O Leitor Ideal e o Autor Ideal

 

TEXTO, LEITOR E AUTOR EM “SEIS PASSEIOS PELO BOSQUE DA FICÇÃO”, DE UMBERTO ECO

Fernando Gusmão

Qualquer texto exige, sempre, duas outras categorias de entidades diretamente a ele vinculadas: o Autor e o Leitor. O Autor, entidade objetiva que registra a história e o Leitor, que vem, necessariamente, com o texto, porque, para “entender” uma mensagem verbal faz-se necessário “além da competência linguística, uma competência variadamente circunstancial, capacidade de pressupor, de reprimir idiossincrasias, etc.”.

Por outro lado, tal texto consiste, em última análise, de um adequado composto de locuções, declarações e informações. No entanto, qualquer texto está, sempre, completamente intercalado pelo não-dito, por aquilo que não se mostra na superfície, no plano da expressão. Dizendo de outra forma, conforme postulou Umberto Eco em 1988, o texto está repleto de buracos brancos, cheio de fissuras a serem preenchidas.

Até a algum tempo atrás admitia-se que o texto literário era a expressão das ideias de seu autor e que tocaria, tão-somente, ao Leitor a função passiva de interpretar o que o Autor aspirava dizer. Por isso, anteriormente, estudar a obra só tinha significado se se estudasse, também, a biografia de seu Autor.

Mas, como em uma história sempre há um leitor, e esse leitor é um elemento essencial, não só do procedimento de contar uma história, como, também, da própria história, o crítico francês Roland Barthes escreveu, em 1968, o ensaio “A morte do Autor”, introduzindo uma atitude pós-estruturalista de crítica ao papel centralizador do Autor.

Pode-se dizer que nesse ensaio Barthes ponderava que o Autor não era o único locus da autoridade criativa, mas que ele —o Autor— seria, no máximo, um “Scriptor” – palavra que ele empregou para esvaziar o sentido de poder existente nas palavras “autor” e “autoridade”. Conforme esse crítico, o Scriptor, que “nasce simultaneamente com a obra”, existia para produzir e não para explicar e estabelecer uma “perspectiva” e, com isso, determinar o significado do texto, da obra. Na nova visão de Barthes, o Leitor passa a deter um “privilégio que tinha sido considerado prerrogativa dos textos”, a saber, o de fundar um “ponto de vista”, definindo, assim, a acepção do texto. Ler um texto seria, pois, desconstruir qualquer ideia de origem e construir novos significados, permitidos pelos signos do texto, mas deslocados ad infinitum pelas multíplices condições de produção.

Importante ressaltar que Eco, em “Seis Passeios pelo Bosque da Ficção” —onde Bosque” é uma metáfora para o texto narrativo— diz que o Leitor tem inteira li­berdade de escolha em relação ao livro que está lendo. E que essa liberdade é possível precisamente “porque os Leitores se dis­põem a fazer suas escolhas no bosque da narrativa, acreditando que algumas delas serão mais razoáveis que outras”.

Para tanto, Eco vê o Leitor classificado em duas categorias: O Leitor-Empírico e o Leitor-Modelo.

O Leitor empírico é você, eu, todos nós, quando lemos um texto. O Leitor-Empírico é aquele que realiza uma leitura específica e pessoal de determinada obra. Os Leitores-Empíricos leem de múltiplas formas e não existe lei que decida como devem ler. Isso, porque, regra geral, aproveitam o texto como um continente de suas próprias paixões, externas ao texto ou instigadas pelo próprio texto.

Por sua vez, o Leitor-Modelo de uma história não é o Leitor-Empírico. É, sim, aquele que o texto pressupõe como seu leitor ideal. O Leitor-Modelo de Eco (1979), não só figura como interagente e colaborador do texto; “mas, muito mais — e, em certo sentido, menos —, ele brota do texto, sendo o suporte de sua estratégia de interpretação”. O Leitor-Modelo seria, dessa forma, capaz de movimentar-se interpretativamente conforme ele, o Autor, se movimentou gerativamente. Prever o próprio Leitor-Modelo, de acordo com Eco, não significa somente “esperar” que esse exista, mas, implica que se deve mover o texto no sentido de construí-lo. Eco exemplifica o Leitor-Modelo em Finnegans Wake, de James Joyce, dizendo que “esta obra projeta um leitor ideal que disponha de muito tempo, tenha perspicácia associativa com uma enciclopédia vasta, consiga fazer leituras cruzadas, domine a língua inglesa e possua um dicionário de pelo menos duas mil palavras desta língua”. Fácil entender que quando referida ao Leitor não postulado, a obra ou torna-se ilegível ou torna-se outro livro.

Vale acrescentar, ainda, que nós Leitores-Empíricos —eu, vocês— contamos com dois Autores:

Um, o Autor-Empírico, como sujeito da enunciação textual, que cria hipoteticamente um Leitor-Modelo e, ao fazê-lo, arquiteta seu texto com uma estratégia textual. Sendo mais claro, o Autor-Empírico é uma entidade objetiva que registra a história e resolve que Leitor-Modelo lhe toca estabelecer.

Outro autor, o Autor-Modelo, que age para nos dizer quais locuções colocadas no texto devem servir como estímulos para nossa imaginação e para nossas reações físicas. Ele, o Autor-Modelo, aparece como uma estratégia narrativa, um “conjunto de instruções, que nos são dadas passo a passo e que devemos se­guir quando decidimos agir como o Leitor-Modelo”. No final, pode-se entender o Autor-Modelo tam­bém como um determinado estilo, claro e inconfundível.

Importante é que o leitor empírico pode atribuir diferentes sentidos à obra, sejam eles acenados pela enunciação, ou pela cultura, pelo “espírito do tempo”, ou pelo “horizonte de expectativas”, por motivações pessoais, etc, e que, dessa forma, não há limites para a interpretação, que se constitui, como via de consequência, em um processo aberto e cooperativo entre autor, texto e leitor.

Recife, setembro de 2018.

 

 

 

 

Era uma vez …

 

Era uma vez  uma mulher que adorava ler romances. Brincava, ora de dona de casa, ora de psicóloga. Em dado momento,  resolveu brincar de estudar literatura. Pensou no mestrado. Como ouvinte, freqüentou os cursos de Teoria e Crítica Literária. Ficou fascinada. Perdeu a primeira aula e até hoje não conseguiu ler o texto de Jameson nem concluir vários outros de autores diversos. Tempo padrasto. Não desanimou. Tornou-se uma “fiel ouvinte”.

No começo, brigava com o vocabulário específico da área. Haja dicionário para se familiarizar, muitas vezes refamiliarizar-se…

No conforto do diletantismo, fez uma longa viagem pela modernidade ocidental, partindo de um impressionismo pessoal, romântico e ignorante até a terrível discussão dos descentramentos das identidades, das rupturas, das desconstruções intermináveis. De vez em quando, lembrava-se da desintegração e angústia esquizofrênica estudadas no passado. Embrenhou-se no fogo cruzado das ambigüidades das discussões do que seria modernidade, pós-modernidade, modernidade tardia. Visitou, aturdida, templos teóricos de difícil acesso, como o dos estruturalistas. Passou antes pelo precursor formalismo russo, com seu apego estrito à morfologia literária, ao sincronismo  nuançado pelo estudo da evolução literária de Tynianov. Achou bonito e poético o termo “estranhamento” para descrever o especificamente literário, dentre outras coisas. Perdeu-se num labirinto de funções , ações/fábulas, enredos, séries, sistemas, idéias de dominante… Ficou danada porque Tristram Shandy estava em sua estante, intocado.  A Pushkin, se a memória não falhava, só conhecia de nome, e até com o risco de confundi-lo com o músico italiano Puccini, que nascera 21 anos depois de sua morte. Jakobson, sim, conhecera-o num trabalho sobre  a aquisição e perda da linguagem na afasia infantil.

Quase se afoga nos significantes flutuantes, ela que vivia em busca de significados. Perdeu-se entre sintagmas, paradigmas, núcleos, catálises, índices, classificações e mais classificações. O texto dissecado, órfão de autor e de leitor. Deixou de gostar de Goldfinger/James Bond, mas notou o valor deste movimento generalizador que buscou e conseguiu descrever e analisar  obras literárias com  objetividade  científica.

Meio tonta ainda, a mulher suspirou de alívio ao ler a frase de Proust na epígrafe do artigo de Bourdieu: “As teorias e as escolas, como os micróbios e os glóbulos, devoram-se entre si e com sua luta asseguram a continuidade da vida.” O autor não deixou por menos ao analisar interdependências e interinfluências entre artista, obra, mercado,  editor, público, modismos, etc… desmitificando  legitimações e consagrações  nem sempre inocentes ou desvinculadas institucionalmente.  Contrariou-se um pouco: tantos determinismos ameaçavam outras tantas idealizações…

Para consolo, em um altar em Constança, viu, envaidecida, um novo santo milagreiro chamado LEITOR. Leitor primeiro da própria obra escrita para outros leitores. Todos inseridos no contexto histórico, intercambiando-se. Se antes eram os significantes que flutuavam, agora é o sentido da obra que está em contínua formação no percurso produção – recepção. Leitor implícito, leitor explícito, leitor ideal. Simultaneidades não-simultâneas derrubam noções de época definida.

A mulher continua a visita, cada vez mais apressada, sem tempo para parar. Chegou a ouvir vozes, diversas vozes. Não, não estava louca. Eram mensagens do russo, durante muitos anos habitante do gelo siberiano. Clamavam que todos somos influenciados pelo discurso do outro, e que qualquer expressão individual é produto de inúmeras e variadas vozes. Nos textos falam: autor,  precursores, narrador, personagens, conterrâneos, em qualquer pessoa gramatical. Uma troca coletiva de diálogos. E aí morava o significado. Entendeu, mas perdeu-se no meio dos tipos de discurso na prosa. Viu, porém, que, a essa altura, transitava pelo terreno da ideologia e daí a Lukács e Benjamin era um pulo. Ambos em luta contra o fascismo, ambos com textos nos quais transparecia a acusação da cultura e sociedade burguesas. Ambos marxistas de diferente modo. O primeiro viveu muito, ocupou cargos, foi reconhecido. O segundo, de glória póstuma, foi sempre um desajeitado para a vida, no dizer de Hanna Arendt.

Cumprimenta de longe Derrida, Foucault, Deleuze, Cixous e tangencia as diversidades culturais, o multiculturalismo, as oposições binárias, o feminismo, a morte do autor, os questionamentos de estruturas, de autoridades, de códigos e discursos fluidos, o infindável jogo de diferir e de diferençar. Quase tem um pesadelo ao ler que nenhum texto diz coisa alguma, inclusive o que assim prega.

Preocupou-se com a afirmação de Cixous da impossibilidade de uma escritura feminina, enquanto os termos da fração dominante/dominado, ativo/passivo não forem invertidos. Assusta-se com a conclusão da escritora: “Enquanto a mulher e o feminino forem construídos como passivos e incompreensíveis outros, permanecerão imprensados entre dois horripilantes mitos:  a Medusa e o Abismo.”

Depois de tão longo passeio, viu-se no meio de uma globalizada crise de identidades e sob o signo do camaleão. Descontinuidade, fragmentação, ruptura versus identidades culturais e nacionais eram agora as matérias para reflexão. Constatou que as certezas haviam ido pelo  ralo. A moda é tudo discutir, pesar, decidir no aqui e agora.

Aportou, enfim, na discussão sobre latino-americanismo, no mundo dos “pós”. Tradição, tradução, traição? Seguira um roteiro intenso e extenso para seu tempo pessoal e, de repente,  via-se no centro de uma acirrada disputa  inconclusa  em torno de temas e teorias ocidentais e contemporâneas, mudanças de paradigmas, implicações sociopolíticas,  redefinições de sujeito e de objeto mutantes, perplexidades! Tudo a partir do texto literário e de suas relações com o autor e o leitor.

A mulher que brincava de psicóloga leu, ouviu e até mesmo vislumbrou que vários autores se  serviam, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos transparente, do método psicanalítico na abordagem da cultura, na abordagem dos textos. Por outro lado, as obras, muitas vezes, parecem impregnadas de um “saber” psicanalítico, quer o escritor queira, quer não. O olhar que autor e leitor lançam sobre os escritos perdeu a inocência. Afinal, teorias, romances, poesias… nascem dos recessos da mente humana com todos os seus mecanismos específicos, e o ser humano é o assunto da psicanálise. Lembrou-se do comentário de Helio Pellegrino de que Clarice Lispector através da literatura domou a loucura. Interessou-se pela função defensiva bem sucedida ou não, que a obra teria para alguns criadores… Observou que Freud,  através de sua escuta, criou  o ‘embrião de um outro lugar para as mulheres’, lugar esse que   Cixous procura afirmar com seu ataque à cultura patriarcal. E a mulher ficou muito curiosa a respeito de como construir uma ponte entre todas essas mudanças de paradigmas, essas rupturas e a  crise por que passa a psicanálise, com várias sentenças de morte já anunciadas. Para essa psicóloga, a Psicanálise – assim como a literatura, ambas linguagem – não cessa de surpreender.

Foi-se uma vez uma mulher que se acreditava centrada, unificada, que ousou brincar com a literatura. Ficou na dúvida para sempre. Entrou por uma perna de pinto, saiu por uma de pato, Sr. Rei, digo Sra. Rainha mandou dizer que contasse quatro.

                                  Olinda, 29/06/1999

                                    *  Maria Adelaide Câmara

  • Maria Adelaide Câmara é psicóloga, ensaísta, ficcionista, amante daw arte e da literatura.

Conversa com Fernando Pessoa

O nosso Momento Poético continua sendo um dos grandes momentos da nossa viagem às quartas-feiras. Nessa ocasião, ora são homenageados poetas além mar, ora do nosso continente, outras vezes das cercanias nordestinas ou da nossa cidade. Mas, quando lemos um poema de um dos navegantes, sempre junta-se a  emoção do dizer poético ao orgulho de se estar tão perto naquela viagem do seu criador. É sempre assim.

Fernando Gusmão é um viageiro recente no chegar, mas já lançou âncoras profundas nos nossos mares, tanto pela sua participação durante as viagens, a  gentileza com os companheiros, como e principalmente pelo grande interesse pelo saber das coisas literárias, razão maior da existência desse grupo.  Levou para o Momento Poético um  poema dedicado à sua amada Adriana, inspirado, ainda, em dois grandes poetas, Fernando Pessoa e Omar Khayaam.

CONVERSA COM FERNANDO PESSOA

Para Adriana

Pessoa falou:

“Se tive amores? Já não sei se os tive.

Quem ontem fui já hoje em mim não vive.

Bebe, que tudo é líquido e embriaga,

E a vida morre enquanto o ser revive”.

Por sua causa, cantei diferente:

Se tive amores? Ela mostra quanto tive.

O bem que sempre flui hoje em mim vive.

Bebo à Vida que de Amor me embriaga.

Se eu morro por ela a Vida em mim revive.

O Poeta insistiu:

“Cada dia me traz com que esperar

o que dia nenhum poderá dar.

Cada dia me cansa da esperança,

mas viver é esperar e se cansar”.

Respondi:

Cada dia é razão para dela esperar

o que de melhor ela tem para me dar.

Em cada dia vive minha esperança.

Viver a esperá-la nunca será cansar.

Ele retrucou:

“O prometido nunca será dado,

porque no prometer cumpriu-se o fado,

O que se espera, se a esperança é gosto,

gastou-se no esperá-lo, e está acabado”.

Encerrei:

Ela prometeu e sei que a mim será dado,

pois o Amor é certeza, é fato, é fado,

Ela é diferente: nela, esperança é gosto,

promessa do Querer pronto e acabado.

 Fernando Gusmão, 2002

Notas:

1 – Do Livro Poesias Inéditas, 1930-1935, de Fernando Pessoa

2 – Rubaíyyat de Omar Khayaam

3 – Ruba’i – Estrofes formadas por 4 versos, esquema rimático AABA, característico do ruba’i.

4 – Ghiyath al-Din Abu’l-Fath Umar ibn Ibrahim al-Nisaburi al-Khayyami, mais conhecido como Omar Khayaam, (1048-1131 d.C.), iraniano, foi um matemático, astrônomo, filósofo e poeta muçulmano persa, cujos interesses também incluíam a música, a mecânica e a geografia.

Khayyam é conhecido por seus rubaíyyat (quartetos), que são estrofes de duas linhas formadas por duas partes. O termo é derivado da raiz árabe da  palavra “quatro”.