terra Nostra (1975), El naranjo o los círculos del tiempo (1992)

III.El tiempo Romántico: La Campaña (1990), La novia muerta (en proceso ) y El baile del Centenario (en proceso)

IV.El tiempo revolucionario: Gringo Viejo (1985) e Emiliano en Chimaneca (en proceso)

V.La Región más Transparente (1958)

VI.  La Muerte de Artemio Cruz (1962)

VII.  Los Años con Laura Díaz (1999)

VIII.  Dos Educaciones:  Las Buenas Conciencias (1959) e Zona Sagrada (1967)

IX. Los Días Enmascarados: Los Días Enmascarados (1954), Cantar de Ciegos  (1964), Agua Quemada (1981) e La frontera de cristal (1995)

X.El tiempo político: La Cabeza de la Hidra (1978),  La  silla del águila (2003), Los 68 (2005), El caminos de Texas (en proceso)

XI. Cambio de Piel (1967)

XII. Cristóbal Nonato (1987)

XIII.  Crónicas de nuestro tiempo: Diana o la cazadora solitaria (1994),  Aquiles, o el guerrillero y el asesino  (en proceso), Prometeo, o el precio de la libertad (en proceso).

XIV.  Ensayos en el tiempo: La nueva novela hispanoamericana (1969),Casa con dos puertas (1970), Tiempo mexicano (1995), Valente mundo nuevo  (1990), El espejo enterrado (1992), Geografia de la novela  (1993), Retratos en el tiempo (con Carlos Lemos), Los cinco soles de México (2000), En esto creo (2002).

XV.  Obras de teatro: Todos los gatos son pardos (1970), El tuerto es rey (1970), Los reinos originarios (1971), Orquidea a la luz de la luna (1982), Ceremonias del alba (1990). Guiones: Las dos Elenas (1964), El gallo  de  oro  (em colaboracão  com Gabriel Garcia Márquez ey Roberto Gabaldón) (1964), Un alma pura (baseado num conto de Cantar de ciegos) (1964), Los caimanes (em colaboracão con Juan ibáñez) (1965), Pedro Páramo (en colobaración com Manuel Barbachano Ponce  e Carlos Velo) (1970), Las  cautivas (1971), ¿No oyes ladrar los perros? (1974). Guión documental: El espejo enterrado (sobre o descobrimento e independência da América Latina) (1971).

Entre os títulos mais importantes da sua obra literária destacam-se, além dos já mencionados, La región más transparente” (1959), “Zona sagrada” (1967), “Cambio de piel” (1967), Terra nostra (1975), Cristóbal Nonato (1987), Los años con Laura Díaz, Agua quemada (1981); Gringo viejo (1985) e mais recente La silla del águila. E, ainda, peças teatrais de grande originalidade tais como  El tuerto es rey”, 1971, e “Orquídeas a la luz de la luna”, 1982.

ANÁLISE DE AURA –  Aura foi publicada em 1962, juntamente com La muerte de Artemio Cruz, e é considerada por Bella Josef ,que escreveu Carlos Fuentes: História e Identidade, como a melhor prosa lírica do autor. E o próprio autor mexicano diversas vezes manifestou seu especial carinho por essa novela.

Importante análise de Aura é encontrada na dissertação de mestrado de Camila Chaves Cardoso intitulada As imagens duplas e a narração em segunda pessoa em Aura.[1] Nesta resenha se tentará extrair resumo dos principais aspectos ali enfocados, especialmente no que se referem à intertextualidade, às possibilidades de leitura, ao duplo, ao narrador na segunda pessoa e ao papel do leitor.

A inserção de Aura entre as três primeiras narrativas do ciclo El mal del tiempo, as outras duas são Cumpleãnos (1967) e Uma família lejana  (1980) foi do próprio autor, e elas guardam em comum, além da questão devastadora do tempo, a estrutura quixotesca, vez que os fatos ali representados, a história ali contada, são menos relevante no que concerne à transfiguração da realidade, e mais privilegiada no seu complexo e intricado jogo ficcional que dispensam o conhecimento dos fatos históricos e sociais, buscando na própria organização da narrativa as respostas para seus muitos mistérios; nesse sentido, seriam ficções que se confessam ficções.

Camila Cardoso refere-se a uma análise dos romances de Fuentes, realizada por Carmem Perilli, à luz das tradições, a napoleônica e a quixotesca, que ressalta serem as duas tradições apoiadas na importância da representação, embora obedeçam a diferentes concepções das relações entre a linguagem e a realidade. Enquanto na primeira fazem parte tanto os romances do realismo social como as novelas psicológicas; no segundo o romance perde a estrutura tradicional –princípio, meio e fim – e os personagens é que organizam o mundo e dão sentido às coisas. A tradição quixotesca, fundada na Espanha por Cervantes ao escrever Dom Quixote, revolucionou os modos de ler, diz ela, fundando o romance moderno, assim como James Joyce viria mais tarde mudar o modo de escrita com a criação de Ulisses.

No que se refere às fontes de inspiração do autor para a realização de Aura,  Camila Cardoso traz algumas contribuições, entre elas, as apontadas pelo próprio Carlos Fuentes no ensaio intitulado Como escrevi um dos meus livros, apresentando fontes de ordem pessoal e de cunho literário. No campo pessoal ele reporta-se a um reencontro com uma antiga namorada e a uma ópera com a cantora lírica Maria Callas, diferentes situações que o fizeram refletir sobre o efeito devastador do tempo. No primeiro caso, devido ao impacto sofrido com a observação das mudanças físicas e de personalidade dela, e dele, porque também se reconhecera mudado após todos os anos que não se viram. E no segundo, ao assistir uma ópera com Callas em que ela torna idênticas, num só personagem, condições opostas como a juventude e a velhice, a morte e a vida, ficou completamente extasiado a refletir sobre o que vira. Sob o ponto de vista literário, muitos foram os pais poéticos apresentados por ele. Durante a escrita de Aura tivera oportunidade de conviver com  Luiz Buñuel de quem recebeu duas narrativas japonesas dos séculos XVII e XVIII nas quais casais por longo tempo separados, a despeito da velhice ou da morte reencontram-se, tamanha a força do desejo que os move. Daí o arremate que ele deu ao falar de Aura:  es una novela sobre la vida de la muerte. …Es mi novela emblemática del tiempo y del deseo; no sólo de la posibilidad de convocar el deseo, obtener el objeto del deseo y descubrir que no hay deseo inocente. Não foi por acaso que ele fez a escolha da peculiar voz narrativa, a segunda pessoa do singular, o tu que estrutura o desejo.Além de Buñuel, outras fontes bem específicas, tais como Henry James em Os papéis de Aspern (1909), Charles Dickens em  Grandes Esperanças (1861) e Alexandre Pushkin. em A Dama de Espadas  (1834). Os três romancistas usaram nas obras citadas triângulo semelhante ao que ele veio a criar depois, representados por uma senhora de idade avançada, uma bela moça e um jovem rapaz, sendo que a velha senhora em todos elas é um tipo de feiticeira, e segundo o autor, de alguma forma originadas na feiticeira medieval do francês Jules Michelet, único texto não ficcional que dialoga com .Aura. Tão escancarada assim a influência que na epigrafe contém citação daquele autor: O homem caça e luta. A mulher intriga e sonha; é a mãe da fantasia, dos deuses. Possui a segunda visão, as asas que lhe permitem voar para o infinito do desejo e da imaginação… Os deuses são como os homens: nascem e morrem sobre o peito de uma mulher… Outros empréstimos feitos à obra de Jules Michelet foram alguns nomes de personagens: Llorente, autor da Inquisiton dÉspagne, relevante fonte documental da narrativa de Jules Michelet: nome do general marido de Consuelo, em Aura; Saga, antigo nome dado às curandeiras: a coelha que vivia na cama de Consuelo era chamada por ela de Saga; Aura, brisa que acompanha Satã ou que penetra o corpo das mulheres possuídas pelo demônio: a jovem que representará Consuelo quando jovem recebeu esse nome; Felipe, nome proferido durante o sabá, missa negra das feiticeiras; o historiador contratado para fazer as memórias do general; e Consuelo, referência à família de plantas e ervas usadas pelas feiticeiras para os mais diversos fins ou a um papel específico de consolar da mulher no sociedade medieval, ou alusão à mulher que ingenuamente teria acreditado ser possível reaproximar Deus e o Diabo: nome da velha que contratou o historiador. A cor verde nas cortinas do casarão, nos olhos e nas roupas de Aura pode guardar, ainda, alguma relação com a da cor do Príncipe do mundo, que Michelet informa também ser verde. Outra relação possível, a dos rins, única dieta no casarão, com antigo encantamento em que a dama buscava reacender o amor no coração de seu amante: “Sobre seus rins, a feiticeira instala uma base, um forninho, e faz cozer ali o bolo…” E mais outros, como o sacrifício do cabrito, que poderia remeter ao sacrifício de um bode no dia de São João; e a partenogênese que aludiria à capacidade das feiticeiras de conceber sem a participação masculina, e explicaria, segundo Camila Cardoso, a incrível semelhança entre Aura e Consuelo e, principalmente, o ritual realizado pelas viúvas, que traria seus falecidos maridos de volta. Tal ritual inclui colocar seus talheres à mesa, acariciar uma roupa do falecido, vestir-se de noiva, beber vinho e deitar-se, a sua espera, procedimentos a que Consuelo parece ter obedecido.

Todos esses diálogos com a obra de Jules Michelet, e outras intertextualidades com os romances citados de Henry James, Charles Dickens e Alexandre Pushkin, segundo a autora,  não retira de Aura a sua originalidade, característica muito particular, quixotesca, própria do realismo fantástico enquanto aquelas obras se organizam segundo convenções literárias tradicionais, do realismo objetivo, nos quais as palavras representam as coisas, em que realidade da ficção é a realidade do cotidiano. Características quase ausentes nos textos com os quais dialoga, dão à obra de Carlos Fuentes autenticidade, tais como a atmosfera obscura resultante da carga simbólica, das elipses, da escuridão, do entrecruzamento do sonho com a realidade, com a magia, o encantamento. A adoção da voz narrativa na segunda pessoa muito contribuiu para criar o clima ambíguo, a alternância entre passado e futuro, também, técnicas muito particulares encontradas em Aura que fazem dela uma obra particular, criativa.

A narração em segunda pessoa e o processo de duplicação para Camila Cardoso estimulam a pesquisa para desvendamento de quem é a voz que fala, quem se esconde atrás daquele tu, levando a inúmeras possibilidades interpretativas. São algumas interpretações apontadas por ela:

a) Santiago Rojas, em Modalidad Narrativa en  Aura: Realidad y enajenación(1980),  considera Aura uma bela história de amor, sublime e macabra, em que o historiador Felipe é um falso protagonista, Consuelo, uma bruxa que enfeitiça, a mente enlouquecida que, oculta e dissimulada atrás da voz narrativa em segunda pessoa, “se dirije a la consciencia o al subconsciente del joven traductor”,e é com essa força hipnótica que comanda suas ações. Aura e Felipe seriam criações imaginárias, fantoches manipulados por Consuelo, a primeira para perpetuar a ilusão da beleza e da juventude e o outro, o sonho de amor e paixão.

b) Eduardo Thomas Dublé, em Hechicerías del discurso narrativo latinoamericano: Aura de Carlos Fuentes (1998), e Maria Aparecida Silva, em El simbolismo erótico en Aura (2005), enveredam por questões histórico-sociais. Dublé relaciona a segunda pessoa da voz narrativa com processos de feitiçaria arquitetados por Consuelo, com os objetivos macabros dela. a bruxa. Para que o historiador se identifique com o general ela faz com que ele leia a correspondência e se identifique com o general até o nível da fusão de ambos. Esses fatos remetem, segundo ele, a ambigüidade da relação dos latino-americanos com o continente europeu, vez que os latinos americanos se defrontam com a necessidade de fundar a sua própria identidade ao mesmo tempo em que se identificam com o velho mundo, assim, Consuelo, a bruxa, simbolizaria, una consciencia en conflicto consigo misma... Em Silva, a vertente apontada é a do mágico religioso. Ela argumenta que muitos dos povos antigos usavam a segunda pessoa para referir-se às forças sagradas. Assim, Felipe era vítima do feitiço da  bruxa habilmente planejado.

Camila Cardoso, entretanto, diz que a maioria dos estudiosos da obra tem ponto de vista diferente, considerando que a narração na segunda pessoa da obra de Fuentes é uma forma de  o sujeito do enunciado se confundir com o sujeito da enunciação, ou seja, por trás do “tu” descortina-se o “eu” do próprio Felipe Montero. Para a mesma concepção, existem variações:

  • Charleen Merced, La percepción del tiempo y el espacio en Aura, diz que Aura está escrita en segunda persona,  lo que sugiere un estado de mente alterado del personaje principal, Felipe, pues, suponemos que se ve fuera del cuerpo.
  • Glória Durán, La bruja de Carlos Fuentes,, acredita que é possível explicar  o que ela chamou de truque estilístico de Aura, a partir  da teoria da reencarnação: o tu seria o próprio Felipe, que, sendo a reencarnação de Llorente, relata em um futuro “inevitável” fatos que já teriam lhe ocorrido. 
  • Emilio Bejel e Elizabethann Beaudin, em Aura de Carlos Fuentes: la liberación de los espacios simultâneos, trazem similar interpretação, mas a partir de uma reflexão mais ampla. Consideram que Carlos Fuentes adotou essa voz narrativa para subverter a tradição “realista” em literatura, violando tanto a relação pronominal eu-tu como as relações espaço-tempo, desfazendo a unidade do sujeito e a cronologia linear – ambos fundamentos do “efecto de realidad del signo aceptado proposto pelo “realismo burguês. Para eles, Felipe Montero,  numa espécie de auto-enfoque, é ao mesmo tempo personagem e narrador: Felipe habla a sí mismo sobre sí mismo, se convierte en sujeto de la enunciación y a la vez que es sujeto del enunciado.. O tu permitiria a simultaneidade de pessoas que se duplicam, Felipe é ele próprio e o general, o futuro inevitável de Felipe, como o passado já sabido do general e, por fim, o “eu”, emissor da mensagem.

Assim, a análise da segunda pessoa leva a duas linhas de enfoques na crítica de Aura:  no primeiro enfoque um tipo feitiço: o sujeito enunciativo seria a própria Consuelo e a novela seria, ela mesma, um ato de feitiçaria. Estão nessa linha de pensamento Santiago Rojas, Dublé e  Silva. No segundo enfoque, o sujeito enunciativo coincide com o protagonista da trama, com Felipe, e o romance é na realidade uma extensa auto-análise dele, um desdobramento de sua consciência. Destacam-se as pesquisas de Charleen Merced, Glória Durán e de Emilio Bejel e Elizabethann Beaudin.

Outra análise, no entanto, é possível, diz Camila Cardoso, em que o narrador não assume identidade, Consuelo ou Felipe, é o “eu” camuflado na segunda pessoa – nesse sentido  ele não deixaria de ser o “senhor” da trama: “manifestación textual del poder creador y profético del lenguaje narrativo”. A  narração em segunda pessoa funcionaria como uma espécie de desvelamento dos processos ficcionais da criação literária uma vez que a novela denunciaria sua própria construção textual.  Esse narrador revela-se enquanto organizador do relato, uma espécie de maestro que rege as mínimas ações que estão sendo construídas pelos personagens.

Além das três possibilidades apontadas para leitura de Aura, a autora chama a atenção para as flexões verbais na segunda pessoa que apontam, também, um outro sujeito, aquele para quem se escreve: o leitor. A primeira palavra, ou ordem, do narrador é “lees”, diz ela, uma frase que pode ser vista como uma ordem dirigida ao leitor que, assim,  assume desde o início da trama um papel de duplo do protagonista. Dessa maneira, o leitor de Aura desempenha um papel mais ativo que o de costume, ele parece poder viver, participar da aventura do outro, “estar na pele” do outro.  O personagem Felipe também passaria por um processo similar ao ler as histórias do general, parece transformar-se no próprio herói de sua leitura, como ele, apaixona-se por Aura que, também, duplica-seem Consuelo. A narração em segunda pessoa parece deflagrar um efeito em cadeia na obra: a duplicação.

As diversas possibilidades de leituras que Aura enseja só atestam a importância estética da obra, diz Camila Cardoso ao fechar o capítulo.

Para buscar um referencial teórico que explique como se organiza esses dois processos de duplicação, recorre-se ao artigo de Freud, O estranho, sobre a questão do duplo, que ele tomou como base o conto de um grande escritor fantástico do século XIX, E.T.A Hoffmann, O Homem de Areia. Freud enfoca o sentimento de “estranhamento” para compreender sua estrutura e suas causas. Ele tenta explorar a etimologia da palavra unheimlich, o estranho, o estrangeiro, chegando à seguinte definição: “categoria do assustador que remete ao que é conhecido de velho, e há muito familiar”. Assim, verifica-se relação estreita entre a sensação de estranhamento e a de familiaridade. Freud dirige a sua atenção para uma situação específica que causa estranhamento: as “dúvidas quanto a saber se um ser aparentemente animado está realmente vivo, ou do modo inverso, se um objeto sem vida não pode ser na verdade animado”. Esse tipo de estranhamento estava presente nas histórias fantásticas de Hoffmann, porque ele deixava o leitor sempre sem saber se uma determinada figura da história seria humana ou um autômato. Em “O homem de areia”, Freud diz que a atmosfera de estranheza do conto estaria mais relacionada com o medo de Natanael perder os olhos, medo que na clínica psicanalista remeteria à castração,  do que mesmo com a dúvida se Olímpia seria ou não dotada de anima, que seria um tipo de incerteza intelectual.  Entretanto, é do estranhamento causado pela dúvida de que se estaria realmente vivo que Freud passa a analisar o tema do duplo;

Assim, temos personagens que devem ser considerados idênticos porque aparecem semelhantes,  iguais. Essa relação é acentuada por processos mentais que saltam de um para o outro desses personagens -pelo que chamaríamos de telepatia -, de modo  que  um  possui conhecimento, sentimento e experiência em comum com o outro. Ou é marcada pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui seu  eu  (self) por um estranho. Em outras palavras, há o retorno constante a mesma coisa – a repetição  dos  mesmos  aspetos,  ou características, ou vicissitudes, dos mesmos  crimes,  ou  até  dos mesmos nomes, através das diversas gerações que se sucedem. (Freud, 1987, p. 252)

De volta a Aura, Camila Cardoso vê efeitos similares à sistemática do duplo de Hoffmann. Um deles, diz ela, refere-se à “incerteza intelectual”, por parte do leitor, que se pergunta se a personagem Aura é dotada de anima. Por outro lado, há um estranhamento, tanto no leitor como no protagonista, provocado pelos dois processos de duplicação. A primeira duplicação ocorre com as personagens femininas Consuelo e Aura que desde o início parecem partilhar os mesmos conhecimentos, comunicando-se sem palavras, e no final, ´sugerindo dividir o mesmo corpo ou ser o mesmo sujeito.O leitor, ao iniciar a leitura, identifica em separado as duas personagens, e no final, percebe a junção. No outro processo, na segunda acepção de Freud, ocorre o inverso, porque o “eu” de Felipe se identifica com o “eu” do general Llorente. No início ele parece hesitar acerca de sua identidade e no final parece substituí-la por um “eu” estranho, no caso o “eu” do general. Segundo Camila, há um sujeito que, de alguma maneira, é substituído por outro, graças a um lento processo de identificação. Nos dois processos de duplicação existem as semelhanças físicas como procedimento, e a estratégia marcada pelo uso do espelho, das fotos. O processo de duplicação em Aura/Consuelo parece obedecer a um movimento de dentro para fora, uma vez que Consuelo, desdobrando-se em Aura, aponta a seguir para a possibilidade de que a jovem retorne, pressupondo, desse modo, um novo desdobramento. Em Felipe/Llorente, o movimento de duplicação dá-se no sentido inverso, de fora para dentro: é o “eu” de Llorente que parece invadi-lo, provocando uma hesitação e um questionamento sobre quem é o seu “eu”; e apontando para uma possível substituição completa dele pelo “eu” do falecido general. Além disso, a dimensão da memória em Felipe traz consigo a sensação de familiaridade que, para Freud, sempre acompanha a sensação de estranhamento. Quando chegamos ao final da narrativa, tem-se apenas uma alusão ao retorno de Aura, assim como da substituição de Felipe por Llorente, o que levou Camila Cardoso dizer que Rosalba Campra, em seu artigo Fantástico y sintaxis narrativa, considera Aura inserida num conjunto de obras denominadas de Fantástico Atual, cuja principal característica é a não elucidação das indeterminações geradas ao longo da trama. O leitor termina a novela com as mesmas dúvidas que vão surgindo ao longo da narrativa: É sonho? Delírio? Realidade? Aura é Consuelo? Felipe é o general?

CONCLUSÃO – Em entrevista ao programa Roda Viva Carlos Fuentes diz que dar uma segunda oportunidade ao tempo é uma tarefa fundamental do romancista. E mais, que gosta dos desafios, dos saltos mortais, aliás, ele entende a literatura como um salto mortal sobre um vazio, para ver se chega no outro lado, mas com o risco de cair no precipício e se fazer em pedacinhos. Diz,  ainda, que o trabalho do escritor exige disciplina, que ele se acorda todos os dias às cinco da manhã, toma uma ducha fria, mesmo morando numa cidade com a temperatura fria como a de Londres, e após o café senta-se para trabalhar, normalmente, às seis horas, e escreve até o meio dia. Então ele sai para andar pelo Panteão de Breton, se diverte lendo as tumbas…

A nossa análise particular de Aura é de que nesta bela prosa poética, lírica, Carlos Fuentes cumpriu o papel que ele espera de um escritor: deu ao tempo uma segunda oportunidade, na representação simbólica do triângulo, que de fato é uma dupla, Felipe, Aura-Consuelo. Se adotada a tese da reencarnação, Felipe pôde voltar ao passado e ainda reacender o desejo arrebatador que sentia por Aura que, também, em uma segunda oportunidade, volta à juventude para viver momentos ardorosos com o seu amado, enquanto Consuelo revive através dela, Aura, o seu duplo, o amor paixão dedicado ao general que ela, com habilidade de “bruxa”, fusionou ao jovem historiador Felipe pela identificação assimilada nas escritas dele, e ele, LLorente, também teve a sua segunda chance ao reencarnar no jovem que ambicionava escrever um livro.

Outra leitura possível seria que Consuelo revive a sua história, escondida atrás de Felipe, usando um narrador na segunda pessoa do singular, a quem ela ordena faça isso e faça aquilo, faça aquilo outro, idéia retirada dos passeios que Carlos deu pelas tumbas do Panteão de Breton, além disso, como bom mexicano que ele sempre foi, da influência do seu conterrâneo Juan Rulfo.em Pedro Páramo.                                

                                                 Jaboatão dos Guararapes, 23 de março de 2009-

                                                        Lourdes Rodrigues


[1] Dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), para a obtenção do título  de Mestre em Teoria e História Literária. Área de concentração: Teoria e Crítica Literária.