Viagem Oitava pelo Riso ou Diário de Bordo de 05 de abril de 2017

Diário de bordo do dia 5 de Abril de 2017.

*João Gratuliano como primeiro oficial ad hoc no comando da nau por motivo de doença da capitã.

Todo ditado popular tem sua sabedoria, e quando os gatos saem, os ratos fazem a festa não foge à regra. Sem a capitã, nosso quebra gelo foi um pouco mais prolongado. A tripulação esteve um pouco reduzida, mas quando já estavam Salete, Anita, Adelaide, Sarmento, Everaldo Júnior, Paulo, eu e as irmãs Cajazeiras, digo, Portela, nosso viageiro Everaldo Júnior  falou de um texto escrito por Freud  sobre a transitoriedade, que surgiu de um passeio do mestre da psicanálise com dois amigos (que os historiadores dizem ter sido Rilke e Lou Andreas Salomé) por uns campos sorridentes. 

.Eis o texto:

8. SOBRE A TRANSITORIEDADE (1916 [1915])

VERGÄNGLICHKEIT

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:1916 Em Das Land Goethes 1914-1916. Stuttgart: Deutsche Verlagsanstalt. Pág. 37-8.1926 Almlanach 1927, 39-42.
1928 G.S., 11, 291-4.1946 G.W., 10, 358-61.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:‘On Transience’1942 Int. J. Psycho-Anal., 23 (2), 84-5. (Trad. de James Strachey.)1950 C.P., 5, 79-82. (Mesmo tradutor.)

A presente tradução inglesa é uma reimpressão ligeiramente alterada da que foi publicada em 1950.
Este ensaio foi escrito em novembro de 1915, a convite da Berliner Goetherbund (Sociedade Goethe de Berlim) para um volume comemorativo lançado no ano seguinte sob o título de Das Land Goethes (O País de Goethe). Esse volume, produzido com esmero, enfeixava grande número de contribuições de autores e artistas conhecidos, passados e atuais, como von Bülow, von Brentano, Ricardo Huch, Hauptmann e Liebermann. O original alemão (exceto o quadro que apresenta dos sentimetnos de Freud sobre a guerra, que estava então em seu segundo ano) constitui excelente prova de seus poderes literários. É interessante notar que o ensaio abrange um enunciado da teoria do luto contido em ‘Luto e Melancolia’ (1971e), que Freud escrevera alguns meses antes, mas que só foi publicado dois anos depois.

SOBRE A TRANSITORIEDADE

Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.

A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.

Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.

Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.

Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.

O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.

Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.

Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, de e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.

Em seguida surgiu um debate sobre a mulher. Sobre o seu papel e as dificuldades numa sociedade ocidental machista. Tínhamos uma artigo para ler sobre o conto Hoje de Madrugada de Raduan Nassar, segundo Anita, um dos contos mais impactantes que ela já leu ultimamente. E segundo Adelaide, “Um sopapo escrito e narrado por um homem que percebe os meandros da alma feminina e do que magoa e sabe como narrá-lo. (…) Erótico implícito.”

Como nem todos haviam lido o conto, não vou denunciar quem fui que não leu, então resolvemos relê-lo. E seguiram-se os comentários sobre o conto e de como cada um tinha sido impactado por ele. Com isso não havia mais tempo para ler o artigo e deixamos para o próximo encontro. Não sei se foi só isso, mas sei que foi assim.

Segue o Conto de Raduan Nassar lido:

Hoje de Madrugada

Raduan Nassar

O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhas em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.

Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi una frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: “vim em busca de amor” estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. ?Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: “responda” ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: “não tenho afeto para dar”, não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.

Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um voo largo, foi num só lance para a janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.

Quando ela veio da janela, ficando de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos, subindo afoito, me lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloquente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que  não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.

Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.

O texto acima foi extraído dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro, exemplar número 2 de setembro de 1996, pág. 56.

  • João Gratuliano é contista, ensaísta, poeta, crítico literário.

 

 

Viagem Sétima pelo Riso

VIAGEM SÉTIMA PELO RISO

*Salete Oliveira

Aceitei o desafio de contar a viagem da última quarta-feira, 28, março, que findava sem chuvas a fechar o verão, hoje quando escrevo, cai uma chuva maravilhosa, com trovões, abril abrindo com chuvas do outono.

Dá um aconchego bom essa chuva atrasada, tal o que senti ao chegar na Oficina Literária, já começada, repleta de viageiros, ali na bica, para serem bebidos em sua essência, sem destilação: poemas de Charles Bukowski.

Engraçado como de repente uma cortina se abre e lembramos já termos ouvido suas frases em lugares diversos, até em postagem do filho, e mesmo escolhido um livro dele ao acaso em livraria de aeroporto, para ler no avião. Essas surpresas são parte da Oficina, tão deliciosas como os doces Lolita que Adelaide nos traz,
e que alegria que ela estava lá, já sentada ao lado de Lourdinha, a nos falar sobre ele ser um escritor apreciado dos jovens e movimento Underground.

Para saber tudo sobre ele existe esse site, tem uma time-line ótima, não deixem de dar uma espiada: https://bukowski.net/

Então, aqui vou dizer pouco: Charles Bukowski nasceu na Alemanha em 1920, aos três anos mudou-se com a sua família para Los Angeles, USA. Publicou mais de 45 livros de poesia e prosa, dentre os quais Misto-quente, Numa Fria, Factótum, Notas de um velho safado, Fabulário geral do delírio cotidiano e Pulp (o que comprei no aeroporto), concluído alguns meses antes de sua morte, em março de 1994, aos 73 anos.

Trazidos por Lourdinha, responsável pelo Momento Poético nesse dia, foram lidos os seguintes poemas e algumas frases de Bukowski:

Um poema de amor

 Charles Bukowski (Tradução: Jorge Wanderley)

todas as mulheres
todos os beijos delas as
formas variadas como amam e
falam e carecem.

suas orelhas elas todas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
maridos.

principalmente
as mulheres são muito
quentes elas me lembram a
torrada amanteigada com a manteiga
derretida
nela.

há uma aparência
no olho: elas foram
tomadas, foram
enganadas. não sei mesmo o que
fazer por
elas.

sou
um bom cozinheiro, um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar — eu estava ocupado
com coisas maiores.

mas gostei das camas variadas
lá delas
fumar um cigarro
olhando pro teto. não fui nocivo nem
desonesto. só um
aprendiz.

sei que todas têm pés e cruzam
descalças pelo assoalho
enquanto observo suas tímidas bundas na
penumbra. sei que gostam de mim algumas até
me amam
mas eu amo só umas
poucas.

algumas me dão laranjas e pílulas de vitaminas;
outras falam mansamente da
infância e pais e
paisagens; algumas são quase
malucas mas nenhuma delas é
desprovida de sentido; algumas amam
bem, outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre
são as melhores em
outras coisas; todas têm limites como eu tenho
limites e nos aprendemos
rapidamente.

todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos de dormir
os tapetes as
fotos as
cortinas, tudo mais ou menos
como uma igreja só
raramente se ouve
uma risada.

essas orelhas esses
braços esses
cotovelos esses olhos
olhando, o afeto e a
carência me
sustentaram, me
sustentaram.

O Pássaro Azul

Charles Bukovski (Tradução: Pedro Gonzaga)

 

há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você?

Bluebird

there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too tough for him,
I say, stay in there, I’m not going
to let anybody see
you.
there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the ****s and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he’s
in there.

there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?
there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody’s asleep.
I say, I know that you’re there,
so don’t be
sad.
then I put him back,
but he’s singing a little
in there, I haven’t quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it’s nice enough to
make a man
weep, but I don’t
weep, do
you?

então queres ser um escritor?

(Tradução: Manuel A. Domingos)

se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.

se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.

se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.

não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.

quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.

não há outra alternativa.

e nunca houve.

As frases de Bukowski lidas na ocasião;

 

Ainda no Momento Poético, Sarmento nos trouxe a música Mulheres, de Martinho da Vila, que Um Poema de Amor” o fez lembrar, com similar tema.

Mulheres

Martinho da Vila

Já tive mulheres de todas as cores
De várias idades, de muitos amores
Com umas até certo tempo fiquei
Pra outras apenas um pouco me dei
Já tive mulheres do tipo atrevida
Do tipo acanhada, do tipo vivida
Casada carente, solteira feliz
Já tive donzela e até meretriz
Mulheres cabeça e desequilibradas
Mulheres confusas, de guerra e de paz
Mas nenhuma delas me fez tão feliz
Como você me faz
Procurei em todas as mulheres a felicidade
Mas eu não encontrei e fiquei na saudade
Foi começando bem, mas tudo teve um fim
Você é o sol da minha vida, a minha vontade
Você não é mentira, você é verdade
É tudo o que um dia eu sonhei pra mim
Já tive mulheres de todas as cores
De várias idades, de muitos amores
Com umas até certo tempo fiquei
Pra outras apenas um pouco me dei
Já tive mulheres do tipo atrevida
Do tipo acanhada, do tipo vivida
Casada carente, solteira feliz
Já tive donzela e até meretriz
Mulheres cabeça e desequilibradas
Mulheres confusas, de guerra e de paz
Mas nenhuma delas me fez tão feliz
Como você me faz
Procurei em todas as mulheres a felicidade
Mas eu não encontrei e fiquei na saudade
Foi começando bem, mas tudo teve um fim
Você é o sol da minha vida, a minha vontade
Você não é mentira, você é verdade.
É tudo o que um dia eu sonhei pra mim
Procurei em todas as mulheres a felicidade
Mas eu não encontrei e fiquei na saudade
Foi começando bem, mas tudo teve um fim
Você é o sol da minha vida, a minha vontade
Você não é mentira, você é verdade
É tudo o que um dia eu sonhei pra mim

Após saboreado o momento poético, Eleta leu o seu conto CARNAVAL, que os viageiros, ansiosos para entender a  história em meio a fantasias, foliões, frevos, suspiros e decepções amorosas, logo lhe cobriram de perguntas, e deram  algumas sugestões, em alvoroço de mar agitado.

Passamos à leitura de um conto de Raduan Nassar (para acalmar os ânimos e os espíritos?): Hoje de Madrugada: 

“O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhos em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.”

Registrei aqui apenas o primeiro parágrafo desse conto, que Adelaide nos tinha enviado por e-mail, e vários dentre os viageiros o leram e discutiram à época; em consenso: um soco no estômago! Relido, agora, na Oficina, ainda mais nos assombrou e doeu. É assim Raduan Nassar, não escreve à toa. Merecidamente recebeu o prêmio Camões de Literatura 2016:

https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2017/02/17/raduan-nassar-recebe-premio-camoes-com-criticas-a-temer-e-ao-stf.htm

E assim voltamos para casa, marujadamente maravilhados, querendo  ler e reler, escrever, cortar, recortar e reescrever nossos enxeridos escritos, depois de ler mestres.

*Salete Oliveira é engenheira química, poeta e contista

Escrituras III – Manuscritos de Viagem

A Paixão pelas Palavras
Lourdes Rodrigues

Mais de uma década ao mar. Viagens longas, viagens curtas, sempre de olho no Traço-Porto-Seguro para fugir das arrebentações, das tormentas. Poder voltar sempre foi o que nos deu coragem de içar velas e enfrentar as ondas numa nova viagem.

Escrituras I e II mapearam as rotas dos oito primeiros anos, suas aventuras, suas emoções. Escrituras III – Manuscritos de Viagem representa as milhas náuticas percorridas em 2016. E a celebração pelo retorno das nossas estrelas guias que durante dois anos não navegaram; pela chegada dos novos viageiros, recebidos com guirlandas de flores em volta do pescoço pelos navegantes; e pelos marujos que se mantiveram firmes e indiferentes aos cantos das sereias, de olhos voltados para as águas turbulentas até o final da travessia.

Escrituras III – Manuscritos de Viagem registra o resgate da alegria dos primeiros tempos, de novos impulsos criadores, da exacerbação do sentir tudo de todas as maneiras, como dizia Fernando Pessoa, na poesia de seu heterônimo Álvaro Campos.

Os nossos viageiros são seres muito especiais que navegam pelos mares das palavras e das artes plásticas. Todas as imagens são de Anita Dubeux e de Paulo Tadeu, da capa às cortinas separadoras dos textos. Quase todos fazem poesia, líricas, com rimas, sem rimas, de cordel, prosa poética: Anita Dubeux, Eleta Ladosky, João Gratuliano, Luzia Ferrão, Salomé Barros, Salete Oliveira. E nossas tardes se enchem de encanto! Adelaide Câmara garimpa pérolas poéticas, com a poesia na alma, de olhos e ouvidos atentos para que não lhe escape um grande poema, embora teime em dizer que prefere a prosa ao verso, como modo de arte. Todos são ficcionistas, a prosa é a praia deles e escrevem com muito apuro.

Everaldo Soares, marujo dos primeiros tempos, nosso Ismael, transita com desenvoltura pelos mares das palavras não ditas, em face do seu perfil de psicanalista, com escuta especialmente arguta. Escreveu o conto O Feio, da releitura do Patinho Feio, trazendo à tona mal-estar imprevisível, interior, daquele que se sente diferente, quer pela feiura ou seus desconcertos, mas que mantém posição e não procura assemelhar-se ou desassemelhar-se com sua tribo. O seu patinho, apesar dos percalços vividos, não arreda pé de não cantar. Na temática do duplo, defendeu a ideia de que o duplo tem a ver com a constituição do eu e do outro, usando para isso o Estádio do Espelho de Lacan. O duplo é um outro perseguidor, geralmente do mesmo sexo, paranóico e destrutivo, que fracassa onde as pessoas comuns são vitoriosas, segundo Freud. Everaldo diz que a constituição do eu é erótica e mortífera, e a morte é fundamental para criação de símbolos: a palavra mata a coisa. Para ele, assim como para nós, a subjetividade é essencial ao trabalho da ficção. Por isso, a Psicanálise e a Literatura andam sempre juntas.

Cacilda Portela é resenhista, ensaísta, aqui e ali mergulha na escrita de um conto. O melhor crítico literário é João Gratuliano, nada escapa ao seu olhar. É o nosso Harold Bloom. Teresa Sales voltou, para a nossa alegria, a escrever suas prosas, contos e crônicas. Roberta Aymar, viageira de alguns portos, sempre a trazer contribuições inestimáveis.

Traçar cartas náuticas com esses viageiros tão destemidos e criativos nas artes e na literatura é saber que vamos mergulhar em mares profundos e fazer grandes e intensas viagens em que o riso, a alegria será sempre a bandeira hasteada. Mesmo quando o tema é difícil, o riso escapa para quebrar a tensão.

A Carta de Navegação 2016 põe em evidência a complexidade do ser humano, a partir de coordenadas fornecidas pela poesia, pela criatividade dos viageiros e pelos mergulhos entre linhas e silêncios dos escritos de autores selecionados pela sua alta conta na Literatura. Os escritores, como bem disse Freud, são seres que conhecem uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar.

No eixo Poesia, criou-se o Momento Poético, ocasião em que líamos os poetas preferidos ou as nossas próprias criações. Mais que um batismo para iniciação de cada percurso da viagem, tornou-se o instante em que cada viageiro pode mergulhar no mais profundo de seu ser e fazer a sua travessia muito particular. Grandes poetas por ali passaram. Começamos por Charles Baudelaire, lendo Gênio do Mal, tradução de Delfim Guimarães, que Adelaide Câmara descobriu, após exaustivas pesquisas, não existir na obra do poeta com esse título, embora inserido em As Flores do Mal sob o número XXV. Dentro do possível, procuramos acompanhar a leitura do poema traduzido para o português com a obra no original, permitindo-nos descobrir divergências, infidelidades e refletir sobre a definição de poesia de Robert Frost: That which is lost in translation.  Se na ficção é importante ver o original, porque os tradutores, por melhores que sejam, tendem a se tornar coautores ao se empolgarem e se afastarem muito do texto, na poesia, em que a sonoridade, às vezes a rima, a subjetividade, as metáforas, o intangível são a sua espinha dorsal, ler a tradução pode significar desvio e perdas substanciais. Entretanto, o tradutor e nós leitores não descobrimos sentidos, apenas nós os construímos.

Sonetos de William Shakespeare, Camões, poemas de Emily Dickinson, Lautréamont, Paul Valéry, Wislawa Szymborska, Sylvia Plath, Li Po, William Butler Yeats, Elizabeth Barrett Browning , Elizabeth Bishop, Benjamim A.S.M. M’Bakassy , Mia Couto, Cesare Pavese, Calderon de La Barca, Paul Verlaine, Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Florbela Espanca foram lidos com variadas doses de emoção pelos viageiros. Da Irlanda foi trazida uma poesia do Século VIII, Donal OG (no original, em Gaélico), Broken Wows (tradução inglesa), Votos Partidos (Português), com tradução belíssima de Lady Gregory que muitos já conheciam do filme Os Vivos e os Mortos, baseado no conto de James Joyce, Os Mortos. Muitas leituras vieram acompanhadas de vídeos, com excelentes interpretações, como foi o caso de Vincent Price, em O Corvo, de Edgar Allan Poe. As leituras de poemas pelo próprio poeta a exemplo de Sylvia Plath, Paul Verlaine, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, assim como a interpretação de Maria Betânia de poemas de Sophia Breyner e de José Régio encantaram-nos. Para comemorarmos o Dia Internacional da Mulher, a nossa viageira Adelaide presenteou-nos com poesias de Emily Dickinson, Florbela Espanca, Sylvia Plath, Sophia de Melo Breyner e o poema Mulher de Carlos Drummond de Andrade.

Para entender uma mulher é preciso mais que deitar-se com ela… Há de se ter mais sonhos e cartas na mesa que se possa prever nossa vã pretensão…

Poetas brasileiros, além de Carlos Drummond, que estiveram presentes uma e mais vezes no nosso recital poético: Ferreira Gullar, Mário Quintana, Manuel Bandeira, José Régio (Cântico Negro, lindo!), Carlos Pena Filho, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Manoel de Barros, Augusto dos Anjos, Vinicius de Moraes, Affonso Romano de Sant’Anna, Daniel Lima, Paulo Leminsky, Andrea Campos, Augusto dos Anjos. A viageira Luzia Ferrão nos trouxe o poeta das ruas, mais precisamente, dos semáforos, Lenemar Santos, natural de Gameleira, que vende seus livrinhos, feitos de forma artesanal, em Piedade.

Os nossos poetas também nos prestigiaram com suas criações. Anita Dubeux, Eleta Ladosky, João Gratuliano, Luzia Ferrão, Salete Oliveira e Salomé Barros trouxeram seus poemas para leitura na nossa nau, cada uma com um estilo muito próprio, dividindo conosco suas percepções poéticas. Salete ilustrou os seus com imagens bem sugestivas.

Quando trabalhávamos o tema erotismo, poemas antigos surgiram: Salomão (Cânticos dos Cânticos), Ovídio (A Poética do Sexo), Bocage, (Sonetos), Juan de La cruz (Eros Místico) e Apuleyo (Metamorfose).

Enfim, a poesia presente no início de cada milha náutica navegada em 2016 – bem ao estilo de Autran Dourado que dizia ler um poema todos os dias, antes de começar a escrever – preparou-nos o espírito para grandes viagens na criatividade e nas leituras que se sucederam.

Os primeiros desafios criativos foram a releitura de O Patinho Feio, de Christian Andersen; as escolhas difíceis, no limite do absurdo e do insuportável, A Escolha de Sofia, por exemplo, em que uma mãe se vê obrigada a escolher entre um filho e outro e a traição a uma amiga por ter se apaixonado pelo marido desta. Os marujos correram da parada da Escolha de Sofia, apenas Luzia Ferrão resolveu enfrentá-la e construiu texto muito interessante, Trindade, em que o personagem faz sua escolha. Salete Oliveira enfrentou o desafio da quebra de ética e escreveu Vizinhos. Apenas a faísca criativa de O Patinho Feio atingiu quase todos os viageiros e eles fizeram suas releituras a partir de narradores e personagens diferentes, pontos de vista, tempo e espaços narrativos diversos. Interessante exercício literário.

No eixo das leituras, a opção pelas viagens curtas deveu-se à certeza de que elas têm sobre os grandes percursos a vantagem da intensidade de efeito. Edgar Allan Poe decidido a falar sobre o seu processo criativo em A Filosofia da Composição, texto que lemos para dar suporte à nossa decisão, diz que:

Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído.

Além do efeito, a narrativa curta permite-nos o retorno a ela, seguidas vezes, para apreensão das entrelinhas que escapuliram às primeiras vistas, para preenchimento de silêncios carregados de vozes que passaram quase despercebidas, deixando no ar suspeitas de murmúrios a serem identificados. São tantos os olhares que se debruçam sobre ela que cada qual vai fazer uma leitura e julgá-la do seu lugar, com sua visão de mundo, com as suas percepções muito particulares.

A segunda opção foi que a nossa viagem seria temática, procuraríamos seguir roteiro que nos permitisse dar conta das pegadas desse ser complexo que é o homem.

O primeiro tema escolhido foi O Duplo. Temática instigante e intrigante da qual muito se fala e pouco se entende. Na visão mitológica o rastro atravessa milhares de anos, presente em muitas civilizações do passado. Talvez a mais antiga versão seja a de Doppelganger, palavra germânica que significa “duplo frequentador” e refere-se a um fantasma ou aparição que lançou sombras e é uma réplica ou duplo de uma pessoa viva. Considerado um mau presságio, indício de azar ou sinal de morte. Em termos de Psicanálise, o mais próximo que se chega para explicar é o Unheimliche de Freud, uma instância onde algo pode ser familiar e ao mesmo tempo estranho, e essa ausência de certeza traz profundo desconforto. O Duplo traz à superfície questões ligadas à identificação, ao narcisismo e ao medo da morte. Na verdade à própria essência do ser humano.Na Literatura, desde sempre esteve presente. Entre os gregos, com Narciso apaixonando-se pelo seu reflexo na água; no Egito, com Ka, espírito duplo, tangível. Nos tempos mais recentes, inúmeros autores trabalharam o tema em seus livros, entre eles Dostoievski, Borges, Edgar Allan Poe, Carlos Fuentes, Robert Stevenson entre muitos outros.
William Wilson, de Poe, é uma referência para qualquer estudo literário sobre O Duplo, por isso, a nossa escolha recaiu sobre ele. Em Escrituras III, o tema foi contemplado sob a forma de cordel, resenhas e contos.

Seguindo a mesma trilha, veio a Loucura como tema, conscientes da importância, seriedade e beleza dele, pois o que seria de nós sem ela, diz Fernando Pessoa: Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia/Cadáver adiado que procria? Graham Greene, diferente de Fernando Pessoa, contrapõe aclamando as artes plásticas, a música, a literatura como forma de fazer sinthoma para salvar o homem da loucura.

Às vezes cogito como é que todos os que não escrevem, não compõem ou não pintam conseguem escapar da loucura, da melancolia, do pânico inerente à condição humana.

Foram nossas leituras a fábula de Jean de La Fontaine, O Amor e a Loucura, a pequena novela ou conto de Gogol, Diário de um Louco, os contos O Sistema do Doutor Alcatrão e do Professor Pena, O Coração Delator, ambos de Edgar Allan Poe e mais adiante o excelente e terrível conto de Nabokov, Signos e Símbolos. Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdã não foi concluído, o que lamentamos pela excelente qualidade da obra.

Os viageiros não escreveram seus textos, quem sabe cautelosos com os riscos que o tema representa para aquele que resolve enfrentá-lo, verdadeiro campo minado. Quando ainda decidíamos que caminho seguir, Humor ou Loucura, apesar das dúvidas, venceu a última, para receio de alguns.

O Erotismo veio a seguir e provocou gargalhadas estrondosas durante o seu percurso, pela forma bela e irreverente como foi tratado por alguns clássicos da literatura e, também, pelos rubores e desconcertos dos viageiros em algumas passagens mais licenciosas. Tempos inesquecíveis dessa viagem, afastando temores e fantasmas deixados pelos temas anteriores.

Começamos com o Banquete (O amor e o Belo) de Platão, no trecho em que Aristófanes, dirigindo-se a Erixímaco, explica o poder do Amor, expondo a natureza humana e suas vicissitudes. E vai desenvolvendo a sua tese, dizendo que antes existiam três gêneros da humanidade, o homem, a mulher e um terceiro, andrógino aos dois. E por aí segue… Depois dele lemos A Metamorfose, de Lúcio Apuleio; A Poética do Sexo, de Ovídio; Cânticos dos Cânticos, de Salomão (atribuído, não questionamos a propriedade); Eros Místico, de Juan de La Cruz; Sonetos, do irreverente Bocage; De como Panurgo se apaixonou por uma grande dama de Paris, de Rabelais; A Sedução Criativa, de Giácomo Casanova e o Canto V, do Inferno, de Dante, onde estão aqueles que cometeram o pecado da Incontinência Sexual.

Depois veio o Marquês de Sade, impossível não considerá-lo, logo ele, representante maior do erotismo e da obscenidade. Do autor foram lidas duas obras,   O Marido que recebeu a Lição, texto levíssimo e bem humorado; De Monges e Virgens, de sua obra bem conhecida Justine, um texto em que a perversão está bem explícita. Finalmente, Bataille, em O Olho do Gato.
Em termos de erotismo na Literatura brasileira, embora existam grandiosas contribuições, escolhemos exatamente dois autores que não são conhecidos por essa temática: Clarice Lispector, nossa madrinha, em A Via Crucis do Corpo; e Carlos Drummond de Andrade, em A moça Mostrava a Coxa. A bem da verdade, após a sua morte, descobriu-se que ele era um mestre na literatura erótica. Vejamos o trecho a seguir do autor:

Assim o amor ganha o impacto dos fonemas certos
No momento certo, entre uivos e gritos litúrgicos,
Quando a língua é falo, e verbo a vulva,
E as aberturas do corpo, abismos lexicais onde se restaura
A face intemporal de Eros,
Na exaltação de erecta divindade
Em seus templos cavernames de desde o começo das eras
Quando cinza e vergonha ainda não haviam corroído a
inocência de viver.

O Erotismo é um campo vasto, apenas tocamos ao de leve por importantes literaturas dele, o caminho foi aberto para quem quiser segui-lo e, quem sabe, até mergulhar mais profundamente nas suas águas.

Da escritora portuguesa, Lídia Jorge, lemos o conto Marido que muito bem representa a servidão humana levada às últimas consequências. É uma narrativa tão forte que ao concluir a sua leitura todos ficaram mudos, olhando uns para os outros sem palavras. Quando o silêncio foi quebrado, todos quiseram falar ao mesmo tempo e por para fora o engasgo que os havia deixado sem fala. A autora, ao abordar um tema tão difícil e ao mesmo tempo tão presente em todas as épocas, utiliza, com maestria, a forma literária mais lírica e bela que se possa imaginar. Escrituras III – Manuscrito de Viagem apresenta duas resenhas sobre esse conto e dois textos ficcionais.

De Lígia Fagundes Telles, que bem deveria ter recebido o Nobel este ano, lemos a Pomba Enamorada ou Uma História de Amor, conto apaixonante e que se insere na temática da obsessividade. Enredo simples, contado com perícia/perfeição literária, muito rico em possibilidades de releituras, com outros pontos de vista e de finalização.O desfecho fica em aberto para o leitor continuar. Jovem candidata a rainha de um baile encontra rapaz e se enamora dele. Daí em diante ela não lhe dá trégua, criando inúmeras possibilidades de encontro, sendo sempre rejeitada por ele. Trata-se de um autêntico caso de obsessão amorosa, em que a pessoa observa no outro um ideal de amor, de relacionamento que só existe para ela. Duas resenhas e duas outras versões da história, além de outro final, estão neste livro.

Menina a Caminho, de Raduan Nassar, foi outra obra prima literária que mobilizou os navegantes a fazerem suas resenhas, cada qual com um olhar diferente do olhar do outro, conforme pode se observar nos escritos dos viajeiros.Uma menina magricela anda pelas ruas, sem pressa, e testemunha várias cenas que a fazem transitar entre o mundo infantil e o mundo adulto.

A última leitura que fizemos foi de O Búfalo, de Clarice Lispector, conto que levou a muitas interpretações, mas não houve tempo para a produção de resenha.
E mais contos e poemas participam desse livro como resultado de novas viagens realizadas pelos navegantes desgarrados de cartas de navegação, ao sabor do vento e do cheiro das águas.

Outro eixo importante da Carta de Navegação 2016 foi a criação do Carrossel Literário, espaço para compartilhamento das obras favoritas dos viageiros, que culminou num processo de transferência entre os seus participantes, pela identificação de interesses e paixões literárias. Importantes e desconhecidos autores, por alguns viageiros, desfilaram no carrossel e foram lidos com avidez e interesse.

Do Romance Coletivo foi concluída a primeira parte de três. Não houve fôlego para dar conta das duas restantes, devendo voltar à programação do próximo ano.

Escrituras III – Manuscritos de Viagem é um livro de contos, resenhas e poesias, formas de expressão literária que nós marujos encontramos para expressar o nosso sentir diante do mundo de fantasias que surgiram de nossas leituras dos textos aqui mencionados. Aos seus leitores, desejamos que também se lancem ao mar e façam suas próprias viagens.

Jaboatão dos Guararapes, 25 de novembro de 2016