Clarice renasce no mercado norte-americano (Publishnews)

30 de maio de 2012, quarta-feira

Clarice Lispector renasce no mercado norte-americano

O Estado de S. Paulo – 30/05/2012 – Por Ubiratan Brasil

É o momento Clarice Lispector – quinta-feira, as livrarias dos Estados Unidos começam a receber quatro livros (Perto do coração selvagem, Água viva, A paixão segundo G. H. e Um sopro de vida) da grande escritora traduzidos para o inglês, todos pela editora New Directions, que já lançou no ano passado A hora da estrela. O fato repercutiu na imprensa, com o jornal Los Angeles Times citando a frase de um antigo tradutor de Clarice (1920-1977), Gregory Rabassa, que comparava a autora brasileira a Marlene Dietrich (no traço físico) e a Virginia Woolf (no traço estilístico). Os quatro volumes chegam com um delicado projeto gráfico: juntas, as capas reproduzem uma foto de Clarice jovem. E, em um canto, são reproduzidos elogios de personalidades literárias.

Pacto

 PACTO

César Garcia

Éramos doze quando firmamos o pacto. Antigas amizades forjadas em época de crenças políticas. Prisões, demissões, separações, viagens e a volta para reconstruir. Conseguimos. Filhos criados, netos, aposentadoria. Cada vez mais frequentes as conversas sobre a morte, motivadas pelos enterros de parentes e  amigos. Natural. Quando tínhamos sete anos, o assunto era a primeira comunhão. Agora,  era sobre a indesejável. Como retardá-la e como evitar que fosse precedida de martírio, eis a questão. Quanto à primeira parte – retardá-la – fizemos o que todo mundo faz: cuidado com as coronárias, com a próstata, com as mamas, com o útero, nada de cigarro, gordura animal, açúcar, exposição ao Sol. Sim às caminhadas, às fibras, aos vegetais. Uma biopsia aqui, outra ali, tirou isso, tirou aquilo – uma conversa animada, no aniversário de sessenta anos do mais jovem. O mais velho pediu a palavra:

–          Agora, falando sério: proponho completar nosso pacto. Mais dia, menos dia, vai o primeiro, ou a primeira – sem sofrimento, conforme combinamos. O objetivo do meu plano é permitir que de alguma forma continuemos juntos, mesmo mortos.

–          Se é serio, pode falar – disse eu.

–          É sério. O primeiro que bater as botas será cremado. Suas cinzas serão diluídas numa grande sopa a ser consumida pelos onze restantes. E assim por diante. É isto. Alguma pergunta?

–          Quem comerá as cinzas do último?- Insisti.

–          Para esta pergunta, ainda não tenho resposta. Aliás, é problema dele. O que fará não importa a nenhum de nós. Só queremos estar juntos enquanto pelo menos um estiver vivo. Depois, não interessa. Mesmo assim, se ele for enterrado em um cemitério, alguns átomos de cada um de nós estarão ali na sua cova por alguns milhares de anos, talvez.

–          E a sopa, prestará? – perguntou Cuca, que gostava de receitas.

–          Acredito que nas primeiras, a diluição será perfeita. Gosto normal. Nas últimas, talvez seja necessário dividir o tal tempero em três ou quatro jantares, ou mais, na última. Todos topam?

Ninguém disse não. Estava ampliado nosso acordo.

Em alguns casos, foi difícil cumprir a segunda parte – evitar o martírio. A escolha do executor era feita por sorteio e nem sempre recaiu sobre quem tinha condições de pôr em prática as medidas necessárias. Então, um dos dois médicos do grupo ajudava. Overdose no soro, torneira do oxigênio fechada, éter sulfúrico…, são os que eu me lembro. Tudo certo. Nenhum arrependimento ou reclamação de família. Outros tiveram o sofrimento evitado pela própria Natureza, com infartos fulminantes. Nenhum sofreu os horrores de uma doença prolongada.

Quando o primeiro partiu, não houve problema. Havia deixado por escrito seu desejo de ter o cadáver cremado. Os poucos parentes que ainda tinha não se opuseram à sopa; apenas não quiseram participar nem teriam sido aceitos. Entregaram as cinzas com cara de quem diz façam bom proveito. Cuca, Geni e Lola, encarregadas da cozinha, decidiram fazer  sopa de cabeça de peixe. Gosto ativo e tempero reforçado para evitar qualquer comentário desagradável. Cada um lembrou passagens da vida em que o morto tinha mostrado bons sentimentos, ou um talento especial. Cantamos músicas que ele apreciava e revimos fotos em que aparecia. Foi mais uma noite agradável no nosso Abaçá. Assim chamávamos o espaço comum do Condomínio, onde tudo era comemorado. Era uma área coberta, em frente à piscina, de onde podíamos avistar bairros distantes. À noite, havia uma brisa perfumada pelo jasmim em volta, e viam-se as luzes de edifícios de apartamentos. Em noites de Lua, costumávamos fazer reuniões com música, poesia e comentários de livros. Sentimos falta do companheiro. Era sempre lembrado quando alguém cantava o samba em que o Nelson Cavaquinho diz “feliz aquele que sabe sofrer” porque um dia ele chamou atenção para este verso, dizendo: – É uma contradição sábia e poética.

Seria enfadonho relembrar sopa por sopa. Basta, creio eu, confirmar que o pacto foi cumprido. Nenhum sofreu e todos foram cremados e consumidos. Menos eu, obviamente. Este é o problema com o qual agora me defronto. Quando, há muito tempo, o assunto foi discutido, não me preocupei, pois achava que não seria o último a morrer. Enganei-me. Já se foram todos e, assim, fui obrigado a dividir a última cinza em seis sopas para torná-las tragáveis. Agora carrego meus onze amigos com tudo que tinham de bom e de ruim. Às vezes não me reconheço, preocupando-me demais com dinheiro, faltando a compromissos, falando mal da empregada. Há dias em que não me lembro de nada, perco o humor facilmente. Em outros, quero que os vizinhos me obedeçam, ou me comporto de modo estranho, comprando bobagens desnecessárias. Sempre detestei organização. Agora, de repente, ao despertar, arrumo a cama, tomo banho, estendo a toalha, guardo os comprovantes de pagamentos em ordem cronológica, ponho as cédulas na carteira de acordo com o valor, nunca fiz isto. Ultimamente, tenho chorado no cinema e peguei uma mania de ouvir o mesmo disco dias e dias. Jamais gostei de esoterismos – hoje acordei com desejo de consultar uma cartomante. Não sei mais quem sou. Não confio mais em mim, pois não sei como vou comportar-me amanhã. Se alguém me pedir esmola, direi não tenho ou darei dez reais? Estarei disposto a trabalhar o dia inteiro ou vou preferir ler romance e dormir?

Não tenho mais amigos. Ando acompanhado de um cão que, por sinal, anda me estranhando. A aproximação de pessoas mais jovens é impossível. Não entendo o que dizem, o que cantam, o que pensam. Pensam? Vejo-os diariamente, dão-me bom-dia, são meus vizinhos, mas estão muito distante. Se alguma doença cruel me agarrar, quem vai abreviar meu sofrimento? Não faltará quem queira prolongar minha vida – eu diria meu calvário. Terei que me arranjar sozinho. O pacto, tão bom para os outros, não me servirá. Seria, quem sabe, mais prudente apressar a visita indesejável e dizer: pode vir, estou pronto.

Ainda me lembro perfeitamente: duas caixas de Gardenal no liquidificador com leite e uma fruta; outro me disse que aplicou dez mililitros de éter sulfúrico na veia de um Dobermann. Sei que há meios melhores, mas ninguém vai facilitar. Fingirei dores intensas até que me prescrevam alguma codeína em gotas. Seja lá o que for, porei tudo em meio litro de soro preso a um prego na parede. Mangueira, baterflai, garrote e agulha, isso é fácil. Veias superficiais, saltadas, no braço esquerdo, fácil, fácil. Só falta querer.

Vou esperar a chegada do querer escrevendo algumas linhas sobre o jardim da minha casa. Lembro-me das primeiras mudas. Com esterco de curral e muita água, cresceram em pouco tempo e cobriram-se de flores. Uma delas espalhou sementes por toda parte, queria invadir tudo. Tive que controlar sua fúria reprodutiva para garantir espaço para as outras. Das que não tinham sementes, brotavam filhotes ao redor, formando touceiras. Às vezes, cresciam demais e me obrigavam a arrancar os pés mais fracos. De uma me recordo bem que pegava facilmente; qualquer pequeno galho tornava-se um novo pé. Dava trabalho. Se eu não cuidasse, em duas semanas os canteiros se enchiam de plantas espontâneas, mato, ervas daninhas, como se diz. Nem todas gostavam de sol intenso. Eram viçosas na sombra. Já outras, quanto mais luz, mais flores ofereciam. Era uma festa para as abelhas, borboletas e beija-flores. Um dos meus amigos via função em tudo. Gostava de lembrar que os insetos são muito importantes para a fecundação das flores. Eu lhe disse: boa parte dessas plantas têm flores estéreis; mesmo assim, oferecem néctar e pólen que atraem esses visitantes. Ele acrescentou, pois é: elas têm a função de alimentá-los. Não quis prolongar a querela, mas pensei nas raízes daquelas plantas. Permitem a extração de água e minerais, indispensáveis à vida. Entre elas, minhocas, pequenos insetos, bactérias, outra festa.

Bom, preciso fazer algumas compras. Que era mesmo que eu ia comprar? Soro, baterflai, garoteeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee

O adeus a Carlos Fuentes

Carlos Fuentes, escritor mexicano, morreu na última terça-feira – 15 de maio – de uma hemorragia digestiva, em um hospital da Cidade do México. Ele estava com 83 anos de idade, em plena atividade política e literária. Escrevia um novo livro.

Sobre a morte de Carlos Fuentes, seu amigo e companheiro do fazer literário Mario Vargas Llosa disse:”Fomos amigos todo esse tempo sem que nada, nunca, empobrecesse essa amizade. Deixa uma obra enorme que é um testemunho eloquente de todos os grandes problemas políticos e realidades culturais de nosso tempo”,

Na Oficina tivemos a oportunidade de ler uma obra desse autor: Aura, considerada a melhor prosa lírica dele. O livro não só nos encantou pelo surreal da história contada, como nos permitiu boas discussões sobre a narração na segunda pessoa e o processo de duplicação utilizados por ele. O interesse de todos para desvendamento do sujeito da fala, de quem era aquela voz que se escondia atrás daquele tu, levando a inúmeras possibilidades interpretativas, esquentou as tardes das quartas-feiras durante toda a leitura do livro e culminou na elaboração de um texto, que já foi publicado nesse blog em julho de 2011, mas estamos trazendo de volta, hoje, para a nossa homenagem particular ao grande escritor mexicano Carlos Fuentes.

AURA, DUPLO OU SEGUNDA PESSOA?

Aura, romance de Carlos Fuentes, escritor mexicano, publicado em1962. A tradução usada nesta resenha é de Olga Savary, publicação L&PM, Porto Alegre, 2001.

O ESCRITOR – Carlos Fuentes nasceu em 1928, no Panamá, de pais mexicanos. Filho de diplomata, na infância morou com a família nos Estados Unidos, Chile, Equador, Uruguai, Argentina e Brasil. Apesar do rigor de sua mãe que não permitia que se falasse outra língua em casa além do espanhol, a educação de Fuentes em Washington tornou-o bilíngüe ainda criança. Do pai, ele herdou a paixão pelos livros, verdadeira compulsividade pelas leituras, pelo cinema, artes em geral, e o interesse pelo conhecimento aprofundado da história do México, que ele passou a ver como uma história de amargas derrotas se comparada com a história dos EUA. A educação privilegiada imprimiu um cosmopolitismo precoce à sua personalidade, tanto que, aos 16 anos, ao retornar ao México para iniciar os estudos universitários, assumiu postura de rebelião, decidindo tornar-se escritor e abandonar os estudos. Confrontado com a necessidade da formalização acadêmica exigida pelo seu pai e aconselhada pelo seu amigo escritor Alfonso Reys com o argumento de que o México era un país muy formal…. Si tú no tienes .un título de abogado, si no eres el licenciado Fuentes, entonces es como una taza sin asa. No saben por donde agarrarte, tienes que tener un título, luego haz lo que quiera…  Fuentes tornou-se advogado e depois cursou Economia em Geneva, na Suiça, onde aprendeu a dominar o francês, língua inicialmente conhecida através das leituras de seu escritor preferido: Balzac. A rebeldia, todavia, não foi arrefecida, tornando-se marxista e filiando-se ao partido comunista no período universitário. De 1950 a 1952 foi membro da delegação mexicana da Organização Internacional do Trabalho, em Genebra, voltando ao México em 1954 quando se tornou assistente do Ministro de Relações Exteriores e depois Chefe do Departamento de Relações Culturais. Em 1955 fundou junto com Octavio Paz e Emmanuel Carballo, a Revista Mexicana de Literatura. Ainda trabalhou como assistente de diretor da Universidade Autônoma do México, abandonando tudo em 1959 para se dedicar à carreira de escritor.. Nos anos sessenta ele viveu na Europa, entretanto, o período em que esteve no México, marcou definitivamente a sua obra e a sua ação política expressando sentimento de compromisso com o país: Onde quer que eu fosse, o espanhol seria a língua da minha escrita e a América Latina a cultura da minha língua. Foi embaixador na França (1972/76) e chefe da Delegação na reunião do grupo dos 19 países em desenvolvimento na Conferência sobre Cooperação Econômica Internacional. Na vida acadêmica reúne títulos de catedrático das Universidades de Harvard (USA) e Cambridge (Inglaterra).

AS OBRAS – O escritor Carlos Fuentes marcou a sua vida literária pela autoria de extensa obra narrativa composta por contos, romances, ensaios, artigos, roteiros cinematográficos, além das reflexões sobre o fazer literário e a compreensão das civilizações pré-colombianas. A carreira literária foi iniciada antes mesmo do término dos estudos universitários com a publicação do livro de contos Los días enmascarados (1954). A influência de Balzac e de Cervantes em sua obra é admitida pelo próprio autor. Balzac, ele divide em duas fases, confessando-se influenciado pela fase mais realista, a que retrata os costumes, a sociedade, o cotidiano, composta pelas obras organizadas sob o título de Comédia Humana, chamada também de Waterloo ou napoleônica. De Cervantes, ele se diz herdeiro dos procedimentos literários presentesem Dom Quixote.

O sucesso das suas primeiras obras, entre elas Aura e A morte de Artemio projetou-o como uma das principais figuras literárias surgidas do boom latino-americano. Engajado politicamente chegou a afirmar que o escritor não pode ser alheio à luta pela transformação política que, em última instância, pressupõe também a transformação cultural. Carlos Fuentes organizou a sua obra literária segundo um esquema intitulado  La edad del tiempo. A idéia de rotular e encontrar algo que concatenasse toda a sua obra, segundo ele, veio de Balzac que reuniu na Comédia humana mais de 90 romances e contos que retratam a realidade da vida burguesa na França do século XIX. Como a temática do tempo sempre havia sido o eixo da sua obra ele denominou o seu esquema geral de La edade del Tiempo, desdobrando-o conforme  exposto a seguir:

                I.El mal del tiempo: Aura (1962), Cumpleaños (1969) e Una familia lejana (1980), Constancia y otras novelas para Vírgenes (1990), Instinto de Inez (2001), La hueste inquieta (em processo).

II.Tiempo de Fundaciones: Terra Nostra (1975), El naranjo o los círculos del tiempo (1992)

III.El tiempo Romántico: La Campaña (1990), La novia muerta (en proceso ) y El baile del Centenario (en proceso)

IV.El tiempo revolucionario: Gringo Viejo (1985) e Emiliano en Chimaneca (en proceso)

V.La Región más Transparente (1958)

VI.  La Muerte de Artemio Cruz (1962)

VII.  Los Años con Laura Díaz (1999)

VIII.  Dos Educaciones:  Las Buenas Conciencias (1959) e Zona Sagrada (1967)

IX. Los Días Enmascarados: Los Días Enmascarados (1954), Cantar de Ciegos  (1964), Agua Quemada (1981) e La frontera de cristal (1995)

X.El tiempo político: La Cabeza de la Hidra (1978),  La  silla del águila (2003), Los 68 (2005), El caminos de Texas (en proceso)

XI. Cambio de Piel (1967)

XII. Cristóbal Nonato (1987)

XIII.  Crónicas de nuestro tiempo: Diana o la cazadora solitaria (1994),  Aquiles, o el guerrillero y el asesino  (en proceso), Prometeo, o el precio de la libertad (en proceso).

XIV.  Ensayos en el tiempo: La nueva novela hispanoamericana (1969),Casa con dos puertas (1970), Tiempo mexicano (1995), Valente mundo nuevo  (1990), El espejo enterrado (1992), Geografia de la novela  (1993), Retratos en el tiempo (con Carlos Lemos), Los cinco soles de México (2000), En esto creo (2002).

XV.  Obras de teatro: Todos los gatos son pardos (1970), El tuerto es rey (1970), Los reinos originarios (1971), Orquidea a la luz de la luna (1982), Ceremonias del alba (1990). Guiones: Las dos Elenas (1964), El gallo  de  oro  (em colaboracão  com Gabriel Garcia Márquez ey Roberto Gabaldón) (1964), Un alma pura (baseado num conto de Cantar de ciegos) (1964), Los caimanes (em colaboracão con Juan ibáñez) (1965), Pedro Páramo (en colobaración com Manuel Barbachano Ponce  e Carlos Velo) (1970), Las  cautivas (1971), ¿No oyes ladrar los perros? (1974). Guión documental: El espejo enterrado (sobre o descobrimento e independência da América Latina) (1971).

Entre os títulos mais importantes da sua obra literária destacam-se, além dos já mencionados, La región más transparente” (1959), “Zona sagrada” (1967), “Cambio de piel” (1967), Terra nostra (1975), Cristóbal Nonato (1987), Los años con Laura Díaz, Agua quemada (1981); Gringo viejo (1985) e mais recente La silla del águila. E, ainda, peças teatrais de grande originalidade tais como  El tuerto es rey”, 1971, e “Orquídeas a la luz de la luna”, 1982.

ANÁLISE DE AURA –  Aura foi publicada em 1962, juntamente com La muerte de Artemio Cruz, e é considerada por Bella Josef ,que escreveu Carlos Fuentes: História e Identidade, como a melhor prosa lírica do autor. E o próprio autor mexicano diversas vezes manifestou seu especial carinho por essa novela.

Importante análise de Aura é encontrada na dissertação de mestrado de Camila Chaves Cardoso intitulada As imagens duplas e a narração em segunda pessoa em Aura.[1] Nesta resenha se tentará extrair resumo dos principais aspectos ali enfocados, especialmente no que se referem à intertextualidade, às possibilidades de leitura, ao duplo, ao narrador na segunda pessoa e ao papel do leitor.

A inserção de Aura entre as três primeiras narrativas do ciclo El mal del tiempo, as outras duas são Cumpleãnos (1967) e Uma família lejana  (1980) foi do próprio autor, e elas guardam em comum, além da questão devastadora do tempo, a estrutura quixotesca, vez que os fatos ali representados, a história ali contada, são menos relevante no que concerne à transfiguração da realidade, e mais privilegiada no seu complexo e intricado jogo ficcional que dispensam o conhecimento dos fatos históricos e sociais, buscando na própria organização da narrativa as respostas para seus muitos mistérios; nesse sentido, seriam ficções que se confessam ficções.

Camila Cardoso refere-se a uma análise dos romances de Fuentes, realizada por Carmem Perilli, à luz das tradições, a napoleônica e a quixotesca, que ressalta serem as duas tradições apoiadas na importância da representação, embora obedeçam a diferentes concepções das relações entre a linguagem e a realidade. Enquanto na primeira fazem parte tanto os romances do realismo social como as novelas psicológicas; no segundo o romance perde a estrutura tradicional –princípio, meio e fim – e os personagens é que organizam o mundo e dão sentido às coisas. A tradição quixotesca, fundada na Espanha por Cervantes ao escrever Dom Quixote, revolucionou os modos de ler, diz ela, fundando o romance moderno, assim como James Joyce viria mais tarde mudar o modo de escrita com a criação de Ulisses.

No que se refere às fontes de inspiração do autor para a realização de Aura,  Camila Cardoso traz algumas contribuições, entre elas, as apontadas pelo próprio Carlos Fuentes no ensaio intitulado Como escrevi um dos meus livros, apresentando fontes de ordem pessoal e de cunho literário. No campo pessoal ele reporta-se a um reencontro com uma antiga namorada e a uma ópera com a cantora lírica Maria Callas, diferentes situações que o fizeram refletir sobre o efeito devastador do tempo. No primeiro caso, devido ao impacto sofrido com a observação das mudanças físicas e de personalidade dela, e dele, porque também se reconhecera mudado após todos os anos que não se viram. E no segundo, ao assistir uma ópera com Callas em que ela torna idênticas, num só personagem, condições opostas como a juventude e a velhice, a morte e a vida, ficou completamente extasiado a refletir sobre o que vira. Sob o ponto de vista literário, muitos foram os pais poéticos apresentados por ele. Durante a escrita de Aura tivera oportunidade de conviver com  Luiz Buñuel de quem recebeu duas narrativas japonesas dos séculos XVII e XVIII nas quais casais por longo tempo separados, a despeito da velhice ou da morte reencontram-se, tamanha a força do desejo que os move. Daí o arremate que ele deu ao falar de Aura:  es una novela sobre la vida de la muerte. …Es mi novela emblemática del tiempo y del deseo; no sólo de la posibilidad de convocar el deseo, obtener el objeto del deseo y descubrir que no hay deseo inocente. Não foi por acaso que ele fez a escolha da peculiar voz narrativa, a segunda pessoa do singular, o tu que estrutura o desejo.Além de Buñuel, outras fontes bem específicas, tais como Henry James em Os papéis de Aspern (1909), Charles Dickens em  Grandes Esperanças (1861) e Alexandre Pushkin. em A Dama de Espadas  (1834). Os três romancistas usaram nas obras citadas triângulo semelhante ao que ele veio a criar depois, representados por uma senhora de idade avançada, uma bela moça e um jovem rapaz, sendo que a velha senhora em todos elas é um tipo de feiticeira, e segundo o autor, de alguma forma originadas na feiticeira medieval do francês Jules Michelet, único texto não ficcional que dialoga com .Aura. Tão escancarada assim a influência que na epigrafe contém citação daquele autor: O homem caça e luta. A mulher intriga e sonha; é a mãe da fantasia, dos deuses. Possui a segunda visão, as asas que lhe permitem voar para o infinito do desejo e da imaginação… Os deuses são como os homens: nascem e morrem sobre o peito de uma mulher… Outros empréstimos feitos à obra de Jules Michelet foram alguns nomes de personagens: Llorente, autor da Inquisiton dÉspagne, relevante fonte documental da narrativa de Jules Michelet: nome do general marido de Consuelo, em Aura; Saga, antigo nome dado às curandeiras: a coelha que vivia na cama de Consuelo era chamada por ela de Saga; Aura, brisa que acompanha Satã ou que penetra o corpo das mulheres possuídas pelo demônio: a jovem que representará Consuelo quando jovem recebeu esse nome; Felipe, nome proferido durante o sabá, missa negra das feiticeiras; o historiador contratado para fazer as memórias do general; e Consuelo, referência à família de plantas e ervas usadas pelas feiticeiras para os mais diversos fins ou a um papel específico de consolar da mulher no sociedade medieval, ou alusão à mulher que ingenuamente teria acreditado ser possível reaproximar Deus e o Diabo: nome da velha que contratou o historiador. A cor verde nas cortinas do casarão, nos olhos e nas roupas de Aura pode guardar, ainda, alguma relação com a da cor do Príncipe do mundo, que Michelet informa também ser verde. Outra relação possível, a dos rins, única dieta no casarão, com antigo encantamento em que a dama buscava reacender o amor no coração de seu amante: “Sobre seus rins, a feiticeira instala uma base, um forninho, e faz cozer ali o bolo…” E mais outros, como o sacrifício do cabrito, que poderia remeter ao sacrifício de um bode no dia de São João; e a partenogênese que aludiria à capacidade das feiticeiras de conceber sem a participação masculina, e explicaria, segundo Camila Cardoso, a incrível semelhança entre Aura e Consuelo e, principalmente, o ritual realizado pelas viúvas, que traria seus falecidos maridos de volta. Tal ritual inclui colocar seus talheres à mesa, acariciar uma roupa do falecido, vestir-se de noiva, beber vinho e deitar-se, a sua espera, procedimentos a que Consuelo parece ter obedecido.

Todos esses diálogos com a obra de Jules Michelet, e outras intertextualidades com os romances citados de Henry James, Charles Dickens e Alexandre Pushkin, segundo a autora,  não retira de Aura a sua originalidade, característica muito particular, quixotesca, própria do realismo fantástico enquanto aquelas obras se organizam segundo convenções literárias tradicionais, do realismo objetivo, nos quais as palavras representam as coisas, em que realidade da ficção é a realidade do cotidiano. Características quase ausentes nos textos com os quais dialoga, dão à obra de Carlos Fuentes autenticidade, tais como a atmosfera obscura resultante da carga simbólica, das elipses, da escuridão, do entrecruzamento do sonho com a realidade, com a magia, o encantamento. A adoção da voz narrativa na segunda pessoa muito contribuiu para criar o clima ambíguo, a alternância entre passado e futuro, também, técnicas muito particulares encontradas em Aura que fazem dela uma obra particular, criativa.

A narração em segunda pessoa e o processo de duplicação para Camila Cardoso estimulam a pesquisa para desvendamento de quem é a voz que fala, quem se esconde atrás daquele tu, levando a inúmeras possibilidades interpretativas. São algumas interpretações apontadas por ela:

a) Santiago Rojas, em Modalidad Narrativa en  Aura: Realidad y enajenación(1980),  considera Aura uma bela história de amor, sublime e macabra, em que o historiador Felipe é um falso protagonista, Consuelo, uma bruxa que enfeitiça, a mente enlouquecida que, oculta e dissimulada atrás da voz narrativa em segunda pessoa, “se dirije a la consciencia o al subconsciente del joven traductor”,e é com essa força hipnótica que comanda suas ações. Aura e Felipe seriam criações imaginárias, fantoches manipulados por Consuelo, a primeira para perpetuar a ilusão da beleza e da juventude e o outro, o sonho de amor e paixão.

b) Eduardo Thomas Dublé, em Hechicerías del discurso narrativo latinoamericano: Aura de Carlos Fuentes (1998), e Maria Aparecida Silva, em El simbolismo erótico en Aura (2005), enveredam por questões histórico-sociais. Dublé relaciona a segunda pessoa da voz narrativa com processos de feitiçaria arquitetados por Consuelo, com os objetivos macabros dela. a bruxa. Para que o historiador se identifique com o general ela faz com que ele leia a correspondência e se identifique com o general até o nível da fusão de ambos. Esses fatos remetem, segundo ele, a ambigüidade da relação dos latino-americanos com o continente europeu, vez que os latinos americanos se defrontam com a necessidade de fundar a sua própria identidade ao mesmo tempo em que se identificam com o velho mundo, assim, Consuelo, a bruxa, simbolizaria, una consciencia en conflicto consigo misma... Em Silva, a vertente apontada é a do mágico religioso. Ela argumenta que muitos dos povos antigos usavam a segunda pessoa para referir-se às forças sagradas. Assim, Felipe era vítima do feitiço da  bruxa habilmente planejado.

Camila Cardoso, entretanto, diz que a maioria dos estudiosos da obra tem ponto de vista diferente, considerando que a narração na segunda pessoa da obra de Fuentes é uma forma de  o sujeito do enunciado se confundir com o sujeito da enunciação, ou seja, por trás do “tu” descortina-se o “eu” do próprio Felipe Montero. Para a mesma concepção, existem variações:

  • Charleen Merced, La percepción del tiempo y el espacio en Aura, diz que Aura está escrita en segunda persona,  lo que sugiere un estado de mente alterado del personaje principal, Felipe, pues, suponemos que se ve fuera del cuerpo.
  • Glória Durán, La bruja de Carlos Fuentes,, acredita que é possível explicar  o que ela chamou de truque estilístico de Aura, a partir  da teoria da reencarnação: o tu seria o próprio Felipe, que, sendo a reencarnação de Llorente, relata em um futuro “inevitável” fatos que já teriam lhe ocorrido. 
  • Emilio Bejel e Elizabethann Beaudin, em Aura de Carlos Fuentes: la liberación de los espacios simultâneos, trazem similar interpretação, mas a partir de uma reflexão mais ampla. Consideram que Carlos Fuentes adotou essa voz narrativa para subverter a tradição “realista” em literatura, violando tanto a relação pronominal eu-tu como as relações espaço-tempo, desfazendo a unidade do sujeito e a cronologia linear – ambos fundamentos do “efecto de realidad del signo aceptado proposto pelo “realismo burguês. Para eles, Felipe Montero,  numa espécie de auto-enfoque, é ao mesmo tempo personagem e narrador: Felipe habla a sí mismo sobre sí mismo, se convierte en sujeto de la enunciación y a la vez que es sujeto del enunciado.. O tu permitiria a simultaneidade de pessoas que se duplicam, Felipe é ele próprio e o general, o futuro inevitável de Felipe, como o passado já sabido do general e, por fim, o “eu”, emissor da mensagem.

Assim, a análise da segunda pessoa leva a duas linhas de enfoques na crítica de Aura:  no primeiro enfoque um tipo feitiço: o sujeito enunciativo seria a própria Consuelo e a novela seria, ela mesma, um ato de feitiçaria. Estão nessa linha de pensamento Santiago Rojas, Dublé e  Silva. No segundo enfoque, o sujeito enunciativo coincide com o protagonista da trama, com Felipe, e o romance é na realidade uma extensa auto-análise dele, um desdobramento de sua consciência. Destacam-se as pesquisas de Charleen Merced, Glória Durán e de Emilio Bejel e Elizabethann Beaudin.

Outra análise, no entanto, é possível, diz Camila Cardoso, em que o narrador não assume identidade, Consuelo ou Felipe, é o “eu” camuflado na segunda pessoa – nesse sentido  ele não deixaria de ser o “senhor” da trama: “manifestación textual del poder creador y profético del lenguaje narrativo”. A  narração em segunda pessoa funcionaria como uma espécie de desvelamento dos processos ficcionais da criação literária uma vez que a novela denunciaria sua própria construção textual.  Esse narrador revela-se enquanto organizador do relato, uma espécie de maestro que rege as mínimas ações que estão sendo construídas pelos personagens.

Além das três possibilidades apontadas para leitura de Aura, a autora chama a atenção para as flexões verbais na segunda pessoa que apontam, também, um outro sujeito, aquele para quem se escreve: o leitor. A primeira palavra, ou ordem, do narrador é “lees”, diz ela, uma frase que pode ser vista como uma ordem dirigida ao leitor que, assim,  assume desde o início da trama um papel de duplo do protagonista. Dessa maneira, o leitor de Aura desempenha um papel mais ativo que o de costume, ele parece poder viver, participar da aventura do outro, “estar na pele” do outro.  O personagem Felipe também passaria por um processo similar ao ler as histórias do general, parece transformar-se no próprio herói de sua leitura, como ele, apaixona-se por Aura que, também, duplica-seem Consuelo. A narração em segunda pessoa parece deflagrar um efeito em cadeia na obra: a duplicação.

As diversas possibilidades de leituras que Aura enseja só atestam a importância estética da obra, diz Camila Cardoso ao fechar o capítulo.

Para buscar um referencial teórico que explique como se organiza esses dois processos de duplicação, recorre-se ao artigo de Freud, O estranho, sobre a questão do duplo, que ele tomou como base o conto de um grande escritor fantástico do século XIX, E.T.A Hoffmann, O Homem de Areia. Freud enfoca o sentimento de “estranhamento” para compreender sua estrutura e suas causas. Ele tenta explorar a etimologia da palavra unheimlich, o estranho, o estrangeiro, chegando à seguinte definição: “categoria do assustador que remete ao que é conhecido de velho, e há muito familiar”. Assim, verifica-se relação estreita entre a sensação de estranhamento e a de familiaridade. Freud dirige a sua atenção para uma situação específica que causa estranhamento: as “dúvidas quanto a saber se um ser aparentemente animado está realmente vivo, ou do modo inverso, se um objeto sem vida não pode ser na verdade animado”. Esse tipo de estranhamento estava presente nas histórias fantásticas de Hoffmann, porque ele deixava o leitor sempre sem saber se uma determinada figura da história seria humana ou um autômato. Em “O homem de areia”, Freud diz que a atmosfera de estranheza do conto estaria mais relacionada com o medo de Natanael perder os olhos, medo que na clínica psicanalista remeteria à castração,  do que mesmo com a dúvida se Olímpia seria ou não dotada de anima, que seria um tipo de incerteza intelectual.  Entretanto, é do estranhamento causado pela dúvida de que se estaria realmente vivo que Freud passa a analisar o tema do duplo;

Assim, temos personagens que devem ser considerados idênticos porque aparecem semelhantes,  iguais. Essa relação é acentuada por processos mentais que saltam de um para o outro desses personagens -pelo que chamaríamos de telepatia -, de modo  que  um  possui conhecimento, sentimento e experiência em comum com o outro. Ou é marcada pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui seu  eu  (self) por um estranho. Em outras palavras, há o retorno constante a mesma coisa – a repetição  dos  mesmos  aspetos,  ou características, ou vicissitudes, dos mesmos  crimes,  ou  até  dos mesmos nomes, através das diversas gerações que se sucedem. (Freud, 1987, p. 252)

De volta a Aura, Camila Cardoso vê efeitos similares à sistemática do duplo de Hoffmann. Um deles, diz ela, refere-se à “incerteza intelectual”, por parte do leitor, que se pergunta se a personagem Aura é dotada de anima. Por outro lado, há um estranhamento, tanto no leitor como no protagonista, provocado pelos dois processos de duplicação. A primeira duplicação ocorre com as personagens femininas Consuelo e Aura que desde o início parecem partilhar os mesmos conhecimentos, comunicando-se sem palavras, e no final, ´sugerindo dividir o mesmo corpo ou ser o mesmo sujeito.O leitor, ao iniciar a leitura, identifica em separado as duas personagens, e no final, percebe a junção. No outro processo, na segunda acepção de Freud, ocorre o inverso, porque o “eu” de Felipe se identifica com o “eu” do general Llorente. No início ele parece hesitar acerca de sua identidade e no final parece substituí-la por um “eu” estranho, no caso o “eu” do general. Segundo Camila, há um sujeito que, de alguma maneira, é substituído por outro, graças a um lento processo de identificação. Nos dois processos de duplicação existem as semelhanças físicas como procedimento, e a estratégia marcada pelo uso do espelho, das fotos. O processo de duplicação em Aura/Consuelo parece obedecer a um movimento de dentro para fora, uma vez que Consuelo, desdobrando-se em Aura, aponta a seguir para a possibilidade de que a jovem retorne, pressupondo, desse modo, um novo desdobramento. Em Felipe/Llorente, o movimento de duplicação dá-se no sentido inverso, de fora para dentro: é o “eu” de Llorente que parece invadi-lo, provocando uma hesitação e um questionamento sobre quem é o seu “eu”; e apontando para uma possível substituição completa dele pelo “eu” do falecido general. Além disso, a dimensão da memória em Felipe traz consigo a sensação de familiaridade que, para Freud, sempre acompanha a sensação de estranhamento. Quando chegamos ao final da narrativa, tem-se apenas uma alusão ao retorno de Aura, assim como da substituição de Felipe por Llorente, o que levou Camila Cardoso dizer que Rosalba Campra, em seu artigo Fantástico y sintaxis narrativa, considera Aura inserida num conjunto de obras denominadas de Fantástico Atual, cuja principal característica é a não elucidação das indeterminações geradas ao longo da trama. O leitor termina a novela com as mesmas dúvidas que vão surgindo ao longo da narrativa: É sonho? Delírio? Realidade? Aura é Consuelo? Felipe é o general?

CONCLUSÃO – Em entrevista ao programa Roda Viva Carlos Fuentes diz que dar uma segunda oportunidade ao tempo é uma tarefa fundamental do romancista. E mais, que gosta dos desafios, dos saltos mortais, aliás, ele entende a literatura como um salto mortal sobre um vazio, para ver se chega no outro lado, mas com o risco de cair no precipício e se fazer em pedacinhos. Diz,  ainda, que o trabalho do escritor exige disciplina, que ele se acorda todos os dias às cinco da manhã, toma uma ducha fria, mesmo morando numa cidade com a temperatura fria como a de Londres, e após o café senta-se para trabalhar, normalmente, às seis horas, e escreve até o meio dia. Então ele sai para andar pelo Panteão de Breton, se diverte lendo as tumbas…

A nossa análise particular de Aura é de que nesta bela prosa poética, lírica, Carlos Fuentes cumpriu o papel que ele espera de um escritor: deu ao tempo uma segunda oportunidade, na representação simbólica do triângulo, que de fato é uma dupla, Felipe, Aura-Consuelo. Se adotada a tese da reencarnação, Felipe pôde voltar ao passado e ainda reacender o desejo arrebatador que sentia por Aura que, também, em uma segunda oportunidade, volta à juventude para viver momentos ardorosos com o seu amado, enquanto Consuelo revive através dela, Aura, o seu duplo, o amor paixão dedicado ao general que ela, com habilidade de “bruxa”, fusionou ao jovem historiador Felipe pela identificação assimilada nas escritas dele, e ele, LLorente, também teve a sua segunda chance ao reencarnar no jovem que ambicionava escrever um livro.

Outra leitura possível seria que Consuelo revive a sua história, escondida atrás de Felipe, usando um narrador na segunda pessoa do singular, a quem ela ordena faça isso e faça aquilo, faça aquilo outro, idéia retirada dos passeios que Carlos deu pelas tumbas do Panteão de Breton, além disso, como bom mexicano que ele sempre foi, da influência do seu conterrâneo Juan Rulfo.em Pedro Páramo.                                

                                                 Jaboatão dos Guararapes, 23 de março de 2009-

                                                        Lourdes Rodrigues


[1] Dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), para a obtenção do título  de Mestre em Teoria e História Literária. Área de concentração: Teoria e Crítica Literária.

Leituras dos Viageiros

 LEITURAS REALIZADAS RECENTEMENTE PELOS VIAGEIROS DA OFICINA DE CRIAÇÃO LITERÁRIA CLARICE LISPECTOR

MARIA TEODORA DE BARROS OLIVEIRA

Li Contos de Fantasmas, de Daniel Defoe. Acho que nossos contos contados verbalmente, sobre fantasmas, são mais causativos.

Comprei para ler, agora,  o livro mais clássico de Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão, ou, na nova tradução, Origem do drama trágico alemão. Depois desses, vou ler sobre a Alegoria, construção e interpretação da metáfora, de Hansen.

Tudo isso para tentar entender um pouco mais sobre o melancólico.

 

LOURDES RODRIGUES

Li no mês de abril, Eu a Amava, de Anna Gavalda. Primeiro romance de uma escritora francesa de 32 anos na época do lançamento. Ela já havia publicado livro de contos: Je voudrais que quelq’um m’attende quelque part, com mais de 200 mil exemplares vendidos. Eu a Amava, também sucesso de vendas – segundo a edição que eu li, 2004, Editora Record, Tradução de Procópio Abreu — foram vendidos  cerca de 500 mil livros na França, com tradução para  mais de 20 países.

Jovem, casada, dois filhos pequenos, abandonada pelo marido que se apaixonou por outra, em profundo desespero viaja com o sogro para a casa de campo da família. Narrado pela jovem senhora, que mantém  diálogo/duelo com o sogro de quase 170 páginas, em que as emoções afloram, as diferenças de visão de mundo se escancaram, as histórias secretas de cada um aparecem, a solidão e o desamparo escapam das palavras. Aqui e ali alguns diálogos indiretos livres, fluxos de consciência. Não diria que é um grande livro, mas a leitura fluída é agradável. O excesso de diálogos às vezes cansa, senti vontade de mandá-los calar a boca, para tomar  fôlego.

Ainda no mês de abril comecei a ler e estou terminando O Rio é Tão Longe, as Cartas de Otto Lara Resende para Fernando Sabino. Achei adorável o encontro com o mundo literário do pós-guerra até 1970. São 400 páginas de cartas, do confesso espistológrafo Otto. Cartas escritas com uma avidez incrível, enquanto ele estava em Bruxelas, como adido cultural na embaixada do Brasil, quando voltou para o Rio de Janeiro (Sabino estava em Londres) e depois quando morou em Lisboa, novamente a serviço da embaixada. O jeito de ele escrever é hilário, conta os mínimos detalhes de um fato, descreve diálogos, fala mal de todo mundo, descreve cenas com perfeição, abre a alma, expõe-se, reclama. São cartas deliciosas de serem lidas, por elas passam Carlos Drummond, Dalton Trevisan, Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Castelo, Hélio Pellegrino, Nelson Rodrigues, Murilo Rubião, além de Sabino e do próprio Otto e muitos outros. Estão nelas políticos mineiros JK, Magalhães Pinto, Israel Pinheiro (sogro de Otto), Benedito Valadares (ex-sogro de Sabino), além de Juarez Távora,  Carlos e Sérgio Lacerda, Castelo Branco, Costa e Silva, Janio e Jango. Apesar do período muito turbulento em termos políticos, ele fala pouco da questão política brasileira e isto é intencional. Recomendo a leitura, muito agradável.

Tenho o hábito de ler vários livros de uma só vez, até que um deles me fisga e eu abandono por algum tempo os outros. Os dois livros citados me fisgaram. Mas, estava lendo, ainda, A Melodia das Coisas, de Rainer Maria Rilke. É um livro com várias escritas do autor: alguns contos, contos longos, alguns bem biográficos; ensaios sobre as artes plásticas;  cartas ao Jovem poeta Franz Kappus; a resenha literária de Os Buddenbrooks, de Thomas  Mann; e o prefácio de Franz Kappus ao livro Cartas ao Jovem poeta (o poeta a quem Rilke dirigiu as cartas). Até o momento, li, apenas, um conto, autobiográfico,  Ewald Tragy, excelente, sobre a decisão difícil de tornar-se escritor.

Outro livro abandonado temporariamente foi Em busca de Sentido, de Viktor Frankl, quase cheguei a concluir a leitura, mas parei várias vezes. É um livro muito pesado, escrito por um psiquiatra austríaco que sobreviveu a um campo de concentração nazista. Ele relata a sua própria experiência nos campos de concentração, quase toda a sua família foi exterminada, e a sua busca de uma razão para se manter vivo em meio às atrocidades cometidas pelos seres humanos. Essa busca acabou no futuro levando-o à descoberta de um novo ramo da psicoterapia, a logoterapia.Uma leitura imperdível pela profundidade da análise da alma humana diante de situação extrema. Também, estava lendo Diário – IV,  de Miguel Torga, onde ele reúne poesias e passagens da sua vida, da infância, reflexões sobre a vida, a velhice.. Muito bom!

CÉSAR GARCIA

Terminei de ler O REMORSO DE BALTASAR SERAPIÃO, de Valter Ugo Mãe, que recebeu o prêmio José Saramago. Fala da crueldade sofrida pelas mulheres nas relações com os homens em um ambiente medieval, rural, pobre e ignorante. Mas a novidade é a linguagem que o autor usa. Parece ter buscado a fala da época em que se passa a história mais ou menos como fez Guimarães Rosa. Isto exige do leitor maior dedicação e interesse. Se estiver apenas querendo ler algo agradável é melhor procurar outro livro.

Estou lendo também EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, de Proust, que também exige paciência e perseverança sobretudo porque estou lendo em francês. Tampouco é agradável. Leio com esforço para entender de onde vem a sua fama.

 

Enquanto isso, li também a peça LISÍSTRATA, A GREVE DO SEXO, de Aristófanes. Só assim as gregas conseguiram forçar os homens a pôr fim às guerras e voltar para casa, pois elas não suportavam mais a solidão.

 

 

ANGELA CAROLINA CYSNEIROS

Também tenho o hábito de ler vários livros ao mesmo tempo. Um horror! Comecei e não terminei ainda Ramsés, vol. I,  leitura agradável, biografia romanceada do grande faraó egipcio ( são 4 vol) boa reconstituição de época, cenário, baseado em fatos reais, mas, como disse, romanceado. Como adoro o Egito, delicio-me a cada página, volto a elas para ver se encontro um pouco do Egito que visitei ( coitada de mim rsrs) .

Comecei e não terminei por estar achando um tanto sem graça e cansativo A Ilha do Tesouro, leitura tida como infanto-juvenil, mas que não é, talvez fosse interessante quando surgiu. Pode ser que quando ” deslanchar”, encontre algo para dizer a vocês. Por enquanto é isto: chato, cansativo, repetitivo e lento. Mas vou dar crédito a ele.

Continuo me deliciando com as Cidades Invisíveis, uma a cada dia, com leituras repetidas, obrigatoriamente; sem comentários; é metáfora demais para esmiuçar aqui. Acho que é subjetivo demais, mas sinto me transportar para cada uma daquelas cidades como se as estivesse visitando.

Há outro, mas que não é datado, não é romance e pode ser lido a qualquer hora, Uma história da Leitura, de Manguel, este fica na cabeceira para ser apanhado a qualquer noite. É imperdível.

 

Li de um só fôlego na Livraria um conto de César Garcia MUITO BOM, O Pacto, criativo, ágil, daqueles que prendem e surpreendem o leitor do início ao final, afora o fato de trazer uma história inusitada.

E ainda, mais recentemente, nas poucas horas vagas, contos de Virginia Woolf, saboreando um a um. Ufa!!!

 

Ontem fui sorteada com Eu a Amava. Li ontem mesmo, a noite, 40 páginas. Escrito numa linguagem simples, coloquial, com lugares comuns, até, mas a aparente simplicidade e até mesmo o não inusitado do enredo nos prendem. Na verdade, chegou no momento em que precisava de leitura assim. É o que Lourdinha já falou, pelo que pude ler.

Sim, comecei a ler A Visita Cruel do Tempo,  de Jennifer Egan, vencedor do Pulitzer, havia esquecido.Vai ver, eu esteja lendo com um certo preconceito pela linguagem, sei não. Pretendo pegá-lo de uma vez, pois talvez a leitura partida prejudique. Lourdinha, podemos trocar impressões sobre ele, ok?

 

TERESINHA PONCE DE LEON

Além dos lidos na nossa Oficina, não li nada de novo. Em compensação, aproveitando uma “ameaça”de gripe, relí alguns velhos amigos,como faço de vez em quando.Lá vão os comentários do primeiro, “fessora”:

O Rei Pasmado e a Rainha Nua, do grande escritor espanhol Gonzalo Torrente Ballester, utor de uma obra considerável que lhe valeu os mais importantes prêmios literários espanhóis: Prêmio Nacional de Literatura(1981), Prêmio Miguel de Cervantes(1985) e Prêmio Planeta(1988).

Resumo: Era uma vez um jovem rei que nunca tinha visto uma mulher nua. Nem mesmo sua linda e jovem esposa. Mas, ao amanhecer na cama da cortesã Marfisa, finalmente aconteceu! Uma surpresa, um deslumbramento…E o rei pasmado, afirmou: “ O paraíso tem que ser uma coisa semelhante”.

Agora, Sua Majestade quer ver nua também a rainha.Era  proibido, pecado,  ameaçava as altas esferas do poder. Espanha,1620. O terror da Inquisição espalha seu manto de repressão, fanatismo e hipocrisia política. Intrigas maquiavélicas movimentam os bastidores da Corte, onde a liberdade e a sensualidade enfrentam as forças da negação do prazer:uma história fascinante,cheia de humor e suspense.

Li esse livro pela primeira vez em 1993. Apaixonei-me e já perdi a conta das vezes que o li.

2.Tirei também da estante para reler a peça de Bernard Shaw,  Pigmalião, que adoro e que tem tudo a ver com uma parte essencial do meu trabalho.

 

DIVA HELENA SIMÕES

 Acabo de terminar a leitura de O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse. Tinha muita curiosidade de ler esse livro desde que vi Clarice Lispector citando-o naquela famosa entrevista que deu para a TV pouco antes de sua morte.

 

Gostei imensamente. Identifiquei-me bastante com a personagem Harry Haller. Na verdade, o livro é um pouco autobiográfico, pois fala de momentos vividos pelo próprio Hermann Hesse. Inclusive as iniciais H.H. da personagem são a mesma do autor. A também personagem Hermínia, que é interessantíssima, tem o nome feminino de Hermann e seria como o espelho de Harry Haller e, portanto, do próprio escritor.

A luta contra a melancolia, a estranheza de estar num mundo que não corresponde em absoluto aos seus ideais fazem de Haller alguém deprimido, selvagem, fora de seu habitat (um lobo da estepe). Ele procura nas figuras ilustres do passado, como Goethe, Mozart o ideal da perfeição e não aceita que ninguém quebre esse conceito do que era o ideal para ele. Só que aparece Hermínia, uma prostituta, que vai ajudá-lo a olhar o mundo de outra forma e com isso ajudá-lo a sair do abismo que se tornara sua vida.

Do meio para o final, parece que estamos dentro de um sonho, de um certo delírio de Harry Haller e o autor subverte totalmente o rumo que eu achava, a princípio, que o livro iria tomar.

Começa-se achando que se trata de um livro triste e pessimista, mas no final o que se vê é uma mensagem de otimismo e esperança.

 

ANGELA CAROLINA CYSNEIROS (Em Tempo)

 Navegantes, terminei o Eu a Amava e além do que já disse e Lourdinha também, embora seja uma novela que trata do que poderia ter acontecido a qualquer um de nós e deve ter acontecido a alguns de nós coisa parecida, é interessante que, mesmo como uma tradução que não me pareceu das melhores ( penso, não afirmo, sinto), com uma história banal- jovem com duas filhas pequenas é abandonada pelo marido que a troca por outra, e que vai, a convite do sogro, para a casa de campo onde ja estivera na época de casada. Relação distante com o sogro, homem calado, sisudo, frio, que, aos poucos, por afeto, por honestidade e um profundo arrependimento pelo rumo que deu à própria vida, abre o coração. É interessante o enredo sob o ponto de vista ” do que trai” , ver que todos estão cobertos de razão e que só vale a pena viver se for para ter momentos de felicidade, ainda que para tal tenhamos que, muitas vezes atropelar o companheiro(a) ou pessoas que amamos. Embora de forma simples, coloquial, colocando até palavras que não se esperam da boca de uma homem de certa idade e conservador, vocabulário pobre – para quem gosta de algo um tanto mais sofisticado – serve para meditarmos sobre nossas escolhas e o quanto custam a cada um de nós, sejamos o que “trai” ou o que se sente traído. Coloco as aspas de propósito. É interessante ainda, que quase toda a novela se passe numa cozinha. Ao ler, transportei-me para uma plateia de teatro e via cada diálogo, muito bem pontuado por observações ( bits, me parecem) que cortam às vezes a tensão, outras, passam a palavra para o antagonista, de forma tal que você sente o movimento da cena e faz com que os diálogos não tornem a narrativa lenta. De tudo, pois que digamos que as confissões em si não sejam lá grandes coisas, a forma, idem, as ideias que casam com o que sempre achei que assim deveriam ser as coisas do afeto e das decantadas traições, o melhor de tudo é ler como se numa plateia de teatro. Valeu, sim. O livro está à disposição de quem o quiser ler. Agradeço a Lourdinha a oportunidade de lê-lo e, principalmente, de tê-lo lido quase de um fôlego só (coisa que não vem acontecendo recentemente).

 

TERESA SALES

 Clarice Lispector

Um soco no estômago. Nunca levei um de verdade, mas deve ser assim, tirando o fôlego, como acaba de me tirar o fôlego, não do pulmão, mas do espírito, o final da leitura d’ A Hora da Estrela (lido sem parar do começo ao final). Pensava que seria releitura, mas não. Tinha visto o filme e por isso, pela maestria das interpretações, não consegui dissociar os personagens do romance de Marcélia Cartaxo e José Dumont (o papel Macabéa foi tão forte na vida da atriz que nunca mais ela fugiu dele, assim como José Dumont, que já era um Olímpico de Jesus antes do filme).

Ficou aí a lembrança. Mas, por mais tênue que ela seja, o livro é incomparavelmente mais rico. Não é a emoção dos sentidos que lembro ter sentido ao ver o filme. Mexe com o espírito, revolve a alma. Leva-nos, no caso específico desse livro, a um universal da dor humana e a um particular da situação do pobre nordestino brasileiro nas metrópoles do sul do país – por onde começaram minhas pesquisas sociológicas.

Uma das melhores construções de personagens que eu já li nos últimos tempos.

Luzilá Gonçalves Ferreira

Os Rios Turvos, romance histórico bebido na preciosa fonte de José Antônio Gonsalves de Mello, narra um dos casos de cristãos novos do Brasil perseguidos e julgados pela Inquisição da “Santa Madre” em finais do século XVI.

 

O que o personagem Bento Teixeira ganhou em estatura frente aos fatos históricos narrados pelo historiador, perdeu Felipa Raposa. Felipa Raposa não se sustenta enquanto personagem.

Fui ao historiador buscar os fatos, posto pré-existir a história. De Bento Teixeira já sabia quase tudo, contado com maestria pela romancista. Fez em parte o que suponho deve fazer o romance histórico: além de dar mais leveza à mesma história contada pelo acadêmico, acrescentando-lhe detalhes em prol da beleza literária; dá consistência aos personagens, preenchendo as lacunas por ele deixadas.

O que eu soube por José Antônio sobre Felipa Raposa? Muito menos do que em relação a Bento Teixeira, claro, posto ser ele seu objeto de estudo. O que por si já seria um mote precioso para a romancista construir sua personagem mulher. Soube apenas que ela era cristã-velha por parte de seu pai, André Gavião, homem nobre. De sua mãe nada soube. E ainda que, “andando o tempo, de lanço em lanço” entre Olinda, Igarassu e Cabo, levada por Bento Teixeira em fuga de seus amantes “se veio a danar a dita sua mulher Felipa Raposa, adulterando com muitos homens”. Do depoimento de Bento Teixeira, era ela “tão nobre na geração como em seus próprios vícios”.

Bebendo em Machado de Assis, a autora tenta por vezes deixar no leitor uma dúvida sobre a veracidade do adultério, o que se completa com a não abertura das cartas. Ah! Que maldade de Luzilá não abrir essas cartas… quantos segredos ocultos! Quanta lascívia! (ou apenas, quanta vida não vivida!)

Saber da mãe de Felipa Raposa seria fundamental para construir sua personagem. A mãe apresentada por Luzilá é uma convencional mulher de nobre, que lhe dá uma rígida educação formal. Não pode. Fosse Felipa Raposa apenas uma mulher cheia de vida e que somente por isso era estigmatizada pela sociedade seiscentista e pelo ciúme doentio do marido, fosse ela de fato uma mulher livre no tempo errado, sua mãe teria que ser outra. Uma índia, talvez. Ou mesmo uma prostituta imigrada para Portugal, por quem seu pai se apaixonou, tendo por isso se “exilado” no Brasil. Essa é a hipótese mais plausível, sendo Felipa Raposa ruiva e seus olhos verdes.

E as cartas, Luzilá? Por que as deixou perdidas no caminho entre o Cabo e o Mosteiro de Olinda, onde se homiziou Bento Teixeira depois de matar a mulher? Quem sabe, escreverei eu essas cartas…

MARCELO AUGUSTO VELOSO

Li na década de oitenta e terminei de reler La Guerra del Fin del Mundo. É uma releitura da guerra de Canudos que se encontra em Os Sertões de Euclides da Cunha. Parece-me que na obra de Vargas Llosa  são  explicitados os interesses políticos bahianos por trás da Guerra. Chama-me a atenção a narração do cotidiano da comunidade em torno de el Consejero. Impressiona-me a quantidade de personagens que são criados e a maestria de Vargas Llosa em mexer os fios deles na condução da trama; entre eles, destaco el León de Natuba, figura plasticamente muito bonita: um deficiente físico que anda de quatro e tem uma imensa cabeleira, daí seu codinome, que se põe aos pés del Consejero com a cabeça apoiada no joelho desse.

No feriadão, li O Livro de Areia de Jorge Luis Borges, contos, em geral, curtos; haja imaginação para criar tão diversas situações; para quem transita pela Psicanálise, é imperdível O Outro, conto que abre a coletânea.

Ainda no feriadão, li Sonetos do Amor Obscuro e Divã do Tamarit de García Lorca; tenho uma dificuldade com a leitura de poesia, só consigo saboreá-la quando a escuto declamada por alguém.

 

Por esses dias, comecei a ler, de Vargas Llosa, Tia Júlia e o Escrevinhador, outra avalanche de personagens.

 

Vou me arrastando na leitura de Breuder Grimm: Kindermearchen (Contos Infantis dos Irmãos Grimm), contos pedagógicos que se propõem a formar o ethos da criançada, escritos no século XIX e ainda estão de pé: A Gata Borralheira, João e Maria, entrou por uma perna de pinto e saiu por uma perna de pato seu rei mandou dizer que contasse quatro.

Miguel Torga

CONVERSA VAI, CONVERSA VEM… E A CARTA DE PEPA

Maria Adelaide Câmara

Por volta de julho de 2011, escutei meu amigo Ramires Cotias Teixeira falar com muita admiração do escritor Miguel Torga, para mim ainda desconhecido. Isso, naquele difícil e precioso decurso de tempo entre a idealização e a realização de um propósito:  Ramires planejava a organização, em módulos, de um curso de História da Literatura que expusesse o vasto e rico Panorama da Literatura Contemporânea de Língua Portuguesa (Brasil, Portugal, África), no Museu do Estado de Pernambuco.  Encurtando a história, sob a batuta de Renata Pimentel e Zuleide Duarte, a iniciativa foi um sucesso!

Mas voltemos ao ponto. Trazido para a Oficina, por Lourdes Rodrigues, NERO, sem coleira, plantou-se entre nós, oficineiros, e nos contou sua história. Deixou-nos de orelhas em pé, ora comovidos, ora envergonhados.  Bichoshomens, homensbichos que se entrelaçam no amor, na amizade, nas dores, nas paixões, nas traições, no desamparo final, fincados no centro da paisagem agreste.  Torgas e fragas, bonitas palavras. Não só, reclama Miguel, criador de Nero, parafraseando-se, cá estamos de novo plantados no centro de nossa paisagem como macieiras no centro de sua leira. Dum lado a escadaria que leva ao Doiro, e do outro o iceberg do Marão. O pouco que somos devemo-lo às fragas. Foi a pisá-las que aprendemos a conhecer a dureza do mundo e a alimentar o ímpeto que se não resigna à lisa sonolência de uma paz interior espalmada.

Liguei para Ramires. Nessas idas e vindas de conversa, combinei que  telefonaria com mais tempo para anotar o que ele me falava de Adolfo Correia da Rocha, nome de batismo do escritor e poeta português. E eis o que ele me envia por e-mail:

Prezada Adelaide:

A título de uma pequena e despretensiosa contribuição ao seu trabalho a ser postado no blog do Traço, redigi um pequeno texto sobre Miguel Torga, que lhe envio em anexo.

Trata-se de uma apreciação de um leigo sobre a vida e a obra de um dos maiores escritores portugueses, grande poeta e notável prosador.

Um abraço,

Ramires.

 

Miguel Torga

Ramires Cotias Teixeira

Torga foi um dos maiores escritores de Portugal. Um exemplo de vida, de coerência e de força de vontade. Nasceu em 12 de agosto de 1907, em São Martinho de Anta, uma pequena e pobre aldeia de Trás-os Montes, uma das mais inóspitas províncias de Portugal. Filho de camponeses analfabetos e extremamente pobres, aprendeu as primeiras letras em uma pequena escola de sua aldeia natal. Demonstrou sempre o desejo de aprender, lendo tudo que lhe caía nas mãos. Seu pai, que tinha um irmão no Brasil, proprietário de uma fazenda em Minas Gerais, tentou mandá-lo para o El Dourado da época, o Brasil. O tio recusou-se a receber o jovem Adolfo, alegando que cada um devia cuidar de seus filhos. Ante a recusa do tio “brasileiro”, foi trabalhar, sem qualquer remuneração, como porteiro (fardado de branco), menino de recados, faxineiro e outras atividades domésticas, até que, por insubordinação, foi demitido, sem nada receber pelos quase dois anos de trabalho.   A sua única opção foi seguir o destino dos jovens portugueses da época, com desejos de aprender: ingressou no Seminário de Lamego (aliás, o mesmo destino do seu futuro opositor, Salazar). Pouco tempo depois, comunicou ao pai que não queria ser padre. O velho Francisco voltou a pedir ao irmão que aceitasse o sobrinho em sua fazenda de café. Conseguido o intento, viajou com apenas 12 anos e sozinho para o Brasil.

Muito sofreu o jovem camponês, ao deixar uma esquecida aldeia transmontana com destino a uma terra desconhecida. Trabalhou cerca de 4 anos, sem remuneração, para o tio, sofrendo a má vontade da tia afim. Procurou estudar no Brasil, tendo frequentado uma escola, perto da fazenda,  onde distinguiu-se como aluno brilhante e interessado. Reconhecendo o tio o seu interesse em aprender e vencer na vida, prontificou-se a custear os seus estudos, levando-o de volta a Portugal. Cursou o Liceu em apenas 3 anos e ingressou na Universidade de Coimbra, por concurso, para frequentar o curso de medicina. Concluiu o curso médico em 1933, com apenas 26 anos. Exerceu a medicina, com especialização em Otorrinolaringologia, com consultório aberto ao público, na cidade de Coimbra. Ainda estudante, iniciou as suas atividades literárias com fundação da revista Presença, juntamente com José Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões (todos futuros luminares das letras portuguesas).

Nessa época, Adolfo Correia da Rocha, já tendo enveredado pela poesia, adotou o pseudônimo de Miguel Torga, com o qual se tornou conhecido como cultor das letras e assinou os seus mais de 50 livros, quase todos traduzidos em diversas línguas. O seu nome literário tem uma origem curiosa: Miguel é uma homenagem a dois expoentes da literatura ibérica: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno, profundamente admirados  pelo escritor; e Torga é o nome de uma humilde e espontânea urze do campo, que cresce em solo agreste, particularmente nos penhascos e serranias. Dá flores brancas, arroxeadas ou cor de vinho. Seu caule é  incrivelmente retilíneo. Muito comum em Trás-os-Montes, suas raízes muito duras infiltram-se nas rochas montanhosas, insubmissas ao chão pedregoso. Da mesma maneira, o autor de Nero, o qual jamais se sujeitou ao obscuro sistema sociopolítico, à época, dominante.

É uma homenagem à sua terra natal, que anos depois retribuiu a honraria, plantando umas torgas no túmulo do escritor em São Martinho de Anta, onde ele repousa ao lado de sua mulher, a professora belga, especialista em literatura ibérica, Andrée Crabbé, que foi aluna de Vitorino Nemésio. O casal teve apenas uma filha, Clara Rocha, também escritora.

Atualmente, Miguel Torga é considerado, pela crítica especializada como um dos maiores poetas portugueses, destacando-se dentre os seus muitos livros de poesia Odes, Cântico do Homem, Orfeu Rebelde e Poemas Ibéricos. Além de grande poeta, Torga foi o maior contista português. Merecem uma leitura reflexiva, os seus Contos da Montanha, Novos Contos da Montanha e Bichos. Um estudioso de Torga não pode desconhecer a sua produção teatral, nem o romance Vindima e a novela O senhor Ventura. Muitos consideram as suas obras primas os 16 volumes do Diário, publicados ao longo da sua vida, que contêm textos antológicos, de reflexões de pensamentos, de crítica literária, de poesia, enfim, um retrato da sociedade portuguesa de 1951 a 1993, e o notável A Criação do Mundo, misto de memórias e ficção memorialística, dividido em 6 dias da criação, publicados entre 1937 e 1981, hoje enfeixado em um único volume de mais de 600 páginas.

Ao comentar a vasta produção de Torga, merece destaque a homenagem ao seu país
natal, o pequeno volume, mas grande livro, Portugal, uma descrição poética, em prosa, das várias províncias portuguesas.

Vale destacar, na vida de Miguel Torga, sua defesa da democracia e da liberdade, consubstanciada na tenaz luta contra o regime do Estado Novo salazarista, que lhe valeu prisão no Aljube, apreensão de livros, publicação de primeira edição fora de Portugal, como foi o caso de Novos Contos da Montanha, cujo beneficiário foi o Brasil, além de interferência governamental  para que Torga não fosse agraciado com o Prêmio Nobel, o que mereceu um comentário de Jorge Amado, em Prefácio:

Miguel Torga faleceu sem ter recebido o prêmio Nobel, injustiça sem tamanho. Entre os que trabalharam a língua portuguesa, na criação da poesia e da narrativa, o nome de Torga se destaca pela escrita invulgar e pelo conteúdo de uma literatura feita de humanismo.

Como contista, é insuperável. Sendo um escritor profundamente português em suas raízes e perspectivas, a obras do mestre de “Contos da Montanha” repercute igualmente no Brasil, abrindo caminho para os nossos autores.

Outro depoimento importante sobre Torga é o do embaixador e historiador Alberto da Costa e Silva, em Prefácio ao livro A Criação do Mundo:

A Portugal devo três dos entusiasmos dos meus dezessete anos: a poesia de Mário de Sá-Carneiro, o “Humus” de Raul Brandão e os contos de Miguel Torga. Deste, lembram-me ainda a surpresa e o deslumbramento com que li “Bichos”. E depois,  “Rua”. E em seguida, “Contos da Montanha”. E, mais tarde, vencido pela pureza das frases e a força do homem, os quatro primeiros volumes do “Diário”. Aqui estava distante do arco-íris de Sá-Carneiro e do ouro velho da prosa de Raul Brandão. Via-me a olhar pontas-secas, a seguir traços duros e firmes , completos em sua contenção e aparente simplicidade.

A Prof. Vilma Arêas, comentando o trabalho de Miguel Torga, fez a seguinte afirmativa:

Sua obra, ao mesmo tempo intuitiva e cerebral, está dividida entre a busca da individualidade e a partilha de um destino comum, almejando um universal só alcançado “após um mergulho no particular”.

Sua literatura tem “a marca da personalidade do criador” e suas raízes, que se parecem entre si e não se parecem com coisa alguma. Essa obra multifacetada- poesia, romance, teatro, ensaio, contos – tem forte conotação ética e exemplar e constrói uma epopeia do humilde, se podemos dizer assim, com seus heróis camponeses.

 

Para finalizar, vale a pena lembrar  o que o próprio Torga disse sobre si mesmo e a sua obra:

Cada qual procura-se onde se sente perdido. Eu perdi-me em Portugal, e procuro-me nele.

E mais:

Poeta, prosador, é na letra redonda que têm descanso as minhas angústias. Mas nem tudo se imprime. Ao lado do soneto ou do romance que a máquina estampa, fica na alma do artista a sua condição de homem gregário. E foi por isso que fiz aqui uma promessa que te transmito: que estava certo de que tu, habitante dos nateiros da planície, terias uma breve compreensão e amor pela sorte áspera destes teus irmãos.

            Por conta da sua posição política, diametralmente oposta  ao salazarismo, foi preso, tendo pensado em sair de Portugal; não o fez, contudo, por se sentir extremamente ligado à pátria e a Trás-os-Montes, longe dos quais seria Um cadáver a respirar.

            Miguel Torga faleceu em 1995.

E  Adelaide retorna:

 E eu? Eu não preciso dizer mais nada, pelo menos por enquanto. Sim, aproveito para acrescentar a carta de PEPA, gatinha de minha filha Joana Câmara, ghost-writer da charmosa felina.

 

 ALÔ!

Meu nome é Pepa!

 

Vou ficar 4 dias sozinha sem meus donos: sábado, domingo , segunda e terça . Fico na sala com meus brinquedos, na cozinha tenho minha comida e na área de serviço faço cocô e xixi na caixinha de areia, que precisa ser trocada de vez em quando. Choro muito se fico sozinha todo o dia, adoro brincar e que me façam muito carinho.

Por favor, troque minha água!

E me dê de comer!

Quando vier me visitar , me chame , posso estar escondida.

Meus donos, Joana e Fernando, agradecem a ajuda!

Qualquer emergência: 00445500

Até logo!

PEPA

 

NERO

                                                                                Lourdes Rodrigues

 

Levei o conto Nero, extraído do livro Bichos,  de Miguel Torga,  para leitura na Oficina. Na realidade, foi comprado pelo nome do autor Miguel Torga — pseudônimo, porque o escritor chamava-se Adolfo Correia da Rocha — de quem já ouvira muito falar e jamais havido lido. Estava ali naquela livraria pequena, administrada por uma mulher muito falante, vizinha a FENAC, em Lisboa. A publicação era pobre, sugestiva de gráfica de Universidade. Na primeira olhada ele não foi comprado, porque havia a esperança de encontrar  outras  obras do autor na grande vizinha. Quem sabe o título não tivesse me empolgado. De volta da FENAC, exausta e carregada de livros, passando outra vez na porta da pequena livraria,  lembrei  com um certo desconforto de que não havia procurado nenhuma obra de  Miguel Torga, como era a intenção inicial, completamente assaltada pela imensidão de livros à minha disposição naquela megalivraria, Desculpe-me, Torga, pelo deplorável esquecimento,  falei mentalmente,vou tentar consertar comprando aqui o seu pequeno livro  Bichos, ignorando por completo os olhares selvagens que os meus companheiros de viagem me dirigiam, todos tão exaustos quanto eu, mas sem qualquer solidariedade com o meu sentimento de culpa. No hotel não resisti e comecei a folhear os livros recém comprados, e evidentemente, chegou a vez de Bichos, descobrindo, encantada, no estilo do autor traços que me remetiam a Machado de Assis. Imediatamente pensei, vou presentear o meu colega César Garcia, em  cujo estilo na escrita eu percebia pegadas machadianas. Assim foi feito. Entretanto, Bichos já havia me conquistado de tal forma que eu o pedi emprestado a César para ler e incluir na programação da oficina para 2012. Desconfiado, o colega concordou, mas escreveu na capa: presente de Lourdinha. Estava garantida a volta.

Bichos já teve 19 edições, a última em 1995, data da morte do autor, aos 87 anos de idade. Foi publicado pela primeira vez em 1940. Trata-se de um livro de contos em que o personagem principal sempre é um animal. Em Nero, o personagem é um cachorro que conta a sua história numa linguagem simples e bela, desde a sua chegada naquela casa até os seus últimos momentos quando morre de velhice, com a sensação de que deveria ter partido jovem e assim ser lembrado com muita saudade e não com um certo alívio.

Nero, antropomorfizado, faz grandes reflexões sobre a vida naquela casa, o seu dono instituído e os outros que ali convivem, mostrando as suas prferências e afetos. Fala do amigo, da mãe do seu filho e do filho que não lhe herdou a capacidade de exímio caçador, do afastamento dos dois, tudo de uma forma muito bonita e expressiva do melhor sentimento. O cenário, como não poderia deixar de ser é o da região trasmontana, tão presente em Torga, segundo os seus estudiosos, que não é possível pensar nele, na sua obra, desvinculados do seu berço natal.

O conto Nero traz para os que estudam Literatura a questão da verossimilhança. Captados totalmente pela prosa poética os leitores não questionam o que está sendo lido, se um animal poderia pensar como o humeno, se ele poderia  trazer questões filosóficas tão profundas sobre a vida e a morte ou sobre as relações entre os seres vivos. A verdade literária está totalmente sobreposta à realidade da vida pela maestria do escritor. Exemplos parecidos vamos encontrar no personagem Baleia de Graciliano Ramos em Vidas Secas e em Flush,  romance escrito por Virgínia Woolf,  que recebeu o título do seu personagem.

Outro encanto desse conto são as palavras desconhecidas do nosso vocabulário que tivemos o prazer de ir procurar no Aurélio, onde encontramos para algumas os significados remetidos diretamento ao livro Bichos, de Miguel Torga.  O glossário com essas palavras foram enriquecidos e organizados por Maria Adelaide Câmara.

 

GLOSSÁRIO DE UMA LEITURA  DO CONTO NERO, DO LIVRO BICHOS,

DO ESCRITOR PORTUGUÊS

MIGUEL TORGA

Organização: Maria Adelaide Câmara

 

Lampa (figueira,):  variedade de figueira. [E muitas coisas mais…]

SinceloP (reg.)  pedaços de gelo suspensos das árvores ou dos beirais dos telhados,             resultantes da congelação das neblinas. [Diz-se sincêlo] [Não é estalactite porque esta é uma formação que resulta da precipitação de bicarbonato de cálcio dissolvido em água e que pende dos tetos das cavernas e subterrâneos.]

Morgada:  filha mais velha, beneficiada por morgado ou morgadio;  p.ext. a (o) filha mais velha, a primogênita de qualquer família;   filho único  [E coisas mais…].

Giesta : mesmo que esparto: design. comum a vários arbustos da fam. das leguminosas, freq. us. por propriedades medicinais e para o fabrico de vassouras; gesta, giesteira, giesteiro…. Flores amarelas e vagens negras.

Cardenha:  (ou cardanha)  casa térrea onde dorme o trabalhador que trabalha por salário diário (ou jornaleiro) .

Mondava do verbo mondar:  capinar, limpar o mato, arrancar ervas daninhas, podar…

Chasquiçava (do verbo chasquiçar) ???????????????????????? 

Enxofrar: Impregnar ou cobrir de enxofre.  Misturar com enxofre. Desinfetar com enxofre. 

Lés-a-lés: de lado a lado.

Cortelho: pocilga, chiqueiro, curral.

Salamurdo: Indivíduo  que fala pouco, mas que é sonso e morde pela calada. 

Alheta (punha-se na alheta): seguir, ir no encalço.

Fragas: rocha escarpada; penhasco, penedia;  calhau grande; pedregulho;  brenha; mata. 

Rilhadinho: produzir rangido com os dentes; ranger, ringir, trincar ; comer roendo.

Unto: gordura de porco; banha;  p.ext. qualquer substância gordurosa; gordura, óleo. Também quer dizer dinheiro. 

Albarrão: Perdigão (macho da perdiz) que perdeu a fêmea, e anda descasalado no monte; que ou quem ainda está solteiro.

Borgas: pândega, estroinice.

Rafeiros:  Diz-se de uma raça de cães próprios para a guarda de gado. 

Jecos: caipiras? 

Rufias: brigões, rufiões; Indivíduo que vive a expensas de mulher pública a quem simula proteger; gigolô; proxeneta; rúfio. Alcoviteiro.Aquele que se mete em brigas por causa de mulheres de má nota.

Razia:  Incursão feita em território inimigo para aprisionamento de tropas, saque de rebanhos, cereais etc. Fig. Devastação, assolação. 

A  mata-cavalos:  a galope. 

Sedeiro: Instrumento em forma de pente que serve para assedar o linho. [Assedar: limpar o linho passando-o pelos sedeiros; Tornar macio como seda.] 

Asado: que tem asa, alado; porém, tb. jeitoso, apto, cômodo.