Uma Quarta-Feira muito especial

As quartas-feiras – dia do nosso encontro na Oficina de Criação Literária Clarice Lispector – são, sempre, muito especiais. Leituras de obras de autores clássicos, aqueles que ocupam trono no panteão dos deuses da literatura, ou de autores mais atuais, porém, de reconhecido lugar no mundo literário, nos levam a intensas viagens pelos mundos das palavras. Também, as produções dos próprios viageiros – participantes da Oficina – encantam essas tardes, tanto pela tessitura dos escritos como pela criatividade deles.

Os trabalhos são começados, sempre, com alguns poemas. Sentíamos que a chegada à Oficina, o encontro com os companheiros de muitas viagens deixavam-nos muito excitados, necessitando de algo muito forte que nos fizesse mergulhar dentro de nós mesmos para acalmarmo-nos e prepararmo-nos para os trabalhos. Por isso, surgiu o Momento Poético. Mas, de um mero recurso para trazer-nos a calmaria necessária à viagem que iríamos empreender, esse momento cresceu, ganhando espaço maior, conquistando-nos de tal forma que hoje, temos dificuldade de cumprir a programação para a tarde, tão enlevados que ficamos com a leitura dos poemas e as falas sobre os poetas que são trazidos.

Aqui está uma quarta-feira muito especial, na qual os escritores da casa fizeram e comandaram a festa.

O cenário do semi-árido nordestino, da estiagem prolongada, da dura e cruel seca do sertão esteve presente no poema de Lília Gondim, Ciclica Estiagem e na prosa poética de Elizabeth

CÍCLICA ESTIAGEM

Lília Gondim

Triste gente de semiárida vida,

deixando pra trás casebres,

 os seus minguados pertences;

promessas, feitas p’ros céus,             

já  muitas vezes cumpridas.





Vagam, em fila, impotentes,

procurando o que foi rio,

outrora tão caudaloso.

Hoje, o que sobra é um fio

de água turva, empoçada,

alento mais que insalubre

pr’os que conseguem chegar,

sendo bicho ou mesmo homem.





É trágica a estiagem !





Outros já partiram antes,

desde que a roça secou.

Reza nenhuma ajudou!

Todo o gado, esfomeado,

murchou e se abandonou

pela terra ressecada,

em largas fendas rachada.





Dos filhos, irmãos, avós,

Só restaram mesmo as ossadas.





É tétrica a estiagem !

É só fome, sede, morte…





Vão-se em busca de outro norte,

de terras sempre orvalhadas,

quiçá, vida de mais sorte!





E a chuva os trará de volta,

Esquecem a desesperança.





Pelos sítios, nas noites invernais,

cantarão outras novenas,

farão novas louvações

e puxarão “incelênças”

lembrando dos que ficaram

nessa  árdua caminhada.





Trabalharão confiantes

na força da sua enxada

e no seu amor ao rio,

novamente tão crescido,

burburinhando  entre as pedras.





No fundo calam a certeza

de que muitas outras vezes,

como o fizeram seus pais

 e, antes, os seus avós,

trilharão a atroz jornada.





Partirão,

sempre que o sol,

teimoso, abrasante,

inclemente e tórrido,

desafiando os seus santos,

expulsar da terra a chuva.

Triste gente de semiárida vida…

Desesperança

Maria Elizabeth Freire


As chamas balançam amareladas e tímidas no pequeno fogareiro de barro. Uma panela de alumínio, machucada e sem tampa, tenta cozinhar a última porção de feijão. 

Lá fora o sol nasce insistente, afoito. Não se cansa de aquecer a terra dura e sofrida de onde nada brota. Até o roçado de palma murchou.

Os ossos de Mimosa estão espalhados pelo terreiro. Nem para os urubus servem mais. Não tiveram coragem de abatê-la enquanto ainda possuía alguma carne. Mimosa, não. Por tantos anos seu leite aplacou a fome e a sede dos meninos.

Katyelle Caroline com seus passos lentos e miúdos segue procurando Mimi. Desde ontem, o gatinho sumiu. Dimerson Janailson está sentado com Baleia ao seu lado. Gente e bicho sem forças para brincar.

No barreiro atrás de casa, lama. Só lama, que seca mais a cada dia.

Na cisterna, que algum governo construiu, os derradeiros litros d’agua são regrados com cuidado e medo.

Debruçada na janela, a mulher passa a mão pelo ventre saliente. Espia, com olhos melancólicos, os outros filhos lá fora. O homem continua deitado na rede. Balança para lá e para cá embalado pela desesperança.

A vida no sertão é para os fortes, já disse Euclides da Cunha. No entanto, hoje, até os fortes estão enfraquecendo. Os vizinhos foram embora para São Paulo há muito tempo, deixando a terra abandonada. Eles ficaram. O homem já trabalhou diversas vezes no Sul, sempre como servente na construção civil. Nunca quis levar a família para aquelas bandas. Sempre voltou. Às vezes, com algum dinheiro, outras, sem um tostão. Com dinheiro ou sem dinheiro, jamais aceitou sair do seu lugar neste mundo. A mulher bem que tentou convencê-lo a largar tudo e tentar a vida em outro canto. Inútil. Este sítio é nosso desde meu bisavô, mulher. A família fica onde eu quero, dissera várias vezes. Ela limitava-se a balançar a cabeça em sinal de desencantamento.

No chão de terra batida, Jamerson Clayton, nariz escorrendo, barrigão de vermes, engatinha choramingando. Vai em direção à mãe. Ela sai da janela e pega o bebê no colo. Dá-lhe um ralo mingau de farinha. O menino se cala alimentado pelo carinho da mãe. Adormece. A mulher suspira.

De repente, Mimi volta. A menina para. O bebê acorda. Uma Asa Branca passa cantando. O menino levanta-se. Baleia abana o rabo longo e fino. O homem sai da rede. A mulher mexe a panela no fogo. Vão todos para fora de casa. Olham para cima, admirando aquele céu lindo e cinzento. Um clarão risca no horizonte. Ao longe se ouve um estrondo bonito, forte. As crianças gritam, a do ventre se mexe. A mulher acaricia a barriga e quase sorri. O homem olha o céu mais uma vez e volta para rede.
 

Outros poemas

Lília Gondim


SÓ MARIA


Já tinha sido A Maria:
Maria Amada, Maria Tudo...
Essa certeza,
bem lá no fundo de Maria Coração,
calava um sentimento
de Maria Importante,
Maria Querida, Maria Amiga,
Maria Desejada, Maria Companheira,
Maria Mulher.
 
Surpreendeu-se um dia,
com a indefinição do artigo
que precedia seu nome.
 
Por não ser mais A Maria,
Tornou-se UMA Maria:
Maria Indeterminada, Maria Indefinida,
Maria Sem Direção.
Maria Solta, perdida,
Maria Desesperada,
pensou ser Maria Morte.
Mas sendo Maria Amor,
queria, Maria, a vida:
Maria Contradição!
 
Dos pensamentos contrários,
gerou-se Maria Luta:
se não era A Maria,
também não Uma Maria!
Bastava ser SÓ Maria:
nem ser diferenciada
nem ser Maria Qualquer.
 
Seria apenas Maria,
Maria, toda Maria,
Maria feita de sonho,
Maria feita de amor.
 
Maria, ganhando a vida,
Maria mudando o mundo
junto a milhões de Marias,
lutando no dia a dia.
E descobriu-se por fim
uma Maria Maior!
 
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SEXTA FEIRA

A sexta vai ser bem dura,
começando, logo cedo,
no birô da Prefeitura.
No almoço,
engolir às pressas
qualquer comida pedida,
dessas chamadas de “expressas”.
 
Em seguida o pior...
Sair voando daqui,
dar aula em Tejipió.
Lá, na expressão corporal,
alongamento anti estresse,
a turma bem relaxada
e eu própria muito cansada
da minha vida apressada.
 
De lá direto pro CAC:
ensaio extra marcado!
No meio das partituras
dos sons de vários matizes
quase que somos felizes;
bemóis, sustenidos, pautas,
afinações e deslizes.
 
Mas pra compensar o dia,
só posso esperar,
mais tarde,
nossa verdadeira arte,
a de quem muito se ama:
um concerto de verdade,
belíssimo,
em nossa cama!
 
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Adelaide Câmara é uma viageira que insiste em dizer que não escreve ficção, apesar de todas as evidências provarem o contrário. A verdade é que escreve muito bem, com um estilo muito particular. No conto ora apresentado, O Dinheiro, o Amor, um Juiz, esse estilo está bem presente, onde a sagacidade, a ironia fina se unem a um registro cruel de uma realidade social perversa.

O Dinheiro, o Amor, um Juiz

Maria Adelaide Câmara

Trabalhava numa mercearia. Jovem ainda, um pouco gasta. Sonhava em manter-se, ajudar nas despesas da casa e ainda custear algum estudo.

O patrão, homem de seus trinta e poucos, barriguinha incipiente, agitava-se entre as amabilidades com os clientes e o caixa. Contratara-a para ajudar nas vendas e no atendimento. Queixava-se da coluna. Procurava alguém que pudesse substituí-lo em momentos de repouso forçado, muito raros, dissera. Ela era trabalhadeira, muito despachada. Assim, as crises do patrão podiam ser cada vez mais frequentes. O salário pingava quinzenalmente, no princípio com regularidade. Um desafogo!

Além dela, havia o encarregado de carga, descarga e estoque e um auxiliar para mandados e faxina, um meninote. Certo dia, o rapazote, surpreendido a sono solto, fora para o olho da rua.

 O patrão pediu à funcionária um ligeiro acréscimo de funções a que corresponderia remuneração extra, só enquanto procurava um substituto.

O tempo foi passando, o salário atrasando e o extra, dopado e adormecido na esteira das vendas enfraquecidas, atrelado à melhoria da situação nacional. Ela pau-para-toda-obra, ele nem pau nem obra.

Cansou-se. Para tanto trabalho haveria de ter um juiz. Achou-o. Ganhou a causa. Dez mil reais arbitrados como a ela devidos.

Uma semana depois, apresentam-se novamente ao juiz a empregada e seu patrão. Ela desistia da ação, haviam feito um acordo.

Macaco velho nas mutretas humanas, o juiz dispensa o patrão e interroga a moça. Depois de rodeamentos, considerando o togado um homem muito justo, conta-lhe que o patrão lhe propusera casamento.  Enfadado, o juiz quer saber por que se fiava nisso. E ela, como em todos os tempos, dá as razões do coração. O juiz manda chamar o noivo e determina-lhe depositar judicialmente um mil reais para a prometida, durante 10 meses, daquele momento até o casório.

Despedem-se e retornam a seus anteriores: o juiz às querelas alheias, a empregada a seu patrão, ambos aos secos e molhados.

Três meses depois, aparece ao juiz a empregada capionga e cabisbaixa. O casamento estava desmanchado.

Narciso está sempre presente nas nossas discussões, afinal a interface da Literatura com a Psicanálise e a Mitologia são frequentemente referidas nas nossas leituras, assim como nas escritas. Ricardo levou, nesse dia, contos sobre o Espelho que confirmam o que já se sabe dele, a grande maestria com as palavras, dessa vez, primando pela teoria do iceberg em que o que está aparente, na superfície do texto, é uma pequena parte do que está encoberto, do não dito.

ESPELHO

Ricardo Braga

Microconto

No espelho de si, narcísico não se enxerga

Mesoconto

Quarenta anos completos

Olha-se diante do espelho:

Bebê risonho, garota de perninhas grossas, peitinhos surpresa, peitos tesudos, executiva impetuosa, peitos minando leite, filhos queridos, filhos sugadores

Não dá mais, Jorge

Exaspero, desespero

Separação

Olha-se atentamente através espelho:

Rugas anunciadas, olheiras marcantes, lábios carecendo batom, olhos marejados de saudade

Interrogação… na fumaça do cigarro

Olha-se para além do espelho:

Corpo de velha

Amigos escassos

Ideias dissonantes

Solidão

Nega-se a continuar, abandona o espelho, corre à procura da mãe

Reconhece a escuta sem pressa, a fala não imposta, o criativo ócio de quem tem tempo para pensar.

Abraça-a como se fosse a si mesma, amanhã.

Um rei chamado Beethoven

Graça Lins trouxe para a Oficina a história de Beethoven, o cão de um morador de rua que vive nas cercanias da ponte da Torre, chamando a atenção de todos que passam por ali. Em cima de um carrinho de compras, muito bem acolchoado, Beethoven, que tem direito ao sobrenome de seu dono, está sempre coroado como se fora um rei, do reino da fantasia do seu dono. Tanto se falou dele que tornou-se personagem de vários escritos dos viageiros, numa demonstração de que a ficção nasce de fatos cotidianos, de observações do mundo real.

Amigos Inseparáveis

Ana Amâncio

Jurandir tinha família e sua vida era igual a de muitas pessoas. Ele tinha um emprego, não gostava muito do que fazia, mas não tinha disposição de jogar tudo para o alto pois os familiares dependiam dele.

Seus sonhos sempre ficando para depois e assim o tempo foi passando. Uma viagem de férias com toda a família, entretanto, não poderia ter dado mais errada, e um acidente foi fatal para todos, apenas, Jurandir, sofreu pequenos arranhões.

Sua vida, após o acidente, tornou-se insuportável. Ficou tão desorientado que andava sem destino e sem hora para voltar para casa. Algumas vezes ficava dias vagando sem comer, sem dormir, só pensando no que havia acontecido e que ele não pôde fazer nada para salvar sua família. E se perguntava: Por que tinha sobrevivido?  Não tinha resposta. Achava que era um castigo. Seu sofrimento era grande.

Após muitos dias caminhando, já não sabia mais onde morava, quantos dias estava fora de casa, muito desorientado e muito sofrido adormeceu numa calçada.  Aos primeiros raios do sol acordou com lambidas na cara. Arregalou os olhos e ainda sonolento vislumbrou um cão que só  fazia lamber a sua cara. Ele enxotou o animal, gritou com ele, mas de nada adiantou. Tentou voltar a dormir, mas o cachorro não deixou, queria brincar. Trouxe um pedaço  de pau e colocou junto dele. Jurandir não queria brincar, estava triste. O cão saiu correndo e trouxe uma bolinha velha, murcha e colocou junto das mãos dele, sem sucesso. Ele não desistiu até conquistá-lo e começarem a brincar juntos e se tornarem companheiros inseparáveis.

Ter um companheiro inseparável e muito leal faz toda diferença na vida de uma pessoa, ainda mais se sua casa for as ruas de uma cidade.

Muito Prazer, Jurandir

Maria Elizabeth Freire

 Eu sou Jurandir, figura conhecida entre os que moram ou passam por Casa Amarela. Sei que vocês têm curiosidade de saber como vim parar aqui com meu cachorro de nome imponente.

Nasci numa família de classe média. Tenho o segundo grau completo.  Levei uma vida normal, como dizem alguns, por muitos anos. Foi então que conheci Maria. Uma moça de olhar tristonho que me conquistou com o balanço dos seus quadris e aquele sorriso de Mona Lisa.

Casamos. Morávamos numa casa pequena, confortável e bem equipada.  Pensávamos em ter filhos, ao menos dois. Eu trabalhava num banco e Maria tomava conta da casa. Nunca quis trabalhar fora. Eu entendia. Minha mulher tocava piano desde menina. Mesmo com a casa sem muito espaço, conseguimos um cantinho para acomodar o instrumento. Ela passava horas tocando. Esquecia do mundo. Às vezes queimava o feijão, esquecia a roupa no varal, mas eu nunca me importei. Sua alegria quando me via chegar era tocante.

O tempo foi passando e nada de Maria engravidar. Começou a sentir-se só. Foi deixando de tocar piano. Fiquei preocupado. Seu olhar foi ficando dia a dia mais distante. Aconselharam-me, então, a comprar um cachorro para fazer companhia à minha mulher.

Quando cheguei em casa com aquela criaturinha frágil, necessitando de tantos cuidados, Maria nem ligou. Eu não sabia o que fazer. Deixei o cãozinho do lado de fora e fui deitar. Estava cansado e decepcionado comigo mesmo.

Maria ficou na sala, deitada no sofá, com aquele olhar vazio.

De madrugada, passei o braço procurando por ela e percebi que estava dormindo sozinho. Fui para a sala e vi uma cena que até hoje me enche o coração de alegria. Maria, sentada no batente da porta do quintal, embalando o cachorrinho cantarolando a Nona Sinfonia de Beethoven.

Ele estava chorando com frio e fome. Tive pena, ela disse. Dei uma mamadeira de leite e enrolei o bichinho neste lençol. Ele olhou pra mim com uns olhos tão meigos que não resisti e coloquei o danadinho nos meus braços. Cantarolei minha peça de piano predileta e ele adormeceu.

Demos a ele o nome de Beethoven. Passou a ser fiel companheiro de minha mulher. Vez por outra ela tocava alguma música no seu piano. Tudo ia bem, ao menos assim eu acreditava.

Então, num dia chuvoso, chego em casa e encontro Beethoven embaixo da mesa da cozinha, acabrunhado, triste.

Procuro por Maria. Entro na sala e noto algo estranho. O piano! Cadê o piano? Que diabos era aquilo? Gritei por Maria e não houve resposta. Corri pela casa toda à sua procura. Nada.

Voltei para a cozinha, o cão continuava no mesmo lugar, ainda mais triste. Apoiei-me na mesa e então vi um papel embaixo de um vaso. Um bilhete.

Tremi ao pegar o pedaço de papel. Li e reli mil vezes sem acreditar. Maria havia saído da minha vida sem explicação. O bilhete dizia: Vou te amar para sempre. Cuide de Beethoven. E um beijo de batom vermelho terminava a mensagem.

Daquele dia em diante, gastei tudo que tinha procurando Maria. Encontrei o velho piano numa escola de música. O proprietário me informou que uma moça bonita o havia vendido havia seis anos. Não tivera mais notícias dela. Chamou-lhe a atenção seus olhos lindos e melancólicos.

Perdi o interesse por tudo. Passei a viver assim na rua, sempre na esperança de ver Maria passar. Minha única alegria desde então tem sido Beethoven. Ele amou Maria tanto quanto eu.

QUATRO SENTIDOS

Quatro Sentidos

Graça Lins

          Meu dono insiste em dizer que minto quando eu digo que não escuto bem as buzinas. Mesmo a mais estridente de uma camionete, cheia de bananas, que passa diariamente. Observo o movimento frenético da rua, imagino ruídos que não escuto. Vejo as crianças indo à escola. Não ouço bem o que dizem, nem mesmo a fala do meu dono. O seu carinho em minhas orelhas é o bastante.

         Sinto os cheiros que se misturam, vindos da lanchonete. O aroma do café quentinho e do queijo frito que escorre do pão e penetram nas minhas narinas sem pedir licença.

        Minha casa? Um velho carrinho de supermercado, aconchegante e seguro.  Também serve para transportar meus sonhos . É nele que me aninho entre almofadões encardidos, doados pelos vizinhos.  E  é de lá que avisto a vida que não vivo.

       Um dia, meu dono me levou para conhecer o Museu que fica bem em frente ao Posto de combustível onde passamos boa parte do dia. Foi um passeio mais que curto porque “reguei” a estátua do jardim e o vigilante nos pôs para fora de imediato. Sei que queria me oferecer um dia diferente de todos os outros em que ficamos, no semáforo, pedindo dinheiro aos passantes.

       Ele me falou que vou ganhar uma companheira igual a mim, da minha cor e que tem olhos serenos e observadores como os meus. Só uma coisa irá diferir. Não terá coroa de Rainha, pois a minha de Rei ganhei no carnaval passado quando vi o maracatu desfilar.  Estava quieto, embaixo da marquise, mas meu dono me deixou ver de perto toda aquela realeza. Bombos enormes, uma grande sombrinha, um colorido indescritível e com certeza tocavam uma música contagiante que fazia todos dançarem de uma forma muito engraçada. Eu queria cantar também. Mas só uivava.

         Por não ouvir bem, aguço os outros sentidos. Foi aí que, um dia, vi meu dono envolver o pé com uma gaze e botar uma tintura de cheiro esquisito numa ferida que nunca existiu. Nesse dia, andou mancando e todas as vezes que o semáforo ficava vermelho as pessoas paravam seus carros e davam bem mais dinheiro. Tinham dó dele e nem me davam atenção. Acho que a esperteza valeu a pena. Com o que arrecadou, comprou comida para 3 dias.

        Fiquei farto com tamanho banquete e depois, durante a sesta, sonhei com um compositor famoso que, assim como eu, não ouvia bem.  Decerto é em sua homenagem meu nome de batismo: BEETHOVEN, ou seja, RÔMULO BEETHOVEN SOARES DE MELO.

Cada qual tem uma vida

                                      Fátima Pinheiro

Coroa de rei me veste, transito num carro acolchoado, mas minha vida não é a que parece, é vida de cão, acreditem.

Feliz me encontro de ter um amigo fiel, Jurandir, embora os outros pensem que é ele que me tem.  

Todas as manhãs, estendendo-se às tardes, passeamos por uma rua de destaque em nossa cidade. Não sou peça de museu, embora muitas pessoas me olhem com admiração, apenas desfilo em frente a um deles.

Eu, de olhar atento, aprecio o vai e vem dos carros sentindo o sol e a brisa me acarinhar.

A noite chega e o meu dono diz, Beethoven, hora de nos recolhermos. Um transeunte curioso avisa, Beethoven é nome de músico. Lato respondendo: Me deixa quieto, qualquer semelhança é mera coincidência.

                                                                     


C’est La Vie…

Salete Oliveira

Eu me coçava, as pulgas pulavam, rodava tentando alcançar o rabo, que agonia, as costelas ferindo o couro dos costados, um carro dobrou entrando na avenida, cantou pneus, dei um pulo ganindo, raspou na minha pata o pneu, me arrastando caí no gramado, ele dormia no seu papelão, coberto com andrajos, abriu um olho devagar, depois o outro, nos olhamos por um longo tempo, gani baixinho, as pulgas voltando a me picar, ele começou a se coçar, também, gritou: cachorro pulguento, ah não! Junto de mim só se for limpo e cheiroso! Sentou-se e me puxou, os carrapatos estalavam entre suas unhas, as pulgas corriam sobre o couro querendo fugir, assim raiou o sol, ele atravessou a rua e me deixou lá sobre o cobertor, voltou com sabão escova de metal e talco, ligou a mangueira após amarrar meu pescoço com camiseta velha e me segurar firme com a mão esquerda, banho gelado às seis da madrugada? Tremi e mijei ali sem tempo de levantar a pata, sem poste sem tronco, transido de frio, depois veio só alívio, a escova raspando meu couro, ele cortando os tufos embaraçados. Cortou também minhas unhas e passou um creme melado na pata dolorida, ardeu, mas aguentei, um cuidado desses fazia tempos que eu  não tinha… Era hora de sair a furar sacos de lixo das lanchonetes ao redor, já tinha a minha favorita ali perto, comia os guardanapos melados de molhos com restos de carne, queijos e pão, escapei e corri pela calçada, ele foi atrás, encontrei uma fatia de pizza, trinquei nos dentes e levei pra ele, arregalou os olhos e entendeu, olhou com olhar agradecido e comeu. Saímos a andar juntos, descemos a ponte para o outro lado do rio onde pessoas caminhavam toda manhã, sentados nos bancos velhos e babás, carrinhos de bebês cheirosos, espirrei perto deles, uma babá me enxotou, um velho disse, faça isso não, cachorros são muito mais sensíveis que nós… Encontrei amigos por lá, cachorros e também gatos, e ele me acompanhando, subi, à sua frente, pela outra ponte,  a tempo de ver estudantes em sua algazarra, entrando em faculdade e colégios, dessa vez caminhei por ruas secundárias, o guinchar dos pneus ainda feria meus ouvidos. Perto das doze horas voltamos àquela esquina, ele começou a fazer piruetas frente aos carros no sinal fechado. Depois, parou e colocou duas tigelas com comida e água fresca para mim e me deu um edredom, deitei, barriga cheia, sem coceiras,dormi a tarde inteira, acordei com ele coçando minha barriga, tá  pensando que é rei, acorde ?! Dia seguinte chegou com carrinho vermelho e coroa que algum folião perdera na volta de algum bloco de carnaval, colocou o edredom dentro do carrinho e a coroa na minha cabeça, enfeitou o carrinho  com fitas e bolas de Natal e tiras de panos coloridos e disse, pronto, essa é sua carruagem, seu reinado é essa esquina, te batizo com o nome de príncipe, guarde bem esse nome que é seu. Bem, os óculos escuros fui eu quem achei no supermercado em frente, alguém perdeu. Ele não quis, colocou em mim no final da tarde, nunca mais sofri com lusco-fusco até que ele sentou em cima, dia desses, mas ouvi uma professora simpática dizer que vai me arranjar outro! Vidinha mais ou menos para um cachorro vira-latas, não é, não? Estou treinando o ganido, quem sabe chego a cantar melhor que o Rossi, meu ídolo!?

A Crônica como uma Forma de Literatura – características do gênero

Fernando Gusmão

Introdução

As considerações que se seguem resultam —inclusive e principalmente— da leitura que fiz do capítulo VI, do livro “A criação literária – Prosa Volume II”, de Massaud Moisés. Este meu texto, é claro, não esgota o assunto. No que se segue, excertos da obra em referência estão colocados entre aspas duplas.

De início, muito me chamou a atenção o fato de existir uma discussão séria na crítica literária sobre o gênero crônica: seria a crônica, enquanto gênero literário, de uma importância secundária?

Essa opinião me pareceu ser esposada por Moisés. Na obra citada ele, entre outros, faz o seguinte registro: “o fato da crônica estar voltada para o cotidiano fugaz e endereçar-se ao público de jornal e revistas é, sem dúvida, uma limitação do gênero”. E mais, “fruto do improviso, da resposta imediata ao acontecimento que fere a rotina do escritor, e lhe suscita reminiscências caladas no fundo da memória, a crônica, por conseguinte, não pressupõe o estatuto de livro”. Outro ensaísta, Luiz Costa Lima, é mais peremptório quando diz que ‘a crônica é reconhecidamente um gênero menor’.

Por outro lado, vendo a crônica sob o viés do igualmente afamado literata Afrânio Coutinho notamos que este percebe o assunto de forma diferente quando afirma que é enganoso supor que o livro é que dá qualificação definitiva a qualquer escrito. Acrescenta: ‘e a crônica que não haja pago excessivo tributo à frivolidade ou não seja uma simples reportagem, estará sempre a salvo, como obra de pensamento ou de arte, embora não saia nunca das folhas de um periódico. Mais poéticas ou mais bem-humoradas, mais sensíveis ou mais debochadas, a vasta gama de possibilidades da crônica indica sua complexidade, seus limites imprecisos e as largas opções de desenvolvimento. Qualquer forma literária só será considerada gênero literário quando apresentar qualidade literária, libertando-se de sua condição circunstancial pelo estilo e pela individualidade do autor’.

História

Do ponto de vista histórico, o vocábulo crônica “designava, “no início da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo (Kronos), isto é, em sequência cronológica. Situada no espaço entre os anais e a história, limitava-se a registrar os eventos, sem aprofundar-lhes as causas ou tentar interpretá-los”. A partir da renascença, o termo continuou a ser utilizado no sentido histórico ao longo do século XVI como, por exemplo, nas Chronicles of England, Scotland, and Ireland (1577), de Raphael Holinshed, ou nas “chronicle plays”, peças de teatro calcadas em assuntos verídicos, como não poucas de Shakespeare. “Na acepção moderna a crônica entrou a ser empregada no século XIX quando, liberto de sua conotação histórica, o vocábulo passou a revestir sentido estritamente literário”.

A crônica está hoje, “afastada do sentido de história, do sentido de documentário”. Na maioria dos casos, é “uma prosa poemática, humor lírico, ou fantasia”. Interessante também notar que a crônica, tal qual se desenvolveu no Brasil, “parece não ter similar noutras literaturas, salvo por influência de nossos escritores, como no caso da moderna literatura portuguesa”.

Da maior importância é o fato de que a crônica” brasileira surgiu e se desenvolveu de forma, como que, simbiótica ao jornalismo nacional, notadamente do jornalismo carioca. Ou seja, a crônica brasileira nasceu para ser publicada em jornais e semanários. A crônica” oscila, assim, entre a reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, “e a recriação do cotidiano por meio da fantasia”.

O Cronista

“O cronista pretende ser não o repórter, mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano ao desentranhar do acontecido sua porção inerente de fantasia. Aliás, como procede todo autor de ficção mas, com a diferença de que “o cronista reage de imediato ao acontecimento, sem deixar que o tempo lhe filtre as impurezas ou lhe confira as dimensões de mito, horizonte ambicionado por todo ficcionista de lei”.

“Mais do que um poema, a crônica” perde quando lida em série; “reclama a degustação autônoma”, uma a uma, como se o imprevisto fizesse parte de sua natureza, e um imprevisto colhido na efemeridade do jornal, não na permanência do livro. É preciso, pois, que ocorra o encontro feliz entre o motivo da crônica” e algo da sensibilidade do cronista “à espera do chamado para vir a superfície, ocasião em que se estabelece a fortuita afinidade entre o acontecimento e o mundo íntimo do escritor”.

A crônica” somente ganhou “a consideração dos críticos e historiadores da literatura no instante em que, ultrapassando as barreiras do seu veículo original, o jornal, conheceu a forma de livro”.

Tipos de “crônicas”

Quando o caráter literário assume a primazia, a crônica” deriva para o conto ou a poesia, conforme se acentue o aspecto narrativo ou o contemplativo.

“Existem dois tipos fundamentais de crônica”: a “crônica”-poema e a “crônica”-conto”.

O cronista tece a sua malha de considerações em torno de um acontecimento “visando não a persuadir ou a fazer prosélitos, mas simplesmente a pensar em voz alta uma filosofia de vida apoiada no efêmero cotidiano”.

Não há dois cronistas iguais, nem duas “crônicas” idênticas, “seja porque a mutação permanente do cotidiano determina a mobilidade do texto, seja porque a crônica” registra a variação do emocional do escritor”. A clave emocional da crônica” vai, desde a trágica, até a cômica, passando pela humorística, pessimista, depressiva, otimista, entre outras.

Crônica e Poesia

Enquanto poesia, a crônica” explora a temática do “eu”. Ou seja, resulta do “eu” ser o assunto e o narrador a um só tempo, “precisamente como todo ato poético”.

A crônica” se insere no âmbito da prosa poética, visto que “denuncia a simbiose entre os dois gêneros”.  A crônica” é o espaço livre do cronista, “que o usa para escrever poemas em prosa, poesias, contar estórias, fantasias, fazer ensaios”.

Crônica” e Conto

A crônica”, quando voltada para o horizonte do conto, “prima pela ênfase posta no não-eu”, no acontecimento, que provocou a atenção do “eu”, do escritor”. Quando se aproxima do conto, sem dele se metamorfosear, mantendo intactas suas características de base, “a crônica corre o risco de constituir-se na mera literalização de acontecimentos verídicos”: estes, funcionando como o estopim, que deflagra o comentário, estabelecem uma aliança entre o “eu” e o “não-eu”. “Não dispensando o acontecimento, plano do “não eu”, nem o lirismo, plano do “eu”, a crônica pode ser conceituada como a poetização do cotidiano”.

A crônica” é, por índole e definição, “o relato de acontecimentos diários e, portanto, deles depender para erguer-se como tal”. Dado o caráter ambíguo da crônica”, podemos tirar a seguinte inferência: “o meio termo entre acontecimentos e lirismo” parece ser o lugar ideal da crônica.

Características da crônica”

A crônica” tem duas características específicas.

A primeira, pela sua relevância, é a subjetividade. “Na crônica, o foco narrativo situa-se, invariavelmente na primeira pessoa do singular. E, mesmo quando o “não-eu” avulta, por encerrar um acontecimento de monta, o “eu” está presente de forma direta ou na transmissão do acontecimento segundo sua visão pessoal”. É a sua visão das coisas que importa ao cronista e ao leitor; “a veracidade positiva dos acontecimentos cede lugar à veracidade emotiva com que os cronistas divisam o mundo”.

A segunda é a brevidade: “No geral, a crônica” é um texto curto, de meia coluna de jornal ou de página de revista”. Somente por extensão, como “em algumas crônicas de Eneida, o texto se estende por várias laudas”. Imposta pela circunstância de a crônica” ser publicada em jornal ou revista, a brevidade reflete, e, a um só tempo, determina suas as marcas”.

A crônica” seria um monodiálogo. Simultaneamente, monólogo e diálogo.

Linguagem

Para casar com o estilo marcado pela oralidade, nada mais próprio que os temas do cotidiano sejam tratados na “crônica com “um grão de análise, de filosofismo, o suficiente para temperar um prato de suave digestão”.

Requisitos essenciais da “crônica”

Ambiguidade, brevidade, subjetividade, diálogo, estilo entre oral e literário, temas do cotidiano, ausência de transcendência, efemeridade.

“A crônica, fugaz, como a existência do jornal e da revista, mal resiste ao livro: quando um escritor se decide a perpetuar os textos que espalhou no dia-a-dia jornalístico, inevitavelmente seleciona aqueles que sua autocrítica e a alheia lhe sugerem como os aptos a enfrentar o desafio do tempo”.

Expressão literária que faz do cotidiano o seu prato diário, que existe na razão direta da sucessão de acontecimentos, a crônica”, para Fernando Sabino, “busca o cotidiano de cada um, visando o circunstancial, o pitoresco”.

Conclusão

Os textos literários – romances, crônicas, contos, poesias – que se notabilizaram pela qualidade, tiveram seu valor ora pelo conteúdo, ora pelo estilo, e muitas vezes por ambos. O mesmo se dá com a crônica, na medida em que o autor —independentemente do veículo—souber sobrelevar a circunstância ou fazer brilhar um estilo próprio.   

A Flor Lilás e Outros Contos

Lourdes Rodrigues

Ricardo Braga, autor de A Flor Lilás  e Outros Contos, é biólogo, com mestrado e doutorado em Ecologia e Engenharia Hidráulica e Saneamento, mas sobretudo, escritor, bom escritor, tendo recebido, inclusive, muito merecidamente, o III Prêmio Conto CEPE Nacional de Literatura 2017 com esse livro.

Gabriel García Márquez  disse, certa vez, em uma entrevista, que considerava a arte de escrever contos mais difícil do que a de romances, porque o mais difícil para ele era começar e  num livro de contos são vários começos que ele teria de enfrentar.

Ricardo Braga não parece pensar assim. Se eu tivesse que eleger um dos contos desse livro, como o melhor deles, teria dificuldade.  São dez contos, dez histórias tecidas com muita maestria, onde personagens e espaços narrativos dialogam com muita beleza e propriedade.

O conto de abertura, Miudão, traz um personagem que vive numa pequena cidade do interior e  que igual a tantos outros meninos da idade dele gosta de falar muito e contar histórias.  Mas, Miúdo, assim chamado quando pequeno,  não se limitava a contar as histórias que ouvia, ele também as criava com uma convicção que lhes dava ares de verdade.  Essa capacidade de criar faz de Miúdo uma pessoa ouvida, porque ele tem algo a mais para dizer que extrapola os limites do fato acontecido, dando realce e poder às suas histórias. E cada vez mais pessoas o ouvem, levando-o ao rádio onde o seu alcance vai extrapolar as fronteiras de Mororó. Na intimidade dos lares, nos campos, nas ruas a sua voz era ouvida, seus conselhos eram escutados e Miudão, que já era um homem, ganha importância no  cotidiano daquelas pessoas. O desenrolar vai num crescente e culmina de forma poética e surpreendente, num misto de ingenuidade e de sabedoria  popular.

Também  Amaro, outro grande personagem que junto com a sua enxada e  pá carrega violenta crítica social,  dramática radiografia da miséria, do abandono, da solidão. Esse conto é um soco no estômago. A solidão de Amaro devido o abandono do pai, a desistência da vida pela mãe que não poupou sequer o filho que carregava no ventre, deixam-no tão só que nem podia chorar, porque o choro era uma forma de comunicação e ele já não teria com quem se comunicar. E ao cavar a sepultura da mãe e do recém-nascido no próprio quarto, é  como se ele preferisse a companhia dos mortos, a ficar sozinho. E segue a vida, tapando buraco na estrada com a sua enxada e pá, para os carros passarem, em troca de biscoito, de trocados, até um dia subir na boleia de um caminhão e partir dali para bater pernas no mundo, tornando-se caminhoneiro. Um dia Amaro volta aquela casa e encontra uma surpresa …

A construção dos personagens é magistral, assim como a atmosfera criada em torno desses personagens. Ora estão no corte da cana, dançando sob o som da zabumba, ou fugindo da polícia como Zé, em Palmares;  ou pisando em flores ao caminhar pela praia feito Antônio, flores que trazem lembranças de Maria, como em A Flor de Lilás; ou ainda, embriagado à porta de casa em busca da identidade perdida, como Gustavo, em Acorda, Gustavo; ou vivendo a angústia da demissão, às vésperas da aposentadoria, como André, Na Companhia das Sombras; ou impactado com a descoberta de não ser filho do seu pai, como em O Pai que não conheço.

Narrativas na terceira pessoa em que o narrador cede passagem, muitas vezes, ao personagem, dando mais intensidade ao relato. Personagens, em sua maioria,  homens, apenas dois personagens femininos  em Amores Perdidos, Eva, que ao perder Davi, por quem era apaixonada vive anos de luto e de rememorações, até que inicia viagem com destino a Manaus em busca do tempo perdido vivido ao lado do seu amado Davi; e, uma habilidosa cuidadora que devolve o gosto pela vida ao ancião que ela acompanha, em A Cuidadora .

Os contos vão criando um clima de ansiedade no leitor, fazendo-o acompanhar a trama passo a passo, até atingir o seu clímax, sempre, invariavelmente, surpreendente. Segundo o próprio Ricardo Braga:


Este livro teve uma peculiaridade, que talvez o próximo não tenha. Toda a escrita foi feita por associação de ideias e imagens, e o roteiro de cada história não foi definido antes, muito menos o seu final. Por isso os contos saíram de dentro de mim, como um vulcão sai da Terra, com calor e dor. Persegui os personagens para saber para onde iam e não tive a pretensão de orientá-los para um final feliz ou para o desastre. O magma do vulcão dilacera a floresta ou um povoado, mas a fertilidade da terra vulcânica refaz florestas e alimenta povoados inteiros.

Ricardo Braga é um escritor para ser lido, sempre, com muita atenção e grande prazer, pela qualidade literária dos seus contos, mesmo trazendo a dureza da vida.