Cecília Meireles

A vez de Cecília

Folha de S. Paulo – 16/06/2012 – Por Raquel Cozer

A volta às livrarias de Cecília Meireles (1901-64), prometida para janeiro, não aconteceu. Agora parece que vai: a Global finaliza para a Bienal do Livro de São Paulo os quatro primeiros títulos da autora, cuja obra praticamente sumiu durante longa disputa entre herdeiros. A coluna de Raquel Cozer conta que saem, em agosto, Romanceiro da Inconfidência, Viagem, os infantis Ou isto ou aquilo e Os pescadores e suas filhas, e uma antologia na série Crônicas para jovens. Das três herdeiras que questionavam a decisão do agente Alexandre Teixeira, neto de Cecília, de publicar pela Global, uma se acertou com a editora: Maria Fernanda, filha mais nova da poeta, recebeu “vultuosa quantia”, segundo o advogado Roberto Halbouti. Outra quantia está depositada em juízo para as irmãs de Alexandre.

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CANÇÃO

  

Pus o meu sonho num navio

E o navio em cima do mar;

-depois, abri o mar com as mãos,

para o meu sonho naufragar.

 

Minhas mãos ainda estão molhadas

do azul das ondas entreabertas,

e a cor que escorre dos meus dedos

colore as areias desertas.

 

O vento vem vindo de longe,

a noite se curva de frio;

debaixo da água vai morrendo

meu sonho, dentro de um navio…

 

Chorarei quanto for preciso,

para fazer com que o mar cresça,

e o meu navio chegue ao fundo

e o meu sonho desapareça.

 

Depois tudo estará perfeito:

praia lisa, águas ordenadas,

meus olhos secos como pedras

e as minhas duas mãos quebradas.

POEMAS INFANTIS:                                .

A Língua de Nhem

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

 

Uma Palmada Bem Dada

É a menina manhosa
Que não gosta da rosa,
Que não quer A borboleta
Porque é amarela e preta,
Que não quer maçã nem pêra
Porque tem gosto de cera,
Porque não toma leite
Porque lhe parece azeite,
Que mingau não toma
Porque é mesmo goma,
Que não almoça nem janta
porque cansa a garganta,
Que tem medo do gato
E também do rato,
E também do cão
E também do ladrão,
Que não calça meia
Porque dentro tem areia
Que não toma banho frio
Porque sente arrepio,
Que não toma banho quente
Porque calor sente
Que a unha não corta
Porque fica sempre torta,
Que não escova os dentes
Porque ficam dormentes
Que não quer dormir cedo
Porque sente imenso medo,
Que também tarde não dorme
Porque sente um medo enorme,
Que não quer festa nem beijo,
Nem doce nem queijo.
Ó menina levada,
Quer uma palmada?
Uma palmada bem dada
Para quem não quer nada!

A AVÓ DO MENINO

A avó
vive só.
Na casa da avó
o galo liró
faz “cocorocó!”
A avó bate pão-de-ló
E anda um vento-t-o-tó
Na cortina de filó.
A avó
vive só.
Mas se o neto meninó
Mas se o neto Ricardó
Mas se o neto travessó
Vai à casa da avó,
Os dois jogam dominó.

Leilão de Jardim

Quem me compra um jardim
com flores?

borboletas de muitas cores,

lavadeiras e passarinhos,

ovos verdes e azuis

nos ninhos?

Quem me compra este caracol?

Quem me compra um raio de sol?

Um lagarto entre o muro e a hera,

uma estátua da Primavera?

Quem me compra este formigueiro?

E este sapo, que é jardineiro?

E a cigarra e a sua canção?

E o grilinho dentro do chão?

(Este é meu leilão!)

O mosquito escreve

O mosquito pernilongo
trança as pernas, faz um M,
depois, treme, treme, treme,
faz um O bastante oblongo,
faz um S.

O mosquito sobe e desce.
Com artes que ninguém vê,
faz um Q,
faz um U, e faz um I.

Este mosquito
esquisito
cruza as patas, faz um T.
E aí,
se arredonda e faz outro O,
mais bonito.

Oh!
Já não é analfabeto,
esse inseto,
pois sabe escrever seu nome.

Mas depois vai procurar
alguém que possa picar,
pois escrever cansa,
não é, criança?

E ele está com muita fome.

Sonhos da menina

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho
risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho
seria o rebanho?
A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

Ao se falar de poesia para criança, não há como deixar de lembrar Vinicius de Moraes com o seus Poema Enjoadinho:

Poema Enjoadinho

Vinícius de Moraes

Filhos… Filhos?
Melhor não tê-los! Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete…
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los…
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem shampoo
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

Viagem Sentimental

Viagem Sentimental

A primeira leitura de romance na Oficina, agora em 2012, foi  Viagem Sentimental,  de Laurence Sterne. A escolha surgiu do interesse em conhecer o estilo daquele escritor, tão mencionado entre os grandes escritores por conta de sua obra literária mais famosa: A Vida e  as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy. Sabíamos que nessa obra ele, com seu humorismo simpático e sentimental e suas “extravagâncias” inovadoras,  havia quebrado todas as convenções, até então vigentes, no modo de fazer literatura. Livro grande, denso e esgotado. Três fatores nos impediram de seguir adiante com a ideia de sua leitura na Oficina:. Tristram Shandy é um livro muito grande para uma leitura coletiva com o objetivo de extrair contribuições para o jeito de escrever e de ler um livro;um livro tão cheio de digressões e enxertos nos levaria a todo momento a muitas discussões e paradas; por fim, o livro estava esgotado nas editoras que o lançaram. Restavam-nos os sebos e mais tentativas de busca. Desistimos.

Por acaso,  ao comprar dois livros de ensaios de Virgínia Woolf: The Common Reader Vol.I e II, da Vintage Classics,2003, na FENAC de Lisboa, nos defrontamos com uma excelente análise literária da autora sobre a Viagem Sentimental, também  de Laurence Sterne, na qual ela diz que nas primeiras palavras desse livrinho de 154 páginas, nós, de certa forma, também estávamos no mundo de Tristram Shandy. Na análise ela está sempre trazendo o autor e as suas duas obras, embora enfatize e detalhe mais Viagem Sentimental.

Optando pela leitura de Viagem Sentimental foi possível realizar o sonho de conhecer o pároco e o escritor Sterne,  o seu estilo revolucionário para a época, tanto em termos literários como em termos dos costumes da sociedade. A leitura, como já era esperado, foi muito instigante pelo estilo que  nos obrigou a ler e reler várias vezes o mesmo parágrafo para esclarecer melhor o que estava sendo dito, quem estava falando, se o narrador ou o personagem que, de tão colados, geravam confusão. Além disso, buscamos no inglês (Ângela Cysneiros conseguiu pela internet ) apoio para tirar as dúvidas geradas pelas quatro traduções que tínhamos na sala. Na categoria de viajantes curiosos, acompanhamos Sterne em suas fantasias viageiras … e num Désobligeant.

Próximo ao encerramento da leitura, começamos a fazer a tradução da análise literária de Virgínia Woolf sobre a Viagem Sentimental, para dividi-la com os participantes da Oficina e com os que acompanham esse Blog, por considerarmos que a escritora  havia feito um excelente trabalho sobre a obra de Sterne. Quando já estávamos quase no final, a nossa colega Adelaide Câmara, uma das responsáveis pela tradução, encontrou o livro de Virginia Woolf na Livraria Cultura, em Português, sob o título  O Leitor Comum, da Editora Graphia, tradução de Luciana Viégas. Assim, revisamos as nossas traduções e percebemos algumas discrepâncias. A principal delas está no início do primeiro parágrafo quando a tradutora diz que Tristram Shandy, embora seja o primeiro romance de Sterne, foi escrito em uma época em que muitos escreviam sobre seus vinte anos, isto é, quando tinham vinte e cinco. Pela nossa tradução, Virgínia dizia que Laurence Sterne escreveu seu primeiro livro numa época em que muitos já haviam escrito o seu vigésimo, ou seja, aos quarenta e cinco anos.

Diante disso, resolvemos considerar a nossa versão na maior parte do texto, recorrendo a Luciana Viégas, sempre que surgia dúvida. Foi um excelente exercício de leitura, releitura e interpretação, principalmente pelo belo texto que Virgínia Woolf nos legou.

A seguir, a tradução feita por Adelaide Câmara e Lourdes Rodrigues, com apoio de Monica Raposo e Supervisão de Tim Beech. E, claro, cotejada com a de Luciana Viégas.

 

*A VIAGEM SENTIMENTAL

Virgínia Woolf

 

Tristram Shandy, embora seja o primeiro romance de Sterne, foi escrito num tempo em que muitos já haviam escrito seu vigésimo, isto é, quando ele tinha quarenta e cinco anos. Mas exibe todo sinal de maturidade. Nenhum escritor jovem  poderia ter ousado tomar  tais liberdades com a gramática, a sintaxe, o sentido e a convenção, nem com a tradição longamente estabelecida de como um romance deve ser escrito. Era necessário  uma forte dose de confiança própria da meia idade e sua indiferença à censura para correr tais riscos de chocar os letrados pela não convencionalidade do próprio estilo e a reputação pela irregularidade da própria moralidade. Mas o risco foi corrido e o sucesso prodigioso. Todos os grandes, todos os exigentes ficaram encantados. Sterne tornou-se o ídolo da cidade. Apenas, no rugido do riso e  aplauso dos que saudaram o livro, a voz do público comum em geral era  largamente ouvida protestando que aquilo era um escândalo vindo de um clérigo, e que o Arcebispo de York deveria aplicar,   para dizer o mínimo, uma repreensão. O Arcebispo, parece, não fez nada. Mas Sterne, contudo, por menos que deixasse transparecer, sentiu a crítica como um golpe no coração. Aquele coração também já havia sido atingido desde a publicação de Tristram Shandy. Eliza Draper, objeto de sua paixão,  tomara um navio para juntar-se ao marido em Bombaim. Em seu próximo livro Sterne estava determinado a mostrar o efeito da mudança que o afetou, e não somente o brilho de sua inteligência, mas sua profunda sensibilidade. Em suas próprias palavras, “nisso, meu intento era ensinar-nos a amar o mundo e o nosso próximo melhor do que o fazemos. Foi com essa motivação a animá-lo que ele sentou-se para escrever a narrativa de um pequeno tour na França a que chamou Uma Viagem Sentimental.

Mas se era possível para Sterne corrigir suas maneiras, era impossível para ele corrigir o próprio estilo. Esse tinha se tornado como uma parte dele mesmo tanto quanto seu nariz grande e seus olhos brilhantes.  Com as primeiras palavras ― Eles lidam, digo eu,  melhor com essa questão na França ― nós estamos no mundo de Tristram Shandy. Um mundo em que qualquer coisa pode acontecer. Nós dificilmente sabemos que gracejo, que provocação, que lampejo de poesia não vai brilhar subitamente através da brecha que esta pena extraordinariamente ágil corta na bem fechada cerca viva da prosa inglesa. É o próprio Sterne responsável por isso?  Sabe o que está indo dizer em seguida a todos. De sua determinação de estar no seu melhor comportamento dessa vez? Os solavancos, as sentenças desconectadas são tão rápidas e pareciam sob tão pouco controle como as frases que caem dos lábios de um brilhante orador. A própria pontuação é aquela da fala, não da escrita e traz  com ela o som e as  associações da voz falante. A ordem das ideias, a subtaneidade e impropriedade delas, é mais fiel à  vida do que à literatura. Há uma intimidade nessa conversa que permite que as coisas escapem sem censura, e que teriam sido de gosto duvidoso se faladas em público. Sob a influência desse estilo extraordinário o livro se torna semitransparente. As cerimônias costumeiras e convenções que mantêm o leitor e o escritor numa distância cordial desaparecem. Estamos tão perto da vida quanto podemos.

Que Sterne alcançou essa ilusão apenas pelo uso de extrema arte e sofrimentos extraordinários é óbvio sem se precisar ir ao seu manuscrito para prová-lo. Se bem que o escritor está sempre capturado pela crença de que por algum meio deve ser possível deixar de lado as cerimônias e convenções para escrever e falar para o leitor tão diretamente como quando as palavras saem diretamente da boca, alguém que já tenha tentado a experiência foi emudecido pela dificuldade, ou se perdeu na desordem e numa dispersão indizível.Sterne de alguma forma conseguiu alcançar essa extraordinária combinação. Nenhuma escrita parece fluir mais diretamente nas várias dobras e rugas da mente do indivíduo, para expressar suas mudanças de humor, refletir suas ideias caprichosas e impulsos, e ainda o resultado ser perfeitamente preciso e sereno.  A mais extrema fluidez coexiste com a mais extrema permanência. É como se a maré subisse e agitasse o mar para lá e para cá e deixasse as marcas do ir e vir das ondas na areia como que em mármore..

Ninguém, naturalmente, precisava mais de liberdade para ser ele próprio do que Sterne. Embora existam escritores cujo dom é impessoal, assim como Tolstoi, por exemplo, que pode criar um personagem e nos deixar em paz com ele, Sterne precisa sempre estar lá em pessoa para nos ajudar em nosso percurso. Pouco ou nada de Uma Viagem Sentimental sobraria se tudo a que nós chamamos do próprio Sterne fosse eliminado. Ele não tem qualquer informação valiosa para dar, nenhuma razão filosófica para repartir. Ele deixou Londres, conta-nos, “com tanta precipitação que nunca entrou na minha mente que nós estivéssemos em guerra com a França”. Ele não tem nada para dizer das pinturas e igrejas ou do sofrimento ou bem-estar da população rural. Ele estava viajando pela França realmente, mas a rota era frequentemente através da sua própria mente, e suas principais aventuras não foram com bandidos ou precipícios, mas com as emoções de seu próprio coração.

Esta mudança no ângulo de visão era em si mesmo uma ousada inovação. Até então, o viajante tinha observado certas leis de proporção e perspectivas. A Catedral tinha sempre sido um vasto edifício em qualquer livro de viagens e o homem uma pequena figura, propriamente diminuta, pelo seu lado. Mas Sterne foi realmente capaz de omitir a Catedral completamente. Uma garota com uma bolsa de cetim verde pode ser muito mais importante do que a Notre-Dame. Pois não há, ele aparentemente insinua, nenhuma escala universal de valores. Uma garota pode ser mais interessante que uma catedral; a morte de um macaco mais instrutiva que um filósofo vivo. É tudo uma questão de seu próprio ponto de vista. Aos olhos de Sterne as coisas pequenas muitas vezes pareciam maiores do que as grandes.  A conversa de um barbeiro acerca da presilha de sua peruca diz a ele mais acerca do caráter  da França do que a grandiloquência dos estadistas dela.

Eu penso que eu posso ver os sinais precisos e distintos do caráter nacional mais nestes absurdos detalhes, do que nos mais importantes assuntos de estado; onde os grandes homens de todas as nações conversam e andam tão parecidos uns com os outros, que eu não daria  nove pences  para eleger um  dentre eles.

Assim, também se alguém deseja agarrar a essência das coisas como deve fazer um viajante sentimental, deve procurar por isso, não sob o claro meio-dia em ruas largas e abertas, mas em uma esquina despercebida de entrada escura. Deve-se cultivar um tipo de taquigrafia que consiga traduzir os vários jeitos de olhar, dos braços e pernas em palavras claras e simples. Era uma arte que Sterne tinha treinado longamente a si próprio para praticar.

De minha parte,  por longo hábito, eu faço isso tão mecanicamente que quando eu caminho pelas  ruas de Londres, eu vou interpretando todo o caminho; e por mais de uma vez eu permaneci parado atrás de uma roda de pessoas, onde não mais de três palavras haviam sido ditas, e levei comigo vinte diálogos diferentes, os quais eu poderia ter transcrito e assinado embaixo.

É assim que Sterne transfere nosso interesse do exterior para o interior. Não adianta usar um  guia de viagem; nós devemos consultar nossas próprias mentes; somente elas podem dizer-nos  qual é a importância comparativa de uma catedral, de um burro e de uma garota com uma bolsa de cetim verde. Preferindo as sinuosidades de sua própria mente ao guia de viagens e suas castigadas estradas, Sterne é singularmente de nossa própria época. Neste interesse em silenciar em vez falar, Sterne é o precursor dos modernos. E por estas razões ele é hoje, de longe, muito mais íntimo de nós do que seus grandes contemporâneos os Richardsons e os Fieldings.

Ainda existe uma diferença. Apesar de seu interesse em psicologia, Sterne foi muito mais ágil e menos profundo do que os mestres desta escola um tanto sedentária se tornaram desde então. Ele está afinal, contando uma história, seguindo uma viagem, conquanto seu método seja  arbitrário e em zigue-zague. A despeito de nossas divagações, nós percorremos a distância entre Calais e Modena no espaço de muito poucas páginas. Interessado como ele era na forma como ele via as coisas, as coisas em si também interessavam extremamente a ele. Sua escolha é caprichosa e individual, mas nenhum realista seria mais brilhantemente bem sucedido em traduzir a impressão do momento. A Viagem Sentimental é uma sucessão de retratos — o Monge, a dama, o Cavalheiro vendendo patês, a garota na livraria, La Fleur em seus novos culotes, —uma sucessão de cenas. E embora o voo desta mente errante seja tão ziguezagueante como o de uma libélula, não se pode negar que esta libélula tem algum método no seu voo, e escolhe as flores não aleatoriamente, mas por alguma primorosa harmonia ou por alguma brilhante discordância. Nós sorrimos, choramos, zombamos, simpatizamos por momentos. Nós mudamos de uma emoção para o seu oposto no piscar de um olho. Esta frágil ligação com a realidade aceita, esta negligência com a organização da narrativa permite a Sterne quase uma licença poética. Ele pode expressar ideias em linguagem que os romancistas comuns  deixariam de lado, mesmo que os romancistas comuns pudessem dominá-la, iria parecer-lhe intoleravelmente estranho em suas páginas.

Caminhei solenemente para a janela em meu casaco preto empoeirado e olhei através da vidraça vi todo o mundo em amarelo, azul e verde, correndo na arena do prazer. – O velho com suas lanças quebradas, e elmos que tinham perdido suas viseiras – o jovem em armadura esplendorosa que brilhava como ouro, emplumado com vistosas penas orientais – todos – todos lutando como se empunhassem espadas fascinantes em torneios de outrora por fama e amor.

Há muitas passagens como esta de pura poesia em Sterne. Algumas podem ser retiradas e lidas à parte do texto, e ainda assim – Sterne era o mestre da arte do contraste – elas assentariam harmoniosamente lado a lado na página impressa. Seu frescor, sua leveza,seu perpétuo poder de surpreender e de assustar são o resultado destes contrastes. Ele nos leva às verdadeiras margens de algum profundo precipício da alma; lançamos um breve olhar em suas profundezas; no momento seguinte, somos empurrados de volta para olhar os prados verdes brilhando do outro lado.  Se Sterne nos inquieta, é por outra razão. E aqui a responsabilidade repousa, ao menos em parte, sobre o público. – o público que ficou chocado, que reclamou após a publicação de Tristram Shandy que o escritor era um cínico que merecia ser destituído da batina. Sterne, lastimavelmente, considerou necessário replicar.

O mundo imagina (disse a Lord Shelburne) porque eu escrevi Tristram Shandy que eu era mais Shandeano que eu realmente fui. Se ele (Uma viagem Sentimental) não é considerado um livro casto, tende piedade daqueles que o leram, pois devem ter uma imaginação ardente, sem dúvida.

Assim sendo em Uma Viagem Sentimental  nunca nos é permitido esquecer que Sterne é acima de todas as coisas sensível, simpático, humano; que acima de todas as coisas preza a decência, a simplicidade do coração humano. E sem rodeios um escritor se ergue para provar a si mesmo que esta ou aquela de nossas suspeitas são incitadas. Pois a pequena tensão excedente depositada na qualidade que deseja que vejamos nele, torna-a grosseira e de um colorido borrado, de forma que em vez de humor, temos farsa, e em vez de sentimento, sentimentalismo. Ai, em vez de sermos convencidos da ternura do coração de Sterne,— que em Tristram Shandy  jamais esteve em questão  –começamos a duvidar.. Pois sentimos que Sterne está pensando não na coisa em si, mas na sua repercussão sobre o que achamos dele. Os mendigos se juntam ao seu redor e ele dá ao pauvre honteux (pobre envergonhado) mais do que pretendia. Sua mente, porém, não está apenas e tão simplesmente nos mendigos; sua mente está particularmente em nós. Para verificar se apreciamos sua bondade. De modo que sua conclusão “e acreditei que ele me agradeceu mais do que todos os outros”, colocado, para maior ênfase, ao fim do capítulo, nos enjoa com sua doçura como um torrão de açúcar puro no fundo de uma xícara. Na realidade, a principal falha de Uma Viagem Sentimental vem do interesse de Sterne por nossa boa opinião sobre seu coração. Há uma monotonia acerca disso, apesar de seu brilhantismo, como se o autor tivesse refreado a variedade natural e a vivacidade de seus gostos, com receio de que pudessem ser ofensivos. A jocosidade se reduz a um humor invariavelmente muito bondoso, terno e compadecido demais para ser completamente natural. Perde-se a variedade, o vigor, a libertinagem de Tristram Shandy. O interesse pela sua sensibilidade cegou sua agudeza natural, e somos obrigados a fitar por longo tempo a modéstia, a simplicidade e a virtude numa postura imóvel demais para que aguentemos olhá-las.

Contudo é significativo da mudança de gosto que nos atinge que seja o sentimentalismo de Sterne que nos ofende e não sua imoralidade. Aos olhos do século dezenove tudo o que Sterne escreveu ficou enevoado por sua conduta como marido e amante. Thackeray chicoteou-o com sua justa indignação, e exclamou que “Não há uma página dos textos de Sterne que não tenha alguma coisa que seria melhor tirar, uma perversão latente – uma insinuação de uma impura presença.” Para nós, nos dias atuais, a arrogância do romancista vitoriano parece pelo menos tão censurável quanto as infidelidades do pároco do século dezoito. No lugar de suas mentiras e frivolidades, deploradas pelos vitorianos, são muito mais evidentes agora a coragem com que devolveu todas as aflições da vida ao riso e o brilhantismo da expressão.

De fato, Uma Viagem Sentimental, apesar de toda sua leveza e espirituosidade é baseada em alguma coisa fundamentalmente filosófica. É verdade que é uma filosofia que estava bem fora de moda na era vitoriana – a filosofia do prazer; a filosofia que defende que é necessário se comportar bem tanto com as pequenas coisas quanto com as grandes, que faz a alegria, mesmo a de outras pessoas, parecer mais desejável que seus sofrimentos. O homem descarado teve a ousadia de confessar “ter tido um caso amoroso com uma princesa ou outra por quase toda a minha vida”, e de acrescentar, “e espero poder continuar assim até morrer, firmemente convencido de que se alguma vez realizei uma ação maldosa, deve ter sido em algum intervalo entre uma paixão e outra”. O desgraçado teve a audácia de gritar através dos lábios de um de seus personagens. “Mais vive la joie…Vive  l’amour! Et vive la bagatelle!” Embora fosse clérigo, teve a irreverência de refletir, enquanto assistia aos lavradores franceses dançando, que poderia distinguir uma elevação de espírito, diferente da que é causa ou cosequência de simples alegria. – “Numa palavra, creio que vejo Religion misturada à dança”.

Era um atrevimento para um clérigo perceber a relação entre religião e prazer. Porém, o que pode, talvez, desculpá-lo é que, em seu caso, a religião da felicidade teve grandes dificuldades para enfrentar. Se você não é mais jovem, se está profundamente endividado, se sua esposa é desagradável, se, ao sacolejar pela França em uma carruagem, você está morrendo de tuberculose, então, afinal, a procura da felicidade não é tão fácil. Mesmo assim, persegui-la é uma obrigação. É preciso piruetar pelo mundo, olhando e perscrutando, deleitando-se com um flerte aqui, entregando uns cobres ali, e sentando-se em qualquer pedaço de terra ensolarado que se possa achar. É preciso contar uma piada, mesmo que a piada não seja muito decente. Mesmo na vida diária é preciso não se esquecer de gritar “Ave, minúsculas, doces cortesias da vida, pois tornais a estrada da vida mais fácil!” É preciso – basta de tanto precisar; este não seria um termo que Sterne gostava de usar. Somente quando se põe o livro de lado e se invoca seu equilíbrio, sua graça, sua sincera alegria em todos os diferentes aspectos da vida, e a tranquilidade e a beleza brilhantes com que nos são transmitidas, credita-se ao escritor a espinha dorsal/caráter moral da convicção para sustentá-lo. Não foi o covarde de Thackeray – o homem que desperdiçou seu tempo de forma tão imoral com tantas mulheres e escrevia cartas de amor em papéis ornados de ouro quando deveria estar deitado em uma cama doente ou redigindo sermões – não foi ele um estoico à sua maneira e um moralista, e um professor? A maioria dos grandes escritores o são, afinal. E de que Sterne foi um grande escritor não podemos duvidar.

*Tradução de Adelaide Câmara e Lourdes Rodrigues, com apoio de Monica Raposo. Supervisão: Tim Beech. Cotejada com a de Luciana Viégas.